Lumen gentium PT 50

Expressões dessa união: orações pelos defuntos, culto dos santos

50 Reconhecendo claramente esta comunicação de todo o Corpo místico de Cristo, a Igreja dos que ainda peregrinam, cultivou com muita piedade desde os primeiros tempos do Cristianismo a memória dos defuntos (151) e, «porque é coisa santa e salutar rezar pelos mortos, para que sejam absolvidos de seus pecados» (2M 12,46), por eles ofereceu também sufrágios. Mas, os apóstolos e mártires de Cristo que, derramando o próprio sangue, deram o supremo testemunho de fé e de caridade, sempre a Igreja acreditou estarem mais ligados connosco em Cristo, os venerou com particular afecto, juntamente com a Bem-aventurada Virgem Maria e os santos Anjos (152) e implorou o auxílio da sua intercessão. Aos quais bem depressa foram associados outros, que mais de perto imitaram a virgindade e pobreza de Cristo (153) e, finalmente, outros, cuja perfeição nas virtudes cristãs (154) e os carismas divinos recomendavam à piedosa devoção dos fiéis (155).

Com efeito, a vida daqueles que fielmente seguiram a Cristo, é um novo motivo que nos entusiasma a buscar a cidade futura (cfr. He 14,14 He 11,10) e, ao mesmo tempo, nos ensina um caminho seguro, pelo qual, por entre as efémeras realidades deste mundo e segundo o estado e condição próprios de cada um, podemos chegar à união perfeita com Cristo, na qual consiste a santidade (156). É sobretudo na vida daqueles que, participando connosco da natureza humana, se transformam, porém, mais perfeitamente à imagem de Cristo, (cfr. 2Co 3,18) que Deus revela aos homens, de maneira mais viva, a Sua presença e a Sua face. Neles nos fala, e nos dá um sinal do Seu reino (157), para o qual, rodeados de uma tão grande nuvem de testemunhas (cfr. He 12,1) e tendo uma tal afirmação da verdade do Evangelho, somos fortemente atraídos.

Porém, não é só por causa de seu exemplo que veneramos a memória dos bem-aventurados, mas ainda mais para que a união de toda a Igreja aumente com o exercício da caridade fraterna (cfr. Ep 4,1-6). Pois, assim como a comunhão cristã entre os peregrinos nos aproxima mais de Cristo, assim a comunhão com os santos nos une a Cristo, de quem procedem, como de fonte e cabeça, toda a graça e ã própria vida do Povo de Deus(158).

É, portanto, muito justo que amemos estes amigos e co-herdeiros de Jesus Cristo, nossos irmãos e grandes benfeitores, que dêmos a Deus, por eles, as devidas graças (159), «lhes dirijamos as nossas súplicas e recorramos às suas orações, ajuda e patrocínio, para obter de Deus os benefícios, por Seu Filho Jesus Cristo, Nosso Senhor e Redentor e Salvador único» (160) Porque todo o genuíno testemunho de veneração que prestamos aos santos, tende e leva, por sua mesma natureza, a Cristo, que é a «coroa de todos os santos» (161) e, por Ele, a Deus, que é admirável nos seus santos e neles é glorificado (162).

Mas a nossa união com a Igreja celeste realiza-se de modo mais sublime. quando, sobretudo na sagrada Liturgia, na qual a virtude do Espírito Santo actua sobre nós através dos sinais sacramentais, concelebramos em comum exultação os louvores da divina Majestade (163) e, todos de todas as tribos, línguas e povos, remidos no sangue de Cristo (cfr. Ap 5,9) e reunidos numa única Igreja, engrandecemos com um único canto de louvor o Deus uno e trino. Assim, ao celebrar o sacrifício eucarístico, unimo-nos no mais alto grau ao culto da Igreja celeste, comungando e venerando a memória, primeiramente da gloriosa sempre Virgem Maria, de S. José, dos santos Apóstolos e mártires e de todos os santos (164).

151. Cfr. muitas inscrições nas catacumbas romanas.
152. Cfr. Gelásio I, Decretal De libris recipendis, 3: PL 59, 160, Denz. 165 (DS 353).
153. Cfr. S. Método, Symposion, VII, 3: GCS (Bonwetsch), 74.
154. Cfr. Bento XV, Decretum approbationis virtutum in Causa beatificationis e canonizationis Servi Dei Ioannis Nepomuceni Neumann: AAS 14 (1922) p. 23; Várias alocuções de Pio XI sobre os Santos: Inviti All'eroismo, em Discorsi e Radiomessaggi t. I-III, Roma, 1941-1942, passim; Pio XII, Discorsi e Radiomessaggi, t. 10, 1949, pp. 37-43.
155. Cfr. Pio XII, Encícl. Mediator Dei: AAS 39 (1947) p. 581.
156. Cfr. He 13,7 Si 44-50 Hebd. He 11,3-40. Cfr. também Pio XII, Encícl. Mediator Dei: AAS 39 (1947) pp. 582-583.
157. Cfr. Conc. Vaticino I, Const. De fide catholica, cap. 3: Denz. 1794 (DS 3013).
158. Cfr. Pio XII, Encícl. Mystici Corporis: AAS 35 (1943) p. 216.
159. "Quanto à gratidão para com os próprios Santos, cfr. E. Diehl, Inscriptiones latinae christianae veteres, I, Berlim, 1925, nn. 2008, 2382, etc. etc.
160. Conc. Tridentino, Decr. De invocatione... Sanctorum: Denz. 984 (DS 1821).
161. Breviarium Romanum, Invitatorium in festo Sanctorum Omnium.
162. Cfr. v. g. 2Th 1,10.
163. Conc. Vaticano II, Const. De Sacra Liturgia, Sacrosanctum Concilium, cap. 5, n. SC 104: AAS 56 (1964) p. 125-126.
164. Cfr. Missale Romanum, cânon da missa.


Unidade no amor e na Liturgia

51 Esta venerável fé dos nossos maiores acerca da nossa união vital com os irmãos que já estão na glória celeste ou que, após a morte, estão ainda em purificação, aceita-a este sagrado Concílio com muita piedade e de novo propõe os decretos dos sagrados Concílios Niceno II (165), Florentino (166) e Tridentino (167). Ao mesmo tempo, com solicitude pastoral, exorta todos aqueles a quem isto diz respeito a esforçarem-se por desterrar ou corrigir os abusos, excessos ou defeitos que porventura tenham surgido aqui ou além, e tudo restaurem para maior glória de Cristo e de Deus. Ensinem, portanto, aos fiéis que o verdadeiro culto dos santos não consiste tanto na multiplicação dos actos externos quanto na intensidade do nosso amor efectivo, pelo qual, para maior bem nosso e da Igreja, procuramos «na vida dos santos um exemplo, na comunhão com eles uma participação, e na sua intercessão uma ajuda» (168). Por outro lado, mostrem aos fiéis que as nossas relações com os bem-aventurados, quando concebidas à luz da fé, de modo algum diminuem o culto de adoração prestado a Deus pai por Cristo, no Espírito, mas pelo contrário o enriquecem ainda mais (169).

Pois, com efeito, todos os que somos filhos de Deus, e formamos em Cristo uma família (cfr.
He 3,6), ao comunicarmos na caridade mútua e no comum louvor da Trindade Santíssima, correspondemos à íntima vocação da Igreja e participamos, prelibando-a, na liturgia da glória (170), Com efeito, quando Cristo aparecer e se der a gloriosa ressurreição dos mortos, a luz de Deus iluminará a cidade celeste e o seu candelabro será o Cordeiro (cfr. Ap 21,24). Então, toda a Igreja dos santos, na suprema felicidade da caridade, adorará a Deus e ao «Cordeiro que foi imolado» (Ap 5,12), proclamando numa só voz: «louvor, honra, glória e poderio, pelos séculos dos séculos, Aquele que está sentado no trono, e ao Cordeiro» (Ap 5,13-14).

165. Conc. Niceno II, Act. VII: Denz. 302 (DS 600).
166. Conc. Florentino, Decretum pro Graecis: Denz. 693 (DS 1304).
167. Conc. Tridentino, Decr. De invocatione, veneratione et reliquiis Sanctorum et sacris imaginibus: Denz. 983 (DS 1580).
168. Missale Romanum, Prefácio dos Santos concedido a algumas dioceses de França.
169. Cfr. S. Pedro Canisio, Catechismus Maior seu Summa Doctrinae christianae, cap. III (ed. crit. F. Streicher) parte I, pp. 15-16, n. 44 e pp. 100-101, n. 49.
170. Cfr. Conc. Vaticano II, Const. De Sacra Liturgia, Sacrosanctum Concilium, cap. 1, n. SC 8: AAS 56 (1964), p. 401.


CAPÍTULO VIII

A BEM-AVENTURADA VIRGEM MARIA MÃE DE DEUS NO MISTÉRIO DE CRISTO E DA IGREJA


I. PROÉMIO


A Virgem mãe de Cristo

52 Querendo Deus, na Sua infinita benignidade e sabedoria, levar a cabo a redenção do mundo, «ao chegar a plenitude dos tempos, enviou Seu Filho, nascido de mulher,... a fim de recebermos a filiação adoptiva» (Ga 4,4-5). «Por amor de nós, homens, e para nossa salvação, desceu dos céus e encarnou na Virgem Maria, por obra e graça do Espírito Santo» (171). Este divino mistério da salvação é-nos relevado e continua na Igreja, instituída pelo Senhor como Seu corpo; nela, os fiéis, aderindo à cabeça que é Cristo, e em comunhão com todos os santos, devem também venerar a memória «em primeiro lugar da gloriosa sempre Virgem Maria Mãe do nosso Deus e Senhor Jesus Cristo» (172).

171. Símbolo Constantinopolitano: Mansi 3, 566. Cfr. Conc. Efesino, 1b. 4, 1130 (íb. 2, 665 e 4, 1071); Conc. Calcedonense, ib. 7, 111-116; Conc. Constantinopolitano II, ib. 9, 375-396 Missale Romanum, Credo.
172. Missale Romanum, cânon.


A Virgem e a Igreja

53 Efectivamente, a Virgem Maria, que na anunciação do Anjo recebeu o Verbo no coração e no seio, e deu ao mundo a Vida, é reconhecida e honrada como verdadeira Mãe de Deus Redentor. Remida dum modo mais sublime, em atenção aos méritos de seu Filho, e unida a Ele por um vínculo estreito e indissolúvel, foi enriquecida com a excelsa missão e dignidade de Mãe de Deus Filho; é, por isso, filha predilecta do Pai e templo do Espírito Santo, e, por este insigne dom da graça, leva vantagem á todas as demais criaturas do céu e da terra. Está, porém, associada, na descendência de Adão, a todos os homens necessitados de salvação; melhor, «é verdadeiramente Mãe dos membros (de Cristo)..., porque cooperou com o seu amor para que na Igreja nascessem os fiéis, membros daquela cabeça» (173). É, por esta razão, saudada como membro eminente e inteiramente singular da Igreja, seu tipo e exemplar perfeitíssimo na fé e na caridade; e a Igreja católica, ensinada pelo Espírito Santo, consagra-lhe, como a mãe amantíssima, filial afecto de piedade.

173. S. Agostinho, De S. Virginitate, 6: PL 40, 399.


Intenção do Concílio

54 Por isso, o sagrado Concílio, ao expor a doutrina acerca da Igreja, na qual o divino Redentor realiza a salvação, pretende esclarecer cuidadosamente não só o papel da Virgem Santíssima no mistério do Verbo encarnado e do Corpo místico, mas também os deveres dos homens resgatados para com a Mãe de Deus, Mãe de Cristo e Mãe dos homens, sobretudo dos fiéis. Não tem, contudo, intenção de propor toda a doutrina acerca de Maria, nem de dirimir as questões ainda não totalmente esclarecidas pelos teólogos. Conservam, por isso, os seus direitos as opiniões que nas escolas católicas livremente se propõem acerca daquela que na santa Igreja ocupa depois de Cristo o lugar mais elevado e também o mais próximo de nós (174).

174. Cfr. Paulo VI, Alocução no Concílio, no dia 4 dez. 1963: AAS 56 (1964) p. 37.


II. A VIRGEM SANTÍSSIMA NA ECONOMIA DA SALVAÇÃO

A mãe do Redentor no Antigo Testamento

55 A Sagrada Escritura do Antigo e Novo Testamento e a venerável Tradição mostram de modo progressivamente mais claro e como que nos põem diante dos olhos o papel da Mãe do Salvador na economia da salvação. Os livros do Antigo Testamento descrevem a história da salvação na qual se vai preparando lentamente a vinda de Cristo ao mundo. Esses antigos documentos, tais como são lidos na Igreja e interpretados à luz da plena revelação ulterior, vão pondo cada vez mais em evidência a figura duma mulher, a Mãe do Redentor. A esta luz, Maria encontra-se já profeticamente delineada na promessa da vitória sobre a serpente (cfr. Gn 3,15), feita aos primeiros pais caídos no pecado. Ela é, igualmente, a Virgem que conceberá e dará à luz um Filho, cujo nome será Emmanuel (cfr. Is 7,14 cfr. Mi 5,2-3 Mt 1,22-23). É a primeira entre os humildes e pobres do Senhor, que confiadamente esperam e recebem a salvação de Deus. Com ela, enfim, excelsa Filha de Sião, passada a longa espera da promessa, se cumprem os tempos e se inaugura a nova economia da salvação, quando o Filho de Deus dela recebeu a natureza humana, para libertar o homem do pecado com os mistérios da Sua vida terrena.


Maria na Anunciação

56 Mas o Pai das misericórdias quis que a aceitação, por parte da que Ele predestinara para mãe, precedesse a encarnação, para que, assim como uma mulher contribuiu para a morte, também outra mulher contribuisse para a vida. É o que se verifica de modo sublime na Mãe de Jesus, dando à luz do mundo a própria Vida, que tudo renova. Deus adornou-a com dons dignos de uma tão grande missão; e, por isso, não é de admirar que os santos Padres chamem com frequência à Mãe de Deus «toda santa» e «imune de toda a mancha de pecado», visto que o próprio Espírito Santo a modelou e d'Ela fez uma nova criatura (175). Enriquecida, desde o primeiro instante da sua conceição, com os esplendores duma santidade singular, a Virgem de Nazaré é saudada pelo Anjo, da parte de Deus, como «cheia de graça» (cfr. Lc 1,28); e responde ao mensageiro celeste: «eis a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra» (Lc 1,38). Deste modo, Maria, filha de Adão, dando o seu consentimento à palavra divina, tornou-se Mãe de Jesus e, não retida por qualquer pecado, abraçou de todo o coração o desígnio salvador de Deus, consagrou-se totalmente, como escrava do Senhor, à pessoa e à obra de seu Filho, subordinada a Ele e juntamente com Ele, servindo pela graça de Deus omnipotente o mistério da Redenção. por isso, consideram com razão os santos Padres que Maria não foi utilizada por Deus como instrumento meramente passivo, mas que cooperou livremente, pela sua fé e obediência, na salvação dos homens. Como diz S. Ireneu, «obedecendo, ela tornou-se causa de salvação, para si e para todo o género humano» (176). Eis porque não poucos, Padres afirmam com ele, nas suas pregações, que «o no da desobediência de Eva foi desatado pela obediência de Maria; e aquilo que a virgem Eva atou, com a sua incredulidade, desatou-o a virgem Maria com a sua fé» (177); e, por comparação com Eva, chamam Maria a «mãe dos vivos»(178) e afirmam muitas vezes: «a morte veio por Eva, a vida veio por Maria» (179).

175. Cfr. S. Germano Const., Hom in Annunt. Deiparae: PG 98, 328 A; In Dorm. 2: col. 357.-Anastácio Antioq., Serm. 2 de Annunt., 2: PG 89, 1377 AB; Serm. 3, 2: col. 1388: C. - S. André Cret., Can. in B. V. Nat. 4: PG 97, 1321 B. In B. V. Nat., 1: col. 812 A. Hom. in dorm. 1: col. 1086 C. - S. Sofrónio, Or. 2 in Annunt., 18: PG' 87 (3), 3237 BD.
176. S. Ireneu, Adv. Haer. III, 22, 4: PG 7, 959 A; Harvey, 2, 123.
177. S. Ireneu, ib.; Harvey, 2, 124.
178. S. Epináfio, Haer. 78, 18: PG 42, 728 CD - 729 AB.
179. S. Jerónimo, Epist.22, 21: PL, 22, 408. Cfr. S. Agostinho, Serm. 51, 2, 3: PL 38, 335; Serm.232, 2: col. 1108. -S. Cirilo de Jerusalém, Catech. 12, 15: PG 33, 741 AB. - S. João Crisóstomo, In Ps. 44, 7: PG 55, 193. - S. João Damasceno, Hom. 2 in dorm. B. M. V., 3: PG 96, 728.


Maria na infância de Jesus

57 Esta associação da mãe com o Filho na obra da salvação, manifesta-se desde a conceição virginal de Cristo até à Sua morte. Primeiro, quando Maria, tendo partido solicitamente para visitar Isabel, foi por ela chamada bem-aventurada, por causa da fé com que acreditara na salvação prometida, e o precursor exultou no seio de sua mãe (cfr. Lc 1,41-45); depois, no nascimento, quando a Mãe de Deus, cheia de alegria, apresentou aos pastores e aos magos o seu Filho primogénito, o qual não só não lesou a sua integridade, mas antes a consagrou (180). E quando O apresentou no templo ao Senhor, com a oferta dos pobres, ouviu Simeão profetizar que o Filho viria a ser sinal de contradição e que uma espada trespassaria o coração da mãe, a fim de se revelarem os pensamentos de muitos (cfr. Lc 2,34-35). Ao Menino Jesus, perdido e buscado com aflição, encontraram-n'O os pais no templo, ocupado nas coisas de Seu Pai; e não compreenderam o que lhes disse. Mas sua mãe conservava todas estas coisas no coração e nelas meditava (cfr. Lc 2,41-51).

180. Cfr. Conc. Lateranense em 649, can. 3: Mansi 10, 1151. S. Leão M., Epist. ad. Flav.: PL 54, 759. - Conc. Calcedonense: Mansi 7, 462. - S. Ambrósio, De instit. virg.: PL 16, 320.


Maria na vida pública e na paixão de Cristo

58 Na vida pública de Jesus, Sua mãe aparece duma maneira bem marcada logo no princípio, quando, nas bodas de Caná, movida de compaixão, levou Jesus Messias a dar início aos Seus milagres. Durante a pregação de Seu Filho, acolheu as palavras com que Ele, pondo o reino acima de todas as relações de parentesco, proclamou bem-aventurados todos os que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática (cfr. Mc 3,35 e paral.; Lc 11,27-28); coisa que ela fazia fielmente (cfr. Lc 2,19 Lc 2,51). Assim avançou a Virgem pelo caminho da fé, mantendo fielmente a. união com seu Filho até à cruz. Junto desta esteve, não sem desígnio de Deus (cfr. Jn 19,25), padecendo acerbamente com o seu Filho único, e associando-se com coração de mãe ao Seu sacrifício, consentindo com amor na imolação da vítima que d'Ela nascera; finalmente, Jesus Cristo, agonizante na cruz, deu-a por mãe ao discípulo, com estas palavras: mulher, eis aí o teu filho (cfr. Jn 19,26-27) (181).

181. Cfr. Pio XII, Encícl. Mystici Corporis, 29 jun. 1943: AAS 35 (1943) pp. 247-248.


Maria depois da Ascensão

59 Tendo sido do agrado de Deus não manifestar solenemente o mistério da salvação humana antes que viesse o Espírito prometido por Cristo, vemos que, antes do dia de Pentecostes, os Apóstolos «perseveravam unânimemente em oração, com as mulheres, Maria Mãe de Jesus e Seus irmãos» (Ac 1,14), implorando Maria, com as suas orações, o dom daquele Espírito, que já sobre si descera na anunciação. Finalmente, a Virgem Imaculada, preservada imune de toda a mancha da culpa original (198), terminado o curso da vida terrena, foi elevada ao céu em corpo e alma (183) e exaltada por Deus como rainha, para assim se conformar mais plenamente com seu Filho, Senhor dos senhores (cfr. Ap 19,16) e vencedor do pecado e da morte (184).

182. Cfr. Pio IX, Bula Ineffabilis, 8 dez. 1854: Acta Pii IX, 1, I. p. 616, Denz. 1641 (DS 2803).
183. Cfr. Pio XII, Const. Apost. Munificentissimus, 1 nov. 1950: AAS 42 (1950); Denz. 2333 (DS 3903). Cfr. S. João Damasceno, Enc. in dorm. Dei genetricis, Hom. 2 e 3: PG 96, 721-761, sobretudo col. 728 B. -S. Germano Constantinop., In S. Dei gen. dorm.Serm. 1: PG 98 (6) ; 340-348; Serm. 3: cola 361. -S. Modesto de Jerus. In dorm. SS. Deiparae: PG 86 (2), 3277-3312.
184. Cfr. Pio XII, Encicl. Ad coeli Reginam, 11 out. 1954: AAS 46 (1954), pp. 633-636; Denz. (DS 3913) ss. S. André Cret., Hom. 3 in dorm. SS. Deiparae: PG 97, 1089-1109. - S. João Damasceno, De fide orth., IV, 14: PG 94, 1153-1161.



III. A VIRGEM SANTÍSSIMA E A IGREJA

O influxo salutar de Maria e a mediação de Cristo

60 O nosso mediador é só um, segundo a palavra do Apóstolo: «não há senão um Deus e um mediador entre Deus e os homens, o homem Jesus Cristo, que Se entregou a Si mesmo para redenção de todos (1Tm 2,5-6). Mas a função maternal de Maria em relação aos homens de modo algum ofusca ou diminui esta única mediação de Cristo; manifesta antes a sua eficácia. Com efeito, todo o influxo salvador da Virgem Santíssima sobre os homens se deve ao beneplácito divino e não a qualquer necessidade; deriva da abundância dos méritos de Cristo, funda-se na Sua mediação e dela depende inteiramente, haurindo aí toda a sua eficácia; de modo nenhum impede a união imediata dos fiéis com Cristo, antes a favorece.


A maternidade espiritual

61 A Virgem Santíssima, predestinada para Mãe de Deus desde toda a eternidade simultâneamente com a encarnação do Verbo, por disposição da divina Providência foi na terra a nobre Mãe do divino Redentor, a Sua mais generosa cooperadora e a escrava humilde do Senhor. Concebendo, gerando e alimentando a Cristo, apresentando-O ao Pai no templo, padecendo com Ele quando agonizava na cruz, cooperou de modo singular, com a sua fé, esperança e ardente caridade, na obra do Salvador, para restaurar nas almas a vida sobrenatural. É por esta razão nossa mãe na ordem da graça.


A natureza da sua mediação

62 Esta maternidade de Maria na economia da graça perdura sem interrupção, desde o consentimento, que fielmente deu na anunciação e que manteve inabalável junto à cruz, até à consumação eterna de todos os eleitos. De facto, depois de elevada ao céu, não abandonou esta missão salvadora, mas, com a sua multiforme intercessão, continua a alcançar-nos os dons da salvação eterna (185). Cuida, com amor materno, dos irmãos de seu Filho que, entre perigos e angústias, caminham ainda na terra, até chegarem à pátria bem-aventurada. Por isso, a Virgem é invocada na Igreja com os títulos de advogada, auxiliadora, socorro, medianeira (186). Mas isto entende-se de maneira que nada tire nem acrescente à dignidade e eficácia do único mediador, que é Cristo (187).

Efectivamente, nenhuma criatura se pode equiparar ao Verbo encarnado e Redentor; mas, assim como o sacerdócio de Cristo é participado de diversos modos pelos ministros e pelo povo fiel, e assim como a bondade de Deus, sendo uma só, se difunde vàriamente pelos seres criados, assim também a mediação única do Redentor não exclui, antes suscita nas criaturas cooperações diversas, que participam dessa única fonte.

Esta função subordinada de Maria, não hesita a Igreja em proclamá-la; sente-a constantemente e inculca-a aos fiéis, para mais intimamente aderirem, com esta ajuda materna, ao seu mediador e salvador.

185. Cfr. Kleugten, texto reformado De mysterio Verbi incarnati, cap. IV: Mansi 53, 290. Cfr. S. André Cret., In nat. Mariae serm. 4: PG 97, 865 A. S. Germano de Constantin., In ann. Deiparae: PG 98, 321 BC; In dorm, Deiparae, III: col. 361 D.-S. João Damasceno, In dorm. B. V. Mariae, Hom. 1, 8: PG 96, 712 BC-713 A.
186. Cfr. Leão XIII, Encícl. Adiutricem populi, 5 set. 1895: ASS 15 (1896-96) p. 303. - S. Pio X Enciel. Ad diem illum, 2 fev. 1904: Acta, 1, p. 154; Denz. 1978 a (
DS 3370). - Pio XI, Encícl. Miserentissimus, 8 maio 1928: AAS 20 (1928) p. 178. Pio XII, Radiomensagem 13 maio 1946: AAS 38 (1946) p. 266.
187. S. Ambrósio, Epist. 63: PL 16, 1218.


Maria tipo da Igreja como Virgem e Mãe

63 Pelo dom e missão da maternidade divina, que a une a seu Filho Redentor, e pelas suas singulares graças e funções, está também a Virgem intimamente ligada, à Igreja: a Mãe de Deus é o tipo e a figura da Igreja, na ordem da fé, da caridade e da perfeita união com Cristo, como já ensinava S. Ambrósio (188). Com efeito, no mistério da Igreja, a qual é também com razão chamada mãe e virgem, a bem-aventurada Virgem Maria foi adiante, como modelo eminente e único de virgem e de mãe (189). Porque, acreditando e obedecendo, gerou na terra, sem ter conhecido varão, por obra e graça do Espírito Santo, o Filho do eterno Pai; nova Eva, que acreditou sem a mais leve sombra de dúvida, não na serpente antiga, mas no mensageiro celeste. E deu à luz um Filho, que Deus estabeleceu primogénito de muitos irmãos (Rm 8,29), isto é, dos fiéis, para cuja geração e educação Ela coopera com amor de mãe.

188. S. Ambrósio, Expos. U. II, 7: PL 15, 1555.
189. Cfr. Ps. - Pedro Dam., Serm. 63: PL 144, 861 AB. - Godofredo de S. Victor. In nat. B. M., Ms. Paris, Mazarine, 1002, fol. 109 r. - Gerhohus Reich, De gloria et honore Filii hominis, 10: PL 194, 1105 AB.


A fecundidade virginal da Igreja

64 Por sua vez, a Igreja que contempla a sua santidade misteriosa e imita a sua caridade, cumprindo fielmente a vontade do Pai, toma-se também, ela própria, mãe, pela fiel recepção da palavra de Deus: efectivamente, pela pregação e pelo Baptismo, gera, para vida nova e imortal, os filhos concebidos por acção do Espírito Santo e nascidos de Deus. E também ela é virgem, pois guarda fidelidade total e pura ao seu Esposo e conserva virginalmente, à imitação da Mãe do seu Senhor e por virtude do Espírito Santo, uma fé íntegra, uma sólida esperança e uma verdadeira caridade (190).

190. S. Ambrósio, Expos.Lc. II, 7 e X, 24-25: PL 15, 1555 e 1810. S. Agostinho, In Io. Tr. 13, 12: PL 35, 1499. Cfr. Serm. 191, 2, 3: PL 38, 1010; etc. Cfr. também Ven. Beda, In Lc. Expos. I, cap. 2: PL 92, 330. - Isaac de Stella, Serm. 31: PL 194, 1863 A.


Virtudes de Maria

65 Mas, ao passo que, na Santíssima Virgem, a Igreja alcançou já aquela perfeição sem mancha nem ruga que lhe é própria (cfr. Ep 5,27), os fiéis ainda têm de trabalhar por vencer o pecado e crescer na santidade; e por isso levantam os olhos para Maria, que brilha como modelo de virtudes sobre toda a família dos eleitos. A Igreja, meditando piedosamente na Virgem, e contemplando-a à luz do Verbo feito homem, penetra mais profundamente, cheia de respeito, no insondável mistério da Encarnação, e mais e mais se conforma com o seu Esposo. Pois Maria, que entrou intimamente na história da salvação, e, por assim dizer, reune em si e reflecte os imperativos mais altos da nossa fé, ao ser exaltada e venerada, atrai os fiéis ao Filho, ao Seu sacrifício e ao amor do Pai. Por sua parte, a Igreja, procurando a glória de Cristo, torna-se mais semelhante àquela que é seu tipo e sublime figura, progredindo continuamente na fé, na esperança e na caridade, e buscando e fazendo em tudo a vontade divina. Daqui vem igualmente que, na sua acção apostólica, a Igreja olha com razão para aquela que gerou a Cristo, o qual foi concebido por acção do Espírito Santo e nasceu da Virgem precisamente para nascer e crescer também no coração dos fiéis, por meio da Igreja. E, na sua vida, deu a Virgem exemplo daquele afecto maternal de que devem estar animados todos quantos cooperam na missão apostólica que a Igreja tem de regenerar os homens.


IV. O CULTO DA BEM-AVENTURADA VIRGEM NA IGREJA

Natureza e fundamento do culto

66 Exaltada por graça do Senhor e colocada, logo a seguir a seu Filho, acima de todos os anjos e homens, Maria que, como mãe santíssima de Deus, tomou parte nos mistérios de Cristo, é com razão venerada pela Igreja com culto especial. E, na verdade, a Santíssima Virgem é, desde os tempos mais antigos, honrada com o título de «Mãe de Deus», e sob a sua protecção se acolhem os fiéis, em todos os perigos e necessidades (191). Foi sobretudo a partir do Concílio do Éfeso que o culto do Povo de Deus para com Maria cresceu admiràvelmente, na veneração e no amor, na invocação e na imitação, segundo as suas proféticas palavras: «Todas as gerações me proclamarão bem-aventurada, porque realizou em mim grandes coisas Aquele que é poderoso» (Lc 1,48). Este culto, tal como sempre existiu na Igreja, embora inteiramente singular, difere essencialmente do culto de adoração, que se presta por igual ao Verbo encarnado, ao Pai e ao Espírito Santo, e favorece-o poderosamente. Na verdade, as várias formas de piedade para com a Mãe de Deus, aprovadas pela Igreja, dentro dos limites de sã e recta doutrina, segundo os diversos tempos e lugares e de acordo com a índole e modo de ser dos fiéis, têm a virtude de fazer com que, honrando a mãe, melhor se conheça, ame e gloria fique o Filho, por quem tudo existe (cfr. Col 1,15-16) e no qual «aprouve a Deus que residisse toda a plenitude» (Col 1,19), e também melhor se cumpram os seus mandamentos.

191. Cfr. Breviarium Romanum, anta «Sub tuum praesidium», das primeiras Vésperas do Oficio menor de Nossa Senhora.


Espírito da pregação e do culto

67 Muito de caso pensado ensina o sagrado Concílio esta doutrina católica, e ao mesmo tempo recomenda a todas os filhos da Igreja que fomentem generosamente o culto da Santíssima Virgem, sobretudo o culto litúrgico, que tenham em grande estima as práticas e exercícios de piedade para com Ela, aprovados no decorrer dos séculos pelo magistério, e que mantenham fielmente tudo aquilo que no passado foi decretado acerca do culto das imagens de Cristo, da Virgem e dos santos (192). Aos teólogos e pregadores da palavra de Deus, exorta-os instantemente a evitarem com cuidado, tanto um falso exagero como uma demasiada estreiteza na consideração da dignidade singular da Mãe de Deus (193). Estudando, sob a orientação do magistério, a Sagrada Escritura, os santos Padres e Doutores, e as liturgias das Igrejas, expliquem como convém as funções e os privilégios da Santíssima Virgem, os quais dizem todos respeito a Cristo, origem de toda a verdade, santidade e piedade. Evitem com cuidado, nas palavras e atitudes, tudo o que possa induzir em erro acerca da autêntica doutrina da Igreja os irmãos separados ou quaisquer outros. E os fiéis lembrem-se de que a verdadeira devoção não consiste numa emoção estéril e passageira, mas nasce da fé, que nos faz reconhecer a grandeza da Mãe de Deus e nos incita a amar filialmente a nossa mãe e a imitar as suas virtudes.

192. Cfr. Conc. Niceno II, em 787: Mansi 13, 378-379: Denz. 302 (
DS 600-601) ; Conc. Trident., sess. 25: Mansi 33, 171-172.
193. Cfr. Pio XII, Radiomensagem, 24, out. 1954: AAS 46 (1954) p. 679. Encícl. Ad coeli Reginam, 11 out. 1954: AAS 46 (1954) p. 637.



V. MARIA, SINAL DE SEGURA ESPERANÇA E DE CONSOLAÇÃO PARA O POVO DE DEUS PEREGRINANTE


Sinal de Esperança e de consolação

68 Entretanto, a Mãe de Jesus, assim como, glorificada já em corpo e alma, é imagem e início da Igreja que se há-de consumar no século futuro, assim também, na terra, brilha como sinal de esperança segura e de consolação, para o Povo de Deus ainda peregrinante, até que chegue o dia do Senhor (cfr. 2P 3,10).


Medianeira para a unidade da Igreja

69 E é uma grande alegria e consolação para este sagrado Concílio o facto de não faltar entre os irmãos separados quem preste à Mãe do Senhor e Salvador o devido culto; sobretudo entre os Orientais, que acorrem com fervor e devoção a render culto à sempre Virgem Mãe de Deus (194). Dirijam todos os fiéis instantes súplicas à Mãe de Deus e mãe dos homens, para que Ela, que assistiu com suas orações aos começos da Igreja, também agora, exaltada sobre todos os anjos e bem-aventurados, interceda, junto de seu Filho, na comunhão de todos os santos, até que todos os povos, tanto os que ostentam o nome cristão, como os que ainda ignoram o Salvador, se reunam felizmente, em paz e harmonia, no único Povo de Deus, para glória da santíssima e indivisa Trindade.

Roma, 21 de Novembro de 1964.



PAPA PAULO VI


194. Cfr. Pio XI, Encícl. Ecclesiam Dei, 12 nov. 1923: AAS 15 (1923) p. 581. - Pio XII, Encícl. Fulgens corona, 8 set. 1953: AAS 45 (1953) pp. 590-591.




NOTIFICAÇÕES FEITAS PELO EX.MO SECRETÁRIO GERAL


DO SAGRADO CONCÍLIO, NA CONGREGAÇÃO GERAL CXXIII,


NO DIA 16 DE NOVEMBRO DE 1964

Notificações: valor teológico das proposições

Foi perguntado qual deve ser a qualificação teológica da doutrina exposta no esquema De Ecclesia que se propõe à votação. A Comissão Doutrinal respondeu à pergunta ao examinar os Modos referentes ao capítulo terceiro do esquema De Ecclesia, com estas palavras:

«Como é evidente, o texto conciliar deve sempre ser interpretado segundo as regras gerais, de todos conhecidas». A Comissão Doutrinal, nesta ocasião, remete para a sua Declaração do dia 6 de Março de 1964, cujo texto se transcreve aqui:

«Tendo em conta a praxe conciliar e o fim pastoral do presente Concilio, este sagrado Concilio só define aquelas coisas relativas à fé e aos costumes que abertamente declarar como de fé.

Tudo o mais que o sagrado Concílio propõe, como doutrina do supremo Magistério da Igreja, devem-no os fiéis receber e abraçar segundo a mente do mesmo sagrado Concílio, a qual se deduz quer do assunto em questão, quer do modo de dizer, segundo as normas da interpretação teológica».

Por autoridade superior comunica-se aos Padres uma nota prévia explicativa dos «Modos» referentes ao capítulo terceiro do esquema De Ecclesia; é segundo o espírito e o sentido desta nota que se deve explicar e entender a doutrina exposta nesse capítulo terceiro.

NOTA EXPLICATIVA PRÉVIA

«A Comissão decidiu fazer preceder das seguintes observações gerais o exame dos Modos:

Colégio não se entende em sentido jurídico estrito, ou seja, de um grupo de iguais, que delegam o seu poder ao que preside; mas no sentido de um grupo estável, cuja estrutura e autoridade se devem deduzir da Revelação. Por isso, na resposta ao Modo 12, se diz expressamente, acerca dos Doze, que o Senhor constituiu-os em Colégio ou grupo estável. Cfr. também o Modo 53, c. - Pelo mesmo motivo, ao tratar-se do Colégio dos Bispos, são também empregados a cada passo os termos Ordem ou Corpo. O paralelismo entre Pedro e os restantes Apóstolos por um lado, e o Sumo Pontífice e os Bispos pelo outro, não implica a transmissão do poder extraordinário dos Apóstolos aos seus sucessores, nem, como é evidente, a igualdade entre a Cabeça e os membros do Colégio, mas apenas uma proporcionalidade entre a primeira relação (Pedro-Apóstolos) e a segunda (Papa-Bispos). Daí ter a Comissão resolvido escrever no inicio do n.° 22 «pari ratione» e não « eadem ratione». Cfr. Modo 57.

2.° Uma pessoa torna-se membro do Colégio em virtude da sagração episcopal e pela comunhão hierárquica com a Cabeça e com os membros do Colégio. Cfr. n.° 22, no fim da primeira alínea.

Na sagração é conferida a participação ontológica nos ofícios sagrados, como indubitàvelmente consta da Tradição, mesmo litúrgica. Intencionalmente se emprega a palavra munerum e não potestatum, porque esta última palavra poderia entender-se como poder apto para o exercício. Ora, para que tal poder exista, deve sobrevir a determinação canónica ou jurídica, por parte da autoridade hierárquica. Esta determinação do poder pode consistir na concessão de um ofício particular ou na atribuição de súbditos, e é dada segundo as normas aprovadas pela autoridade suprema. Essa norma ulterior é exigida pela própria natureza das coisas, visto tratar-se de poderes que devem ser exercidos por diversas pessoas que, segundo a vontade de Cristo, cooperam hieràrquicamente. E evidente que esta «comunhão» sé foi exercendo na vida da Igreja, segundo as circunstâncias dos tempos, mesmo antes de, por assim dizer, ser codificada no direito.

Por isso mesmo se diz expressamente que se requer a comunhão hierárquica com a Cabeça e membros da Igreja. A comunhão é um conceito tido em grande veneração na antiga Igreja (e ainda hoje, sobretudo no Oriente). Não se trata, porém, de um sentimento vago, mas de uma realidade orgânica, que exige uma forma jurídica e é ao mesmo tempo animada pela caridade. Por isso a Comissão resolveu, quase por unanimidade, que se devia escrever: «pela comunhão hierárquica». Cfr. Modo 40 e também o que se diz acerca da missão canónica, no n. 24.

Os documentos dos últimos Sumos Pontífices acerca da jurisdição dos Bispos, devem ser interpretados segundo esta determinação necessária dos poderes.

3.° Diz-se que o Colégio, que não pode existir sem cabeça, «é também sujeito do supremo e pleno poder sobre toda a Igreja». Isto tem de se admitir necessàriamente, para que a plenitude do poder do Romano Pontífice não seja posta em questão. O Colégio, com efeito, entende-se sempre e necessàriamente com a sua Cabeça, a qual, no Colégio, conserva integralmente o seu cargo de Vigário de Cristo e Pastor da Igreja Universal. Por outras palavras, a distinção não se faz entre o Romano Pontífice e os Bispos, tomados colectivamente, mas entre o Romano Pontífice só, e o Romano Pontífice juntamente com os Bispos. E uma vez que o Sumo Pontífice é a Cabeça do Colégio, só ele pode executar certos actos, que de modo nenhum competem aos Bispos como, por exemplo, convocar e dirigir o Colégio, aprovar normas de acção, etc. Cfr. Modo 81.

Ao juízo do Sumo Pontífice, a quem foi entregue o cuidado de todo o rebanho de Cristo, compete, segundo as necessidades da Igreja, que variam no decurso dos tempos, determinar o modo mais conveniente de actuar esse cuidado, quer essa actuação se faça de modo pessoal quer de modo colegial. Quanto a ordenar, promover e aprovar o exercício colegial, procede o Romano Pontífice segundo a sua própria discrição.

4.° O Sumo Pontífice, visto ser o Pastor supremo da Igreja, pode exercer, como lhe aprouver, o seu poder ern todo o tempo; exige-o o próprio cargo. O Colégio, porém, embora exista sempre, nem por isso age permanentemente com uma acção estritamente colegial, conforme consta da Tradição da Igreja.

Por outras palavras, não está sempre «em exercício pleno». Mais ainda: sòmente por intervalos age de uma maneira estritamente colegial e nunca sem o consentimento da Cabeça. Diz-se, porém, «com o consentimento da Cabeça» para que não se pense numa dependência de pessoa por assim dizer estranha; o termo «consentimento» evoca, pelo contrário, a comunhão entre a Cabeça. e os membros e implica a necessidade do acto que é próprio da Cabeça. Isto é afirmado explicitamente no número 22 e explicado no mesmo lugar. A fórmula negativa «a não ser» compreende todos os casos, e assim é evidente que as normas aprovadas pela Autoridade suprema devem ser sempre observadas. Cfr. Modo 84.

Em tudo isto, é também evidente que se trata da união dos Bispos com a sua Cabeça e nunca de uma acção dos Bispos independentemente do Papa. Neste caso, faltando a acção da Cabeça, os Bispos não podem agir colegial mente, como se depreende da mesma noção de «Colégio». Esta Comunhão hierárquica de todos os Bispos com o Sumo Pontífice é certamente habitual na Tradição.

N. B. Sem a comunhão hierárquica, o cargo sacramental-ontológico, que se deve distinguir do aspecto canónico-jurídico, não pode ser exercido. A Comissão, porém, julgou que não devia entrar nas questões de liceidade e validade, que se deixam à discussão dos teólogos, em especial no referente ao poder que de facto se exerce entre os Orientais separados e para cuja explicação existem várias sentenças».






Lumen gentium PT 50