Lumen gentium PT 38

Conclusões: os leigos vivificadores do mundo

38 Cada leigo deve ser, perante o mundo, uma testemunha da ressurreição e da vida do Senhor Jesus e um sinal do Deus vivo. Todos em conjunto, e cada um por sua parte, devem alimentar o mundo com frutos espirituais (cfr. Ga 5,22) e nele difundir aquele espírito que anima os pobres, mansos e pacíficos, que o Senhor no Evangelho proclamou bem-aventurados (cfr. Mt 5,3-9). Numa palavra, «sejam os cristãos no mundo aquilo que a alma é no corpo» (119)

119. Epist. ad Diognetum, 6: ed. Funk I, p. 400. Cfr. S. João Crisóstomo, In Matth. Hom. 46 (47),2: PG 58, 478, acerca do fermento na massa.



CAPÍTULO V

A VOCAÇÃO DE TODOS À SANTIDADE NA IGREJA


Proémio: chamamento universal à santidade

39 A nossa fé crê que a Igreja, cujo mistério o sagrado Concílio expõe, é indefectivelmente santa. Com efeito, Cristo, Filho de Deus, que é com o Pai e o Espírito ao único Santo» (120), amou a Igreja como esposa, entregou-Se por ela, para a santificar (cfr. Ep 5,25-26) e uniu-a a Si como Seu corpo, cumulando-a com o dom do Espírito Santo, para glória de. Deus. Por isso, todos na Igreja, quer pertençam à Hierarquia quer por ela sejam pastoreados, são chamados à santidade, segundo a palavra do Apóstolo: «esta é a vontade de Deus, a vossa santificação» (1Th 4,3; cfr. Ep 1,4). Esta santidade da Igreja incessantemente se manifesta, e deve manifestar-se, nos frutos da graça que o Espírito Santo produz nos fiéis; exprime-se de muitas maneiras em cada um daqueles que, no seu estado de vida, tendem à perfeição da caridade, com edificação do próximo; aparece dum modo especial na prática dos conselhos chamados evangélicos. A prática destes conselhos, abraçada sob a moção do Espírito Santo por muitos cristãos, quer privadamente quer nas condições ou estados aprovados pela Igreja, leva e deve levar ao mundo um admirável testemunho e exemplo desta santidade.

120. Missale Romanum, Gloria in excelsis. Cfr. Lc 1,35 Mc 1,24 Lc 4,34 Jn 6,69 (ho hagios tou Theou); (Ac 3,14).


Jesus, mestre e modelo

40 Jesus, mestre e modelo divino de toda a perfeição, pregou a santidade de vida, de que Ele é autor e consumador, a todos e a cada um dos seus discípulos, de qualquer condição: «sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito» (Mt 5,48) (121). A todos enviou o Espírito Santo, que os move interiormente a amarem a Deus com todo o coração, com toda a alma, com todo o espírito e com todas as forças (cfr. Mc 12,30) e a amarem-se uns aos outros como Cristo os amou (cfr. Jn 13,34 Jn 15,12). Os seguidores de Cristo, chamados por Deus e justificados no Senhor Jesus, não por merecimento próprio mas pela vontade e graça de Deus, são feitos, pelo Baptismo da fé, verdadeiramente filhos e participantes da natureza divina e, por conseguinte, realmente santos. É necessário, portanto, que, com o auxílio divino, conservem e aperfeiçoem, vivendo-a, esta santidade que receberam. O Apóstolo admoesta-os a que vivam acorro convém a santos» (Ep 5,3), acorro eleitos e amados de Deus, se revistam de entranhas de misericórdia, benignidade, humildade, mansidão e paciência» (Col 3,12) e alcancem os frutos do Espírito para a santificação (cfr. Gál. Ga 5,22 Rm 6,22). E porque todos cometemos faltas em muitas ocasiões (Jc 3,2), precisamos constantemente. da misericórdia de Deus e todos os dias devemos orar: «perdoai-nos as nossas ofensas» (Mt 6,12) (122). É, pois, claro a todos, que os cristãos de qualquer estado ou ordem, são chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade (123). Na própria sociedade terrena, esta santidade promove um modo de vida mais humano. Para alcançar esta perfeição, empreguem os fiéis as forças recebidas segundo a medida em que as dá Cristo, a fim de que, seguindo as Suas pisadas e conformados à Sua imagem, obedecendo em tudo à vontade de Deus, se consagrem com toda a alma à glória do Senhor e ao serviço do próximo. Assim crescerá em frutos abundantes a santidade do Povo de Deus, como patentemente se manifesta na história da Igreja, com a vida de tantos santos.

121. Cfr. Orígenes, Comm Rom.7, 7: PG 14, 1122 B. Ps. - Macário, De Oratione, 11: PG 34, 861 AB. S. Tomás, Summa Theol. II-II 184,3.
122. Cfr. S. Agostinho, Retract.II, 18: PL 32, 637 s. Pio XII, Encícl. Mystici Corporis, 29 jun. 1943: AAS 35 (1943) p. 225.
123. Cfr. Pio XI, Encícl. Rerum omnium, 26 jan. 1923: AAS 15 (1923) p. 50 e pp. 59-60. Encicl. Casti Connubii, 31 dez. 1930: AAS 22 (1930) p. 548. Pio XII, Const. Apost. Provida Mater, 2 fev. 1947: AAS 39 (1947) p. 117. Aloc. Annus sacer, 8 dez. 1950: AAS 43 (1951) pp. 27-28. Aloc. Nel darvi, 1 jul. 1956: AAS 48 (1956) p. 574 s.


A santidade nos diversos estados

41 Nos vários géneros e ocupações da vida, é sempre a mesma a santidade que é cultivada por aqueles que são conduzidos pelo Espírito de Deus e, obedientes à voz do Pai, adorando em espírito e verdade a Deus Pai, seguem a Cristo pobre, humilde, e levando a cruz, a fim de merecerem ser participantes da Sua glória. Cada um, segundo os próprios dons e funções, deve progredir sem desfalecimentos pelo caminho da fé viva, que estimula a esperança e que actua pela caridade.

Em primeiro lugar, os pastores do rebanho de Cristo, à semelhança do sumo e eterno sacerdote, pastor e bispo das nossas almas, desempenhem o próprio ministério santamente e com alegria, com humildade e fortaleza; assim cumprido, também para eles será o seu ministério um sublime meio de santificação. Escolhidos para a plenitude do sacerdócio, receberam a graça sacramental para que, orando, sacrificando e pregando, com toda a espécie de cuidados e serviços episcopais, realizem a tarefa perfeita da caridade pastoral (124), sem hesitarem em oferecer a vida pelas ovelhas e, feitos modelos do rebanho (cfr.
1P 5,3), suscitem na Igreja, também com o seu exemplo, uma santidade cada vez maior.

Os presbíteros, à semelhança da ordem dos Bispos, de que são a coroa espiritual (125), já que participam das suas funções por graça de Cristo, eterno e único mediador, cresçam no amor de Deus e do próximo com o exercício do seu dever quotidiano; guardem o vínculo da unidade sacerdotal, abundem em toda a espécie de bens espirituais e dêem a todos vivo testemunho de Deus (126), tornando-se émulos daqueles sacerdotes que no decorrer dos séculos, em serviço muitas vezes humilde e escondido, nos deixaram magnífico exemplo de santidade. O seu louvor persevera na Igreja. Orando e oferecendo o sacrifício pelo próprio rebanho e por todo o Povo de Deus, conforme é seu ofício, conscientes do que fazem e imitando as realidades com que lidam (127), longe de serem impedidos pelos cuidados, perigos e tribulações do apostolado, devem antes por eles elevar-se a uma santidade mais alta, alimentando e afervorando a sua acção com a abundância da contemplação, para alegria de toda a Igreja de Deus. Todos os presbíteros, e especialmente aqueles que por título particular da sua ordenação são chamados sacerdotes diocesanos, lembrem-se de quanto ajudam para a sua santificação a união fiel e a cooperação generosa com o próprio Bispo.

Na missão de graça do sumo sacerdote, participam também de modo peculiar os ministros de ordem inferior, e sobretudo os diáconos; servindo nos mistérios de Cristo e da Igreja (128), devem conservar-se puros de todo o vício, agradar a Deus, atender a toda a espécie de boas obras diante dos homens (cfr. 1Tm 3,8-10 1Tm 3,12-13). Os clérigos que, chamados pelo Senhor e separados a fim de ter parte com Ele, se preparam sob a vigilância dos pastores para desempenhar os ofícios de ministros, procurem conformar o coração e o espírito com tão magnífica eleição, sendo assíduos na oração e fervorosos no amor, ocupando o pensamento com tudo o que é verdadeiro, justo e de boa reputação, fazendo tudo para glória é honra de Deus. Destes se aproximam aqueles leigos, que, escolhidos por Deus, são chamados pelos Bispos para se consagrarem totalmente às actividades apostólicas e com muito fruto trabalham no campo do Senhor (129).

Os esposos e pais cristãos devem, seguindo o seu caminho peculiar, amparar-se mutuamente na graça, com amor fiel, durante a vida inteira, e imbuir com a doutrina cristã e as virtudes evangélicas a prole que amorosamente receberam de Deus. Dão assim a todos exemplo de amor incansável e generoso, edificam a comunidade fraterna e são testemunhas e cooperadores da fecundidade da Igreja, nossa mãe, em sinal e participação daquele amor, com que Cristo amou a Sua esposa e por ela Se entregou (130). Exemplo semelhante é dado, mas de outro modo, pelas pessoas viúvas ou celibatárias, que muito podem concorrer para a santidade e acção da Igreja. Aqueles que se ocupam em trabalhos muitas vezes duros, devem, através das tarefas humanas, aperfeiçoar-se a si mesmos, ajudar os seus concidadãos, fazer progredir a sociedade e toda a criação; e, ainda, imitando com operosa caridade a Cristo, cujas mãos se exercitaram em trabalhos de operário e, em união com o Pai, continuamente actua para a salvação de todos; alegres na esperança, levando os fardos uns dos outros, subam com o próprio trabalho quotidiano a uma santidade mais alta, também ela apostólica.

Todos quantos se vêem oprimidos pela pobreza, pela fraqueza, pela doença ou tribulações várias, e os que sofrem perseguição por amor da justiça, saibam que estão unidos, de modo especial, a Cristo nos seus sofrimentos pela salvação do mundo; o Senhor, no Evangelho, proclamou-os bem-aventurados e «o Deus... de toda a graça, que nos chamou à Sua eterna glória em Cristo Jesus, depois de sofrerem um pouco, os há-de restabelecer, confirmar e consolidar» (1P 5,10).

Todos os fiéis se santificarão cada dia mais nas condições, tarefas e circunstâncias da própria vida e através de todas elas, se receberem tudo com fé da mão do Pai celeste e cooperarem com a divina vontade, manifestando a todos, na própria actividade temporal, a caridade com que Deus amou o mundo.

124. Cfr. S. Tomás, Summa Theol. II-II 184,5-6. De perf. vitae spir. c. 18; Orígenes, In Is. Hom. 6, 1: PG 13, 239.
125. Cfr. S. Inácio M., Magn.13, 1: ed. Funk, I, p. 241.
126. Cfr. S. Pio X, Exort. Haerent animo, 4 ago. 1908: ASS 41 (1908) p. 560 s. Cod. Iur. Can., can. (CIS 124). Pio XI, Encicl. Ad catholici sacerdotii, 20 dez. 1935: AAS 28 (1936) p. 22 s.
127. Cfr. Pontificale romanum, De Ordinatione presbyterorum, na exortação inicial.
128. Cfr. S. Inácio M., Trall. 2, 3: ed. Funk, p. 244.
129. Cfr. Pio XII, Aloc. Sous Ia maternelle protection, 9 dez. 1957: AAS 50 (1958) p. 36.
130. Pio XI, Encicl. Casti Connubii, 31 dez. 1930: AAS 22 (1930) p. 548 s. S. João Crisóstomo, In Ephes. Hom. 20, 2: PG 62, 136 ss.


A caridade. O martírio.

Os conselhos evangélicos.

A santidade no próprio estado

42 «Deus é caridade e quem permanece na caridade, permanece em Deus e Deus nele» (1Jn 4,16). Ora, Deus difundiu a sua caridade nos nossos corações, por meio do Espírito Santo, que nos foi dado (cfr. Rm 5,5). Sendo assim, o primeiro e mais necessário dom é a caridade, com que amamos a Deus sobre todas as coisas e ao próximo por amor d'Ele. Para que esta caridade, como boa semente, cresça e frutifique na alma, cada fiel deve ouvir de bom grado a palavra de Deus, e cumprir, com a ajuda da graça, a Sua vontade, participar frequentemente nos sacramentos, sobretudo na Eucaristia, e nas funções sagrarias, dando-se continuamente à oração, à abnegação de si mesmo, ao serviço efectivo de seus irmãos e a toda a espécie de virtude; pois a caridade, vínculo da perfeição e plenitude da lei (cfr. Col 3,14 Rm 13,10), é que dirige todos os meios de santificação, os informa e leva a seu fim (131). E, pois, pela caridade para com Deus e o próximo que se caracteriza o verdadeiro discípulo de Cristo.

Como Jesus, Filho de Deus, manifestou o Seu amor dando a vida por nós, assim ninguém dá maior prova de amor do que aquele que oferece a própria vida por Ele e por seus irmãos (cfr. 1Jn 3,16 Jn 15,13). Desde os primeiros tempos, e sempre assim continuará a suceder, alguns cristãos foram chamados a dar este máximo testemunho de amor diante de todos, e especialmente perante os perseguidores. Por esta razão, o martírio, pelo qual o discípulo se torna semelhante ao mestre, que livremente aceitou a morte para salvação do mundo, e a Ele se conforma no derramamento do sangue, é considerado pela Igreja como um dom insigne e prova suprema de amor. E embora seja concedido a poucos, todos, porém, devem estar dispostos a confessar a Cristo diante dos homens e a segui-l'O no caminho da cruz em meio das perseguições que nunca faltarão à Igreja.

A santidade da Igreja é também especialmente favorecida pelos múltiplos conselhos que o Senhor propõe no Evangelho aos Seus discípulos (132). Entre eles sobressai o de, com o coração mais facilmente indiviso (cfr. 1Co 7,32-34), se consagrarem só a Deus, na virgindade ou no celibato, dom da graça divina que o Pai concede a alguns (cfr. Mt 19,11 1Co 7,7) (133). Esta continência perfeita, abraçada pelo reino dos céus, foi sempre tida em grande estima pela Igreja, como sinal e incentivo do amor e ainda como fonte privilegiada de fecundidade espiritual no mundo.

A Igreja recorda-se também da recomendação com que o Apóstolo, incitando os fiéis à caridade, os exorta a ter sentimentos semelhantes aos de Jesus Cristo, o qual «Se despojou a Si próprio, tomando a condição de escravo... feito obediente até à morte (Ph 2,7-8) e, «sendo rico, por nós Se fez pobre» (2Co 8,9). Sendo necessário que sempre e em todo o tempo os discípulos imitem esta caridade e humildade de Cristo, e delas dêem testemunho, a mãe Igreja alegra-se de encontrar no seu seio muitos homens e mulheres que seguem mais de perto o abatimento do Salvador e mais claramente o manifestam, abraçando a pobreza na liberdade dos filhos de Deus e renunciando às próprias vontades: em matéria de perfeição, sujeitam-se, por amor de Deus, ao homem, para além do que é de obrigação, a fim de mais plenamente se conformarem a Cristo obediente (134).

Todos os cristãos são, pois, chamados e obrigados a tender à santidade e perfeição do próprio estado. Procurem, por isso, ordenar rectamente os próprios afectos, para não serem impedidos de avançar na perfeição da caridade pelo uso das coisas terrenas e pelo apego às riquezas, em oposição ao espírito da pobreza evangélica, segundo o conselho do Apóstolo: os que usam no mundo, façam-no como se dele não usassem, pois é transitório o cenário deste mundo (1Co 7,31 gr.) (135).

131. Cfr. S. Agostinho, Enchir.121, 32: PL 40, 288. S. Tomás, Summa Theol. II-II 184,1. Pio XII, Exort. Apost. Menti nostrae, 23 set. 1950: AAS 42 (1950) p. 660.
132. Acerca dos conselhos em geral, cfr. Orígenes, Comm. Rom. X, 14: PG 14, 1275 B. S. Agostinho De S. Virginitate, 15, 15: PL 40, 403. S. Tomás, Summa Theol. I-II 100,2 C. (no fim); I-II 44,4, ad 3.
133. Acerca da superioridade da sagrada virgindade, cfr. Tertuliano, Exhort. Cast. 10: PL 2, 925 C. S. Cipriano, Hab. Virg. 3 e 22: PL 4, 433 B e 461 A s. S. Atanásio, De Virg.: PG 28, 252, ss. S. João Crisóstomo, De Virg.: PG 48, 533 ss.
134. Sobre a pobreza espiritual, Cfr. Mt 5,3 Mt 5,19-21 Mc 10,21 Lc 18,22); sobre a obediência, aduz o exemplo de Cristo (Jn 4,34 Jn 6,38 Ph 2,8-10 He 10,5-7). Os Padres e fundadores de Ordens abundam em referências.
135. Acerca da prática efectiva dos conselhos, que não se impõe a todos, cfr. S. João Crisóstomo, In Matth. Hom. 7, 7: PG 57, 81 s. S. Ambrósio, De Viduis, 4, 23: PL 16, 241 s.


CAPÍTULO VI

OS RELIGIOSOS


Os conselhos evangélicos e o estado religioso

43 Os conselhos evangélicos de castidade consagrada a Deus, de pobreza e de obediência, visto que fundados sobre a palavra e o exemplo de Cristo e recomendados pelos Apóstolos, pelos Padres, Doutores e Pastores da Igreja, são um dom divino, que a mesma Igreja recebeu do seu Senhor e com a Sua graça sempre conserva. A autoridade da Igreja, sob a direcção do Espírito Santo, cuidou de regular a sua prática e também de constituir, à base deles, formas estáveis de vida. E assim sucedeu que, como em árvore plantada por Deus e maravilhosa e variamente ramificada no campo do Senhor, surgiram diversas formas de vida, quer solitária quer comum, e várias famílias religiosas, que vêm aumentar as riquezas espirituais, tanto em proveito dos seus próprios membros como no de todo o Corpo de Cristo (136). Com efeito, essas famílias dão aos seus membros os auxílios duma estabilidade mais firme no modo de vida, duma doutrina segura em ordem a alcançar a perfeição, duma comunhão fraterna na milícia de Cristo, duma liberdade robustecida pela obediência, para assim poderem cumprir com segurança e guardar fielmente a profissão religiosa e avançar jubilosos no caminho da caridade (137).

Tendo em conta a constituição divina hierárquica da Igreja, este estado não é intermédio entre o estado dos clérigos e o dos leigos; de ambos estes estados são chamados por Deus alguns cristãos, a usufruirem um dom especial na vida da Igreja e, cada um a seu modo, a ajudarem a sua missão salvadora (138).

136. Cfr. Rosweydus, Vitae Patrum, Anvers, 1628, Apophtegmata Patrum: PG 65. Paladius, Historia Lausiaca: PG 34, 995 ss.: ed. Butler, Cambridge 1898 (1904). Pio XI, Const. Apost. Umbratilem, 8 jul. 1924: AAS 16 (1924) pp. 386-387. Pio XII, Aloc. Nous sommes heureux, 11 abr. 1958:. AAS 50 (1958) p. 283.
137. Cfr. Paulo VI, Aloc. Magno gaudio, 23 maio 1964: AAS 56 (1964), p. 566.
138. Cfr. Cod. Iur. Can., c. (
CIS 487 CIS 488), 4.°; Pio XII, Aloc. Annus sacer, 8 dez. 1950: AAS 43 (1951) p. 27 s.; Pio XII, Const. Apost. Provida Mater, 2. fev. 1947: AAS 39 (1947) p. 120 ss.


Consagração ao serviço divino; o testemunho de vida

44 Pelos votos, ou outros compromissos sagrados a eles semelhantes, com os quais se obriga aos três mencionados conselhos evangélicos, o cristão entrega-se totalmente ao serviço de Deus sumamente amado, de maneira que por um título novo e especial fica destinado ao serviço do Senhor. Já pelo Baptismo, morrera ao pecado e fora consagrado a Deus; mas, para poder recolher frutos mais abundantes dá graça baptismal, pretende libertar-se, pela profissão dos conselhos evangélicos na Igreja, dos impedimentos que o poderiam afastar do fervor da caridade e da perfeição do culto divino, é consagrado mais intimamente ao serviço divino (139). E esta consagração será tanto mais perfeita quanto mais a firmeza e a estabilidade dos vínculos representarem a indissolúvel união de Cristo à Igreja, Sua esposa.

E como os conselhos evangélicos, em razão da caridade a que conduzem (140), de modo especial unem à Igreja e ao seu mistério aqueles que os seguem, deve também a sua vida espiritual ser consagrada ao bem de toda ela. Daqui nasce o dever de trabalhar na implantação e consolidação do reino de Cristo nas almas e de o levar a todas as regiões com a oração ou também com a acção, segundo as próprias forças e a índole da própria vocação. Por isso, a Igreja defende e favorece a índole própria dos vários Institutos religiosos.

A profissão dos conselhos evangélicos aparece assim como um sinal, que pode e deve atrair eficazmente todos os membros da Igreja a corresponderem animosamente às exigências da. vocação cristã. E porque o Povo de Deus não tem na terra a sua cidade permanente, mas vai em demanda da futura, o estado religioso, tornando os seus seguidores mais livres das preocupações terrenas, manifesta também mais claramente a todos os fiéis os bens celestes, já presentes neste mundo; é assim testemunha da vida nova é eterna, adquirida com a redenção de Cristo, e preanuncia a ressurreição futura e a glória do reino celeste. O mesmo estado. religioso imita mais de perto, e perpetuamente representa na Igreja aquela forma de vida que o Filho de Deus assumiu ao entrar no mundo para cumprir a vontade do Pai, e por Ele foi proposta aos discípulos que O seguiam. Finalmente, o estado religioso patenteia de modo especial a elevação do reino de Deus sobre tudo o que é terreno e as suas relações transcendentes; e revela aos homens a grandeza do poder de Cristo Rei e a potência infinita com que o Espírito Santo maravilhosamente actua na Igreja.

Portanto, o estado constituído pela profissão dos conselhos evangélicos, embora não pertença à estrutura hierárquica da Igreja, está contudo inabalavelmente ligado à sua vida e santidade.

139. Cfr. Paulo VI, l.c., p. 567.
140. Cfr. S. Tomás, Summa Theol.
II-II 184,3 e II-II 188,2. S. Boaventura, Opusc. XI, Apologia Pauperum, e. 3, 3: ed. Opera, Quaracchi, 1898, t. 8, p. 245 a.


Regras e constituições

A relação com a Hierarquia

45 Sendo dever da Hierarquia pastorear o Povo de Deus e conduzi-lo a abundante pastio (cfr. Ez 34,14), a ela pertence regular com sábias leis a prática dos conselhos evangélicos, que tanto ajudam à perfeição da caridade para com Deus e o próximo (141). Dócil à moção do Espírito Santo, ela acolhe as regras, propostas por homens e mulheres eminentes é, depois de aperfeiçoadas, aprova-as autênticamente; e assiste com vigilância e protecção de sua autoridade aos Institutos, por toda a parte fundados para a edificação do Corpo de Cristo, para que cresçam e floresçam segundo o espírito dos fundadores.

Para que melhor se atenda às necessidades de todo o rebanho do Senhor, qualquer Instituto de perfeição e cada um dos seus membros, podem ser isentos pelo Sumo Pontífice, em razão do seu primado sobre toda a Igreja, da jurisdição do Ordinário do lugar e ficar sujeitos só a ele, em vista do bem comum (142). Podem igualmente ser deixados, ou confiados, à autoridade patriarcal própria. E os membros dos Institutos de perfeição, ao cumprir o seu dever para com a Igreja, segundo o modo peculiar da sua vida, devem, de acordo com as leis canónicas, respeito e obediência aos Bispos, em atenção à sua autoridade de pastores das igrejas particulares e à necessária unidade e harmonia no trabalho apostólico (143).

Mas a Igreja não se limita a elevar, com a sua aprovação, a profissão religiosa à dignidade de estado canónico, senão que a manifesta também na sua liturgia como estado consagrado a Deus. Com efeito, pela autoridade que Deus lhe concedeu, ela recebe os votos dos que professam, implora para eles, com a sua oração pública, os auxílios da graça, recomenda-os a Deus e concede-lhes a bênção espiritual, unindo a sua oblação ao sacrifício eucarístico.

141. Cfr. Conc. Vat. I, Esquema De Ecclesia Christi, cap. XV, e Adnot. 48: Mansi 51, 549 s. e 619 s. - Leão XIII, Carta Au milieu des consolations, 23 dez. 1900: ASS 33 (1900-01) p. 361. Pio XII, Const. Apost. Provida Mater, l. c., p. 114 s.
142. Cfr. Leão XIII, Const. Romanos Pontifices, 8 maio 1881: ASS 13 (1880-81) p. 483. Pio XII, Aloc. Annus sacer, 8 dez. 1950: AAS 43 (1951) p. 28 s.
143. Cfr. Pio XII, Aloc. Annus sacer, l.c., p, 28. Pio XII, Const. Apost. Sedes Sapientiae, 31 maio 1956: AAS 48 (1956) p. 355. Paulo VI, Aloc. Magno gaudio, 23 maio 1964: AAS 56 (1964), p. 570-571.


Pureza de vida ao serviço do mundo

46 Procurem os religiosos com empenho que, por seu intermédio, a Igreja revele cada vez mais Cristo aos fiéis e infiéis, Cristo orando sobre o monte, anunciando às multidões o reino de Deus, curando os doentes e feridos, trazendo os pecadores à conversão, abençoando as criancinhas e fazendo bem a todos, obediente em tudo à vontade do Pai que O enviou (144).

Finalmente, tenham todos presente que a profissão dos conselhos evangélicos, ainda que importa a renúncia a bens de grande valor, não se opõe, contudo, ao verdadeiro desenvolvimento da pessoa humana, más antes a favorece grandemente. Na verdade, os conselhos evangélicos, assumidos livremente segundo a vocação pessoal de cada um, contribuem muito para a pureza de coração e liberdade de espírito, alimentam continuamente o fervor da caridade e, sobretudo, como bem o demonstra o exemplo de tantos santos fundadores, podem levar o cristão a conformar-se mais plenamente com o género de vida virginal e pobre que Cristo Nosso Senhor escolheu para Si e a Virgem Sua mãe abraçou. Nem se pense que os religiosos, pela sua consagração, se tornam estranhos aos homens ou inúteis para a cidade terrena. Pois, mesmo quando não prestam uma ajuda directa aos seus contemporâneos, têm-nos sempre presentes dum modo mais profundo, no amor de Cristo, e colaborara espiritualmente com eles, a fim de que a construção da cidade terrena se funde sempre no Senhor e para Ele se oriente, não seja que trabalhem em vão os que edificam a casa (145).

Por isso, finalmente, o sagrado Concílio confirma e louva os homens e mulheres, Irmãos e Irmãs, que, nos mosteiros, escolas, hospitais ou missões, embelezam a Igreja com a sua perseverante e humilde fidelidade na mencionada consagração, e prestam generosamente aos homens os mais variados serviços.

144. Cfr. Pio XII, Encícl. Mystici Corporis, 29 jun. 1943: AAS 35 (1943) p. 214 s.
145. Cfr. Pio XII, Aloc. Annus sacer, l.c., p. 30. Aloc. Sous la maternelle protection, 9 dez. 1957: AAS 50 (1958) p. 39 s.


Conclusão: perseverança e santidade

47 Cada um dos que foram chamados à profissão dos conselhos, cuide com empenho de perseverar na vocação a que o Senhor o chamou, e de nela se aperfeiçoar para maior santidade da Igreja e maior glória da una e indivisa Trindade, a qual em Cristo e por Cristo é a fonte e origem de toda a santidade.



CAPÍTULO VII

A ÍNDOLE ESCATOLÓGICA DA IGREJA PEREGRINA E A SUA UNIÃO COM A IGREJA CELESTE


Caráter escatológico da nossa vocação à Igreja

48 A Igreja, à qual todos somos chamados e na qual por graça de Deus alcançamos a santidade, só na glória celeste alcançará a sua realização acabada, quando vier o tempo da restauração de todas as coisas (cfr. Ac 3,21) e, quando, juntamente com o género humano, também o universo inteiro, que ao homem está intimamente ligado e por ele atinge o seu fim, for perfeitamente restaurado em Cristo (cfr. Ep 1,10 Col 1,20 2P 3,10-13).

Na verdade, Cristo, elevado sobre a terra, atraiu todos a Si (cfr. Jn 12,32 gr.); ressuscitado de entre os mortos (cfr. Rm 6,9), infundiu nos discípulos o Seu Espírito vivificador e por Ele constituiu a Igreja, Seu corpo, como universal sacramento da salvação; sentado à direita do Pai, actua continuamente na terra, a fim de levar os homens à Igreja e os unir mais estreitamente por meio dela, e, alimentando-os com o Seu próprio corpo e sangue, os tornar participantes da Sua vida gloriosa. A prometida restauração que esperamos, já começou, pois, em Cristo, progride com a missão do Espírito Santo e, por Ele, continua na Igreja; nesta, a fé ensina-nos o sentido da nossa vida temporal, enquanto, na esperança dos bens futuros, levamos a cabo a missão que o Pai nos confiou no mundo e trabalhamos na nossa salvação (cfr. Ph 2,12).

Já chegou, pois, a nós, a plenitude dos tempos (cfr. 1Co 10,11), a restauração do mundo foi já realizada irrevogavelmente e, de certo modo, encontra-se já antecipada neste mundo: com efeito, ainda aqui na terra, a Igreja está aureolada de verdadeira, embora imperfeita, santidade. Enquanto não se estabelecem os novos céus e a nova terra em que habita a justiça (cfr. 2P 3,13), a Igreja peregrina, nos seus sacramentos e nas suas instituições, que pertencem à presente ordem temporal, leva a imagem passageira deste mundo e vive no meio das criaturas que gemem e sofrem as dores de parto, esperando a manifestação dos filhos de Deus (cfr. Rm 8,19-22).

Unidos, pois, a Cristo na Igreja, e marcados com o sinal do Espírito Santo «que é o penhor da nossa herança» (Ep 1,14), chamamo-nos filhos de Deus e em verdade o somos (cfr. 1Jn 3,1); mas não aparecemos ainda com Cristo na glória (cfr. Col 3,4), na qual seremos semelhantes a Deus, porque O veremos como Ele é (cfr. 1Jn 3,2). E assim, «enquanto estamos no corpo, vivemos exilados, longe do Senhor» (2Co 5,6) e, tendo recebido as primícias do Espírito, gememos no nosso íntimo (cfr. Rom. Rm 8,23) e anelamos por estar com Cristo (cfr. Ph 1,23). Por este mesmo amor somos incitados a viver mais para Ele, que por nós morreu e ressuscitou (cfr. 2Co 5,15). Esforçamo-nos, por isso, por agradar a Deus em todas as coisas (cfr. 2Co 5,9) e revestimo-nos da armadura de Deus, para podermos fazer frente às maquinações do diabo e resistir no dia perverso (cfr. Ep 6,11-13). Mas, como não sabemos o dia nem a hora, é preciso que, segundo a recomendação do Senhor, vigiemos continuamente, a fim de que no termo da nossa vida sobre a terra, que é só uma (cfr. He 9,27), mereçamos entrar com Ele para o banquete de núpcias e ser contados entre os eleitos (cfr. Mt 25,51-46), e não sejamos lançados, como servos maus e preguiçosos (cfr. Mt 25,26), no fogo eterno (cfr. Mt 25,41), nas trevas exteriores, onde «haverá choro e ranger de dentes» (Mt 22,13 Mt 25,30). Com efeito, antes de reinarmos com Cristo glorioso, cada um de nós será apresentado «perante o tribunal de Cristo, a fim de ser remunerado pelas obras que realizou enquanto vivia no corpo, boas ou más» (2Co 5,10); e, no fim do mundo, «os que tiverem feito boas obras, irão para a ressurreição da vida, os que tiverem praticado más acções, para a ressurreição da condenação (Jn 5,29 cfr. Mt 25,46). Pensando, pois, que «os sofrimentos desta vida não têm proporção com a glória que se há-de revelar em nós» (Rm 8,18 cfr. 2Tm 2,11-12), fortalecidos pela fé, aguardamos «a bem-aventurada esperança e a vinda gloriosa do grande Deus e salvador nosso Jesus Cristo), (Tt 2,13), «o qual transformará o nosso corpo miserável, tornando-o conforme ao Seu corpo glorioso), (Ph 3,21) e virá «ser glorificado nos Seus santos e admirado em todos os que acreditaram), (2Th 1,10).


União da Igreja celeste com a Igreja peregrina

49 Deste modo, enquanto o Senhor não vier na Sua majestade e todos os Seus anjos com Ele (cfr. Mt 25,31) e, vencida a morte, tudo Lhe for submetido (cfr. 1Co 15,26-27), dos Seus discípulos uns peregrinam sobre a terra, outros, passada esta vida, são purificados, outros, finalmente, são glorificados e contemplam «claramente Deus trino e uno, como Ele é»(146); todos, porém, comungamos, embora em modo e grau diversos, no mesmo amor de Deus e do próximo, e todos entoamos ao nosso Deus o mesmo hino de louvor. Com efeito, todos os que são de Cristo e têm o Seu Espírito, estão unidos numa só Igreja e ligados uns aos outros n'Ele (cfr. Ep 4,16). E assim, de modo nenhum se interrompe a união dos que ainda caminham sobre a terra com os irmãos que adormeceram na paz de Cristo, mas antes, segundo a constante fé da Igreja, é reforçada pela comunicação dos bens espirituais (147). Porque os bem-aventurados, estando mais ìntimamente unidos com Cristo, consolidam mais firmemente a Igreja na santidade, enobrecem o culto que ela presta a Deus na terra, e contribuem de muitas maneiras para a sua mais ampla edificação em Cristo (cfr. 1Co 12,12-27) (148). Recebidos na pátria celeste e vivendo junto do Senhor (cfr. 2Co 5,8), não cessam de interceder, por Ele, com Ele e n'Ele, a nosso favor diante do Pai (149), apresentando os méritos que na terra alcançaram, graças ao mediador único entre Deus e os homens, Jesus Cristo (cfr. 1Tm 2,5), servindo ao Senhor em todas as coisas e completando o que falta aos sofrimentos de Cristo, em favor do Seu corpo que é a Igreja (cfr. Col 1,24) (150). A nossa fraqueza é assim grandemente ajudada pela sua solicitude de irmãos.

146. Conc. Florentino, Decretum pro Graecis: Denz. 693 (DS 1305).
147. Além de documentos mais antigos contra qualquer forma de evocação dos espíritos a partir de Alexandre IV (27 set. 1258), cfr. Carta do Santo Oficio, De magnetismi abusu, 4 ago. 1856: ASS (1865) pp. 177-178; Denz. 1653-1654 (DS 2823-2825); resposta do Santo Ofício, 24 abr. 1917: AAS 9 (1917) p. 268; Denz. 2182 (DS 3642).
148. Veja-se a exposição sintética desta doutrina paulina em: Pio XII Encícl. Mystici Corporis: AAS 35 (1943) p. 200, etc., etc.
149. Cfr. S. Agostinho, Enar. in Ps. 85, 24: PL 37, 1099. S. Jerónimo, Liber contra Vigilantium, 6: PL 23, 344. S. Tomás, In 4m Sent., d. 45, q. 3, a. 2. S. Boaventura, In 4m Sent., d. 45, a. 3 q. 2; etc.
150. Cfr. Pio XII, Encícl. Mystici Corporis: AAS 35 (1943) p. 245.



Lumen gentium PT 38