Laborem exercens PT 20

A importância dos sindicatos

20 Com base em todos estes direitos, juntamente com a necessidade de os garantir por parte dos mesmos trabalhadores, surge ainda um outro direito: o direito de se associar, quer dizer, o direito de formar associações ou uniões, com a finalidade de defender os interesses vitais dos homens empregados nas diferentes profissões. Estas uniões têm o nome de sindicatos. Os interesses vitais dos homens do trabalho são até certo ponto comuns a todos; ao mesmo tempo, porém, cada espécie de trabalho, cada profissão, possui uma sua especificidade, que deveria encontrar nestas organizações de maneira particular o seu reflexo próprio.

Os sindicatos têm os seus ascendentes, num certo sentido, já nas corporações artesanais da Idade Média, na medida em que tais organizações uniam entre si os homens que pertenciam ao mesmo ofício, isto é, agremiavam-nos em base ao trabalho que eles faziam. No entanto, os sindicatos também diferem dessas corporações neste ponto essencial: os modernos sindicatos cresceram a partir da luta dos trabalhadores, do mundo do trabalho e, sobretudo, dos trabalhadores da indústria, pela tutela dos seus justos direitos, em confronto com os empresários e os proprietários dos meios de produção. Constitui sua tarefa a defesa dos interesses existenciais dos trabalhadores em todos os sectores em que entram em causa os seus direitos. A experiência histórica ensina que as organizações deste tipo são um elemento indispensável da vida social, especialmente nas modernas sociedades industrializadas. Isto, evidentemente, não significa que somente os trabalhadores da indústria possam constituir associações deste género. Os representantes de todas as profissões podem servir-se delas para garantir os seus respectivos direitos. Existem, com efeito, os sindicatos dos agricultores e dos trabalhadores intelectuais; come existem também as organizações dos dadores de trabalho. Todos, como já foi dito acima, se subdividem em grupos e subgrupos segundo as particulares especializações profissionais.

A doutrina social católica não pensa que os sindicatos sejam somente o reflexo de uma estrutura « de classe » da sociedade, como não pensa que eles sejam o expoente de uma luta de classe, que inevitavelmente governe a vida social. Eles são, sim, um expoente da luta pela justiça social, pelos justos direitos dos homens do trabalho segundo as suas diversas profissões. No entanto, esta « luta » deve ser compreendida como um empenhamento normal das pessoas « em prol » do justo bem: no caso, em prol do bem que corresponde às necessidades e aos méritos dos homens do trabalho, associados segundo as suas profissões; mas não é uma luta « contra » os outros.

Se ela assume um carácter de oposição aos outros, nas questões controvertidas, isso sucede por se ter em consideração o bem que é a justiça social, e não por se visar a « luta » pela luta, ou então para eliminar o antagonista. O trabalho tem como sua característica, antes de mais nada, unir os homens entre si; e nisto consiste a sua força social: a força para construir uma comunidade. E no fim de contas, nessa comunidade devem unir-se tanto aqueles que trabalham como aqueles que dispõem dos meios de produção ou que dos mesmos são proprietários. A luz desta estrutura fundamentalde todo o trabalho — à luz do facto de que, afinal, o « trabalho » e o « capital » são as componentes indispensáveis do processo de produção em todo e qualquer sistema social — a união dos homens para se assegurarem os direitos que lhes cabem, nascida das exigências do trabalho, permanece um factor construtivo de ordem social e de solidariedade, factor do qual não é possível prescindir.

Os justos esforços para garantir os direitos dos trabalhadores, que se acham unidos pela mesma profissão, devem ter sempre em conta limitações que impõe a situação económica geral do país. As exigências sindicais não podem transformar-se numa espécie de « egoísmo » de grupo ou de classe, embora possam e devam também tender para corrigir — no que respeita ao bem comum da inteira sociedade — tudo aquilo que é defeituoso no sistema de propriedade dos meios de produção, ou no modo de os gerir e de dispor deles. A vida social e económico-social é certamente como um sistema de « vasos comunicantes », e todas e cada uma das actividades sociais, que tenham como finalidade salvaguardar os direitos dos grupos particulares, devem adaptar-se a tal sistema.

Neste sentido, a actividade dos sindicatos entra indubitavelmente no campo da « política »,entendida como uma prudente solicitude pelo bem comum. Ao mesmo tempo, porém, o papel dos sindicatos não é o de « fazer política » no sentido que hoje comummente se vai dando a esta expressão. Os sindicatos não têm o carácter de « partidos políticos » que lutam pelo poder, e também não deveriam nunca estar submetidos às decisões dos partidos políticos, nem manter com eles ligações muito estreitas. Com efeito, se for esta a situação, eles perdem facilmente o contacto com aquilo que é o seu papel específico, que é o de garantirem os justos direitos dos homens do trabalho no quadro do bem comum de toda a sociedade, e, ao contrário, tornam-se um instrumento da luta para outros fins.

Ao falar da tutela dos justos direitos dos homens do trabalho segundo as suas diversas profissões, é preciso naturalmente ter sempre diante dos olhos aquilo de que depende o carácter subjectivo do trabalho em cada profissão; mas, ao mesmo tempo, ou primeiro que tudo, aquilo que condiciona a dignidade própria do sujeito do trabalho. E aqui apresentam-se múltiplas possibilidades para a acção das organizações sindicais, inclusive também para um seu empenhamento por coisas de carácter instrutivo, educativo e de promoção da auto-educação. A acção das escolas, das chamadas « universidades operárias » e « populares », dos programas e dos cursos de formação, que desenvolveram e continuam ainda a desenvolver actividades neste campo, é uma acção benemérita. Deve sempre desejar-se que, graças à acção dos seus sindicatos, o trabalhador não só possa « ter » mais, mas também e sobretudo possa « ser » mais; o que equivale a dizer, possa realizar mais plenamente a sua humanidade sob todos os aspectos.

Ao agirem em prol dos justos direitos dos seus membros, os sindicatos lançam mão também do método da « greve », ou seja, da suspensão do trabalho, como de uma espécie de « ultimatum » dirigido aos órgãos competentes e, sobretudo, aos dadores de trabalho. É um modo de proceder que a doutrina social católica reconhece como legítimo, observadas as devidas condições e nos justos limites. Em relação a isto os trabalhadores deveriam ter assegurado o direito à greve, sem terem de sofrer sanções penais pessoais por nela participarem. Admitindo que se trata de um meio legítimo, deve simultaneamente relevar-se que a greve continua a ser, num certo sentido, um meio extremo. Não se pode abusar dele; e não se pode abusar dele especialmente para fazer o jôgo da política. Além disso, não se pode esquecer nunca que, quando se trata de serviços essenciais para a vida da sociedade, estes devem ficar sempre assegurados, inclusive, se isso for necessário, mediante apropriadas medidas legais. O abuso da greve pode conduzir à paralização da vida sócio-económica; ora isto é contrário às exigências do bem comum da sociedade, o qual também corresponde à natureza, entendida rectamente, do mesmo trabalho.




Dignidade do trabalho agrícola

21 Tudo o que foi dito em precedência sobre a dignidade do trabalho e sobre a dimensão objectiva e subjectiva do trabalho do homem, tem aplicação directa ao problema do trabalho agrícola e à situação do homem que cultiva a terra no duro trabalho dos campos. Trata-se, efectivamente, de um sector muito vasto do âmbito do trabalho do nosso planeta, não circunscrito a um ou a outro dos continentes e não limitado àquelas sociedades que já atingiram um certo nível de desenvolvimento e de progresso. O mundo agrícola, que proporciona à sociedade os bens necessários para a sua sustentação quotidiana, reveste-se de uma importância fundamental. As condições do mundo rural e do trabalho agrícola não são iguais em toda a parte e as situações sociais dos trabalhadores agrícolas são diferentes nos diversos países. E isso não depende somente do grau de desenvolvimento da técnica agrícola, mas também, e talvez mais ainda, do reconhecimento dos justos direitos dos trabalhadores agrícolas e, enfim, do nível de consciência daquilo que concerne a toda a ética social do trabalho.

O trabalho dos campos reveste-se de não leves dificuldades, como sejam o esforço físico contínuo e por vezes extenuante, o pouco apreço em que é tido socialmente, a ponto de criar nos homens que se dedicam à agricultura a sensação de serem socialmente marginalizados e de incentivar no seu meio o fenómeno da fuga em massa do campo para as cidades e, infelizmente, para condições de vida ainda mais desumanizantes. A isto acrescente-se a falta de formação profissional adequada, a falta de utensílios apropriados, um certo individualismo rastejante e, ainda situações objectivamente injustas. Em certos países em vias de desenvolvimento, há milhões de homens que se vêem obrigados a cultivar as terras de outros e que são explorados pelos latifundiários, sem esperança de alguma vez poderem chegar à posse nem sequer de um pedaço mínimo de terra « como sua propriedade ». Não existem formas de protecção legal para a pessoa do trabalhador agrícola e para a sua família, no caso de velhice, de doença ou de falta de trabalho. Longas jornadas de duro trabalho físico são pagadas miseramente. Terras cultiváveis são deixadas ao abandono pelos proprietários; títulos legais para a posse de um pequeno pedaço de terra, cultivado por conta própria de há anos, são preteridos ou ficam sem defesa diante da « fome da terra » de indivíduos ou de grupos mais potentes. E mesmo nos países economicamente desenvolvidos, onde a investigação científica, as conquistas tecnológicas ou a política do Estado levaram a agricultura a atingir um nível muito avançado, o direito ao trabalho pode ser lesado quando se nega ao camponês a faculdade de participar nas opções decisionais respeitantes ao trabalho em que presta os seus serviços, ou quando é negado o direito à livre associação visando a justa promoção social, cultural e económica do trabalhador agrícola.

Em muitas situações, portanto, são necessárias mudanças radicais e urgentes, para restituir à agricultura — e aos homens dos campos — o seu justo valor como base de uma sã economia, no conjunto do desenvolvimento da comunidade social. É por isso que se impõe proclamar e promover a dignidade do trabalho, de todo o trabalho, especialmente do trabalho agrícola, no qual o homem de maneira tão expressiva « submete a terra », recebida de Deus como dom, e afirma o seu « domínio » no mundo visível.




A pessoa deficiente e o trabalho

22 Em tempos recentes, as comunidades nacionais e as organizações internacionais tem voltado a sua atenção para um outro problema relacionado com o trabalho e que é bem denso de reflexos: o problema das pessoas deficientes. Também elas são sujeitos plenamente humanos, dotados dos correspondentes direitos inatos, sagrados e invioláveis, que, apesar das limitações e dos sofrimentos inscritos no seu corpo e nas suas faculdades, põem mais em relevo a dignidade e a grandeza do homem. E uma vez que a pessoa que tem quaisquer « deficiências » é um sujeito dotado de todos os seus direitos, deve facilitar-se-lhe a participação na vida da sociedade em todas as dimensões e a todos os níveis que sejam acessíveis para as suas possibilidades. A pessoa deficiente é um de nós e participa plenamente da mesma humanidade que nós. Seria algo radicalmente indigno do homem e seria uma negação da humanidade comum admitir à vida da sociedade, e portanto ao trabalho, só os membros na plena posse das funções do seu ser, porque, procedendo desse modo, recair-se-ia numa forma grave de discriminação, a dos fortes e sãos contra os fracos e doentes. O trabalho no sentido objectivo deve ser subordinado, também neste caso, à dignidade do homem, ao sujeito do trabalho e não às vantagens económicas.

Compete, pois, às diversas entidades implicadas no mundo do trabalho, ao dador directo bem como ao dador indirecto de trabalho, promover com medidas eficazes e apropriadas o direito da pessoa deficiente à preparação profissional e ao trabalho, de modo que ela possa ser inserida numa actividade produtiva para a qual seja idónea. Aqui apresentam-se muitos problemas de ordem prática, legal e também económica; mas cabe à comunidade, quer dizer, às autoridades públicas, às associações e aos grupos intermédios, às empresas e aos mesmos deficientes pôr em comum ideias e recursos para se alcançar esta finalidade inabdicável: que seja proporcionado um trabalho às pessoas deficientes, segundo as suas possibilidades, porque o requer a sua dignidade de homens e de sujeitos do trabalho. Cada comunidade há-de procurar munir-se das estruturas adaptadas para se encontrarem ou para se criarem lugares de trabalho para tais pessoas, quer nas comuns empresas públicas ou privadas — que lhes proporcionem um lugar de trabalho ordinário ou então adaptado para o seu caso — quer nas empresas e nos meios de trabalho chamados « de protecção ».

Uma grande atenção deverá ser dedicada, como para todos os outros trabalhadores, às condições físicas e psicológicas de trabalho dos deficientes, à sua justa remuneração, à sua possibilidade de promoção e à eliminação dos diversos obstáculos. Sem querer esconder que se trata de uma tarefa complexa e não fácil, é para desejar que uma concepção exacta do trabalho no sentido subjectivo permita chegar-se a uma situação que dê à pessoa deficiente a possibilidade de sentir-se não já à margem do mundo e do trabalho ou a viver na dependência da sociedade, mas sim como um sujeito do trabalho de pleno direito, útil, respeitado na sua dignidade humana e chamado a contribuir para o progresso e para o bem da sua família e da comunidade, segundo as próprias capacidades.



O trabalho e o problema da emigração

23 É necessário, por fim, dedicar uma palavra, ao menos de maneira sumária, ao problema da emigração por motivos de trabalho. Trata-se de um fenómeno antigo, mas que se repete continuamente e que nos dias de hoje assume mesmo dimensões tão grandes que são de molde a complicar a vida contemporânea. O homem tem sempre o direito de deixar o próprio país de origem por diversos motivos — como também de a ele voltar — e de procurar melhores condições de vida num outro país. Este facto, certamente, não anda disjunto de dificuldades de natureza diversa; primeiro que tudo, ele constitui, em geral, uma perda para o país do qual se emigra. É o afastamento de um homem, que é ao mesmo tempo um membro de uma grande comunidade, unificada pela sua história, pela sua tradição e pela sua cultura, o qual parte para ir recomeçar uma vida no seio de outra sociedade, unificada por uma outra cultura e, muitas vezes, também por uma outra língua. Neste caso, vem a faltar um sujeito de trabalho que, com o esforço do próprio pensamento ou dos seus braços poderia contribuir para o aumento do bem comum no seu país; e eis que tal esforço e tal contribuição vão ser dados a outra sociedade, a qual, num certo sentido, tem a isso menos direito do que a pátria de origem.

E no entanto, apesar de a emigração ser sob certos aspectos um mal, em determinadas circunstâncias é, como se costuma dizer, um mal necessário. Devem envidar-se todos os esforços — e certamente muito se faz com tal finalidade — para que este mal no sentido material não comportedanos de maior no sentido moral, e até mesmo para que, na medida em que é possível, ele traga uma melhoria na vida pessoal, familiar e social do emigrado; e isto diz respeito quer ao país de chegada quer à pátria de onde partiu. Neste domínio, muitíssimas coisas dependem de uma justa legislação, em particular quando se trata dos direitos do homem do trabalho. Comprende-se, pois, que tal problema, sobretudo se focado deste ponto de vista, tenha cabimento no contexto das presentes considerações.

A coisa mais importante é que o homem que trabalha fora do seu país natal, como emigrado permanente ou como trabalhador ocasional, não venha a encontrar-se desfavorecido pelo que se refere aos direitos relativos ao trabalho, em confronto com os trabalhadores dessa sociedade determinada. A emigração por motivo de trabalho não pode de maneira nenhuma tornar-se uma ocasião de exploração financeira ou social. No que diz respeito à relação de trabalho com o trabalhador imigrado devem ser válidos os mesmos critérios seguidos para todos os outros trabalhadores da mesma sociedade. O valor do trabalho deve ser medido com a mesma medida e não tendo em linha de conta a diferença de nacionalidade, de religião ou de raça. Com mais razão ainda, não pode ser explorada a situação de constrangimento em que se encontre o imigrado. Todas estas circunstâncias devem absolutamente ceder — naturalmente depois de terem sido tomadas em consideração as qualificações específicas — diante do valor fundamental do trabalho, valor que anda ligado com a dignidade da pessoa humana. E uma vez mais vem ao caso repetir o princípio fundamental: a hierarquia dos valores, o sentido profundo do trabalho exigem que o capital esteja em função do trabalho e não o trabalho em função do capital.





V. ELEMENTOS PARA UMA ESPIRITUALIDADE DO TRABALHO


24. Papel particular da igreja

24 A última parte das presentes reflexões sobre o tema da trabalho humano, a propósito do 90° aniversário da Encíclica Rerum Novarum, convém dedicá-la à espiritualidade do trabalho no sentido cristão da expressão. Dado que o trabalho na sua dimensão subjectiva é sempre uma acção pessoal,actus personae, daí se segue que é o homem todo que nele participa, com seu corpo e o seu espírito, independentemente do facto de ser um trabalho manual ou intelectual. E é também ao homem todo que é dirigida a Palavra do Deus vivo, a mensagem evangélica da Salvação, na qual se encontram muitos ensinamentos — como que luzes particulares — concernentes ao trabalho humano. Ora, é necessária uma assimilação adequada de tais ensinamentos; é preciso o esforço interior do espírito humano, guiado pela fé, pela esperança e pela caridade, para dar ao trabalho do homem concreto, com a ajuda desses ensinamentos, aquele sentido que ele tem aos olhos de Deuse mediante o qual o mesmo trabalho entra na obra da salvação conjuntamente com as suas tramas e componentes ordinárias e, ao mesmo tempo, muito importantes.

Se a Igreja considera como seu dever pronunciar-se a respeito do trabalho, do ponto de vista do seu valor humano e da ordem moral em que ele está abrangido, e se ela reconhece nisso uma sua tarefa importante incluída no serviço que presta à inteira mensagem evangélica, a mesma Igreja vê simultaneamente um seu dever particular na promoção de uma espiritualidade do trabalho,susceptível de ajudar todos os homens a aproximarem-se através dele de Deus, Criador e Redentor, e a participarem nos seus desígnios salvíficos quanto ao homem e ao mundo, e a aprofundarem na sua vida a amizade com Cristo, assumindo mediante a fé uma participação viva na sua tríplice missão: de Sacerdote, de Profeta e de Rei, como ensina, usando expressões admiráveis, o II Concílio do Vaticano.



O trabalho como participação na obra do Criador

25 Como diz o II Concílio do Vaticano, « uma coisa é certa para os crentes: a actividade humana individual e colectiva, aquele imenso esforço com que os homens, no decurso dos séculos, tentaram melhorar as condições de vida, considerado em si mesmo, corresponde ao desígnio de Deus. Efectivamente, o homem, criado à imagem de Deus, recebeu a missão de submeter a si a terra e tudo o que ela contém, de governar o mundo na justiça e na santidade e, reconhecendo Deus como o Criador de todas as coisas, de se orientar a si e ao universo todo para Ele, de maneira que, estando tudo subordinado ao homem, o nome de Deus seja glorificado em toda a terra ». 27

Na Palavra da Revelação divina acha-se muito profundamente inscrita esta verdade fundamental: queo homem, criado à imagem de Deus, participa mediante o seu trabalho na obra do Criador e, num certo sentido, continua, na medida das suas possibilidades, a desenvolvê-la e a completá-la, progredindo cada vez mais na descoberta dos recursos e dos valores contidos em tudo aquilo que foi criado. Esta verdade encontramo-la logo no início da Sagrada Escritura, no Livro do Génesis, onde a mesma obra da criação é apresentada sob a forma de um « trabalho » realizado durante seis dias por Deus, 28 que se mostra a « repousar » no sétimo dia. 29 Por outro lado, o último Livro da Sagrada Escritura repercute ainda o mesmo tom de respeito pela obra que Deus realizou mediante o seu « trabalho » criador, quando proclama: « Grandes e admiráveis são as Tuas obras, Senhor, Deus Todo-Poderoso! »; 30 proclamação esta, bem análoga à do Livro do Génesis, quando encerra a descrição de cada dia da criação afirmando: « E Deus viu que isso era bom ». 31

Esta descrição da criação, que nós encontramos já no primeiro capítulo do Livro do Génesis, é ao mesmo tempo, num certo sentido, o primeiro « evangelho do trabalho ». Ela mostra, de facto, em que é que consiste a sua dignidade: ensina que o homem, ao fazer o trabalho, deve imitar Deus, seu Criador, porque traz em si — e ele somente — este singular elemento de semelhança com Ele. O homem deve imitar Deus quando trabalha, assim como quando repousa, dado que o mesmo Deus quis apresentar-lhe a própria obra criadora sob a forma do trabalho e sob a forma do repouso. Eesta obra de Deus no mundo continua sempre, como o atestam as palavras de Cristo: « Meu Pai opera continuamente... »: 32 opera com a força criadora, sustentando na existência o mundo que chamou do nada ao ser; e opera com a força salvífica nos corações dos homens, que desde o princípio destinou para o « repouso » 33 em união consigo mesmo, na « casa do Pai ». 34 Por isso, também o trabalho humano não só exige o repouso cada « sétimo dia », 35 mas além disso não pode consistir apenas no exercício das forças humanas na acção exterior: ele tem de deixar um espaço interior, no qual o homem, tornando-se cada vez mais aquilo que deve ser segundo a vontade de Deus, se prepara para aquele « repouso » que o Senhor reserva para os seus servos e amigos. 36

A consciência de que o trabalho humano é uma participação na obra de Deus, deve impregnar — como ensina o recente Concílio — « também as actividades de todos os dias. Assim, os homens e as mulheres que, ao ganharem o sustento para si e para as suas famílias, exercem as suas actividades de maneira a bem servir a sociedade, têm razão para considerar o seu trabalho um prolongamento da obra do Criador, um serviço dos seus irmãos e uma contribuição pessoal para a realização do plano providencial de Deus na história ». 37

É necessário, pois, que esta espiritualidade cristã do trabalho se torne património comum de todos. É necessário, sobretudo na época actual, que a espiritualidade do trabalho manifeste aquela maturidade que exigem as tensões e as inquietudes dos espíritos e dos corações: « Longe de pensar que as obras do engenho e do poder humano se opõem ao poder de Deus e de considerar a criatura racional como rival do Criador, os cristãos, ao contrário, estão bem persuadidos de que as vitórias do género humano são um sinal da grandeza de Deus e são fruto do seu desígnio inefável. Mas, quanto mais aumenta o poder dos homens, tanto mais se alarga o campo das suas responsabilidades, pessoais e comunitárias... A mensagem cristã não afasta os homens da tarefa de construir o mundo, nem os leva a desinteressar-se do bem dos seus semelhantes, mas, pelo contrário, obriga-os a aplicar-se a tudo isto por um dever ainda mais exigente ». 38

A consciência de participar, mediante o trabalho, na obra da criação constitui motivação bem profunda para empreendê-lo em diversos sectores: « Os fiéis, portanto — lemos na ConstituiçãoLumen Gentium — devem reconhecer a natureza íntima de todas as criaturas, o seu valor e a sua ordenação para a glória de Deus, e devem ajudar-se mutuamente, mesmo através das actividades propriamente seculares, a procurar levar uma vida mais santa, para que assim o mundo seja impregnado do espírito de Cristo e atinja mais eficazmente o seu fim, na justiça, na caridade e na paz... Por conseguinte, com a sua competência nas matérias profanas e pela sua actividade intrinsecamente elevada pela graça de Cristo, contribuam com todas as suas forças para que os bens criados sejam valorizados pelo trabalho humano, pela técnica e pela cultura... de harmonia com os fins que lhes deu o Criador e segundo a iluminação do Seu Verbo ». 39

(27) Ibid.,
GS 34: loc. mem., pp. 1052 s.
(28) Cfr. Gn 2,2 Ex 20,8 Ex 20,11 Dt 5,12 ss.
(29) Cfr. Gn 2,3.
(30) Ap 15,3.
(31) Gn 1,4 Gn 1,10 Gn 1,12 Gn 1,18 Gn 1,21 Gn 1,25 Gn 1,31.
(32) Jn 5,17.
(33) He 4,1 He 9,8.
(34) Jn 14,2.
(35) Dt 5,12 ss..; Ex 20,8-12.
(36) Cfr. Mt 25,21.
(37) Conc. Oec. Vat. II, Const. past. Gaudium et Spes de Ecclesia in mundo huius temporis, GS 34:AAS 58 (1966), pp. 1052 ss.
(38) Ibid. GS 34
(39) Conc. Oec. Vat. II, Const. dogm. Lumen Gentium de Ecclesia, GS 36: AAS 57 (1965), p. 41.



Cristo, o homem do trabalho

26 Esta verdade, segundo a qual o homem mediante o trabalho participa na obra do próprio Deus, seu Criador, foi particularmente posta em relevo por Jesus Cristo, aquele Jesus de quem muitos dos seus primeiros ouvintes em Nazaré « ficavam admirados e exclamavam: " Donde lhe veio tudo isso? E que sabedoria é essa que lhe foi dada? ... Porventura não é este o carpinteiro " ...? ». 40 Com efeito, Jesus não só proclamava, mas sobretudo punha em prática com as obras o « Evangelho » que lhe tinha sido confiado, a Palavra da Sabedoria eterna. Por esta razão, tratava-se verdadeiramente do « evangelho do trabalho », pois Aquele que o proclamava era Ele próprio homem do trabalho, do trabalho artesanal como José de Nazaré. 41 E ainda que não encontremos nas suas palavras o preceito especial de trabalhar — até mesmo, uma vez, a proibição de se preocupar de uma maneira excessiva com o trabalho e com os meios para viver 42 — contudo, ao mesmo tempo, a eloquência da vida de Cristo é inequívoca: Ele pertence ao « mundo do trabalho » e tem apreço e respeito pelo trabalho humano; pode-se mesmo dizer mais: Ele encara com amor este trabalho,bem como as suas diversas expressões, vendo em cada uma delas uma linha particular da semelhança do homem com Deus, Criador e Pai. Não foi Ele, porventura, que disse « Meu Pai é o agricultor ... », 43 transpondo de diversas maneiras para o seu ensino aquela verdade fundamental sobre o trabalho que já se encontra expressa em toda a tradição do Antigo Testamento, a começar pelo Livro do Génesis?

Nos Livros do Antigo Testamento não faltam frequentes referências ao trabalho humano, assim como às diversas profissões exercidas pelo homem; assim, por exemplo: ao médico, 44 ao farmacêutico, 45 ao artesão-artista, 46 ao artífice do ferro 47 — esta expressão poder-se-ia referir ao trabalho do operário siderúrgico de hoje — ao oleiro, 48 ao agricultor, 49 ao estudioso, 50 ao navegador, 51 ao trabalhador da construção, 52 ao músico, 53 ao pastor 54 e ao pescador. 55 E são conhecidas as belas palavras dedicadas ao trabalho das mulheres. 56 O próprio Jesus, nas suas parábolas sobre o Reino de Deus, refere-se constantemente ao trabalho humano: ao trabalho do pastor, 57 do agricultor, 58 do médico, 59 do semeador, 60 do amo, 61 do servo, 62 do feitor, 63 do pescador, 64 do comerciante 65 e do operário. 66 E fala também das diversas actividades das mulheres. 67 Apresenta o apostolado sob a imagem do trabalho braçal dos ceifeiros 68 ou dos pescadores. 69 E, enfim, refere-se também ao trabalho dos estudiosos. 70

Este ensino de Cristo sobre o trabalho, baseado no exemplo da própria vida vivida durante os anos de Nazaré, encontra um eco bem forte no ensino do Apóstolo São Paulo. Dedicando-se provavelmente à confecção de tendas, 71 São Paulo sentia-se ufano de trabalhar no seu ofício, graças ao qual podia, muito embora sendo apóstolo, ganhar por si mesmo o seu pão de cada dia: 72 « Trabalhamos noite e dia, entre fadigas e privações, para não sermos pesados a nenhum de vós ». 73 Daqui derivam as suas instruções a respeito do trabalho, que têm um carácter de exortação e de preceito: « A esses tais ordenamos e incitamos, no Senhor Jesus Cristo, que trabalhem em paz, para poderem assim comer o pão ganho por eles próprios », são palavras suas, escritas aos Tessalonicenses. 74 Com efeito, notando que alguns « levam uma vida preguiçosa, em lugar de trabalharem », 75 o Apóstolo, no mesmo contexto, não hesita em dizer: « Se alguém não quer trabalhar, abstenha-se também de comer ». 76 E numa outra passagem, ao contrário, ele estimula: « Qualquer coisa que fizerdes, fazei-a com todo o coração, como se fora para o Senhor, e não para os homens, sabendo que do Senhor recebereis como recompensa a herança ». 77

Os ensinamentos do Apóstolo das Gentes, como se vê, têm uma importância-chave para a moral e para a espiritualidade do trabalho humano. Eles são complemento importante para aquele grande, se bem que discreto, « evangelho do trabalho » que nós encontramos na vida de Cristo, nas suas parábolas e em « tudo quanto Jesus foi fazendo e ensinando ». 78

Com base nestas luzes, que emanam da própria Fonte, a Igreja proclamou sempre o que segue e cuja expressão contemporânea encontramos no ensino do II Concílio do Vaticano: « A actividade humana, do mesmo modo que procede do homem, assim também para ele se ordena. De facto, quando trabalha o homem não transforma apenas as coisas materiais e a sociedade, mas realiza-se a si mesmo. Aprende muitas coisas, desenvolve as próprias faculdades, sai de si e supera-se a si mesmo. Este desenvolvimento, se for bem compreendido, vale mais do que os bens exteriores que se possam acumular... É a seguinte, pois, a norma para a actividade humana: segundo o plano e a vontade de Deus, ser conforme com o verdadeiro bem da humanidade e tornar possível ao homem, individualmente considerado ou como membro da sociedade, cultivar e realizar a sua vocação integral ». 79

No contexto de tal visão dos valores do trabalho humano, ou seja, de uma tal espiritualidade do trabalho, explica-se perfeitamente aquilo que no mesmo ponto da Constituição pastoral do Concílio se lê sobre o justo significado do progresso: « O homem vale mais por aquilo que é do que por aquilo que tem. Do mesmo modo tudo o que o homem faz para conseguir mais justiça, uma fraternidade mais difundida e uma ordem mais humana nas relações sociais, excede em valor os progressos técnicos. Com efeito, tais progressos podem proporcionar a base material para a promoção humana, mas, por si sós, de modo nenhum são capazes de a realizar ». 80

Esta doutrina sobre o problema do progresso e do desenvolvimento — tema tão dominante na mentalidade contemporânea — poderá ser entendida somente como fruto de uma espiritualidade do trabalho já provada, e somente sobre a base de uma tal espiritualidade é que ela pode ser realizada e posta em prática. Esta é a doutrina e ao mesmo tempo o programa que lançam as raízes no « evangelho do trabalho ».

(40)
Mc 6,2 s.
(41) Cfr. Mt 13,55.
(42) Cfr. Mt 6,25-34.
(43) Jn 15,1.
(44) Cfr. Si 38,1 ss.
(45) Cfr. Si 38,4-8.
(46) Cfr. Ex 31,1-5 Si 38,27.
(47) Cfr. Gn 4,22 Is 44,12.
(48) Cfr. Jr 18,3 s.; Si 38,29 s .
(49) Cfr. Gn 9,20 Is 5,1 s.
(50) Cfr. Si 12,9-12 Si 39,1-8.
(51) Cfr. Ps 107,23-30 (108), 23-30; Sg 14,2-3 a.
(52) Cfr. Gn 11,3 2R 12,12 s.; 2R 22,5 s.
(53) Cfr. Gn 4,21.
(54) Cfr. Gn 4,2 Gn 37,3 Ex 3,1 1S 16,11; et passim.
(55) Cfr. Ez 47,10.
(56) Cfr. Pr 31,15-27.
(57) Ex. gr. Jn 10,1-16.
(58) Cfr. Mc 12,1-12.
(59) Cfr. Lc 4,23.
(60) Cfr. Mc 4,1-9.
(61) Cfr. Mt 13,52.
(62) Cfr. Mt 24,45 Lc 12,42-48.
(63) Cfr. Lc 16,1-8.
(64) Cfr. Mt 13,47-50.
(65) Cfr. Mt 13,45 s.
(66) Cfr. Mt 20,1-16.
(67) Cfr. Mt 13,33 Lc 15,8 s
(68) Cfr. Mt 9,37 Jn 4,35-38.
(69) Cfr. Mt 4,19.
(70) Cfr. Mt 13,52.
(71) Cfr. Ac 18,3.
(72) Cfr. Ac 20,34 s.
(73) 2Th 3,8. S. Paulus affirmat Evangelii praeconibus ius esse ea percipiendi, quae ad victum sunt necessaria: 1Co 9,6-14 Ga 6,6 2Th 3,9; cfr. Lc 10,7.
(74) 2Th 3,12.
(75) 2Th 3,11.
(76) 2Th 3,10.
(77) Col 3,23 s.
(78) Ac 1,1.
(79) Conc. Oec. Vat. II, Const. past. Gaudium et Spes de Ecclesia in mundo buius temporis, GS 35:AAS 58 (1966), p. 1053.
(80) Ibid. GS 35




Laborem exercens PT 20