Lumen gentium PT 26

O ministério episcopal de santificar

26 Revestido da plenitude do sacramento da Ordem, o Bispo é o «administrador da graça do supremo sacerdócio» (84), principalmente na Eucaristia, que ele mesmo oferece ou providencia para que seja oferecida (85), e pela qual vive e cresce a Igreja. Esta Igreja de Cristo está verdadeiramente presente em todas as legítimas comunidades locais de fiéis, as quais aderindo aos seus pastores, são elas mesmas chamadas igrejas no Novo Testamento (86). Pois elas são, no local em que se encontram, o novo Povo chamado por Deus, no Espírito Santo e com plena segurança (cfr. 1Th 1,5). Nelas se congregam os fiéis pela pregação do Evangelho de Cristo e se celebra o mistério da Ceia do Senhor «para que o corpo da inteira fraternidade seja unido por meio da carne e sangue do Senhor» (87) Em qualquer comunidade que participa do altar sob o ministério sagrado do Bispo (88), é manifestado o símbolo do amor e da unidade do Corpo místico, sem o que não pode haver salvação (89). Nestas comunidades, embora muitas vezes pequenas e pobres, ou dispersas, está presente Cristo, por cujo poder se unifica a Igreja una, santa, católica e apostólica (90). Pois «outra coisa não faz a participação no corpo e sangue de Cristo, do que transformar-nos naquilo que recebemos» (91). Toda a legítima celebração da Eucaristia é dirigida pelo Bispo, a quem foi confiado o encargo de oferecer à divina Majestade o culto da religião cristã, e de o regular segundo os preceitos do Senhor e as leis da Igreja, ulteriormente determinadas para a própria diocese, segundo o seu parecer. Deste modo, os Bispos, orando e trabalhando pelo povo, espalham multiforme e abundantemente «plenitude da santidade de Cristo. Pelo ministério da palavra, comunicam a força de Deus, para salvação dos que crêem (cfr. Rom. Rm 1,16) e, por meio dos sacramentos, cuja distribuição regular e frutuosa ordenam com a sua autoridade, santificam os fiéis (92). São eles que regulam a administração do Baptismo, pelo qual é concedida a participação no sacerdócio real de Cristo. São eles os ministros originários da Confirmação, dispensadores das sagradas ordens e reguladores da disciplina penitencial, e com solicitude exortam e instruem o seu povo para que participe com fé e reverência na Liturgia, principalmente no santo sacrifício da missa. Finalmente, devem ajudar com o próprio exemplo aqueles que governam, purificando os próprios costumes de todo o mal e tornando-os bons, quanto lhes for possível com o auxílio do Senhor, para que alcancem, com o povo que lhes é confiado, a vida eterna (93).

84. Oração da sagração episcopal no rito bizantino: Euchologion to mega, Roma, 1873, p. 139.
85. Cfr. S. Inácio M., Smyrn.8, 1: ed. Funk, I, p. 282.
86. Cfr. Ac 8,1 Ac 14,22-23 Ac 20,17, etc., etc.
87. Oração moçárabe: PL 96, 759 B.
88. Cfr. S. Inácio M., Smyrn. 8, 1: ed. Funk, I, p. 282.
89. S. Tomás, Summa Theol. III 73,3.
90. Cfr. S. Agostinho, C. Faustum, 12, 20: PL 42, 265; Serm. 57, 7: PL 38, 389, etc.
91. S. Leão M., Sermo 63,7: PL 54, 357 C.
92. Traditio Apostolica Hippolyti, 2-3: ed. Botte, pp. 26-30.
93. Cfr. texto do exame no inicio da sagração episcopal, e oração no fim da missa da mesma sagração, depois do Te Deum.


O ministério episcopal de reger

27 Os Bispos governam as igrejas particulares que lhes foram confiadas como vigários e legados de Cristo (94), por meio de conselhos, persuasões, exemplos, mas também com autoridade e poder sagrado, que exercem unicamente para edificar o próprio rebanho na verdade e na santidade, lembrados de que aquele que é maior se deve fazer como o menor, e o que preside como aquele que serve (cfr. Lc 22,26-27). Este poder que exercem pessoalmente em nome de Cristo, é próprio, ordinário e imediato, embora o seu exercício seja superiormente regulado pela suprema autoridade da Igreja e possa ser circunscrito dentro de certos limites para utilidade da Igreja ou dos fiéis. Por virtude deste poder, têm os Bispos o sagrado direito e o dever, perante o Senhor, de promulgar leis para os seus súbditos, de julgar e de orientar todas as coisas que pertencem à ordenação do culto e do apostolado.

A eles é confiado em plenitude o encargo pastoral, isto é, o cuidado quotidiano e habitual das próprias ovelhas; nem devem ser tidos por vigários dos Romanos Pontífices, uma vez que exercem uma autoridade própria e com toda a verdade são chamados antístites (95) dos povos que governam. O seu poder não é, pois, diminuído pela autoridade suprema e universal, mas antes, pelo contrário, é por ela assegurado, fortificado e defendido (96), dado que o Espírito Santo conserva indefectivelmente a forma de governo estabelecida por Cristo Nosso Senhor na Igreja.

O Bispo, enviado pelo Pai de família a governar a Sua família, tenha diante dos olhos o exemplo do bom pastor, que veio servir e não ser servido (cfr. Mt 20,28 Mc 10,45) e dar a própria vida pelas ovelhas (cfr. Jn 10,11). Escolhido dentre os homens, e sujeito às fraquezas humanas, pode compadecer-se dos ignorantes e transviados (cfr. He 5,1-2). Não se recuse a ouvir os súbditos, de quem cuida como verdadeiros filhos e a quem exorta a que animosamente cooperem consigo. Tendo que prestar contas a Deus pelas suas almas (cfr. He 13,17), deve, com a oração, a pregação e todas as obras de caridade, ter cuidado tanto deles como daqueles que ainda não pertencem ao único rebanho, os quais ele deve considerar como tendo-lhe sido confiados pelo Senhor. Devendo, como o Apóstolo, dar-se a todos, esteja sempre pronto para a todos evangelizar (cfr. Rm 1,14-15) e para exortar os próprios fiéis ao trabalho apostólico e missionário. Por seu lado, os fiéis devem aderir ao seu Bispo, como a Igreja adere a Jesus Cristo, e Jesus Cristo ao Pai, a fim de que todas as coisas conspirem para a unidade (97) e se multipliquem para a glória de Deus (cfr. 2Co 4,15).

94. Bento XV, Breve Romana Ecclesia, 5 out. 1752, § 1: Bullarium Benedicti XIV, t. IV, Roma, 1758, 21: «Episcopus Christi typum gerit, Eiusque munere fungitur». Pio XII, Encicl. Mystici Corporis, l.c., p. 211: «Assignatos sibi greges singuli singulos Chrísti nomine pascunt et regunt».
95. Leão XIII, Carta Encicl. Satis cognitum, 29 jun. 1896: ASS 28 (1895-96) P. 732. Idem, Carta Officio sanctissimo, 22 dez. 1887: ASS 20 (1887) p. 264. Pio IX, Carta Apost. aos Bispos alemães, 12 março 1875, e Aloc. Consist., 15 março 1875: (DS 3112-3117), só na nova ed.
96. Conc. Vat. I, Const. dogma Pastor aeternus, 3: Denz. 1828 (DS 3061). Cfr. Relação de Zinelli: Mansi 52, 1114 D


Os Presbíteros e suas relações com Cristo,

com os Bispos, com o presbitério e com o povo Cristão

28 Por meio dos Seus Apóstolos, Cristo, a quem o Pai santificou e enviou ao mundo (Jn 10,36), tornou os Bispos, que são sucessores daqueles, participantes da Sua consagração e missão (98): e estes transmitiram legitimamente o múnus do seu ministério em grau diverso e a diversos sujeitos. Assim, o ministério eclesiástico, instituído por Deus, é exercido em ordens diversas por aqueles que desde a antiguidade são chamados Bispos, presbíteros e diáconos (99). Os presbíteros, embora não possuam o fastígio do pontificado e dependam dos Bispos no exercício do próprio poder, estão-lhes, porém, unidos na honra do sacerdócio (100) e, por virtude do sacramento da Ordem (101), são consagrados, à imagem de Cristo, sumo e eterno sacerdote (He 5,1-10 He 7,24 He 9,11-28), para pregar o Evangelho, apascentar os fiéis e celebrar o culta divino, como verdadeiros sacerdotes do Novo Testamento (102). Participantes, segundo o grau do seu ministério, da função de Cristo mediador único (1Tm 2,5), anunciam a todos a palavra de Deus. Mas é no culto. ou celebração eucarística que exercem principalmente o seu múnus sagrado; nela, actuando em nome de Cristo (103) e proclamando o Seu mistério, unem as preces dos fiéis ao sacrifício da cabeça e, no sacrifício da missa, representam e aplicam, até à vinda do Senhor (cfr. 1Co 11,26), o único sacrifício do Novo Testamento, ou seja, Cristo oferecendo-se, uma vez por todas, ao Pai, como hóstia imaculada (cfr. He 9,11-28) (104). Exercem ainda, por título eminente, o ministério da reconciliação e o do conforto para com os fiéis arrependidos ou enfermos, e apresentam a Deus Pai as necessidades e preces dos crentes (cfr. He 5,1-4). Desempenhando, segundo a medida da autoridade que possuem, o múnus de Cristo pastor e cabeça (105), reúnem a família de Deus em fraternidade animada por um mesmo espírito e, por Cristo e no Espírito Santo, conduzem-na a Deus Pai. No meio do próprio rebanho adoram-nO em espírito e verdade (cfr. Jn 4,24). Trabalham, enfim, pregando e ensinando (1Tm 5,17), acreditando no que lêem e meditam na lei do Senhor, ensinando o que crêem e vivendo o que ensinam (107).

Os presbíteros, como esclarecidos cooperadores da ordem episcopal (108) e a sua ajuda e instrumento, chamados para o serviço do Povo de Deus, constituem com o seu Bispo um presbitério (108) com diversas funções. Em cada uma das comunidades de fiéis, tornam de algum modo presente o Bispo, ao qual estão associados com ânimo fiel e generoso e cujos encargos e solicitude assumem, segundo a própria medida, e exercem com cuidado quotidiano. Sob a autoridade do Bispo, santificam e governam a porção do rebanho a si confiada, tornam visível, no lugar em que estão, a Igreja universal e prestam uma grande ajuda para a edificação de todo o corpo de Cristo (cfr. Ep 4,12). Sempre atentos ao bem dos filhos de Deus, procurem dar a sua ajuda ao trabalho de toda a diocese, melhor, de toda a Igreja. Por causa desta participação no sacerdócio e na missão, reconheçam os presbíteros o Bispo verdadeiramente como pai, e obedeçam-lhe com reverência. O Bispo, por seu lado, considere os sacerdotes, seus colaboradores, como filhos e amigos, à imitação de Cristo que já não chama aos seus discípulos servos mas amigos (cfr. Jn 15,15). Deste modo, todos os sacerdotes, tanto diocesanos como religiosos, estão associados ao corpo episcopal em razão da Ordem e do ministério, e, segundo a própria vocação e graça, contribuem para o bem de toda a Igreja.

Em virtude da comum sagrada ordenação e missão, todos os presbíteros estão entre si ligados em íntima fraternidade, que espontânea e livremente se deve manifestar no auxílio mútuo, tanto espiritual como material, pastoral ou pessoal, em reuniões e na comunhão de vida, de trabalho e de caridade.

Velem, como pais em Cristo, pelos fiéis que espiritualmente geraram pelo Baptismo e pela doutrinação (cfr. 1Co 4,15 1P 1,23). Fazendo-se, de coração, os modelos do rebanho (1P 5,3), de tal modo dirijam e sirvam a sua comunidade local que esta possa dignamente ser chamada com aquele nome com que se honra o único Povo de Deus todo inteiro, a saber, a Igreja de Deus (cfr. 1Co 1,2 2Co 1,1 etc. etc.). No seu trato e solicitude de cada dia, não se esqueçam de apresentar aos fiéis e infiéis, aos católicos e não-católicos, a imagem do autêntico ministério sacerdotal e pastoral, de dar a todos testemunho de verdade e de vida, e de procurar também, como bons pastores (cfr. Lc 15,4-7), aqueles que, baptizados embora na Igreja católica, abandonaram os sacramentos ou até mesmo a fé.

Dado que o género humano caminha hoje cada vez mais para a unidade política, económica e social, tanto mais necessário é que os sacerdotes em conjunto e sob a direcção dos Bispos e do Sumo Pontífice, evitem todo o motivo de divisão, para que a humanidade toda seja conduzida à unidade da família de Deus.

97. Cfr. S. Inácio M., Ad Ephes.5, 1: ed. Funk, 1, p. 216.
98. Cfr. S. Inácio M., Ad Ephes, 6, 1: ed. Funk, I, p. 216.
99. Cfr. Conc. Trid. De sacr. Ordinis, cap. 2: Denz. 958 (DS 1776).
100. Cfr. Inocêncio I, Epist. ad Decentium: PL 20, 554 A; Mansi 3, 1029; Denz. 98 (DS 215) : «Presbyteri, licet secundi sint sacerdotes, pontificatus tamen apicem ron habent». S. Cipriano, Epist. 61, 3: ed. Hartel, p. 696.
101. Cfr. Conc. Trid., l.c., Denz. 956a-968 (DS 1763-1778), e em especial can. 7: Denz. 967 (DS 1777). Pio XII, Const. Apost. Sacramentum Ordinis: Denz. 2301 (DS 3857-3861).
102. Cfr. Inocêncio I, 1. c.; S. Gregório Naz., Apol. II, 22: PG 35, 432 B. Ps.-Dionísio, Eccl. Hier., 1, 2: PG 3, 372 D.
103. Cfr. Conc. Trid., Sess. 22: Denz. 940 (DS 1743). Pio XII, Encícl. Mediator Dei, 20 nov. 1947: AAS 39 (1947) p. 553; Denz. 2300 (DS 3850).
104. Cfr. Conc. Trid. Sess. 22: Denz. 938 (DS 1739-1740). Conc. Vat. II, Const. De Sacra Liturgia, (Sacrosanctum Concilium SC 7 SC 47).
105. Cfr. Pio XII, Encícl. Mediator Dei, 1. c. n. 67.
106. Cfr. S. Cipriano, Epist.11, 3: PL 3, 242 B: Hartel, II, 2, p. 497.
107. Cfr. Pontificale romanum, De Ordinatione presbyterorum, na imposição das vestes.
108. Cfr. Pontificale romanum, De Ordinatione presbyterorum, no prefácio.


Os diáconos

29 Em grau inferior da hierarquia estão os diáconos, aos quais foram impostas as mãos «não em ordem ao sacerdócio mas ao ministério» (109). Pois que, fortalecidos com a graça sacramental, servem o Povo de Deus em união com o Bispo e o seu presbitério, no ministério da Liturgia, da palavra e da caridade. É próprio do diácono, segundo for cometido pela competente autoridade, administrar solenemente o Baptismo, guardar e distribuir a Eucaristia, assistir e abençoar o Matrimónio em nome da Igreja, levar o viático aos moribundos, ler aos fiéis a Sagrada Escritura, instruir e exortar o povo, presidir ao culto e à oração dos fiéis, administrar os sacramentais, dirigir os ritos do funeral e da sepultura. Consagrados aos ofícios da caridade e da administração, lembrem-se os diáconos da recomendação de S. Policarpo: «misericordiosos, diligentes, caminhando na verdade do Senhor, que se fez servo de todos» (110).

Como porém, estes ofícios, muito necessários para a vida da Igreja na disciplina actual da Igreja latina, dificilmente podem ser exercidos em muitas regiões, o diaconado poderá ser, para o futuro, restaurado como grau próprio e permanente da Hierarquia. As diversas Conferências episcopais territoriais competentes cabe decidir, com a aprovação do Sumo Pontífice, se e onde é oportuno instituir tais diáconos para a cura das almas. Com o consentimento do Romano Pontífice, poderá este diaconado ser conferido a homens de idade madura, mesmo casados, e a jovens idóneos; em relação a estes últimos, porém, permanece em vigor a lei do celibato.

109. Cfr. S. Inácio M., Philad.4: ed. Funk, I, p. 266. S. Cornélio I, em S. Cipriano, Epist. 48, 2: Hartel III, 2, p. 610.
110. Constitutiones Ecclesiae aegyptiacae, III, 2: ed. Funk, Didascalia, II, p. 103. Statuta Eccl. Ant. 31-41: Mansi 3, 954. 75 S. Policarpo, Ad Phil. 5, 2: ed. Funk, p. 300: Cristo é chamado «omnium diaconus factus». Cfr. Didachè, 15, 1: ib., p. 32; S. Inácio M., Trall. 2, 3: ib., p. 242. Constitutiones Apostolorum, 8, 28, 4: ed. Funk, Didascalia, I, p. 530.


CAPÍTULO IV

OS LEIGOS


Proémio: Carácter peculiar dos leigos

30 Declaradas as diversas funções da Hierarquia, o sagrado Concílio volta de bom grado a sua atenção para o estado daqueles fiéis cristãos que se chamam leigos. Com efeito, se é verdade que todas as coisas que se disseram a respeito do Povo de Deus se dirigem igualmente aos leigos, aos religiosos e aos clérigos, algumas, contudo, pertencem de modo particular aos leigos, homens e mulheres, em razão do seu estado e missão; e os seus fundamentos, devido às circunstâncias especiais do nosso tempo, devem ser mais cuidadosamente expostos. Os sagrados pastores conhecem, com efeito, perfeitamente quanto os leigos contribuem para o bem de toda a Igreja. Pois eles próprios sabem que não foram instituídos por Cristo para se encarregarem por si sós de toda a missão salvadora da Igreja para com o mundo, mas que o seu cargo sublime consiste em pastorear de tal modo os fiéis e de tal modo reconhecer os seus serviços e carismas, que todos, cada um segundo o seu modo próprio, cooperem na obra comum. Pois é necessário que todos, «praticando a verdade na caridade, cresçamos de todas as maneiras para aquele que é a cabeça, Cristo; pelo influxo do qual o corpo inteiro, bem ajustado e coeso por toda a espécie de junturas que o alimentam, com a acção proporcionada a cada membro, realiza o seu crescimento em ordem à própria edificação na caridade (Ep 4,15-16).


Conceito e vocação do leigo na Igreja

31 Por leigos entendem-se aqui todos os cristãos que não são membros da sagrada Ordem ou do estado religioso reconhecido pela Igreja, isto é, os fiéis que, incorporados em Cristo pelo Baptismo, constituídos em Povo de Deus e tornados participantes, a seu modo, da função sacerdotal, profética e real de Cristo, exercem, pela parte que lhes toca, a missão de todo o Povo cristão na Igreja se no mundo.

É própria e peculiar dos leigos a característica secular. Com efeito, os membros da sagrada Ordem, ainda que algumas vezes possam tratar de assuntos seculares, exercendo mesmo uma profissão profana, contudo, em razão da sua vocação específica, destinam-se sobretudo e expressamente ao sagrado ministério; enquanto que os religiosos, no seu estado, dão magnífico e privilegiado testemunho de que se não pode transfigurar o mundo e oferecê-lo a Deus sem o espírito das bem-aventuranças. Por vocação própria, compete aos leigos procurar o Reino de Deus tratando das realidades temporais e ordenando-as segundo Deus. Vivem no mundo, isto é, em toda e qualquer ocupação e actividade terrena, e nas condições ordinárias da vida familiar e social, com as quais é como que tecida a sua existência. São chamados por Deus para que, aí, exercendo o seu próprio ofício, guiados pelo espírito evangélico, concorram para a santificação do mundo a partir de dentro, como o fermento, e deste modo manifestem Cristo aos outros, antes de mais pelo testemunho da própria vida, pela irradiação da sua fé, esperança e caridade. Portanto, a eles compete especialmente, iluminar e ordenar de tal modo as realidades temporais, a que estão estreitamente ligados, que elas sejam sempre feitas segundo Cristo e progridam e glorifiquem o Criador e Redentor.


Unidade na diversidade

32 A santa Igreja, por instituição divina, é organizada e governada com uma variedade admirável. «Assim como num mesmo corpo temos muitos membros, e nem todos têm a mesma função, assim, sendo muitos, formamos um só corpo em Cristo, sendo membros uns dos outros» (Rm 12,4-5).

Um só é, pois, o Povo de Deus: «um só Senhor, uma só fé, um só Baptismo (Ep 4,5); comum é a dignidade dos membros, pela regeneração em Cristo; comum a graça de filhos, comum a vocação à perfeição; uma só salvação, uma só esperança e uma caridade indivisa. Nenhuma desigualdade, portanto, em Cristo e na Igreja, por motivo de raça ou de nação, de condição social ou de sexo, porque «não há judeu nem grego, escravo nem homem livre, homem nem mulher: com efeito, em Cristo Jesus, todos vós sois um» (Ga 3,28 gr.; cfr. Col 3,11).

Portanto, ainda que, na Igreja, nem todos sigam pelo mesmo caminho, todos são, contudo, chamados à santidade, e a todos coube a mesma fé pela justiça de Deus (cfr. 2P 1,1). Ainda que, por vontade de Cristo, alguns são constituídos doutores, dispensadores dos mistérios e pastores em favor dos demais, reina, porém, igualdade entre todos quanto à dignidade e quanto à actuação, comum a todos os fiéis, em favor da edificação do corpo de Cristo. A distinção que o Senhor estabeleceu entre os ministros sagrados e o restante Povo de Deus, contribui para a união, já que os pastores e os demais fiéis estão ligados uns aos outros por uma vinculação comum: os pastores da Igreja, imitando o exemplo do Senhor, prestem serviço uns aos outros e aos fiéis: e estes dêem alegremente a sua colaboração aos pastores e doutores. Deste modo, todos testemunham, na variedade, a admirável unidade do Corpo místico de Cristo: a própria diversidade de graças, ministérios e actividades, consagra em unidade os filhos de Deus, porque «um só e o mesmo é o Espírito que opera todas estas coisas» (1Co 12,11).

Os leigos, portanto, do mesmo modo que, por divina condescendência, têm por irmão a Cristo, o qual, apesar de ser Senhor de todos, não veio para ser servido mas para servir (cfr. Mt 20,28), de igual modo têm por irmãos aqueles que, uma vez estabelecidos no sagrado ministério, apascentam a família de Deus ensinando, santificando e governando com a autoridade de Cristo, de modo que o mandamento da caridade seja por todos observado. A este respeito diz belissimamente S. Agostinho: «aterra-me o ser para vós, mas consola-me o estar convosco. Sou para vós, como Bispo; estou convosco, como cristão. Nome de ofício, o primeiro; de graça, o segundo; aquele, de risco; este, de salvação»(111).

111. S. Agostinho, Serm.340, 1: PL 38, 1483.


O Apostolado dos leigos

33 Unidos no Povo de Deus, e constituídos no corpo único de Cristo sob uma só cabeça, os leigos, sejam quais forem, todos são chamados a concorrer como membros vivos, com todas as forças que receberam da bondade do Criador e por graça do Redentor, para o crescimento da Igreja e sua contínua santificação.

O apostolado dos leigos é participação na própria missão salvadora da Igreja, e para ele todos são destinados pelo Senhor, por meio do Baptismo e da Confirmação. E os sacramentos, sobretudo a sagrada Eucaristia, comunicam e alimentam aquele amor para com Deus e para com os homens, que é a alma de todo o apostolado.

Mas os leigos são especialmente chamados a tornarem a Igreja presente e activa naqueles locais e circunstâncias em que só por meio deles ela pode ser o sal da terra (112). Deste modo, todo e qualquer leigo, pelos dons que lhe foram concedidos, é ao mesmo tempo testemunha e instrumento vivo da missão da própria Igreja, «segundo a medida concedida por Cristo» (
Ep 4,7).

Além deste apostolado, que diz respeito a todos os fiéis, os leigos podem ainda ser chamados, por diversos modos, a uma colaboração mais imediata no apostolado da Hierarquia (113), à semelhança daqueles homens e mulheres que ajudavam o apóstolo Paulo no Evangelho, trabalhando muito no Senhor (cfr. Ph 4,3 Rm 16,3 ss.). Têm ainda a capacidade de ser chamados pela Hierarquia a exercer certos cargos eclesiásticos, com finalidade espiritual.

Incumbe, portanto, a todos os leigos a magnífica tarefa de trabalhar para que o desígnio de salvação atinja cada vez mais os homens de todos os tempos e lugares. Esteja-lhes, pois, amplamente aberto o caminho, a fim de que, segundo as próprias forças e as necessidades dos tempos, também eles participem com ardor na acção salvadora da Igreja.

112. Cfr. Pio XI, Encícl. Quadragesimo anno, 15 maio 1931: AAS 23 (1931) p. 221 s. Pio XII, Aloc. De quelle consolation, 14 out. 1951: AAS 43 (1951) p. 790 s.
113. Cfr. Pio XII, Aloc. Six ans se sont écoulés, 5 out. 1957: AAS 49 (1957) p. 927.


A consagração do mundo pelo apostolado dos leigos

34 O supremo e eterno sacerdote Cristo Jesus, querendo também por meio dos leigos continuar o Seu testemunho e serviço, vivifica-o pelo Seu Espírito e sem cessar os incita a toda a obra boa e perfeita. E assim, àqueles que Intimamente associou à própria vida e missão, concedeu também participação no seu múnus sacerdotal, a fim de que exerçam um culto espiritual, para glória de Deus e salvação dos homens. Por esta razão, os leigos, enquanto consagrados a Cristo e ungidos no Espírito Santo, têm uma vocação admirável e são instruídos para que os frutos do Espírito se multipliquem neles cada vez mais abundantemente. Pois todos os seus trabalhos, orações e empreendimentos apostólicos, a vida conjugal e familiar, o trabalho de cada dia, o descanso do espírito e do corpo, se forem feitos no Espírito, e as próprias incomodidades da vida, suportadas com paciência, se tornam em outros tantos sacrifícios espirituais, agradáveis a Deus por Jesus Cristo (cfr. 1P 2,5); sacrifícios estes que são piedosamente oferecidos ao Pai, juntamente com a oblação do corpo do Senhor, na celebração da Eucaristia. E deste modo, os leigos, agindo em toda a parte santamente, como adoradores, consagram a Deus o próprio mundo.


O testemunho de vida pelo apostolado dos leigos

35 Cristo, o grande profeta, que pelo testemunho da vida e a força da palavra proclamou o reino do Pai, realiza a sua missão profética, até à total revelação da glória, não só por meio da Hierarquia, que em Seu nome e com a Sua autoridade ensina, mas também por meio dos leigos; para isso os constituiu testemunhas, e lhes concedeu o sentido da fé e o dom da palavra (cfr. Ac 2,17-18 Ap 19,10) a fim de que a força do Evangelho resplandeça na vida quotidiana, familiar e social. Os leigos mostrar-se-ão filhos da promessa se, firmes na fé e na esperança, aproveitarem bem o tempo presente (cfr. Ep 5,16 Col 4,5) e com paciência esperarem a glória futura (cfr. Rm 8,25). Mas não devem esconder esta esperança no seu íntimo, antes, pela contínua conversão e pela luta «contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra os espíritos do mal» (Ep 6,12), manifestem-na também nas estruturas da vida secular.

Do mesmo modo que os sacramentos da nova lei, que alimentam a vida e o apostolado dos fiéis, prefiguram um novo céu e uma nova terra (cfr. Ap 21,1), assim os leigos tornam-se valorosos arautos da fé naquelas realidades que esperamos (cfr. He 11,1), se juntarem sem hesitação, a uma vida de fé, a profissão da mesma fé. Este modo de evangelizar, proclamando a mensagem de Cristo com o testemunho da vida e com a palavra, adquire um certo carácter específico e uma particular eficácia por se realizar nas condições ordinárias da vida no mundo.

Nesta obra, desempenha grande papel aquele estado de vida que é santificado por um sacramento próprio: a vida matrimonial e familiar. Aí se encontra um exercício e uma admirável escola de apostolado dos leigos, se a religião penetrar toda a vida e a transformar cada vez mais. Aí encontram os esposos a sua vocação própria, de serem um para o outro e para os filhos as testemunhas da fé e do amor de Cristo. A família cristã proclama em alta voz as virtudes presentes do reino de Deus e a esperança na vida bem-aventurada. E deste modo, pelo exemplo e pelo testemunho, argui o mundo do pecado e ilumina aqueles que buscam a verdade.

Por isso, ainda mesmo quando ocupados com os cuidados temporais, podem e devem os leigos exercer valiosa acção para a evangelização do mundo. E se há alguns que, na medida do possível, suprem nas funções religiosas os ministros sagrados que faltam ou estão impedidos em tempo de perseguição, a todos, porém, incumbe a obrigação de cooperar para a dilatação e crescimento do Reino de Cristo no mundo. Dediquem-se, por isso, os leigos com diligência a conseguir um conhecimento mais profundo da verdade revelada, e peçam insistentemente a Deus o dom da sabedoria.



A santificação das estruturas humanas pelo apostolado dos leigos

36 Tendo-se feito obediente até à morte e tendo sido, por este motivo, exaltado pelo Pai (cfr. Ph 2,8-9), entrou Cristo na glória do Seu reino. Todas as coisas Lhe estão sujeitas, até que Ele se submeta, e a todas as criaturas, ao Pai, para que Deus seja tudo em todos (cfr. 1Co 15,27-28). Comunicou este poder aos discípulos, para que também eles sejam constituídos em régia liberdade e, com a abnegação de si mesmos e a santidade da vida, vençam em si próprios o reino do pecado (cfr. Rm 6,12); mais ainda, para que, servindo a Cristo também nos outros, conduzam os seus irmãos, com humildade e paciência, àquele Rei, a quem servir é reinar. Pois o Senhor deseja dilatar também por meio dos leigos o Seu reino, reino de verdade e de vida, reino de santidade e de graça, reino de justiça, de amor e de paz (114), no qual a própria criação será liberta da servidão da corrupção, alcançando a liberdade da glória dos filhos de Deus (cfr. Rm 8,21). Grande é a promessa, grande o mandamento que é dado aos discípulos: «tudo é vosso; vós sois de Cristo; e Cristo é de Deus» (1Co 3,23).

Por consequência, devem os fiéis conhecer a natureza íntima e o valor de todas as criaturas, e a sua ordenação para a glória de Deus, ajudando-se uns aos outros, mesmo através das actividades propriamente temporais, a levar uma vida mais santa, para que assim o mundo seja penetrado do espírito de Cristo e, na justiça, na caridade e na paz, atinja mais eficazmente o seu fim. Na realização plena deste dever, os leigos ocupam o lugar mais importante. Por conseguinte, com a sua competência nas matérias profanas, e a sua actuação interiormente elevada pela graça de Cristo, contribuam eficazmente para que os bens criados sejam valorizados pelo trabalho humano, pela técnica e pela cultura para utilidade de todos os homens, sejam melhor distribuídos entre eles e contribuam a seu modo para o progresso de todos na liberdade humana e cristã, em harmonia com o destino que lhes deu o Criador e segundo a iluminação do Verbo. Deste modo, por meio dos membros da Igreja, Cristo iluminará cada vez mais a humanidade inteira com a Sua luz salvadora.

Além disso, também pela união das próprias forças, devem os leigos sanear as estruturas e condições do mundo, se elas porventura propendem a levar ao pecado, de tal modo que todas se conformem às normas da justiça e antes ajudem ao exercício das virtudes do que o estorvem. Agindo assim, informarão de valor moral a cultura e as obras humanas. E, por este modo, o campo, isto é, o mundo ficará mais preparado para a semente da palavra divina e abrir-se-ão à Igreja mais amplamente as portas para introduzir no mundo a mensagem da paz.

Devido à própria economia da salvação, devem os fiéis aprender a distinguir cuidadosamente entre os direitos e deveres que lhes competem como membros da Igreja e os que lhes dizem respeito enquanto fazem parte da sociedade humana. Procurem harmonizar entre si uns e outros, lembrando-se que se devem guiar em todas as coisas temporais pela consciência cristã, já que nenhuma actividade humana, nem mesmo em assuntos temporais, se pode subtrair ao domínio de Deus. É muito necessário em nossos dias que esta distinção e harmonia se manifestem claramente nas atitudes dos fiéis, que a missão da Igreja possa corresponder mais plenamente às condições particulares do mundo actual. Assim como se deve reconhecer que a cidade terrena se consagra a justo título aos assuntos temporais e se rege por princípios próprios, assim com razão se deve rejeitar a nefasta doutrina que pretende construir a sociedade sem ter para nada em conta a religião, atacando e destruindo a liberdade religiosa dos cidadãos (115)

114. Cfr. Missale romanum, Prefácio da festa de Cristo Rei.
115. Cfr. Leão XIII, Carta Encícl. Immortale Dei, 1 nov. 1855: ASS 18 (1885), p. 166 ss. Idem, Encícl. Sapientia christianae, 10 jan. 1890: ASS 22 (1889-90) p. 397 ss. Pio XII, Aloc. Alla vostra filiale, 23 março 1958: AAS 50 (1958) p. 220: «la légittima sana laicità dello Stato».


Relações dos leigos com a Hierarquia

37 Como todos os fiéis, também os leigos têm o direito de receber com abundância, dos sagrados pastores, os bens espirituais da Igreja, principalmente os auxílios da palavra de Deus e dos sacramentos (116); e com aquela liberdade e confiança que convém a filhos de Deus e a irmãos em Cristo, manifestem-lhes as suas necessidades e aspirações. Segundo o grau de ciência, competência e autoridade que possuam, têm o direito, e por vezes mesmo o dever, de expor o seu parecer sobre os assuntos que dizem respeito ao bem da Igreja (117). Se o caso o pedir, utilizem os órgãos para isso instituídos na Igreja, e procedam sempre em verdade, fortaleza e prudência, com reverência e amor para com aqueles que, em razão do seu cargo, representam a pessoa de Cristo.

Como todos os cristãos, devem os leigos abraçar prontamente, com obediência cristã, todas as coisas que os sagrados pastores, representantes de Cristo, determinarem na sua qualidade de mestres e guias na Igreja, a exemplo de Cristo, o qual com a Sua obediência, levada até à morte, abriu para todos o feliz caminho da liberdade dos filhos de Deus. Nem deixem de encomendar ao Senhor nas suas orações os seus prelados, já que eles olham pelas nossas almas, como devendo dar contas delas, a fim de que o façam com alegria e não gemendo (cfr.
He 13,17).

Por seu lado, os sagrados pastores devem reconhecer e fomentar a dignidade e responsabilidade dos leigos na Igreja; recorram espontaneamente ao seu conselho prudente, entreguem-lhes confiadamente cargos em serviço da Igreja e dêem-lhes margem e liberdade de acção, animando-os até a tomarem a iniciativa de empreendimentos. Considerem atentamente e com amor paterno, em Cristo, as iniciativas, pedidos e desejos propostos pelos leigos (118). E reconheçam a justa liberdade que a todos compete na cidade terrestre.

Muitos bens se devem esperar destas relações confiantes entre leigos e pastores: é que assim se fortalece nos leigos o sentido da própria responsabilidade, fomenta-se o seu empenho é mais facilmente se associam nas suas energias à obra dos pastores. Estes, por sua vez, ajudados pela experiência dos leigos, tanto nas coisas espirituais como nas temporais, mais facilmente julgarão com acerto, a fim de que a Igreja inteira, com a energia de todos os seus membros, cumpra mais eficazmente a sua missão para a vida do mundo.

116. Cfr. Cod. Iur. Can. can. CIS 682.
117. Cfr. Pio XII, Aloc. De quelle consolation, I. c., p. 789: «Dans les batailles décisives, c'est parfois du front que partent les plus heureuses iniciativas...» Idem, Aloc. L'Importance de la presse catholique, 17 fev. 1950: AAS 42 (1950) p. 256.
118. Cfr. 1Th 5,19 1Jn 4,1.



Lumen gentium PT 26