Laborem exercens PT





Laborem exercens

dirigida aos veneraveis Irmãos no Episcopado

aos Sacerdotes

às Familías religiosas

aos Filhos e Filhas da Igreja

e a todos os Homens de Boa Vontade

sobre o Trabalho Humano no 90° aniversário da

Rerum Novarum


1981.09.14




Benção

Veneráveis irmãos e dilectos filhos e filhas:

Saúde e bênção Apostólica!



É MEDIANTE O TRABALHO que o homem deve procurar-se o pão quotidiano 1 e contribuir para o progresso contínuo das ciências e da técnica, e sobretudo para a incessante elevação cultural e moral da sociedade, na qual vive em comunidade com os próprios irmãos. E com a palavra trabalho é indicada toda a actividade realizada pelo mesmo homem, tanto manual como intelectual, independentemente das suas características e das circunstâncias, quer dizer toda a actividade humana que se pode e deve reconhecer como trabalho, no meio de toda aquela riqueza de actividades para as quais o homem tem capacidade e está predisposto pela própria natureza, em virtude da sua humanidade. Feito à imagem e semelhança do mesmo Deus 2 no universo visível e nele estabelecido para que dominasse a terra, 3 o homem, por isso mesmo, desde o princípio é chamado ao trabalho. O trabalho é uma das características que distinguem o homem do resto das criaturas, cuja actividade, relacionada com a manutenção da própria vida, não se pode chamar trabalho; somente o homem tem capacidade para o trabalho e somente o homem o realiza preenchendo ao mesmo tempo com ele a sua existência sobre a terra. Assim, o trabalho comporta em si uma marca particular do homem e da humanidade, a marca de uma pessoa que opera numa comunidade de pessoas; e uma tal marca determina a qualificação interior do mesmo trabalho e, em certo sentido, constitui a sua própria natureza.

(1) Cfr. Ps 127,2 (128), 2. Cfr. etiam Gn 3,17 ss.; Pr 10,22 Ex 1,8-14 Jr 22,13.
(2) Cfr. Gn 1,26.
(3) Cfr. Gn 1,28.



I. INTRODUÇÃO


1. O trabalho humano a noventa anos da « Rerum Novarum »

1 Dado que a 15 de Maio do corrente ano se completaram noventa anos da data da publicação — que se ficou a dever ao grande Sumo Pontífice da « questão social », Leão XIII — daquela Encíclica de importância decisiva, que começa com as palavras Rerum Novarum, eu desejo dedicar o presente documento exactamente ao trabalho humano; e desejo mais ainda dedicá-lo ao homem, visto no amplo contexto dessa realidade que é o trabalho. Efectivamente, conforme tive ocasião de dizer na Encíclica Redemptor Hominis, publicada nos inícios da minha missão de serviço na Sede Romana de São Pedro, se o homem « é a primeira e fundamental via da Igreja », 4 e isso precisamente sobre a base do imperscrutável mistério da Redenção de Cristo, então é necessário retornar incessantemente a esta via e prossegui-la sempre de novo, segundo os diversos aspectos, nos quais ela nos vai desvelando toda a riqueza e, ao mesmo tempo, tudo o que de árduo há na existência humana sobre a terra.

O trabalho é um desses aspectos, perene e fundamental e sempre com actualidade, de tal sorte que exige constantemente renovada atenção e decidido testemunho. Com efeito, surgem sempre novasinterrogações e novos problemas, nascem novas esperanças, como também motivos de temor e ameaças, ligados com esta dimensão fundamental da existência humana, pela qual é construída cada dia a vida do homem, da qual esta recebe a própria dignidade específica, mas na qual está contido, ao mesmo tempo, o parâmetro constante dos esforços humanos, do sofrimento, bem como dos danos e das injustiças que podem impregnar profundamente a vida social no interior de cada uma das nações e no plano internacional. Se é verdade que o homem se sustenta com o pão granjeado pelo trabalho das suas mãos 5 — e isto equivale a dizer, não apenas com aquele pão quotidiano mediante o qual se mantém vivo o seu corpo, mas também com o pão da ciência e do progresso, da civilização e da cultura — então é igualmente verdade que ele se alimenta deste pão com o suor do rosto; 6 isto é, não só com os esforços e canseiras pessoais, mas também no meio de muitas tensões, conflitos e crises que, em relação com a realidade do trabalho, perturbam a vida de cada uma das sociedades e mesmo da inteira humanidade.

Celebramos o nonagésimo aniversário da Encíclica Rerum Novarum em vésperas de novos adiantamentos nas condições tecnológicas, económicas e políticas, o que — na opinião de muitos peritos — irá influir no mundo do trabalho e da produção, em não menor escala do que o fez a revolução industrial do século passado. São vários os factores que se revestem de alcance geral, como sejam: a introdução generalizada da automação em muitos campos da produção; o aumento do custo da energia e das matérias de base; a crescente tomada de consciência de que é limitado o património natural e do seu insuportável inquinamento; e o virem à ribalta, no cenário político, povos que, depois de séculos de sujeição, reclamam o seu legítimo lugar no concerto das nações e nas decisões internacionais. Estas novas condições e exigências irão requerer uma reordenação e um novo ajustamento das estruturas da economia hodierna, bem como da distribuição do trabalho. E tais mudanças poderão talvez vir a significar, infelizmente, para milhões de trabalhadores qualificados o desemprego, pelo menos temporário, ou a necessidade de um novo período de adestramento; irão comportar, com muita probabilidade, uma diminuição ou um crescimento menos rápido do bem-estar material para os países mais desenvolvidos; mas poderão também vir a proporcionar alívio e esperança para milhões de homens que hoje vivem em condições de vergonhosa e indigna miséria.

Não compete à Igreja analisar cientificamente as possíveis consequências de tais mutações para a convivência humana. A Igreja, porém, considera sua tarefa fazer com que sejam sempre tidos presentes a dignidade e os direitos dos homens do trabalho, estigmatizar as situações em que são violados e contribuir para orientar as aludidas mutações, para que se torne realidade um progresso autêntico do homem e da sociedade.

(4) Litt. Enc. Redemptor Hominis,
RH 14: AAS 71 (1979), p. 284.
(5) Cfr. Ps 127,2 (128), 2.
(6) Gn 3,19.


2. Na linha do desenvolvimento Orgânico da acção e do Ensino Social da Igreja

2 É fora de dúvida que o trabalho, como problema do homem, se encontra mesmo ao centro naquela « questão social », para a qual se têm voltado de modo especial, durante os quase cem anos decorridos desde a publicação da mencionada Encíclica, o ensino da Igreja e as múltiplas iniciativas tomadas em continuidade com a sua missão apostólica. Dado que é meu desejo concentrar as reflexões que se seguem no trabalho, quero fazê-lo não de maneira deforme, mas sim em conexão orgânica com toda a tradição deste ensino e destas iniciativas. Ao mesmo tempo, porém, quero fazê-lo segundo a orientação do Evangelho, para extrair do património do mesmo Evangelho « coisas novas e coisas velhas ». 7 O trabalho, certamente, é uma coisa « velha », tão antiga quanto o homem e a sua vida sobre a face da terra. A situação geral do homem no mundo contemporâneo, diagnosticada e analisada nos vários aspectos geográficos, de cultura e de civilização, exige todavia que se descubram os novos significados do trabalho humano e, além disso, que se formulem asnovas tarefas que neste sector se deparam indeclinavelmente a todos os homens, à família, a cada uma das nações e a todo o género humano e, por fim, à própria Igreja.

Neste espaço dos noventa anos que passaram desde a publicação da Encíclica Rerum Novarum, a questão social não cessou de ocupar a atenção da Igreja. São testemunho disso os numerosos documentos do Magistério, emanados quer dos Sumos Pontífices, quer do II Concílio do Vaticano; são testemunho disso, igualmente, as enunciações dos diversos Episcopados; e é testemunho disso, ainda, a actividade dos vários centros de pensamento e de iniciativas concretas de apostolado, quer a nível internacional, quer a nível das Igrejas locais. É difícil enumerar aqui, de forma pormenorizada, todas as manifestações da viva aplicação da Igreja e dos cristãos no que se refere à questão social, porque elas são muito numerosas. Como resultado do Concílio, tornou-se o principal centro de coordenação neste campo aPontifícia Comissão « Justitia et Pax ». A mesma Comissão encontra Organismos seus correspondentes no âmbito das Conferências Episcopais singularmente consideradas. O nome desta instituição é muito significativo. Ele indica que a questão social deverá ser tratada no seu aspecto integral e complexo. O empenhamento em favor da justiça deve andar intimamente unido à aplicação em prol da paz no mundo contemporâneo. Constitui, certamente, um pronunciamento a favor deste dúplice empenhamento a dolorosa experiência das duas grandes guerras mundiais que, ao longo dos últimos noventa anos, abalaram muitos países, tanto do continente europeu, quanto, ao menos parcialmente, dos outros continentes. E pronuncia-se a seu favor, especialmente desde o fim da segunda guerra mundial para cá, a ameaça permanente de uma guerra nuclear e, a emergir por detrás dela, a perspectiva de uma terrível autodestruição.

Se seguirmos a linha principal de desenvolviménto dos documentos do supremo Magistério da Igreja, encontramos neles a confirmação explícita precisamente de um tal modo de enquadrar o problema. Pelo que diz respeito à questão da paz no mundo, a posição-chave é a da Encíclica Pacem in Terrisdo Papa João XXIII. Por outro lado, se se considera o evoluir da questão da justiça social, deve notar-se o seguinte: enquanto no período que vai desde a Rerum Novarum até à Quadragesimo Anno de Pio XI, o ensino da Igreja se concentra sobretudo em torno da justa solução da chamada questão operária no âmbito de cada uma das nações, na fase sucessiva o mesmo ensino alarga o horizonte às dimensões do mundo inteiro. A distribuição desproporcionada de riqueza e de miséria e a existência de países e continentes desenvolvidos e de outros não-desenvolvidos exigem uma perequação e que se procurem as vias para um justo desenvolvimento de todos. Nesta direcção procede o ensino contido na Encíclica Mater et Magistra do Papa João XXIII, bem como na Constituição pastoral Gaudium et Spes do II Concílio do Vaticano e na EncíclicaPopulorum Progressio do Papa Paulo VI.

Esta direcção seguida no desenvolvimento do ensino e também da aplicação da Igreja, quanto à questão social, corresponde exactamente ao reconhecimento objectivo do estado das coisas. Com efeito, se em tempos passados se punha em relevo no centro de tal questão sobretudo o problema da « classe », em época mais recente é posto em primeiro plano o problema do « mundo ». Por isso, deve ser tomado em consideração não apenas o âmbito da classe, mas o âmbito mundial das desigualdades e das injustiças; e, como consequência, não apenas a dimensão da classe, mas sim a dimensão mundial das tarefas a assumir na caminhada que há-de levar à realização da justiça no mundo contemporâneo. A análise completa da situação do mesmo mundo dos dias de hoje manifestou de maneira ainda mais profunda e mais cabal o significado da anterior análise das injustiças sociais; e é o significado que hoje em dia se deve atribuir aos esforços que tendem a construir a justiça na terra, não encobrindo com isso as estruturas injustas, mas demandando a revisão e a transformação das mesmas numa dimensão mais universal.

(7)
Mt 13,52.


3. O problema do trabalho, chave da questão social

3 No meio de todos estes processos — quer da diagnose da realidade social objectiva, quer paralelamente do ensino da Igreja no âmbito da complexa e multíplice questão social — o problema do trabalho humano, como é natural, aparece muitas vezes. Ele é, de certo modo, umacomponente fixa, tanto da vida: social como do ensino da Igreja. Neste ensino da Igreja, aliás, o dedicar atenção ao problema remonta a tempos muito para além dos últimos noventa anos. A doutrina social da Igreja, efectivamente, tem a sua fonte na Sagrada Escritura, a começar do Livro do Génesis e, em particular no Evangelho e nos escritos dos tempos apostólicos. Dedicar atenção aos problemas sociais faz parte desde os inícios do ensino da Igreja e da sua concepção do homem e da vida social e, especialmente, da moral social que foi sendo elaborada segundo as necessidades das diversas épocas. Um tal património tradicional foi depois herdado e desenvolvido pelo ensino dos Sumos Pontífices sobre a moderna « questão social », a partir da Encíclica Rerum Novarum. E no contexto de tal « questão », o problema do trabalho foi objecto de uma continua actualização, mantendo sempre a base cristã daquela verdade que podemos chamar perene.

Ao voltarmos no presente documento uma vez mais a este problema — sem ter a intenção, aliás, de tocar todos os temas que lhe dizem respeito — não é tanto para coligir e repetir o que já se encontra contido nos ensinamentos da Igreja, mas sobretudo para pôr em relevo — possivelmente mais do que foi feito até agora — o facto de que o trabalho humano é uma chave, provavelmente a chave essencial, de toda a questão social, se nós procurarmos vê-la verdadeiramente sob o ponto de vista do bem do homem. E se a solução — ou melhor, a gradual solução — da questão social, que continuamente se reapresenta e se vai tornando cada vez mais complexa, deve ser buscada no sentido de « tornar a vida humana mais humana », 8 então por isso mesmo a chave, que é o trabalho humano, assume una importância fundamental e decisiva.

(8) Conc. Oec. Vat. II, Const. past. Gaudium et Spes de Ecclesia in mundo huius temporis,
GS 38:AAS 58 (1966), p. 1055.



II. O TRABALHO E O HOMEM


4. No Livro do Génesis

4 A Igreja está convencida de que o trabalho constitui uma dimensão fundamental da existência do homem sobre a terra. E ela radica-se nesta convicção também ao considerar todo o património das múltiplas ciências centralizadas no homem: a antropologia, a paleontologia, a história, a sociologia, a psicologia, etc.: todas elas parecem testemunhar de modo irrefutável essa realidade. A Igreja, porém, vai haurir esta sua convicção sobretudo na fonte da Palavra de Deus revelada e, por conseguinte, aquilo que para ela é uma convicção da inteligência adquire ao mesmo tempo o carácter de umaconvicção de fé. A razão está em que a Igreja — vale a pena acentuá-lo desde já — acredita no homem. Ela pensa no homem e encara-o não apenas à luz da experiência histórica, não apenas com os subsídios dos multíplices métodos do conhecimento científico, mas sim e em primeiro lugar à luz da Palavra revelada de Deus vivo. Ao referir-se ao homem ela procura exprimir aqueles desígnioseternos e aqueles destinos transcendentes que Deus vivo, Criador e Redentor, ligou ao homem.

A Igreja vai encontrar logo nas primeiras páginas do Livro do Génesis a fonte dessa sua convicção, de que o trabalho constitui uma dimensão fundamental da existência humana sobre a terra. A análise desses textos torna-nos cônscios deste facto: de neles — por vezes mediante um modo arcaico de manifestar o pensamento — terem sido expressas as verdades fundamentais pelo que diz respeito ao homem, já no contexto do mistério da Criação. Estas verdades são as que decidem do homem, desde o princípio, e que, ao mesmo tempo, traçam as grandes linhas da sua existência sobre a terra, quer no estado de justiça original, quer mesmo depois da ruptura, determinada pelo pecado, da aliança original do Criador com a criação no homem. Ouando este, criado « à imagem de Deus... varão e mulher », 9 ouve as palavras « Prolificai e multiplicai-vos enchei a terra e submetei-a », 10 mesmo que estas palavras não se refiram directa e explicitamente ao trabalho, indirectamente já lho indicam, e isso fora de quaisquer dúvidas, como uma actividade a desempenhar no mundo. Mais ainda, elas patenteiam a mesma essência mais profunda do trabalho. O homem é imagem de Deus, além do mais, pelo mandato recebido do seu Criador de submeter, de dominar a terra. No desempenho de tal mandato, o homem, todo e qualquer ser humano, reflecte a própria acção do Criador do universo.

O trabalho entendido como uma actividade « transitiva », quer dizer, uma actividade de modo tal que, iniciando-se no sujeito humano, se endereça para um objecto exterior, pressupõe um específico domínio do homem sobre a « terra »; e, por sua vez, confirma e desenvolve um tal domínio. É claro que sob a designação « terra », de que fala o texto bíblico, deve entender-se primeiro que tudo aquela parcela do universo visível em que o homem habita; por extensão, porém, pode entender-se todo o mundo visível, na medida em que este se encontra dentro do raio de influência do homem e da sua procura de prover às próprias necessidades. A expressão « submeter a terra » tem um alcance imenso. Ela indica todos os recursos que a mesma terra (e indirectamente o mundo visível) tem escondidos em si e que, mediante a actividade consciente do homem, podem ser descobertas e oportunamente utilizadas por ele. Assim, tais palavras, postas logo ao princípio da Bíblia, jamais cessam de ter actualidade. Elas abarcam igualmente todas as épocas passadas da civilização e da economia, bem como toda a realidade contemporânea, e mesmo as futuras fases do progresso, as quais, em certa medida, talvez se estejam já a delinear, mas em grande parte permanecem ainda para o homem algo quase desconhecido e recôndito.

Se por vezes se fala de períodos de « aceleração » na vida económica e na civilização da humanidade ou de alguma nação em particular, coligando tais « acelerações » ao progresso da ciência e da técnica e, especialmente, às descobertas decisivas para a vida sócio-económica, pode ao mesmo tempo dizer-se que nenhuma dessas « acelerações » faz com que fique superado o conteúdo essencial daquilo que foi dito naquele antiquíssimo texto bíblico. O homem, ao tornar-se — mediante o seu trabalho — cada vez mais senhor da terra, e ao consolidar — ainda mediante o trabalho — o seu domínio sobre o mundo visível, em qualquer hipótese e em todas as fases deste processo, permanece na linha daquela disposição original do Criador, a qual se mantém necessária e indissoluvelmente ligada ao facto de o homem ter sido criado, como varão e mulher, « à imagem de Deus ». E, ao mesmo tempo, tal processo é universal: abrange todos os homens, todas as gerações, todas as fases do progresso económico e cultural e, simultâneamente, é um processo que se actuaem todos e cada um dos homens, em todos os sujeitos humanos conscientes. Todos e cada um são contemporâneamente por ele abarcados. Todos e cada um, em medida adequada e num número incalculável de modos, tomam parte em tal processo gigantesco, mediante o qual o homem « submete a terra » com o seu trabalho.

(9) Cfr.
Gn 1,27.
(10) Gn 1,28.


5. O trabalho em sentido objectivo: a técnica

5 Esta universalidade e, ao mesmo tempo, esta multiplicidade de tal processo de « submeter a terra », projectam luz sobre o trabalho humano, uma vez que o domínio do homem sobre a terra se realiza no trabalho e mediante o trabalho. Assim, vem ao de cima o significado do mesmo trabalho em sentido objectivo, o qual tem depois a sua expressão nas várias épocas da cultura e da civilização. O homem domina a terra quer pelo facto de domesticar os animais e tratar deles, granjeando assim o alimento e o vestuário de que precisa, quer pelo facto de poder extrair da terra e dos mares diversos recursos naturais. Mas o homem, além disso, « submete a terra » muito mais quando começa por cultivá-la e, sucessivamente, reelabora os produtos da mesma, adaptando-os às suas próprias necessidades. A agricultura constitui assim um campo primário da actividade económica e, mediante o trabalho humano, um factor indispensável da produção. A indústria, por sua vez, consistirá sempre no conjugar as riquezas da terra — quer se trate dos recursos vivos da natureza, quer dos produtos da agricultura, quer, ainda, dos recursos minerais ou químicos — com o trabalho do homem, tanto o trabalho físico como o intelectual. Isto é válido, num certo sentido, também no campo da chamada indústria dos serviços e no campo da investigação pura ou aplicada.

Hoje em dia na indústria e na agricultura a actividade do homem, em muitos casos, deixou de ser um trabalho prevalentemente manual, uma vez que os esforços das mãos e dos músculos passaram a ser ajudados pela acção de máquinas e de mecanismos cada vez mais aperfeiçoados.

Não somente na indústria, mas também na agricultura, nós somos testemunhas das transformações que foram possibilitadas pelo gradual e contínuo progresso da ciência e da técnica. E isto, no seu conjunto, tornou-se historicamente causa também de grandes viragens da civilização, a partir das origens da « era industrial », passando pelas sucessivas fases de desenvolvimento graças às novas técnicas, até se chegar às da electrónica ou dos « microprocessores » nos últimos anos.

Se pode parecer que no processo industrial é a máquina que « trabalha », enquanto o homem só cuida nela, tornando possível e mantendo de diversas maneiras o seu funcionamento, também é verdade que, precisamente por isso, o desenvolvimento industrial serve de base para se repropor de um modo novo o problema do trabalho humano. Tanto a primeira industrialização, que fez com que surgisse a chamada questão operária, como as sucessivas mudanças industriais e pós-industriais demonstram claramente que, mesmo na época do « trabalho » cada dia mais mecanizado, o sujeito próprio do trabalho continua a ser o homem.

O desenvolvimento da indústria e dos diversos sectores com ela ligados, até se chegar às mais modernas tecnologias da electrónica, especialmente no campo da miniaturização, da informática, da telemática e outros, indica o papel imenso que, na interacção do sujeito e do objecto do trabalho (no sentido mais amplo desta palavra), assume precisamente aquela aliada do mesmo trabalho gerada pelo pensamento humano, que é a técnica. Neste caso, entendida não como uma capacidade ou aptidão para o trabalho, mas sim como um conjunto de meios de que o homem se serve no próprio trabalho, a técnica é indubitavelmente uma aliada do homem. Ela facilita-lhe o trabalho, aperfeiçoa-o, acelera-o e multiplica-o; favorece o progresso em função de um aumento da quantidade dos produtos do trabalho e aperfeiçoa mesmo a qualidade de muitos deles. Mas é um facto, por outro lado, que nalguns casos a técnica de aliada pode também transformar-se quase em adversária do homem, como sucede: quando a mecanização do trabalho « suplanta » o mesmo homem, tirando-lhe todo o gosto pessoal e o estímulo para a criatividade e para a responsabilidade; igualmente, quando tira o emprego a muitos trabalhadores que antes estavam empregados; ou ainda quando, mediante a exaltação da máquina, reduz o homem a ser escravo da mesma.

Assim, se as palavras bíblicas « submetei a terra », dirigidas ao homem desde o princípio, forem entendidas no contexto de toda a época moderna, industrial e pós-industrial, elas encerram em si indubitavelmente também uma relação com a técnica, com aquele mundo de mecanismos e de máquinas, que é fruto de um trabalho da inteligência humana e a confirmação histórica do domínio do homem sobre a natureza.

A época recente da história da humanidade, e especialmente a de algumas sociedades, trouxe consigo uma justa afirmação da técnica como um coeficiente fundamental de progresso económico; ao mesmo tempo, porém, juntamente com tal afirmação surgiram e continuamente estão a surgir as interrogações essenciais respeitantes ao trabalho humano em relação com o seu sujeito, que é precisamente o homem. Tais interrogações contêm em si uma carga particular de conteúdos e de tensões de carácter ético e ético-social. E por isso elas constituem um desafio contínuo para muitas e diversas instituições, para os Estados e os Governos, bem como para os sistemas e as organizações internacionais; e constituem um desafio também para a Igreja.




O trabalho no sentido subjectivo: o homem-sujeito do trabalho

6 Para continuar a nossa análise do trabalho em aderência às palavras da Bíblia, em virtude das quais o homem tem o dever de submeter a terra, é preciso concentrarmos agora a nossa atenção no trabalho no sentido subjectivo; e isto muito mais do que fizemos pelo que se refere ao significado objectivo do trabalho, porquanto tocámos só com brevidade aquela vasta problemática, que é perfeita e pormenorizadamente conhecida dos estudiosos nos vários campos e também dos mesmos homens do trabalho, segundo as suas especializações. As palavras do Livro do Génesis, a que nos referimos nesta nossa análise, falam de maneira indirecta do trabalho no sentido objectivo; e de modo análogo falam também do sujeito do trabalho; no entanto, aquilo que elas dizem é assaz eloquente e carregado de um grande significado.

O homem deve submeter a terra, deve dominá-la, porque, como « imagem de Deus », é uma pessoa; isto é, um ser dotado de subjectividade, capaz de agir de maneira programada e racional, capaz de decidir de si mesmo e tendente a realizar-se a si mesmo. É como pessoa, pois, que o homem é sujeito do trabalho. É como pessoa que ele trabalha e realiza diversas acções que fazem parte do processo do trabalho; estas, independentemente do seu conteúdo objectivo, devem servir todas para a realização da sua humanidade e para o cumprimento da vocação a ser pessoa, que lhe é própria em razão da sua mesma humanidade. As principais verdades sobre este tema foram recordadas ultimamente pelo II Concílio do Vaticano, na Constituição Gaudium et Spes, especialmente no capítulo primeiro dedicado à vocação do homem.

E assim aquele « domínio » de que fala o texto bíblico, sobre o qual estamos a meditar agora, não se refere só à dimensão objectiva do trabalho, mas introduz-nos ao mesmo tempo na compreensão da sua dimensão subjectiva. O trabalho, entendido como processo, mediante o qual o homem e o género humano submetem a terra, não corresponderá a este conceito fundamental da Bíblia senão enquanto, em todo esse processo, o homem ao mesmo tempo se manifestar e se confirmar como aquele que « domina ». Este domínio, num certo sentido, refere-se à dimensão subjectiva ainda mais do que à objectiva: esta dimensão condiciona a mesma natureza ética do trabalho. Não há dúvida nenhuma, realmente, de que o trabalho humano tem um seu valor ético, o qual, sem meios termos, permanece directamente ligado ao facto de aquele que o realiza ser uma pessoa, um sujeito consciente e livre, isto é, um sujeito que decide de si mesmo.

Esta verdade, que constitui num certo sentido a medula fundamental e perene da doutrina cristã sobre o trabalho humano, teve e continua a ter um significado primordial para a formulação dos importantes problemas sociais ao longo de épocas inteiras.

A Idade Antiga introduziu entre os homens uma própria diferenciação típica em categorias, segundo o tipo de trabalho que realizavam. O trabalho que requeria do trabalhador o emprego das forças físicas, o trabalho dos músculos e das mãos, era considerado indigno dos homens livres, e por isso eram destinados à sua execução os escravos. O Cristianismo, ampliando alguns aspectos já próprios do Antigo Testamento, neste ponto operou uma transformação fundamental de conceitos, partindo do conteúdo global da mensagem evangélica, e sobretudo do facto de Aquele que, sendo Deus, se tornou semelhante a nós em tudo, 11 ter passado a maior parte dos anos da vida sobre a terra junto de um banco de carpinteiro, dedicando-se ao trabalho manual. Esta circunstância constitui por si mesma o mais eloquente « evangelho do trabalho »; aí se torna patente que o fundamento para determinar o valor do trabalho humano não é em primeiro lugar o género de trabalho que se realiza, mas o facto de aquele que o executa ser uma pessoa. As fontes da dignidade do trabalho devem ser procuradas sobretudo não na sua dimensão objectiva, mas sim na sua dimensão subjectiva.

Em tal concepção quase desaparece o próprio fundamento da antiga diferenciação dos homens em grupos, segundo o género de trabalho que eles faziam. Isto não quer dizer que o trabalho humano não possa e não deva ser de algum modo valorizado e qualificado de um ponto de vista objectivo. Isto quer dizer somente que o primeiro fundamento do valor do trabalho é o mesmo homem, o seu sujeito. E relaciona-se com isto imediatamente uma conclusão muito importante de natureza ética: embora seja verdade que o homem está destinado e é chamado ao trabalho, contudo, antes de mais nada o trabalho é « para o homem » e não o homem « para o trabalho». E por esta conclusão se chega a reconhecer justamente a preeminência do significado subjectivo do trabalho sobre o seu significado objectivo. Partindo deste modo de entender as coisas e supondo que diversos trabalhos realizados pelos homens podem ter um maior ou menor valor objectivo, procuramos todavia pôr em evidência que cada um deles se mede sobretudo pelo padrão da dignidade do mesmo sujeito do trabalho, isto é, da pessoa, do homem que o executa. Por outro lado, independentemente do trabalho que faz cada um dos homens e supondo que ele constitui uma finalidade — por vezes muito absorvente — do seu agir, tal finalidade não possui por si mesma um significado definitivo. De facto, em última análise, a finalidade do trabalho, de todo e qualquer trabalho realizado pelo homem — ainda que seja o trabalho mais humilde de um « serviço » e o mais monótono na escala do modo comum de apreciação e até o mais marginalizador — permanece sempre o mesmo homem.

(11) Cfr
He 2,17 Ph 2,5-8.



Uma ameaça à hierarquia dos valores

7 Estas afirmações basilares sobre o trabalho, precisamente, resultaram sempre das riquezas da verdade cristã, em particular da mesma mensagem do « evangelho do trabalho », criando o fundamento do novo modo de pensar, de julgar e de agir dos homens. Na época moderna, desde os inícios da era industrial, a verdade cristã sobre o trabalho teve de se contrapor às várias correntes do pensamentomaterialista e economicista.

Para alguns fautores de tais ideias, o trabalho era entendido e tratado como uma espécie de « mercadoria », que o trabalhador — especialmente o operário da indústria — vendia ao dador de trabalho, que era ao mesmo tempo possessor do capital, isto é, do conjunto dos instrumentos de trabalho e dos meios que tornam possível a produção. Este modo de conceber o trabalho encontrava-se especialmente difundido na primeira metade do século XIX. Em seguida, as formulações explícitas deste género quase desapareceram, cedendo o lugar a um modo mais humano de pensar e de avaliar o trabalho. A interacção do homem do trabalho e do conjunto dos instrumentos e dos meios de produção deu azo a desenvolverem-se diversas formas de capitalismo — paralelamente a diversas formas de colectivismo — nas quais se inseriram outros elementos, na sequência de novas circunstâncias concretas, da acção das associações de trabalhadores e dos poderes públicos, e da aparição de grandes empresas transnacionais. Apesar disso, o perigo de tratar o trabalho como uma « mercadoria sui generis » ou como uma « força » anónima necessária para a produção (fala-se mesmo de « força-trabalho ») continua a existir ainda nos dias de hoje,especialmente quando a maneira de encarar a problemática económica é caracterizada pela adesão às premissas do « economismo » materialista.

Para este modo de pensar e de julgar há uma ocasião sistemática e, num certo sentido, até mesmo um estímulo, que são constituídos pelo acelerado processo de desenvolvimento da civilização unilateralmente materialista, na qual se dá importância primeiro que tudo à dimensão objectiva do trabalho, enquanto a dimensão subjectiva — tudo aquilo que está em relação indirecta ou directa com o próprio sujeito do trabalho — fica num plano secundário. Em todos os casos deste género, em todas as situações sociais deste tipo, gera-se uma confusão, ou até mesmo uma inversão, daquela ordem estabelecida desde o princípio pelas palavras do Livro do Génesis: o homem passa então a ser tratado como instrumento de produção; 12 enquanto que ele — ele só por si, independentemente do trabalho que realiza — deveria ser tratado como seu sujeito eficiente, como seu verdadeiro artífice e criador. É precisamente esta inversão da ordem, prescindindo do programa ou da denominação sob cujos auspícios ela se gera, que mereceria — no sentido indicado mais amplamente em seguida — o nome de « capitalismo ». Como é sabido, o capitalismo tem o seu significado histórico bem definido, enquanto sistema, e sistema económico-social, em contraposição ao « socialismo » ou « comunismo ». No entento, à luz da análise da realidade fundamental de todo o processo económico e, primeiro que tudo, das estruturas de produção — qual é, justamente, o trabalho — importa reconhecer que o erro do primitivo capitalismo pode repetir-se onde quer que o homem seja tratado, de alguma forma, da mesma maneira que todo o conjunto dos meios materiais de produção, como um instrumento e não segundo a verdadeira dignidade do seu trabalho — ou seja, como sujeito e autor e, por isso mesmo, como verdadeira finalidade de todo o processo de produção.

Sendo assim, compreende-se que a análise do trabalho humano feita à luz daquelas palavras que dizem respeito ao « domínio » do homem sobre a terra, se insira mesmo ao centro da problemática ético-social. Uma tal concepção deveria também ter um lugar central em toda a esfera da política social e económica, quer à escala dos diversos países, quer a uma escala mais ampla, das relações internacionais e intercontinentais, com referência em particular às tensões que se esboçam no mundo, não só centradas no eixo Oriente-Ocidente, mas também no outro eixo Norte-Sul. O Papa João XXIII, num primeiro momento, com a sua Encíclica Mater et Magistra, e o Papa Paulo VI, depois, com a Encíclica Populorum Progressio, dedicaram uma decidida atenção a tais dimensões dos problemas éticos e sociais contemporâneos.

(12) Cfr. Pii PP. XI Litt. Enc. Quadragesimo anno: AAS 23 (1931), p. 221





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