Discursos João Paulo II 2001 - 14 de Setembro de 2001

MENSAGEM DO SANTO PADRE


POR OCASIÃO DOS 1700 ANOS DA CONSTITUIÇÃO


DA SOCIEDADE CIVIL E DA COMUNIDADE ECLESIAL


DE SÃO MARINHO


Ao Venerado Irmão

D. PAOLO RABITTI

Bispo de São Marinho-Montefeltro

1. Passaram 1.700 anos desde o momento em que o vosso grande São Marinho constituiu a população samarinesa como sociedade civil e comunidade eclesial. Desde então, ela venera-o com grande devoção como seu fundador e padroeiro.

Nesta feliz data jubilar, enquanto saúdo com afecto Vossa Excelência, venerado Irmão, os sacerdotes, os diáconos, os religiosos, as religiosas e os fiéis da querida Diocese de São Marinho-Montefeltro, desejo fazer chegar a minha respeitosa saudação aos sereníssimos Capitães-Regentes, ao Conselho Grande e Geral, aos Membros do Governo, aos Capitães do Castelo da República, bem como aos Presidentes Municipais de Montefeltro e aos cidadãos de São Marinho e de Montefeltro.

Estes 17 séculos de independência e de laboriosidade permitiram que os habitantes de São Marinho dessem vida a um povo livre que, apesar do território limitado, não deixou de oferecer ao mundo um específico contributo de civilização, irradiando nos territórios vizinhos a luz de uma convivência inspirada em critérios de democracia e de solidariedade e firmemente ancorada nos valores da fé cristã.

"Auctor libertatis": assim foi chamado São Marinho, que deu o nome à República do mesmo nome. A palavra "autor" pode significar, segundo a sua etimologia, "criador" ou "educador". O verdadeiro "criador", que está na origem da liberdade, obviamente é Deus. Só Ele liberta o homem, porque tem o poder de aniquilar os vínculos que cativam o homem por dentro e por fora (cf. Gl Ga 5,1). Unicamente "onde está o espírito do Senhor há liberdade" (2Co 3,17). Mas também para a liberdade é preciso "educar-se". Ela é dom de Deus, mas também conquista humana. Na minha primeira Encíclica escrevi: "Com muita frequência se confunde a liberdade com o instinto do interesse individual e colectivo, ou ainda com o instinto de luta e de domínio" (Redemptor hominis, RH 16). A liberdade autêntica requer o conhecimento da verdade acerca de Deus, do homem e do mundo. Para alcançar este conhecimento é necessário libertar-se de qualquer forma de ambição, a fim de poder dominar-se a si mesmo evitando dissipar a própria existência. Este é o pressuposto para a responsável entrega pesoal aos compromissos que Deus confia a cada um.

2. São Marinho acolheu a liberdade que lhe fora dada pelo espírito de Cristo e soube educar-se nela com generoso empenho pessoal. Desta forma, tornou-se livre servo de Deus, obedecendo-Lhe como um súbdito e livre como um rei em relação aos homens. Conheceu o exílio, enfrentou a dura emigração, e no novo ambiente organizou a própria vida e o seu trabalho. Podia fechar-se na sua vida privada, satisfeito por receber o salário; ao contrário, empenhou-se até se tornar ponto de referência para os companheiros de trabalho, segundo quanto nos conservou a tradição (cf. Vita Sancti Marini, nn. 20, 28, 60).

Logo que conseguiu obter um salário suficiente como um qualificado lapicida, teria podido inserir-se na sociedade que, decididamente, o teria absorvido. Ao contrário ele quis tornar-se, primeiro esporádica e depois definitivamente, livre até do trabalho, dos colegas, da suficiência de vida, da casa, para se retirar em solidão e apoiar-se em Deus como sobre a única certeza (cf. ibid., nn. 60 e 64). Nesta busca espiritual, Marinho encontrou novos irmãos, e dedicou-lhes o resto da sua vida, propondo-se-lhes como testemunha do Senhor da liberdade e da caridade (cf. ibid., 82). Assim tornou-se educador e mestre daquela liberdade cristã que serve de fundamento a qualquer tipo de liberdade.

São Marinho educou para a liberdade das pessoas: ninguém é dono dos outros, nem pode violar a consciência do próximo, promover-se a juiz das intenções do próximo e impedir que ele pense livremente. Educou para a liberdade das coisas: nenhuma realidade preenche o coração humano e nenhum bem realiza plenamente a vida. Educou para a liberdade do poder: sabia bem, pela sua experiência de Dálmata, de operário e de exilado, que muitas vezes "os que têm o poder na sua mão, cobiçam as terras e apoderam-se delas, cobiçam as casas e roubam-nas; fazem violência ao homem e à sua família, ao dono e à sua herança" (cf. Mq Mi 2,1-2); juntam casas, campos, absolvem por uma prenda o culpado, privam o inocente do direito (cf. Is Is 5,8-21).

Por conseguinte, os habitantes de São Marinho honram oportunamente o seu Santo como promotor da autêntica liberdade, porque introduziu neles um sentido tão profundo da liberdade religiosa, política, cívica, psicológica que os termos São Marinho e liberdade são quase sinónimos. "Nos enim in libertate constituti sumus", recorda um lema do vosso Palácio Público.

Formulo votos de coração que a vossa amada República de São Marinho prossiga este caminho. Desejaria repetir aqui o que escreveu São Paulo aos cristãos da Galácia: "fostes chamados à liberdade. Não tomeis, porém, a liberdade como pretexto para servir a carne" (Ga 5,13). E São Pedro acrescentava: "Comportai-vos como homens livres, não como aqueles que fazem da liberdade como que um véu para encobrir a malícia, mas como servos de Deus" (1P 2,16).
Hoje a liberdade das coisas tornou-se mais difícil, porque o bem-estar económico corre o risco de subordinar tudo ao enriquecimento e ao consumo. A liberdade da concupiscência é posta à dura prova por difundidos modelos hedonistas que ofuscam a mente e correm o perigo de aniquilar qualquer moralidade. Por este motivo, ao encontrar-me com os habitantes de São Marinho a 19 de Abril de 1997, recomendei-lhes que permanecessem firmemente ancorados nos valores morais, familiares e sociais característicos da sua história (cf. Discurso à Diocese de São Marinho-Montefeltro, em: Insegnamenti, vol. XX/1, 1997, pág. 736).

Agora acrescento que a liberdade deve ser conservada imune de qualquer ataque. A este respeito, é-me espontâneo referir-me a outro eloquente mote gravado nas salas do vosso renovado Palácio Público: "Honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere". Honestidade, respeito, justiça: eis os pilares da liberdade.

3. "Aedificator Ecclesiae": eis outro título com o qual é indicado São Marinho (cf. Vita Sancti Marini, nn. 83 e 113). Quando chegou à vossa Terra, ele encontrou o Titano como um "deserto"; quando morreu, deixou-o "desabrochado e florescido" (cf. Is Is 35,1), como Igreja do Senhor.
São Marinho deu um ordenamento inicial normativo à pequena comunidade do Titano. O seu perfil de "Fundador da República" é muito querido aos cidadãos de São Marinho, que vêem nele o símbolo da própria história e da sua nação. Mas para compreender profundamente as características espirituais do Fundador, como organizador de vida social da limitada população da qual viu "a necessidade e a aflição" (Vita Sancti Marini, n. 28), é preciso remontar à globalidade da missão que ele realizou no Titano: a de "edificar para o Rei do céu outra cidade celestial construída de pedras vivas" (ibid., n. 36). Ele soube transformar as populações que se estabeleceram na região numa comunidade eclesial "edificada no fundamento dos apóstolos" (ibid., n. 83).

A presença da Igreja não é sem efeitos positivos para a própria vida da República. O Fundador sabia isto muito bem, e orientou a própria obra de civilizador e de evangelizador nessa perspectiva. Oportunamente, tem-se hoje a tendência para distinguir bem a realidade "leiga", "independente" e, na própria esfera, "autónoma" da "cidade terrestre", da realidade da Igreja, permanecendo ela autónoma na sua esfera, que antecipa pelos caminhos da história a "cidade celeste".

Quando se diz que São Marinho partiu do projecto de Igreja para imprimir ao povo do Titano um rosto cívico, além de eclesial, não se pretende afirmar, sem dúvida, que a competência espiritual da evangelização inclui e subordina a do ordenador da vida social e cívica. Deseja-se esclarecer, ao contrário, que São Marinho não considerou realizado o seu projecto de civilização enquanto os membros do seu povo não se tornaram uma comunidade cristã viva e bem estruturada.

Ele tinha presentes as palavras de Jesus: "Se permanecerdes na Minha palavra, sereis verdadeiramente Meus discípulos; conhecereis a verdade e a verdade libertar-vos-á" (Jn 8,32); e sabia, ao mesmo tempo, que só na Igreja "se tem o carisma certo da verdade" (Santo Ireneu, Adv, haer., IV, XXVI, 2), porque Cristo a constituiu "coluna e sustentáculo da verdade" (cf. 1Tm 3,15). Só graças ao "fermento", que é o Evangelho anunciado pela Igreja, a "massa" da nação se pode manter na verdade e na liberdade transmitidas pelo Fundador.

4. Revestido do ministério diaconal, São Marinho empenhou-se intensamente na difusão do Evangelho, tendo recebido o mandato do Bispo Gaudenzo. Viveu em comunhão de fé e de missão com São Leão, ao qual tinha sido confiado o cargo pastoral (cf. Vita Sancti Marini, nn. 98-99). Robusteceu com a palavra de Deus o povo (cf. ibid., n. 99); santificou o lugar da sua habitação com as virtudes típicas dos homens de Deus: a caridade, a humanidade, a castidade, a oração, a luta contra o Maligno, a penitência (cf. ibid., nn. 36 e 38).

Por conseguinte, se a República sente que se baseia na sabedoria e na genuinidade do humanismo do próprio Fundador São Marinho, de igual modo a Igreja, que também ela toma o nome dele e de São Leão, sente que as "colunas do seu fundamento" são os mesmos "santos homens que vieram a esta terra por disposição divina, quase que enviados do céu" (ibid., nn. 98 e 100). Por conseguinte, "ser Igreja", e ter recebido recentemente a aprovação pontifícia para "permanecer Igreja" (cf. Decreto da Sagrada Congregação para os Bispos, 25 de Fevereiro de 1977) deve considerar-se um dom incomensurável por parte dos "filhos dos Santos Marinho e Leão".

Oxalá esta gloriosa República tenha sempre plena consciência da sorte que constitui para os seus habitantes a presença no território de uma Igreja particular reunida à volta de um Sucessor dos Apóstolos. É como se Deus garantisse que os seus olhos estão vigilantes dia e noite sobre o povo que nela habita. São claras as palavras de Jesus: "E Eu estarei sempre convosco, até ao fim do mundo" (Mt 28,20). É um dom que não se deve subestimar. Quando, de várias formas, se torna difícil a vida da Igreja, a sociedade priva-se de uma válida aliada para promover uma cultura atenta ao homem e ao bem comum. A Igreja não exalta privilégios, pede unicamente aquele apoio jurídico e moral que lhe é necessário para o desempenho da sua missão.

5. Conheço o empenho de cada membro desta Igreja particular, começando pelo clero e pelos religiosos, na promoção da vida cristã nos seus vários aspectos. Também em São Marinho, como noutras partes, não faltam infelizmente dificuldades e obstáculos. Penso em quantos vivem como se Deus não existisse; na incoerência de certos cristãos que não conseguem conjugar a fé com os problemas da vida; na crise de não poucas famílias por causa da instabilidade do matrimónio contraído e da fragilidade psicológica e espiritual do casal; na escassez das vocações sacerdotais e religiosas, juntamente com o progressivo envelhecimento dos sacerdotes, que são insuficientes perante esta situação; na canseira para obter continuidade formativa e apostólica nos jovens, que contudo se abrem à vida cristã.

E o que dizer do afastamento progressivo da vida social, civil e política dos critérios da fé, com uma preocupante "paganização" de centros e bairros do território? Não há dúvida de que, humanamente falando, se tem a impressão de um gradual esmorecimento do entusiasmo religioso na sociedade, apesar de estar embebida de valores evangélicos. Assim como os Hebreus conheceram a dureza do seu "deserto", ignorando as indicações de Moisés (cf. Nm Nb 16,13), é com frequência que os cristãos de hoje se vêem em condições de ter que partilhar a lamentação de Noemi: "Parti com as mãos cheias, e o Senhor fez-me voltar de mãos vazias" (Rt 1,21).
Diocese de São Marinho-Montefeltro não percas a coragem! Também a ti, digo: "Duc in altum!". Retoma o que os Santos Marinho e Leão aprovaram no que se refere ao método espiritual e pastoral. Eles foram "unânimes" (cf. Vita Sancti Marini, n. 98) "no amor de uma única vontade" (ibid., n. 10): sê tu também um só coração e uma só alma e, como Marinho, "arde do fogo da caridade" (ibid., n. 35).

Foram "predicantes et roborantes verbum Dei in populo" (ibid.), isto é, pregadores e fortificadores: sede também vós, sacerdotes, semeadores da Palavra "como peritos agricultores que regam a messe com o orvalho da graça" (ibid., n. 39), apascentando as ovelhas "nos prados das divinas escrituras" (ibid., n. 17).

Foram laboriosos no bem, a ponto de "não deixar de se empenhar nem sequer um dia" (ibid., n. 18): sede também vós "diligentes, sem fraqueza, fervorosos no Espírito, pacientes na tribulação" (cf. Rm Rm 12,11).

Foram rigorosos e inflexíveis contra o mal e o Maligno, "vigilantes na oração e na penitência" (ibid., nn. 77 e 65); sede também vós sóbrios e vigiai para combater aquele que está a agir para vos atormentar, a vós e à vossa Igreja (cf. 1P 5,8 Ep 6,12-13).

Foram apóstolos "fervorosos" (cf. ibid., n. 38) a ponto de "tota ipsa Urbs toda a Cidade" se converteu e acreditou (cf. ibid., nn. 38 e 96): vós também, repletos de amor de Deus, não duvideis em iniciar com vigor uma nova evangelização. Deus estará convosco.

6. Querida Diocese de São Marinho e de São Leão! Sob a orientação do teu Pastor, fortalece e repropõe com impulso a fé, a pureza e a coragem dos teus Padroeiros. Deus abençoará este empenho com uma prometedora messe de vocações ao sacerdócio e à vida consagrada.

Permanece "unida" à volta do Bispo, graças à fiel comunhão dos sacerdotes, dos religiosos, das religiosas, dos diáconos e dos leigos de todas as paróquias e comunidades apostólicas.

Envio um pensamento especial à Cidade de São Leão e à Cidade de Pennabilli, unidas pela vocação de ser Sedes da única Catedral constituída simultaneamente pelo maravilhoso templo milenário que surgiu sobre o venerado sarcófago de São Leão, no Monte Feretro, e da bonita Catedral renascentista, construída na região de Marecchia, nas encostas do Monte Carpegna, pelo zelo do inesquecível Bispo D. Giovanni Francesco Sormani, e agora renovada com tanto amor por ocasião do Grande Jubileu por Vossa Excelência, venerado Irmão, que enviei a guiar esta querida porção do Povo de Deus.

Com estes sentimentos invoco sobre Vossa Excelência, sobre o clero, os religiosos e os fiéis de todo o território de São Marinho-Montefeltro a protecção da Mãe de Deus, venerada como Nossa Senhora das Graças, da Misericórdia e do Conforto.

E agora, pondo-me também eu sob a protecção da Mãe de Deus e dos Santos Marinho e Leão, envio com grande afecto a todos uma especial Bênção apostólica.

Castelgandolfo, 29 de Agosto de 2001.



MENSAGEM AOS PARTICIPANTES NA


CONFERÊNCIA INTERNACIONAL SOBRE:


"O TRABALHO COMO CHAVE DA QUESTÃO SOCIAL"







Senhor Cardeal Venerados Irmãos no Episcopado e no Sacerdócio
Ilustres Senhores e Senhoras

1. Sinto-me feliz por vos enviar a minha saudação por ocasião da Conferência internacional sobre: O trabalho como chave da questão social, que o Pontifício Conselho "Justiça e Paz" promoveu, em colaboração com algumas prestigiosas Instituições científicas e culturais. É um encontro aberto aos estudiosos de ciências sociais que estão empenhados nas universidades e nos centros de investigação, e que se situa no vigésimo aniversário da Encíclica Laborem exercens, da qual deseja constituir uma significativa comemoração.

Dirijo a minha cordial saudação a todos os participantes, com um pensamento particular ao Senhor Cardeal François Xavier Nguyên Van Thuân, Presidente do Pontifício Conselho "Justiça e Paz". Desejo a cada um que estes dias de reflexão e de úteis intercâmbios de experiências sejam a ocasião propícia para realçar a dimensão subjectiva do trabalho, em confronto com as profundas transformações económicas e sociais que a época actual está a viver.

2. Neste âmbito importante da vida social, estamos de facto a atravessar uma profunda evolução, que por vezes tem as características de uma radical mudança. É diferente a forma do trabalho, e também mudaram os seus horários e lugares. Nos Países mais industrializados o fenómeno assumiu dimensões que o modelo do trabalho dependente, realizado em grandes fábricas com horários rígidos, já pertence ao passado.

Como qualquer grande transformação, também esta apresenta elementos de tensão e, ao mesmo tempo, de complementaridade entre a dimensão local da economia e a dimensão global; entre a inovação tecnológica e a exigência de salvaguardar os lugares de trabalho; entre o crescimento económico e a compatibilidade ambiental.

Seria um grave erro, contudo, considerar que as mudanças em acto se verificam de maneira determinante. O factor decisivo, por assim dizer "o arbítrio" desta complexa fase de mudança, é uma vez mais o homem, que deve permanecer o verdadeiro protagonista do seu trabalho. Ele pode e deve encarregar-se de modo criativo e responsável das actuais mudanças para fazer com que sejam beneficiados o crescimento da pessoa, da família, da sociedade em que vive e de toda a família humana (cf. Laborem exercens, LE 10).

A este propósito, é iluminante a chamada à dimensão subjectiva do trabalho, à qual faz referência constante a doutrina social da Igreja: "O trabalho humano provém imediatamente de pessoas criadas à imagem de Deus e chamadas a prolongar, umas com e para as outras, a obra da criação submetendo a terra" (CIC 2427).

3. Enquanto o homem existir, haverá o gesto livre de autêntica participação na criação que é o trabalho. Ele é um dos componentes fundamentais para a realização da vocação do homem, o qual se manifesta e se descobre sempre como aquele que está chamado por Deus a "dominar a terra". Mesmo querendo, ele não pode deixar de ser "um sujeito que decide de si mesmo" (Laborem exercens, LE 6). Deus confiou-lhe esta suprema e empenhativa liberdade. Nesta perspectiva, hoje mais do que no passado, podemos repetir que "o trabalho é uma chave, e provavelmente a chave fundamental de toda a questão social" (Ibid., n. 3).

Nestes dias de estudo tendes a possibilidade de verificar que certas interpretações de tipo mecânico e económico da actividade produtiva são superadas pela própria análise científica dos problemas relacionados com o trabalho. Em relação aos anos passados, tais concepções demonstram-se hoje ainda mais inadequadas para interpretar os factos, porque não estão em condições de reconhecer a natureza absolutamente original do trabalho, como actividade livre e criativa do homem.

A rápida e acelerada fase de mudança que o mundo está a viver solicita a superação da actual visão do sistema económico e social, no qual sobretudo as necessidades humanas recebem uma consideração restrita e inadequada. Ao contrário de qualquer outro ser vivo, o homem tem necessidades infinitas, porque é a referência ao transcendente que determina o seu ser e a sua vocação. A partir de tais necessidades, ele enfrenta a aventura da transformação da realidade com as suas ocupações de trabalho de acordo com um empenho ideal que vai sempre além dos resultados nelas obtidos.

4. Se mudam as formas históricas com as quais se exprime o trabalho humano, não mudam sem dúvida as suas exigências permanentes, isto é, o respeito dos direitos inalienáveis. Infelizmente há o perigo de ver negados estes direitos. É o caso, em particular, do desemprego, que nos Países de mais antiga industrialização atinge de maneira inédita camadas significativas de homens e mulheres; penso em quantos eram empregados em processos produtivos que já são obsoletos; penso nos jovens e nos que residem em zonas desfavorecidas, onde ainda permanecem elevadas taxas de desemprego.

Depois, existe uma certa precariedade de trabalho que, se por um lado pode oferecer maiores oportunidades de ocupação, por outro apresenta riscos e ónus dos quais é necessário ocupar-se, como os custos da mobilidade, da requalificação profissional, da própria previdência social.

Nos países menos industrializados verificam-se, além disso, problemas ainda mais dramáticos: a persistência da exploração do trabalho dos menores; o não reconhecimento do valor do trabalho, sobretudo do feminino, na família e fora; a carência de trabalho devida à instabilidade do contexto das relações entre homens, sobretudo nas situações de conflito, e na fragilidade do sistema das relações económicas locais perante as mudanças causadas pela globalização produtiva.

Diante destes problemas, devem imaginar-se e criar-se novas formas de solidariedade, tendo em consideração a interdependência que liga entre si os homens do trabalho. Se a mudança em acto é profunda, ainda mais decidido deverá ser o esforço de inteligência e de vontade para tutelar a dignidade do trabalho, reforçando, nos diversos níveis, as instituições interessadas.

É grande a responsabilidade dos governos, mas não é menos importante a das organizações de tutela dos interesses colectivos dos trabalhadores e dos empregadores. Todos são chamados não só a promover esses interesses de maneira honesta e através do caminho do diálogo, mas também a considerar as suas próprias funções, a sua estrutura, natureza e modalidades de acção. Como escrevi na Encíclica Centesimus annus, estas organizações podem e devem tornar-se "lugares de expressão da personalidade do trabalhador" (n. 15).

5. Para a solução de problemáticas tão amplas e complexas, também vós, cientistas e homens de cultura, estais chamados a fornecer um contributo específico e decisivo. Ocupando-vos dos vários aspectos do trabalho no âmbito das diversas disciplinas, partilhais a responsabilidade de compreender a mudança que se está a verificar nele. Isto significa realçar as ocasiões e os perigos que ele implica; significa, sobretudo, sugerir linhas de acção para guiar a mudança no sentido mais favorável ao desenvolvimento de toda a família humana.

Também a vós cabe a tarefa de ler e interpretar os fenómenos sociais com inteligência e amor da verdade, sem preocupações ditadas por interesses de grupo ou pessoais. Aliás, pode dizer-se que o vosso contributo, precisamente porque é "abstracto", é fundamental para o agir concreto das políticas económicas. Por conseguinte, não vos canseis de dedicar-vos com paciência e rigor científico a tais investigações. Deus vos ajude e vos ilumine com a sabedoria, que é dom do seu Espírito.

Na doutrina social da Igreja podeis encontrar uma orientação e um ponto de referência constantes. Faço votos, de igual modo, por que a própria doutrina social continue a servir-se do vosso contributo, das categorias e das reflexões das ciências sociais, de acordo com aquele diálogo fecundo que é sempre um benefício recíproco.

Com estes sentimentos, enquanto imploro de coração para todos a protecção de Maria Santíssima e do seu Esposo José, humilde e generoso trabalhador, envio a cada um a minha Bênção.

Castelgandolfo, 14 de Setembro de 2001.




AO EMBAIXADOR DA ARMÉNIA


POR OCASIÃO DA APRESENTAÇÃO


DAS CARTAS CREDENCIAIS


Sábado, 15 de setembro de 2001





Senhor Embaixador

1. Sinto-me feliz em receber Vossa Excelência no momento em que apresenta as Cartas que o acreditam como Embaixador Extraordinário e Plenipotenciário da República da Arménia junto da Santa Sé. Agradeço-lhe as palavras gentis e ficar-lhe-ia grato se se dignasse transmitir a Sua Excelência o Senhor Robert Kocharian, Presidente da República, os meus agradecimentos pela saudação que me enviou.

2. É com alegria que me preparo para visitar, daqui a alguns dias, o seu País, para me encontrar com as autoridades civis e com o povo arménio, e para participar nas festividades do XVII centenário do cristianismo na Arménia. Sinto-me feliz por me poder encontrar com Sua Ex.cia o Presidente da República, recordando-me da visita que ele me realizou ao Vaticano há dois anos, e por desenvolver também as relações cordiais existentes entre a Santa Sé e o seu País. Esta viagem permitirá também dar prosseguimento e fortalecer o caminho de diálogo e de unidade empreendido com a Igreja arménia apostólica, sobretudo com Suas Santidades Vasken I e Karekin I, cuja memória aqui desejo honrar, recordando-me do seu compromisso na causa da unidade, felizmente prosseguido com Sua Santidade Karekin II, Patriarca Supremo e Catholicos de todos os Arménios.

Permita-me que agradeça, através de Vossa Excelência, a todas as Autoridades civis e religiosas que contribuíram para a preparação da minha próxima viagem.

3. Como Vossa Excelência acabou de recordar, o seu País tem uma longa história, e uma longa história cristã. Depois de uma primeira evangelização, que a tradição faz remontar aos Apóstolos Bartolomeu e Tadeu, São Gregório, o Iluminador, obteve a adesão da Arménia ao cristianismo, no início do século IV, através da conversão do rei Tiridates III, e sucessivamente, da sua família e de todo o seu povo. "Com o "baptismo" da comunidade arménia, a partir das suas autoridades civis e militares, surge uma nova identidade do povo, que se tornará parte constitutiva e inseparável do próprio ser arménio" (Carta Apostólica por ocasião do 1.700 aniversário do baptismo do povo arménio, n. 2), fazendo dele o primeiro povo oficialmente cristão na história. A obra de evangelização suscitou, a partir daquele momento, o nascimento de uma cultura original e forte, forjada na fé cristã, que se revelou no decurso dos séculos para os Arménios como o meio autêntico para preservar a sua identidade. A história da Arménia foi marcada por muitos sofrimentos, devidos em grande parte à sua posição geográfica, na fronteira com grandes potências; a Arménia sofreu ocupações e foi anexada em diversas ocasiões, mas manteve sempre a sua identidade cultural e religiosa. Por conseguinte, pode dizer-se que as raízes religiosas cristãs da Arménia são constitutivas da Nação.

Depois das enormes aflições no início do século passado, que culminaram nos trágicos acontecimentos de 1915 e na dispersão do exílio que se seguiu, o seu País retomou o caminho, até reencontrar, há dez anos, a sua independência. Como Vossa Excelência realçou, este caminho é longo para um povo que aspira por encontrar o seu justo lugar no concerto das nações, graças a uma cooperação mais forte com os seus vizinhos e a relações internacionais construtivas para o seu progresso económico, social e cultural. A Santa Sé encoraja todos os povos a desejarem legitimamente o bem-estar e a liberdade, recordando a cada um o dever de participar com paciência e tenacidade na construção da Nação com vista ao bem comum. De igual modo, convida-os incansavelmente ao diálogo com os seus vizinhos, para favorecer uma paz justa e duradoura entre todos e a concórdia entre as nações. A Santa Sé não duvida da capacidade do povo arménio de realizar estas legítimas aspirações.

4. A sua presença oferece-me a oportunidade de saudar a comunidade católica que vive na Arménia, reunida à volta do seu Pastor, Sua Beatitude Nerses Bedros XIX, Patriarca da Cilícia dos Arménios católicos, incluindo na saudação também o seu Predecessor, Sua BeatitudeJean-Pierre XVIII Kasparian. Sinto-me feliz por poder encontrar-me com os fiéis católicos, rezar com eles e poder assim, como Sucessor de Pedro, encorajá-los, para que fortaleçam cada vez mais a fé na fidelidade ao seu Baptismo e ao testemunho heróico de tantos irmãos seus, e para que contribuam, por sua vez, para o diálogo ecuménico e, juntamente com todos os concidadãos, para o bem do País.

5. Seja bem-vindo, Senhor Embaixador, no momento em que inicia a sua missão de Representante junto da Santa Sé e recebe os votos cordiais que formulo para o seu feliz cumprimento. Encontrará sempre junto dos meus colaboradores acolhimento e compreensão para o ajudar na sua nobre função.

Sobre Vossa Excelência, a sua família, os colaboradores e todo o povo arménio, invoco de coração a abundância das Bênçãos divinas.



DISCURSO ÀS PARTICIPANTES NO


XLV CAPÍTULO GERAL DAS


IRMÃS DE SÃO PAULO DE CHARTRES


Sábado, 15 de Setembro de 2001






Sinto-me feliz por vos receber e vos dar as cordiais boas-vindas. Por ocasião do vosso XLV Capítulo Geral, quando vos preparais para eleger um novo conselho geral, desejastes encontrar-vos com o Sucessor de Pedro, manifestando assim a vossa filial afeição à sua pessoa e o vosso profundo sentido de Igreja. Garantindo a cada uma de vós a minha proximidade espiritual durante os vossos trabalhos, invoco de bom grado o Espírito Santo, para que vos conceda imitar o impulso do Apóstolo Paulo, vosso santo padroeiro, para participar nesta nova criatividade da caridade que invoquei de coração no início deste novo milénio. Oxalá a contemplação do rosto de Cristo, fonte de qualquer fecundidade apostólica, estimule a fidelidade ao vosso carisma fundador e sirva de estímulo ao vosso empenho missionário, sobretudo para com os mais necessitados!

Desde os tempos da vossa fundação em 1696, por obra do abade Louis Chauvet, quisestes sempre conservar esta fidelidade ao vosso carisma, dedicando-vos de maneira particular ao serviço dos jovens e dos mais pobres. O vosso desejo de vos conformar totalmente com o Senhor estimulou-vos a procurar o seu rosto em todos aqueles com os quais Ele se quis identificar. Ainda hoje, nos cinco continentes, a vossa presença no âmbito da educação, da saúde e entre os marginalizados continua a ser um sinal da "loucura" do amor de Cristo por todos os homens e um apelo corajoso a trabalhar pelo advento do Reino de Deus.

A juventude de hoje vive, em todos os continentes, situações difíceis, relacionadas com o materialismo, as mudanças culturais, as divisões familiares, a violência em todas as suas formas, a ausência de pontos de referência morais e espirituais. Nas vossas missões educativas, juntamente com os leigos que colaboram nas vossas obras, é importante que ofereçais uma formação científica, humana, moral e religiosa de qualidade, dando assim aos jovens a possibilidade de edificar e de estruturar a sua personalidade, e de superar as dificuldades que encontram, permitindo que eles concebam um futuro mais sereno. Não receeis propor o caminho da fé e transmitir com alegria a chamada do Senhor ao sacerdócio ou à vida consagrada. Ao mesmo tempo, é importante que os adultos lhes façam descobrir a beleza da vocação específica constituída pelo matrimónio cristão. Os jovens esperam que os adultos lhes mostrem os caminhos da santidade.

Enquanto o vosso Capítulo geral vos dá a oportunidade de encontrar um novo estímulo para partir de novo na esperança, encorajo-vos a radicar a vossa consagração em Cristo, o consagrado do Pai, do qual estais convidadas a manifestar a presença amorosa e salvífica, mostrando com toda a vossa vida a felicidade que está relacionada com a dedicação total à sequella Christi. No mistério da sua morte e ressurreição, Ele revelou a toda a humanidade a verdade acerca de Deus e do homem, convidando todos os crentes a aderir a esta dinâmica pascal para levar o Evangelho ao mundo. Atentas a responder com confiança aos novos desafios que devereis enfrentar, confortadas pela oração das Irmãs idosas, aprendei a passar todos os dias com Cristo da morte para a vida!

Deixai-vos renovar por Ele, "para construir com o seu Espírito comunidades fraternas, para com Ele lavar os pés aos pobres e dar a vossa insubstituível contribuição para a transformação do mundo" (Vita consecrata, VC 110)!


Discursos João Paulo II 2001 - 14 de Setembro de 2001