Discursos João Paulo II 2001 - Sábado, 27 de Janeiro de 2001


DISCURSO ÀS PARTICIPANTES NO CAPÍTULO GERAL DAS MESTRAS PIAS DE SANTA LÚCIA FILIPPINI

29 de Janeiro de 2001





Caríssimas Filhas
de Santa Lúcia Filippini

1. Sinto-me feliz por vos receber e a cada uma de vós dou as cordiais boas-vindas. Agradeço-vos esta visita, com a qual, por ocasião do vosso Capítulo Geral Ordinário, desejais renovar a expressão da vossa plena fidelidade e adesão ao Sucessor de Pedro.

Vós estais empenhadas há anos em vários Países do mundo e pondes-vos com amor ao serviço do Evangelho, atentas às necessidades dos pequeninos, dos pobres e dos que sofrem, procurando inspirar o vosso ministério educativo em Jesus Mestre, num estilo de seguimento que faz apelo ao amor esponsal. Continuai por este caminho, cooperando na difusão do Evangelho da caridade nos novos âmbitos de apostolado que o Senhor vos confia. A experiência, maturada pelo vosso Instituto durante longos anos de serviço a Cristo e à Igreja, constitui, no início do novo milénio, um feliz preliminar para uma época de vida consagrada e apostólica ainda mais fecunda.

2. O vosso Capítulo Geral tem lugar quando se acabou de concluir o Grande Jubileu do Ano 2000. Ele trata um tema que é para vós de grande interesse: "As Constituições, lâmpada para os meus passos, luz para o meu caminho" (Ps 118). A escolha do tema deseja ressaltar a necessidade de uma renovada referência à Regra, porque nela e nas Constituições se encerra um itinerário de seguimento qualificado por um específico carisma autenticado pela Igreja (cf. Vita consecrata, VC 37).

Por conseguinte, o objectivo fundamental do Capítulo é consentir aos membros uma interiorização mais consciente das Constituições, a fim de viverem uma autêntica espiritualidade comunitária, que seja testemunho profético dos valores do Reino. Perante o alastrar-se de uma mentalidade secularizada, a observância fiel da Regra será para vós, queridas Irmãs, uma válida ajuda para vos fortalecerdes na tendência ao Absoluto, não vos conformando com o espírito deste mundo, mas progredindo dia após dia na conformação a Cristo.

A assembleia capitular oferece-vos a oportunidade de voltar de novo, com humildade e coragem, às origens do vosso Instituto, haurindo nele um vigor mais intenso para responder aos desafios que agora se apresentam às vossas iniciativas apostólicas. Olhando para a singular experiência do Cardeal Marcantonio Barbarigo e da jovem Lúcia Filippini, podereis realizar a desejada renovação das estruturas e dos métodos, mantendo firme a referência à Regra e às Constituições, que reúnem um itinerário de seguimento de Cristo de acordo com o vosso específico carisma educativo, pedagógico e assistencial. Através de uma maior adesão a Ele, pedra angular, que "é o mesmo ontem, hoje e sempre" (He 13,8), o dom que o Espírito Santo fez aos vossos Fundadores poderá continuar a animar a vossa experiência quotidiana.

3. Neste momento, não posso deixar de pensar de novo em quando, nos finais de 1600, o Cardeal Marcantonio Barbarigo, coadjuvado pela jovem Lúcia Filippini, deu início a uma ampla acção de apoio humano e espiritual dos jovens, dedicando-se também ao melhoramento da condição feminina e ao restabelecimento moral e cultural do clero e do povo? Precisamente para esta finalidade foram constituídas, por volta de 1692, as "Escolas da Doutrina Cristã" para as jovens do povo, na perspectiva do saneamento da família e da sociedade. Desta forma, surgia um corpo de professoras válido e estável, capaz de realizar, com fidelidade e criatividade, aquele projecto de intervenção educativo que Barbarigo e a jovem Lúcia Filippini tinham idealizado.

O vosso Capítulo Geral, que tem lugar no alvorecer do terceiro milénio, constitui quase uma pausa para considerar o caminho até agora percorrido e avaliar o início, mais do que nunca prometedor, de uma nova época de serviço eclesial na Itália, na Europa e nos territórios de missão nos quais estais presentes. A Igreja, caríssimas Irmãs, espera muito de vós: do vosso exemplo e da vossa generosa dedicação apostólica.

Estais chamadas a exercer um particular ministério educativo, que se manifeste em constantes sinais de amor, sobretudo em benefício dos pobres, e que, através das escolas, favoreça não só um sólido crescimento cultural dos alunos, mas também a sua consciente aproximação às verdades perenes do Evangelho.

4. Para que possais prosseguir com bons resultados este vosso apostolado, seja vossa solicitude prioritária cultivar uma espiritualidade pessoal e comunitária que saiba harmoniosamente fundir a salvaguarda da interioridade e a generosa dedicação às vossas numerosas actividades apostólicas e caritativas.

Para alcançar este objectivo, durante os trabalhos do capítulo reconhecestes oportunamente na formação para a vida consagrada, no espírito de oração, na comunhão fraterna e na missão na Igreja e no mundo, os caminhos privilegiados para continuar a ser, a exemplo dos Fundadores, uma presença significativa no nosso tempo. Perante o crescente indiferentismo religioso, estais chamadas a realizar a vossa missão específica, sobretudo no campo escolar, tendo em consideração as dificuldades relacionadas com os diversos contextos culturais e locais. Sede corajosas e entusiastas, sem vos deixardes condicionar pelos obstáculos de qualquer tipo que podereis encontrar.

Revivei em vós o ardente sentimento de Paulo, que exclamava: "Ai de mim, se não evangelizar" (1Co 9,16). Na escola dos vossos Fundadores, ponde o vosso apostolado sob a protecção da Mãe de Deus, Maria, que a Igreja venera "como mãe amantíssima, dedicando-lhe afecto e piedade filial" (Lumen gentium, LG 53). Estou certo de que, desta forma, suscitareis em numerosas jovens o desejo de encontrar Cristo e de o servir com "coração indiviso" nos irmãos débeis e indefesos.
Com estes sentimentos, concedo-vos de coração, caríssimas Irmãs, uma especial Bênção, que faço extensiva a todas as pessoas, sobretudo jovens, com as quais vos empenha a tarefa apostólica da vossa Família religiosa.






AOS PRELADOS DA CONFERÊNCIA EPISCOPAL DA HUNGRIA EM VISITA "AD LIMINA"

30 de Janeiro de 2001



Senhor Cardeal
Venerados Irmãos no Episcopado

1. A graça de nosso Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus Pai e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos e cada um de vós! Sinto-me feliz por vos receber por ocasião da vossa visita ad Limina. A peregrinação ao Túmulo do Príncipe dos Apóstolos é um momento significativo na vida de cada Pastor, dado que lhe oferece a oportunidade de expressar a sua comunhão com o Sucessor de Pedro e de compartilhar com ele as solicitudes e as esperanças ligadas ao ministério episcopal.

A vossa visita coloca-se no âmbito de duas grandes celebrações: o recente encerramento da Porta Santa do Grande Jubileu e, na vossa Pátria, a comemoração dos mil anos desde que a vossa Nação se tornou cristã. Estes acontecimentos já me proporcionaram a oportunidade de vos saudar, tanto através do Cardeal, meu Secretário de Estado, que me representou por ocasião da solenidade de Santo Estêvão, como pessoalmente, quando há poucos meses viestes ao Túmulo de São Pedro com a peregrinação do vosso País.

2. Quem quer enfrentar eficazmente o futuro, deve voltar às próprias raízes. As celebrações jubilares, tanto aqui em Roma como na vossa Nação, concentraram-se no evento histórico do qual teve origem o cristianismo. O Grande Jubileu convidou-nos a voltar o olhar para o momento em que o Verbo de Deus assumiu a nossa natureza humana e nasceu no tempo, Ele que é o mesmo ontem, hoje e sempre (cf. Hb He 13,8). O meu profundo desejo é que os nossos olhos permaneçam fixos no único Redentor do homem, como sublinhei na minha recente Carta Apostólica Novo millennio ineunte. Neste documento, ofereci um programa exigente para o futuro, apresentando algumas linhas básicas que considero importantes para não perder de vista o rosto do Salvador e para pôr em prática a mensagem evangélica.

A primeira tarefa dos Pastores da Igreja consiste em anunciar as verdades da fé, que culminam na Encarnação e no Mistério pascal. A nossa mensagem haure a sua força da contemplação do rosto de Cristo, Deus-Homem, morto e ressuscitado por nós. Somente porque o Filho de Deus se fez verdadeiro homem é que nós homens podemos, n'Ele e através d'Ele, tornar-nos realmente filhos de Deus. A importância que atribuís à contemplação de Cristo será um sinal clarividente da vontade de conferir à vossa missão uma característica espiritual e pastoral, que não deixará de influenciar o estilo de vida de quantos vos são confiados.

3. Neste contexto, quereria expressar o meu apreço pelos vossos esforços, destinados a promover no clero, nos religiosos e nos fiéis leigos das vossas Igrejas locais uma espiritualidade autêntica, que os torne capazes de enfrentar os vários desafios pastorais com um renovado impulso de entusiasmo, alimentado pelas experiências jubilares. A este propósito, gostaria de chamar de novo a vossa atenção para o programa que delineei na Carta Apostólica Novo millennio ineunte: nela, reuni alguns exigentes imperativos evangélicos. O olhar fixo em Cristo, que veio para que tenhamos vida e a tenhamos em abundância (cf. Jo Jn 10,10), compromete-nos na recepção deste dom em cada um dos seus aspectos, a começar pelo físico. No início do terceiro milénio, sentimos mais do que nunca a exigência de que a vida seja defendida e salvaguardada. É necessário suscitar no nosso mundo uma verdadeira "cultura da vida".

Conheço a energia com que vos empenhais como defensores da vida. Não obstsante a vossa dedicação incansável, também na vossa Pátria se registam dados preocupantes, que em muitos países do velho Continente caracterizam a difusão de uma cultura da morte cada vez mais grave. As estatísticas acerca do aborto, publicadas nos últimos decénios no vosso país, são alarmantes. Elas devem levar a defender sem temor e com clareza a vida humana em cada uma das fases da sua existência, desde a concepção até à morte natural. Fazei tudo o que vos for possível par encorajar as mulheres grávidas a completar o período de gravidez.

Nestes tempos dramáticos, a Igreja assume uma função importante. Os cristãos devem tornar-se cada vez mais aquilo que são chamados a ser: sal da terra e luz do mundo (cf. Mt Mt 5,13-14). Esta nobre vocação obriga sobretudo os Pastores que, como se lê na segunda Carta a Timóteo, devem estar prontos a tomar a palavra em cada ocasião, oportuna e inoportunamente (cf. 2Tm 4,2). Comprometei-vos lá onde julgais que deveis defender Deus e o homem! Não sois do mundo, mas não vos afasteis do mundo (cf. Jo Jn 15,19). Uma sociedade laica, que se cala cada vez mais sobre Deus, tem necessidade da vossa voz. Para dar uma alma à sociedade, pode ser conveniente procurar unir-se aos Pastores e cristãos de outras Igrejas e Comunidades eclesiais. De facto, o ecumenismo do testemunho abre um amplo campo de colaboração.

4. Os actuais condicionamentos da Igreja na Hungria não devem ser identificados simplesmente com um contexto agnóstico de indiferença religiosa. Mesmo que tenha sido expulso ou feito calar, Deus está presente. Sem dúvida, muitos vivem como se Deus não existisse. Mas o desejo d'Ele está sempre vivo nos corações. Com efeito, o homem não se contenta somente com aquilo que é humano, mas busca uma verdade que o transcende, porque sente, embora confusamente, que nela se encontra o sentido da própria vida. A resposta à questão do sentido da vida é a grande ocasião favorável à Igreja. Portanto, abramos as nossas portas a todos aqueles que sinceramente procuram Deus! Quem pede a verdade à Igreja, tem o direito de esperar que ela exponha autêntica e integralmente a palavra de Deus, escrita ou transmitida (cf. Dei Verbum DV 10). Assim, a busca da verdade é projectada a partir dos perigos de uma religiosidade indeterminada, irracional e sincretista, e a Igreja de Deus vivo revela-se por aquilo que é: "coluna e sustentáculo da verdade" (1Tm 3,15).

5. A Igreja no vosso País foi submetida a vários géneros de perseguição: há formas de perseguição violenta e outras sofisticadas e mais subtis. Nos últimos dez anos, a Igreja viveu uma realidade diversa: a "viragem" levou não só a uma nova liberdade, mas também a um "choque consumista". Os bens materiais são colocados em evidência com tal insistência que com frequência sufocam qualquer desejo de valores religiosos e morais. Mas com o passar do tempo, se a alma permanece sem alimento e somente as mãos estão cheias, o homem experimenta o vazio: "Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus" (Mt 4,4 cf. também Dt 8,3).

Neste contexto, desejaria exprimir a minha solicitude no que diz respeito ao significado do domingo, que é cada vez mais ameaçado pelo esvaziamento. Na Carta Apostólica Dies Domini, falei do domingo como dia do Senhor e dia do homem. Desejo reiterar um pensamento que me está a peito: como pessoa, o homem não deve ser esmagado pelos interesses económicos. Trata-se de um perigo concreto, porque "a sociedade consumista", onde Deus é frequentemente considerado como morto, criou um número suficiente de ídolos, entre os quais se evidencia o do lucro, custe o que custar. Durante o Grande Jubileu, manifestou-se também um rosto diverso destas sociedades: muitos homens redescobriram as reservas do cristianismo e da Igreja, ou seja, a fé testemunhada e vivida por inúmeros fiéis. Não obstante as aparências, que poderiam dar a impressão do contrário, a fé cristã está profundamente radicada na alma do vosso povo. Cabe a vós despertar a voz de Deus nas consciências dos homens.

6. À verdade da fé deve corresponder a coerência da vida. A Igreja que está na Hungria, não rica de bens materiais, possui inestimáveis riquezas espirituais, constituídas pelos testemunhos de fé e de santidade dos seus membros. Penso em particular nas famílias cristãs, verdadeiras "igrejas domésticas". Diante dos desafios da sociedade moderna, é necessária uma renovada pastoral da família. Confiei-vos este meu desejo na Mensagem que vos enviei na solenidade de Santo Estêvão, no inesquecível Ano 2000. Nessa ocasião, escrevi-vos: "Estai conscientes da centralidade da família para uma convivência ordenada e florida" (l.c., n. 4). Estou feliz por terdes reservado à família um lugar privilegiado na hierarquia das prioridades pastorais, escrevendo uma conjunta Carta Pastoral sobre a Família. Aprecio esta acção concertada e faço votos para que sejam emanadas muitas outras.

A obra da evangelização do vosso País é efectivamente tão vasta que requer todas as vossas forças e energias. Existem os "púlpitos" tradicionais como a pregação, a catequese, os retiros espirituais e as Cartas pastorais. Mas ao mesmo tempo são importantes os novos "areópagos", que vos esperam: a rádio, a televisão e as novas tecnologias. É difícil usar e "evangelizar" estes novos instrumentos mas, com fantasia e coragem, é possível! Felicito-vos pela iniciativa de desejar criar uma rádio católica. Se for bem gerida e utilizada, esta instituição pode tornar-se para vós, Pastores, uma espécie de púlpito de onde será possível alcançar também as pessoas que se afastaram da Igreja.

7. Estimados Irmãos! Se cada cristão é chamado a conformar-se com Cristo, o Bispo é-o ainda mais, dado que deve ser o modelo da sua grei. Cristo esteja sempre no âmago da vossa vida.

Gosto muito do lema que escolhestes para o vosso milenário húngaro: "O nosso passado é a nossa esperança Cristo é o nosso futuro". Cristo será o vosso porvir, se continuardes a contemplar o seu rosto; se procurardes viver cada vez mais a Igreja-comunhão; se vos comprometerdes em favor de uma genuína e entusiasmante pastoral vocacional, para fazer frente à escassez de sacerdotes, religiosos e religiosas; se ajudardes os fiéis leigos a descobrir e a viver ainda mais a sua própria vocação, sobre a qual muito insistiu o Concílio Vaticano II.

A privilegiada pupila dos olhos da vossa pastoral deve ser a juventude. A este respeito, nos últimos anos pudestes dar um importante passo em frente, reabrindo numerosas escolas católicas e erigindo a Universidade católica. Estas instituições constituem aquele tipo de "laboratório" em que os estudantes têm a possibilidade de se preparar para uma vida cristã digna da liberdade do homem e fundamentada na verdade. Quem segue a voz da consciência precisa do saber autêntico, conforme às verdades propostas pelo Magistério.

8. Prezados Irmãos, com estes pensamentos quis estimular-vos no exercício das tarefas pastorais a vós confiadas, ao serviço da Igreja que está na vossa Pátria. Consciente da grande dedicação com que levais a cabo o vosso ministério episcopal, gostaria de vos expressar o meu fraterno e grato apreço. Em cada situação vos conforte o pensamento que Jesus Cristo não vos escolheu ao seu serviço como simples "administradores", mas vos consagrou como ministros dos seus Mistérios, chamando-vos a participar na sua amizade (cf. Jo Jn 15,14-15).

Enfim, confio a vossa existência e a vossa missão de Pastores dos vossos reabanhos à intercessão de Maria, Magna Domina Hungarorum. Sobre vós, os sacerdotes, diáconos, religiosos e leigos das vossas Dioceses, desça a abundância das graças celestiais, cujo penhor é a Bênção Apostólica que a todos concedo de coração.





                                                                             Fevereiro de 2001


AOS PRELADOS AUDITORES, OFICIAIS E


ADVOGADOS DA ROTA ROMANA


POR OCASIÃO DA INAUGURAÇÃO DO ANO JUDICIÁRIO


1 de Fevereiro de 2001



1. A inauguração do novo Ano Judiciário do Tribunal da Rota Romana oferece-me, mais uma vez, a ocasião propícia para me encontrar convosco. Ao saudar com afecto todos os presentes, é-me particularmente grato exprimir-vos, caros Prelados Auditores, Oficiais e Advogados, a mais sentida consideração pelo prudente e árduo trabalho, de que vos ocupais na administração da justiça ao serviço desta Sé Apostólica. Trabalhais com qualificada competência na defesa da santidade e indissolubilidade do matrimónio e, em última análise, dos direitos sagrados da pessoa humana, segundo a secular tradição do glorioso Tribunal da Rota.

Agradeço ao Monsenhor Decano, que se tornou intérprete e porta-voz dos vossos sentimentos e da vossa fidelidade. As suas palavras fizeram-nos reviver oportunamente o Grande Jubileu, há pouco concluído.

2. Com efeito, as famílias estiveram entre os grandes protagonistas das jornadas jubilares, como evidenciei na Carta apostólica Novo millennio ineunte (cf. n. 10). Nela, recordei os riscos a que está exposta a institiuição familiar, sublinhando que "in hanc potissimam institutionem diffusum absolutumque discrimen irrumpit" (n.d.t., "regista-se uma crise generalizada e radical desta instituição fundamental") (n. 47). Entre os desafios mais difíceis que hoje se apresentam à Igreja encontra-se o de uma cultura individualista invasora que tende, como bem disse o Monsenhor Decano, a circunscrever e confinar o matrimónio e a família ao mundo privado. Portanto, julgo oportuno retomar hoje de manhã alguns temas que abordei nos nossos encontros precedentes (cf. Alocuções à Rota, de 28 de Janeiro 1991: AAS, 83, PP 947-953 pp. 947-953; e de 21 de Janeiro de 1999: AAS, 91, PP 622-627), para confirmar o ensinamento tradicional sobre a dimensão natural do matrimónio e da família.

O Magistério eclesiástico e a legislação canónica contêm abundantes referências a respeito do carácter natural do matrimónio. O Concílio Vaticano II, na Gaudium et spes, considerando que "o próprio Deus é o autor do matrimónio, que dotou de vários bens e fins" (n. 48), aborda alguns problemas de moralidade conjugal referindo-se a "critérios objectivos assumidos da natureza da pessoa e dos seus actos" (n. 51). Por sua vez, ambos os Códigos por mim promulgados, ao formularem a definição do matrimónio, afirmam que o "consortium totius vitae" (n.d.t., a comunhão de toda a vida) é "ordenada por sua índole natural ao bem dos cônjuges e à geração e educação da prole" (Código de Direito Canónico [CDC], cân. 1055; Códico Canónico das Igrejas Orientais [CCIO], cân. 776 1).

No clima criado por uma secularização cada vez mais acentuada e por um delineamento totalmente privado do matrimónio e da família, esta verdade não só não é aceite, mas é constestada de forma aberta.

3. Acumularam-se muitos equívocos à volta da própria noção de "natureza". Acima de tudo, foi esquecido o conceito metafísico, que é precisamente aquele a que se referem os citados documentos da Igreja. Além disso, tende-se a reduzir o que é especificamente humano ao âmbito da cultura, reivindicando para a pessoa uma criatividade e operatividade completamente autónomas a níveis tanto individual como social. Nesta óptica, o natural seria um puro dado físico, biológico e sociológico, a manipular mediante a técnica, em conformidade com os próprios interesses.

Esta oposição entre cultura e natureza deixa a cultura sem nenhum fundamento objectivo, à mercê do livre arbítrio e do poder. Isto observa-se de modo muito claro nas tentativas actuais de apresentar as uniões de facto, também as homossexuais, como equiparáveis ao matrimónio, a que se nega o próprio carácter natural.

Esta concepção meramente empírica da natureza impede de modo radical a compreensão de que o corpo humano não é algo extrínseco à pessoa mas, com a alma espiritual e imortal, constitui um princípio intrínseco do ser unitário que é a pessoa humana. Foi o que apresentei na Encíclica Veritatis splendor (cf. nn. 46-50: AAS, 85 [1993], PP 1169-1174), onde sublinhei a relevância moral desta doutrina, tão importante para o matrimónio e a família. De facto, é fácil procurar em falsos espiritualismos uma presumível ratificação daquilo que é contrário à realidade espiritual do vínculo conjugal.

4. Quando a Igreja ensina que o matrimónio é uma realidade natural, propõe uma verdade evidenciada pela razão, para o bem dos cônjuges e da sociedade e confirmada pela revelação de nosso Senhor, que põe explicitamente em estreita conexão a união conjugal com o "princípio" (cf. Mt Mt 19,4-8), de que fala o Livro do Génesis: "Criou-os homem e mulher" (1, 27), e "os dois serão uma só carne" (2, 24).

Porém, o facto de o dado natural ser confirmado e elevado de maneira autorizada a sacramento por nosso Senhor não justifica de modo algum a tendência, hoje infelizmente bastante presente, a fazer uma ideologia da noção do matrimónio natureza, propriedade e finalidade essenciais reivindicando uma diversa e válida concepão por parte do crente ou do não-crente, do católico ou do não-católico, como se o sacramento fosse uma realidade sucessiva e extrínseca ao dado natural, e não o próprio dado natural evidenciado pela razão, assumido e elevado por Cristo a sinal e instrumento de salvação.

O matrimónio não é uma união qualquer entre pessoas humanas, susceptível de ser configurada segundo uma pluralidade de modelos culturais. O homem e a mulher encontram em si mesmos a inclinação natural para se unir conjugalmente. Mas o matrimónio, como observa muito bem S. Tomás de Aquino, é natural não porque "é causado pela necessidade dos princípios naturais", mas enquanto realidade "para a qual a natureza inclina, mas que é completada mediante o livre arbítrio" (Summa Theol. Suppl., q. 41, a. 1, in c.). Por conseguinte, toda a oposição entre natureza e liberdade, entre natureza e cultura é totalmente errónea.

Quando se examina a realidade histórica e actual da família, não raro se tende a realçar as diferenças, para tornar relativa a própria existência de um desígnio natural sobre a união entre o homem e a mulher. Ao contrário, torna-se mais realista constatar que, juntamente com as dificuldades, os limites e os desvios, no homem e na mulher está sempre presente uma inclinação profunda do seu ser, que não é fruto da sua invenção e, nos traços fundamentais, transcende amplamente as diversidades histórico-culturais.

De facto, o único caminho através do qual se pode manifestar a autêntica riqueza e variedade de tudo o que é essencialmente humano é a fidelidade às exigências da própria natureza. E também no matrimónio, a desejável harmonia entre a diversidade de realizações e a unidade essencial não é só uma hipótese, mas é garantida pela fidelidade vivida perante as exigências naturais da pessoa. Por outro lado, o cristão sabe que pode contar para isto com a força da graça, capaz de sanar a natureza ferida pelo pecado.

5. O "consortium totius vitae" exige a recíproca doação dos cônjuges (cf. CDC, cân. 1057 2; CCIO, cân. 817 1). Porém, esta doação pessoal tem necessidade de um princípio de especificidade e de um fundamento permanente. A consideração natural do matrimónio faz-nos ver que os cônjuges se unem precisamente enquanto pessoas entre as quais existe uma diversidade sexual, com toda a riqueza também espiritual que esta mesma diversidade possui a nível humano. Os esposos unem-se enquanto pessoa-homem e pessoa-mulher. A referência à dimensão natural da sua masculinidade e feminilidade é decisiva para compreender a essência do matrimónio. O vínculo pessoal do cônjuge instaura-se exactamente ao nível natural da modalidade masculina ou feminina do ser pessoa humana.

O âmbito do agir dos esposos e, por conseguinte, dos seus direitos e deveres matrimoniais, é consequência do âmbito do seu ser e encontra neste último o seu verdadeiro fundamento. E assim, em virtude deste singularíssimo acto de vontade que é o consentimento (cf. CDC, cân. 1057 2; CCIO, cân. 817 1), o homem e a mulher estabelecem livremente entre si um nexo prefigurado da sua natureza, que já é para ambos um autêntico caminho vocacional, através do qual podem viver a própria personalidade como resposta ao desígnio divino.

A orientação para as finalidades naturais do matrimónio o bem dos cônjuges e a procriação e educação da prole está intrinsecamente presente na masculinidade e na feminilidade. Esta índole teleológica é decisiva para compreender a dimensão natural da união. Neste sentido, a índole natural do matrimónio compreende-se melhor quando não é separada da família. Matrimónio e família são inseparáveis, porque a masculinidade e a feminilidade das pessoas casadas são constitutivamente abertas ao dom dos filhos. Sem esta abertura, nem sequer poderia existir um bem dos cônjuges digno deste nome.

Também as suas propriedades essenciais, a unidade e a indissolubilidade, se inscrevem no próprio ser do matrimónio, dado que não existem de forma alguma leis que lhe sejam extrínsecas. Somente se for considerado como união que compromete a pessoa na actuação da sua estrutura de relacionamento natural, que permanece essencialmente a mesma através da vida pessoal, é que o matrimónio pode situar-se para além das mudanças da vida, dos esforços e até mesmo das crises pelas quais não raro passa a liberdade humana na prática dos seus compromissos. Por outro lado, se a união conjugal for considerada como algo que se fundamenta unicamente nas qualidades pessoais, nos interesses ou nas atracções, é evidente que ela já não se apresenta como uma realidade natural, mas como uma situação que depende da actual perseverança da vontade, em função da persistência de factos e de sentimentos contingentes. Sem dúvida, o vínculo é realizado pelo consentimento, ou seja, por um acto de vontade do homem e da mulher; mas este consentimento actualiza uma potência já existente na natureza do homem e da mulher. Assim, a própria força indissolúvel do vínculo está assente no ser natural da união livremente estabelecida entre o homem e a mulher.

6. Muitas consequências derivam destes pressupostos ontológicos. Limitar-me-ei a indicar as consequências de singular relevância e actualidade no direito canónico matrimonial. Desta maneira, à luz do matrimónio como realidade natural, compreende-se com facilidade a índole natural da capacidade de se contrair um matrimónio: "Omnes possunt matrimonium contrahere, qui iure non prohibentur" (CDC, cân. 1058; CCIO, cân. 778). Nenhuma interpretação das normas sobre a incapacidade de consentimento (cf. CDC, cân. 1095; CCIO, cân. 818) seria justa, se na prática tornasse vão esse princípio: "Ex intima hominis natura afirma Cícero haurienda est iuris disciplina" (De Legibus, II).

A norma do mencionado cân. 1058 esclarece-se ainda mais, quando se considera que, por sua natureza, a união conjugal diz respeito à própria masculinidade e feminilidade das pessoas casadas, e por isso não se trata de uma união que exige essencialmente características singulares dos contraentes. Se fosse assim, o matrimónio reduzir-se-ia a uma integração casual entre as pessoas, e tanto as suas características como a sua duração dependeriam unicamente da existência de um afecto interpessoal não bem especificado.

Para uma determinada mentalidade, hoje em dia bastante difundida, esta visão pode dar a impressão de estar em contraste com as exigências da realização pessoal. Aquilo que esta mentalidade julga difícil compreender é a própria possibilidade de falência de um verdadeiro matrimónio. A explicação do consentimento insere-se no contexto de uma integral visão humana e cristã da existência. Sem dúvida, não é este o momento de aprofundar as verdades que iluminam esta questão: em particular, as verdades sobre a liberdade humana na situação presente de natureza decaída mas remida; sobre o pecado, o perdão e a graça.

Bastará recordar que também o matrimónio não está isento da lógica da Cruz de Cristo, a qual exige esforços e sacrifícios e comporta inclusivamente dores e sofrimentos, mas na aceitação da vontade de Deus não impede uma plena e autêntica realização pessoal, na paz e na serenidade do espírito.

7. O próprio acto do consentimento matrimonial é melhor compreendido em relação à dimensão natural da união. Com efeito, este é o ponto de referência objectivo para a pessoa viver a sua inclinação natural. Daqui a normalidade e simplicidade do consentimento genuíno. Representar o consentimento como adesão a um esquema cultural ou de lei positiva não é algo realista, e assim corre-se o risco de complicar inutilmente o esclarecimento da validade do matrimónio. Trata-se de ver se os contraentes, além de identificar a pessoa do outro, verdadeiramente compreenderam a essencial dimensão natural da sua união conjugal que, por exigência intrínseca, exige a indissolubilidade e a potencial paternidade/maternidade, como bens que integram um relacionamento de justiça.

"Nem a mais profunda ou mais subtil ciência do direito admoestava o Papa Pio XII, de veneranda memória poderia indicar outro critério para distinguir as leis injustas das justas, o simples direito legal do direito genuíno, senão aquele que é perceptível já com a própria luz da razão, da natureza das coisas e do próprio homem, o da lei inscrita pelo Criador no coração do homem e expressamente confirmada pela Revelação. Se o direito e a ciência jurídica não quiserem renunciar à única orientação capaz de os fazer preservar no caminho recto, devem reconhecer as "obrigações éticas" como normas objectivas, válidas também para a ordem jurídica" (Alocução à Rota Romana, 13 de Novembro de 1949: AAS, 41, pág. 607).

8. Ao aproximar-me da conclusão, desejo abordar brevemente a relação entre a índole natural do matrimónio e a sua sacramentalidade, consciente de que a partir do Vaticano II se procurou com frequência revitalizar o aspecto sobrenatural do matrimónio, também mediante propostas teológicas, pastorais e canónicas alheias à tradição, como por exemplo a exigência da fé como requisito para o matrimónio.

Quase no início do meu Pontificado, depois do Sínodo dos Bispos sobre a Família realizado em 1980, durante o qual se abordou este tema, pronunciei-me a respeito disto na Familiaris consortio, escrevendo: "O [sacramento do] matrimónio tem de específico, [entre todos os outros] o ser sacramento de uma realidade que já existe na economia da criação: o mesmo pacto conjugal instituído pelo Criador "desde o princípio"" (n. 68: AAS, 73, pág. 163). Por conseguinte, o único modo de identificar qual é a realidade que já desde o início está vinculada à economia da salvação, e que na plenitude dos tempos constitui um dos sete sacramentos no sentido próprio da Nova Aliança, é referir-se à realidade natural que a Sagrada Escritura nos apresenta (cf. Gn Gn 1,27 Gn 2,18-25). Foi isto que fizeram Jesus, falando sobre a indissolubilidade do vínculo conjugal (cf. Mt Mt 19,3-12 Mc 10,1-2) e também São Paulo, ilustrando o carácter de "grande mistério" próprio do matrimónio, "em referência a Cristo e à Igreja" (Ep 5,32).

De resto, dos sete sacramentos o matrimónio, embora seja um "signum significans et conferens gratiam", é o único que não se refere a uma actividade especificamente orientada para a consecução de resultados directamente sobrenaturais. Com efeito, o matrimónio tem como finalidades, não só prevalecentes mas próprias, a "indole sua naturali", o bonum coniugum e a prolis generatio et educatio (CDC, cân. 1055).

Numa perspectiva diversa, o sinal sacramental consistiria na resposta de fé e de vida cristã dos cônjuges, motivo pelo qual ele seria desprovido de uma consistência objectiva que consente incluí-lo entre os verdadeiros sacramentos cristãos. Por isso, o obscurecimento da dimensão natural do matrimónio, com a sua redução a uma mera experiência subjectiva, comporta também a implícita negação da sua sacramentalidade. Em contrapartida, é precisamente a adequada compreensão desta sacramentalidade na vida cristã que orienta para uma renovada avaliação da sua dimensão natural.

Por outro lado, a introdução de requisitos de intenção ou de fé que fossem para além do matrimónio segundo o plano divino do "princípio" além dos graves riscos que indiquei na Familiaris consortio (cf. n. 68, l.c., pp. 164-165): juízos infundados e discriminatórios, dúvidas sobre a validade de matrimónios já celebrados, de maneira especial por parte dos irmãos separados levaria inevitavelmente a desejar separar o matrimónio dos cristãos do casamento das outras pessoas. Isto opor-se-ia de forma profunda ao verdadeiro sentido do desígnio divino, segundo o qual precisamente a realidade da criação é um "grande mistério" em referência a Cristo e à Igreja.

9. Estimados Prelados Auditores, Oficiais e Advogados, eis algumas das reflexões que desejei compartilhar convosco, para orientar e apoiar o precioso serviço que prestais ao Povo de Deus.
Sobre cada um de vós e o vosso trabalho quotidiano, invoco a particular protecção de Maria Santíssima, "Speculum iustitiae" e concedo-vos de coração a Bênção apostólica que, de bom grado, estendo aos vossos familiares e aos alunos do Estudo da Rota.





Discursos João Paulo II 2001 - Sábado, 27 de Janeiro de 2001