Laborem exercens PT 26

O trabalho humano à luz da Cruz e da Ressurreição de Cristo

27 Há ainda um outro aspecto do trabalho humano, uma sua dimensão essencial, em que a espiritualidade fundada no Evangelho penetra profundamente. Todo o trabalho, seja ele manual ou intelectual, anda inevitavelmente conjunto à fadiga. O Livro do Génesis exprime isto mesmo de maneira verdadeiramente penetrante, ao contrapor àquela benção original do trabalho, contida no próprio mistério da Criação e ligada à elevação do homem como imagem de Deus, a maldição que o pecado trouxe consigo: « Maldita seja a terra por tua causa! Com trabalho penoso tirarás dela o alimento todos os dias da tua vida », 81 Esta pena ligada ao trabalho indica o caminho da vida do homem sobre a terra e constitui o anúncio da morte: « Comerás o pão com o suor da fronte, até que voltes à terra da qual foste tirado... ». 82 Como que fazendo-se eco destas palavras, assim se exprime o autor de um dos Livros sapienciais: « Reflecti em todas as obras realizadas por minhas mãos e em todas as fadigas a que me submeti ... ». 83 Não há homem algum sobre a terra que não possa fazer suas estas palavras.

O Evangelho profere, em certo sentido, a sua última palavra a propósito disto ainda, no mistério pascal de Jesus Cristo. E é aqui que é preciso ir procurar a resposta para estes problemas tão importantes para a espiritualidade do trabalho humano. No mistério pascal está contida a Cruz de Cristo, a sua obediência até à morte, que o Apóstolo contrapõe àquela desobediência que pesou desde o princípio na história do homem sobre a terra. 84 Aí está contida também a elevação de Cristo que, passando pela morte de cruz, retorna para junto dos seus discípulos com a potência do Espírito Santo pela Ressurreição.

O suor e a fadiga, que o trabalho comporta necessariamente na presente condição da humanidade, proporcionam aos cristãos e a todo o homem, dado que todos são chamados para seguir a Cristo, a possibilidade de participar no amor à obra que o mesmo Cristo veio realizar. 85 Esta obra de salvação foi realizada por meio do sofrimento e da morte de cruz. Suportando o que há de penoso no trabalho em união com Cristo crucificado por nós, o homem colabora, de algum modo, com o Filho de Deus na redenção da humanidade. Mostrar-se-á como verdadeiro discípulo de Jesus, levando também ele a cruz de cada dia 86 nas actividades que é chamado a realizar.

Cristo, « suportando a morte por todos nós, pecadores, ensina-nos com o seu exemplo ser necessário que também nós levemos a cruz que a carne e o mundo fazem pesar sobre os ombros daqueles que buscam a paz e a justiça »; ao mesmo tempo, porém, « constituído Senhor pela sua Ressurreição, Ele, Cristo, a quem foi dado todo o poder no céu e na terra, opera já pela virtude do Espírito Santo, nos corações dos homens ... purificando e robustecendo aquelas generosas aspirações que levam a família dos homens a tentar tornar a sua vida mais humana e a submeter para esse fim toda a terra ». 87

No trabalho humano, o cristão encontra uma pequena parcela da cruz de Cristo e aceita-a com o mesmo espírito de redenção com que Cristo aceitou por nós a sua Cruz. E, graças à luz que, emanando da Ressurreição do mesmo Cristo, penetra dentro de nós, descobrimos sempre no trabalho um vislumbre da vida nova, do novo bem, um como que anúncio dos « céus novos e da nova terra », 88 os quais são participados pelo homem e pelo mundo precisamente mediante o que há de penoso no trabalho. Mediante a fadiga e nunca sem ela. Ora tudo isto, por um lado, confirma ser indispensável a cruz numa espiritualidade do trabalho humano; por outro lado, porém, patenteia-se nesta cruz, no que nele há de penoso, um bem novo, o qual tem o seu princípio no mesmo trabalho: no trabalho entendido em profundidade e sob todos os aspectos, e jamais sem ele.

E será já este novo bem — fruto do trabalho humano — uma pequena parcela daquela « nova terra » onde habita a justiça? 89 E em que relação permanecerá ele com a Ressurreição de Cristo, se é verdade ser aquilo que multiformemente é penoso no trabalho do homem uma pequena parcela da Cruz de Cristo? O Concílio procura responder também a esta pergunta, indo haurir luz nas mesmas fontes da Palavra revelada: « É certo que nos é lembrado que nada aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se se perde a si mesmo (cf. Lc.
Lc 9,25). A expectativa da nova terra, porém, não deve enfraquecer, mas antes estimular a solicitude por cultivar esta terra, onde cresce aquele corpo da nova família humana, que já consegue apresentar uma certa prefiguração em que se vislumbra o mundo novo. Por conseguinte, embora se deva distinguir cuidadosamente o progresso terreno do crescimento do reino de Cristo, todavia, na medida em que tal progresso pode contribuir para a melhor organização da sociedade humana, tem muita importância para o reino de Deus ». 90

Procurámos, ao longo das presentes reflexões dedicadas ao trabalho humano, pôr em realce tudo aquilo que parecia indispensável, dado que é mediante ele que devem multiplicar-se sobre a face da terra não só « os frutos da nossa actividade », mas também « a dignidade do homem, a comunhão fraterna e a liberdade ». 91 O cristão que está atento em ouvir a Palavra de Deus vivo, unindo o trabalho à oração, procure saber que lugar ocupa o seu trabalho não somente no progresso terreno,mas também no desenvolvimento do Reino de Deus, para o qual todos somos chamados pela potência do Espírito Santo e pela palavra do Evangelho.

Ao concluir estas minhas reflexões, é-me grato dar-vos, a todos vós, veneráveis Irmãos e caríssimos Filhos e Filhas, de todo o coração, uma propiciadora Bênção Apostólica.

Este documento, que eu havia preparado para que fosse publicado a 15 de Maio passado, no 90° aniversário da Encíclica Rerum Novarum, só pôde ser revisto definitivamente por mim depois da minha permanência por enfermidade no hospital.


Dado em Castel Gandolfo, no dia 14 de Setembro, Festa da Exaltação da Santa Cruz, do ano de 1981, terceiro do meu Pontificado.


(81) Gn 3,17.
(82) Gn 3,19.
(83) Si 2,11.
(84) Cfr. Rm 5,19.
(85) Cfr. Jn 17,4.
(86) Cfr. Lc 9,23.
(87) Conc. Oec. Vat. II, Const. past. Gaudium et Spes de Ecclesia in mundo huius temporis, GS 38:AAS 58 (1966), pp. 1055 s.
(88) Cfr. 2P 3,13 Ap 21,1.
(89) Cfr. 2P 3,13.
(90) Conc. Oec. Vat. II, Const. past. Gaudium et Spes de Ecclesia in mundo huius temporis, GS 39:AAS 58 (1966), p. 1057.
(91) Ibid. GS 39





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