Discursos João Paulo II 1979 - 27 de Abril de 1979

Com a Neovulgata, os filhos da Igreja têm agora entre mãos mais um instrumento que, especialmente nas celebrações da Sagrada Liturgia, favorecerá uma aproximação, mais segura e mais precisa, às fontes da Revelação, propondo-se também aos estudos científicos como novo e prestigioso ponto de referência.

Se me permitis, quero pensar que também São Jerónimo estará contente com esta fadiga! A Neovulgata, de facto, não só se coloca no sinal da continuidade, mais que do superamento do trabalho por ele realizado, mas é produto de uma acribia igual e de uma paixão igual. Além disso, os novos conhecimentos linguísticos e exegéticos conferem à nova versão um timbre de confiança certamente não menor do que a de Jerónimo, que também resistiu à prova de 1 500 anos de história. Certamente Jerónimo continua a ser um mestre de doutrina e também de língua latina, como ainda de vida espiritual. Ele, que por encargo do Papa Dâmaso, dedicou a vida inteira ao estudo e à meditação do texto sagrado, certamente sabe quanto custa ,mas também quanto é exaltante, o amoroso inclinar-se sobre as Escrituras. E sem dúvida é para desejar que para muitos cristãos se realize o que aconteceu a ele, e certamente também a vós, segundo as suas palavras à virgem Eustóquio: «Tenenti codicem somnus obrepat, et cadentem faciem pagina sancta suscipiat!» (Epist. 22, ad. Eust.17).

Os meus votos são por que esta obra por vós levada a termo seja verdadeiramente fecunda para a vida da Igreja e favoreça cada vez mais o salutar encontro dos fiéis com o Senhor, contribuindo para saciar aquela «fome da palavra» de que fala o profeta Amós (Cfr. Am Am 8,11) e que parece particularmente sentida nos nossos dias.

A minha cordial Bênção Apostólica acompanhe a todos vós como sinal de renovada gratidão e benevolência, e penhor dos abundantes favores do Senhor, que sabe recompensar adequadamente os seus servidores.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AO SECRETARIADO PARA OS NÃO-CRISTÃOS


27 de Abril de 1979



Muito amados em Cristo

Tenho grande prazer em encontrar-me convosco, Cardeais e Bispos de vários países, que são Membros do Secretariado para os Não-Cristãos, e com os Conselheiros que são peritos nas maiores religiões do mundo, ao reunirdes-vos aqui em Roma para a vossa primeira Assembleia Plenária.

Sei que planeastes ter este encontro no Outono passado mas que fostes impedidos pelos acontecimentos dramáticos desses meses. O falecido Paulo VI, que fundou este Secretariado, e cujo amor, interesse e inspiração abraçaram os Não-Cristãos, já não está visivelmente entre nós; estou certo que alguns de vós duvidaram se o novo Papa iria dedicar idêntico cuidado e atenção ao vasto leque das religiões não cristãs.

Na minha Encíclica Redemptor Hominis procurei responder a semelhantes perguntas. Nela, depois de fazer referência à primeira Encíclica de Paulo VI, Ecclesiam Suam, e ao Concílio Vaticano II, escrevi: «O Concílio Ecuménico deu impulso fundamental para se formar a autoconsciência da Igreja, apresentando-nos, de maneira adequada e competente, a visão do orbe terrestre como dum mapa de várias religiões ... O Documento do Concílio dedicado às religiões não cristãs é, em particular, um documento cheio de estima profunda pelos grandes valores espirituais ou, melhor, pelo primado daquilo que é espiritual e encontra na vida da humanidade a sua expressão na religião e, em seguida, na moralidade, que se reflecte em toda a cultura» (Paulo VI, Enc. Ecclesiam Suam, n. 11). O mundo não cristão encontra-se, na verdade, constantemente diante dos olhos da Igreja e do Papa. Estamos verdadeiramente empenhados em servi-lo com generosidade.

Bom é também recordarmos que em breve ocorrerá o 15.° aniversário do solene anúncio de Paulo VI, na Basílica de São Pedro no domingo de Pentecostes de 1964, da criação deste Secretariado. Com a bênção de Deus, a semente nesse dia lançada já se multiplicou a ponto de constituir sinal claro e definido que, através duma rede de organizações locais, está praticamente activo por toda a parte, onde quer que exista a Igreja. O Secretariado é o símbolo e a expressão da vontade que tem a Igreja de entrar em comunicação com cada pessoa, e em especial com as multidões daqueles que procuram, nas tradições religiosas não cristãs, a significação e guia para as suas vidas. Um cristão considera essa comunicação do maior interesse para observar exactamente a religiosidade do povo, para ler e escutar os testemunhos da sua sabedoria, e para ter provas directas da sua fé até ao ponto de esta fazer lembrar por vezes as palavras de Jesus: Não encontrei ninguém em Israel com tão grande fé! (Mt 8,10). Ao mesmo tempo, o cristão sente a tremenda responsabilidade e a imensa alegria de falar com essas pessoas com simplicidade e franqueza (a palavra dos Apóstolos) sobre as maravilhas de Deus (Ac 2,11), sobre aquilo que o próprio Deus realizou para a felicidade e salvação de todos numa ocasião especial e num homem particular, aquele que ele ergueu para ser nosso irmão e Senhor, Jesus Cristo, nascido da descendência de David segundo a carne ... Filho de Deus em todo o Seu poder segundo o Espírito de santificação (Rm 1,3-4).

Tenho o gosto de ver que o Secretariado adoptou, como seu próprio, este desejo de entrar em comunicação, que é característica da Igreja universal, e de ver também que procura realizar esta comunicação por meio daquilo que Paulo VI chamou «o diálogo da salvação». Ao mesmo tempo, o Secretariado tem achado, após minuciosa pesquisa, métodos e formas deste diálogo que são aplicáveis ao determinado «círculo» de pessoas a quem ele se dirige. É justo que eu faça menção, nesta altura, do esclarecido trabalho do Cardeal Paolo Marella como Presidente do Secretariado durante os primeiros nove anos do mesmo, guiando-lhe os primeiros passos, como o Papa o chamou a realizar in nomine Domini.Tenho igualmente o prazer de manifestar publicamente gratidão ao Cardeal Sérgio Pignedoli, que juntamente com Monsenhor Rossano e o resto do seu corpo directivo, por meio de trabalho aturado e contactos cordiais e respeitosos, dá testemunho do interesse da Igreja pelos nossos irmãos não cristãos.

Quase quinze anos de experiência muitas coisas ensinaram, e com visão clara está capaz a vossa Assembleia Plenária de descrever o estado presente do diálogo com os não-cristãos nas diversas áreas culturais, descobrindo as dificuldades, os problemas e os resultados conseguidos em cada uma, e estabelecendo para os próximos anos programas a curto e a longo prazo.

É esperança minha e meu desejo que a realização do diálogo de salvação seja reforçada no corpo da Igreja, incluindo os países onde há maioria cristã. A educação para o diálogo com os seguidores doutros credos há-de formar parte do treino dos cristãos, especialmente dos jovens. Na sua exortação apostólica Evangelii Nuntiandi, Paulo VI escreveu que o encontro com as religiões não-cristãs «levanta certamente problemas complexos e delicados, que é conveniente estudar à luz da Tradição cristã e do Magistério da Igreja, de molde a poder proporcionar aos missionários do presente e do futuro» — e eu acrescentaria: também a todos os cristãos — «novos horizontes nos seus contactos com as religiões não-cristãs» Paulo VI, Exort. Apost. Evangelii Nuntiandi, 53'. Bem sabeis que os vossos trabalhos são delicados. Devem ser continuados com generosidade e alegria, e sem medo, mas também com a luminosa convicção de que o diálogo é, segundo as palavras de Paulo VI «método de realizar a missão apostólica; e é exemplo da arte da comunicação espiritual» (Paulo VI, Enc. Ecclesiam Suam: AAS 56, 1964, pág. 644).

É essencial para o diálogo respeito e estima pelo próximo e por tudo quanto ele tem no fundo do coração. E devem juntar-se ainda discernimento e conhecimento que sejam sinceros e profundos. A profundidade não se pode ir simplesmente buscar aos livros. Exige companheirismo e identificação. Muito antes de estas condições para o diálogo serem formuladas segundo a filosofia moderna, São Paulo falou da boa vontade que tinha de se fazer tudo a todos por amor do Evangelho, para participar dos seus bens (1Co 9,23). No diálogo, como São Paulo de novo nos mostra, a palavra não se torna construtiva e frutuosa sem o amor. Palavra e amor juntos, são o veículo verdadeiro da comunicação. A única palavra verdadeiramente perfeita é a dita com amor. E precisamente porque a palavra deve juntar-se ao amor para se tornar eficiente, é necessário e urgente, como escrevi na minha Encíclica, que a missão e o diálogo com não-cristãos sejam mantidos pelos cristãos em comunhão e colaboração duns com outros (Cfr. Redemptor Hominis RH 6,11). Tenho, pois, o gosto de ver presentes, nesta Assembleia Plenária do Secretariado, representantes qualificados da Igreja Grega Ortodoxa e do Conselho Mundial das Igrejas.

Sois na verdade bem-vindos, e Deus abençoe esta colaboração. A todos vós, meus caros Irmãos no Episcopado e no Sacerdócio, e a todos os peritos e colaboradores do Secretariado para os Não-Cristãos, dirijo eu a expressão dos meus bons votos, unida a orações, invocando sobre vós a bênção de Jesus Cristo, ressuscitado da morte, «Redentor do homem ..., centro do universo e da história».





DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS BISPOS DO SRI-LANKA


POR OCASIÃO DA VISITA


"AD LIMINA APOSTOLORUM"


Sábado, 28 de Abril de 1979



Queridos Irmãos em nosso Senhor Jesus Cristo

Como vos reunis na unidade do Episcopado, os nossos pensamentos dirigem-se espontaneamente para Jesus Cristo. Bem sabemos qual a ansiedade que invadiu a Sua alma, como Ele expressa nas palavras: Tenho de anunciar a Boa Nova de Deus... pois para isto é que fui enviado (Lc 4,43).

Ao reflectirmos na missão de Cristo, compreendemos a natureza evangelizadora da Igreja; ao mesmo tempo ficamos mais esclarecidos sobre a nossa própria missão, como Bispos que transmitem a palavra de Deus. No centro da Boa Nova, que somos chamados a anunciar, está o grande mistério da Redenção e especialmente a pessoa do Redentor. Todos os nossos esforços como Pastores da Igreja dirigem-se a tornar o Redentor mais conhecido e amado. Encontramos a nossa identidade como Bispos em pregar a insondável riqueza de Cristo (Ep 3,8), em transmitir a mensagem salvífica da revelação.

A fidelidade absoluta à especial tarefa evangelizadora, própria do nosso cargo episcopal, torna-se o alvo da nossa vida de cada dia. As seguintes palavras da minha recente Encíclica aplicam-se primeiramente a nós, Bispos: "Sentimos profundamente o carácter compromissivo da verdade que Deus nos revelou. Damo-nos conta, em particular, do grande sentido de responsabilidade por esta verdade. A Igreja, por instituição de Cristo, dela é guarda e mestra, sendo precisamente para isso dotada de singular assistência do Espírito Santo, a fim de poder guardá-la fielmente e ensiná-la na sua mais exacta integridade" (Redemptor Hominis RH 12).

Por esta razão, estamos empenhados em manter a pureza da fé católica; vigiamos para o conteúdo da evangelização corresponder à mensagem pregada por Cristo, transmitida pelos Apóstolos e autenticada pelo Magistério da Igreja através dos séculos.. Dia após dia falamos à nossa gente do nome, do ensinamento, da vida, das promessas, do Reino e do mistério de Jesus de Nazaré, Filho de Deus. N6s proclamamos clara e explicitamente diante do mundo inteiro que a salvação é dom da graça e misericórdia de Deus, a qual é oferecida a todos em Jesus Cristo, Filho de Deus, que morreu e ressuscitou dos mortos. Pregamos uma salvação transcendente e escatológica começada no tempo mas para ser completada só na eternidade.

Ao mesmo tempo, a evangelização supõe uma mensagem explícita sobre os direitos e deveres de cada pessoa humana. A mensagem do Evangelho anda necessariamente unida ao progresso humano sob os aspectos tanto de progresso como de libertação, de maneira que não é possível proclamar o novo mandamento do amor dado por Cristo sem promover, na justiça e na paz, o bem-estar do homem.

Mais ainda, os nossos esforços — para introduzir esta mensagem universal nas vidas de cada comunidade eclesial, e para a traduzir numa linguagem que seja perfeitamente compreendida — devem ser realizados em perfeita harmonia com toda a Igreja, porque sabemos que, adulterar o conteúdo do Evangelho sob o pretexto de o adaptar, é tirar-lhe o seu vigor. A nossa responsabilidade é grande, mas devemo-la encarar com serenidade e confiança, convencidos, segundo a promessa do Senhor, de que o Espírito de verdade nos guia, uma vez que nos mantenhamos fiéis à comunhão da Igreja de Cristo.

É também significativo notar quão energicamente insiste Paulo VI, no seu grande tratado sobre esta matéria em que a evangelização efectiva depende da santidade da vida (Cfr. Evangelii Nuntiandi EN 21, 26, 41 e 76). O Evangelho deve ser proclamado pelo testemunho, testemunho da vida cristã vivida em fidelidade ao Senhor Jesus. Exactamente como todas as categorias de pessoas na Igreja são convidadas a desempenhar a própria missão na tarefa evangelizadora, do mesmo modo é 'cada um exortado energicamente verdadeira santidade de vida.

Ao reflectir sobre a evangelização, é conveniente também insistir nessa unidade que Jesus veio realizar. Ao transmitir aos discípulos as palavras que o Seu Pai lhe deu, Jesus pediu que eles fossem verdadeiramente uma só coisa (Cfr. Jn 17,8 Jn 17,11). Com o Seu Evangelho, Cristo venceu as divisões do pecado e da fraqueza. humana, reconciliando-nos com o Pai e deixando-nos como herança o seu novo mandamento do amor. E sujeitou-se à morte para trazer à unidade os filhos de Deus que andavam dispersos (Jn 11,52).

Esta unidade entre nós e entre os nossos rebanhos é prova da nossa disciplina e medida da nossa fidelidade a Jesus. A unidade a que somos chamados é; unidade de fé e de amor, que suplanta o desinteresse entre irmãos e triunfa das divisões humanas. A unidade imposta por Jesus garante ainda a eficácia do nosso testemunho dado ao mundo: E por isto que todos saberão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros (Jn 13,35).

O mesmo Cristo evangelizador, que nos diz que tem de proclamar a Boa Nova, diz-nos também que o Filho do Homem não veio para ser servido mas para servir (Mt 20,28). Cristo convida-nos assim, a nós seus membros, a participarmos do seu cargo de Serviço real; Cristo chama a Sua Igreja para o serviço do homem. Este elemento também eu me esforcei por realçar na Redemptor Hominis: "A Igreja, que é animada pela fé escatológica, considera esta solicitude pelo homem, pela sua humanidade e pelo futuro dos homens sobre a face da terra e, por consequência, pela orientação de todo o desenvolvimento e progresso, como elemento essencial da sua missão, indissoluvelmente ligado com ela. E o princípio de tal solicitude encontra-o a mesma Igreja, como testemunham os Evangelhos" (Redemptor Hominis RH 13).

Assim, como expressão de compreender o Evangelho, a Igreja mobiliza-se a si mesma em renovada caridade para serviço do mundo. Confia livremente em Cada um dos seus membros para exercer a caridade.

E um dos mais importantes serviços que podem prestar os cristãos é amarem os seus irmãos com o amor com que eles foram amados: amor pessoal manifestado em compreensão, compaixão, sensibilidade perante as necessidades e desejo de comunicar o amor do coração de Cristo. Falando da dimensão humana da Redenção, escrevi; "O homem não pode viver sem amor. Ele permanece para si próprio um ser incompreensível e a sua vida é destituída de sentido, se não lhe for revelado o amor, se ele não se encontra com o amor, se o não experimenta e se o não torna algo seu próprio, se nele não participa Vivamente" (Redemptor Hominis RH 10).

Segundo isto, vemos que há imenso campo no mundo para a caridade de Cristo. O serviço do nosso amor é sem limites. Somos constantemente chamados a realizar mais, a servir mais e a amar mais.

Caros Irmãos, além destas breves reflexões sobre a evangelização e o serviço — que não pretenderam ser completas — há muitas outras coisas que apreciaria dizer-vos, para vos animar na missão pastoral, de maneira que, regressando, possais animar os vossos sacerdotes, seminaristas e leigos. Mas estou certo que na vossa mesma comunhão eclesial encontrareis fortaleza e inspiração para continuar o vosso ministério, edificando, pelo poder do Espírito Santo, as comunidades de fiéis confiadas à vossa cura pastoral.

Recomendo-vos à intercessão de Maria, Imaculada Virgem Mãe de Deus, pedindo-Lhe vos conserve na fidelidade e na alegria. Convosco envio a minha Bênção Apostólica ao vosso povo, nas igrejas e nas casas de Sri Lanka — "a Pérola do Oceano indico" —, às pessoas idosas e aos jovens, a todos os que sofrem ou se encontram necessitados. O meu amor está com todos vós em Jesus Cristo e no Seu Evangelho.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS MEMBROS DA ORDEM DOS AGOSTINHOS RECOLECTOS


Sábado, 28 de Abril de 1979



Amadíssimos irmãos em Cristo

Quisestes concluir aqui, junto do Papa, esta segunda semana da Páscoa, durante a qual vos reunistes em Roma para penetrar em vós mesmos e reflectir nas realidades e exigências da vida religiosa na actualidade, com o fim de preparar o capítulo geral.

Desejo, por isso, congratular-me convosco, e mais ainda porque esta visita me permite expressar-vos não só a minha participação nas vossas preocupações eclesiais, mas também o meu cordial afecto para com a Ordem dos Agostinhos Recolectos e todos os seus membros.

Sem dúvida que estes dias foram de autêntico recolhimento, dias vividos em intimidade familiar louvando a Deus e dialogando entre vós, sentindo-vos, com alegria, em afinidade de pensamento e coração com a espiritualidade e o estilo de vida herdados do Bispo de Hipona, Santo Agostinho.

Através da comunhão de espírito e de alma com este grande Padre e Doutor da Igreja, cuja atraente personalidade humana e religiosa se nos apresenta ainda imperecível depois de tantos séculos, sabeis muito bem com quem estais sintonizados: com a Palavra e o Amor de Deus, com Cristo. É Ele e não outro quem vos procura, quem vos convida insistentemente a optar em cada momento pela entrega, numa aventura exigente e ao mesmo tempo acolhedora, a essa realidade última que confessava Santo Agostinho: "fecisti nos, Domine, ad te et inquietum est cor nostrum donec requiescat in te" (Santo Agostinho, Confissões, 1, 1).

Nunca na vossa fisionomia espiritual se desfigure esta dimensão eminentemente contemplativa da "sequela Christi". A contemplação, "a ocupação mais nobre da alma", é além disso a nota peculiar da vossa família religiosa. Seja esta vivência particular, no dizer do mesmo Santo Agostinho, um voltar-se para o eterno: não é ociosidade mas descanso do espírito, pois a alma é convidada ao descanso da contemplação.

Esta união com Deus, nascida de uma atitude de doação total e incondicionada, deve ser o núcleo, a partir do qual vos prepareis para dar sentido pleno à vossa vida religiosa, como embaixadores de Cristo no meio deste mundo (Cfr. 2Co 5,20), segundo o Espírito que vos foi dado.

Quereria repetir-vos hoje, com o apóstolo São Paulo: não apagueis o Espírito (1Th 5,19), deixai-vos conduzir pelo Seu impulso, pedi que vos faça experimentar dia a dia a Sua graça. Só assim vos ireis renovando no mais profundo do vosso ser, até assimilar a acção de Deus, que não se dá meramente através da Sua ciência e do Seu poder, mas que é ao mesmo tempo dom de fidelidade, de serviço, de abnegação, de paz, numa palavra, de amor. Só assim conseguireis também uma renovação exterior, que seja verdadeira e frutuosa, na linha das directrizes traçadas pelo Concílio.

Queridos irmãos e filhos: Celebrastes há dois dias a festividade da Senhora do Bom Conselho, que tem notável lugar na vossa Instituição e nos vossos corações.

Nesta hora de reflexão e de renovação eclesial, deixai-vos iluminar e guiar pela Mãe de Cristo, Mãe da Palavra feita carne. Pedi a sua ajuda para que, em união de fé e de sentimentos, a obra começada em dia longínquo por Santo Agostinho vigore hoje na Igreja e possa indicar a todos os homens ser Cristo — o morto e ressuscitado — o verdadeiro "caminho, verdade e vida".

Com sentimentos de afecto, recebei a minha Bênção que faço cordialmente extensiva a todos os vossos irmãos.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


À ASSOCIAÇÃO DAS EMPREGADAS DOMÉSTICAS


29 de Abril de 1979



É grande a minha alegria ao encontrar-me esta tarde convosco! Na verdade não podia faltar este encontro tão especializado e tão importante com o Vigário de Cristo!

Por ocasião do décimo Congresso Nacional convocado pela Associação Profissional Italiana das Colaboradoras da Família, que terá lugar estes dias em Frascati, desejastes esta Audiência para dar início às vossas discussões sobre o tema: «O trabalho doméstico na economia italiana e na família».

Grato por este vosso pensamento devoto, apresento-vos as minhas mais cordiais boas-vindas e a minha mais afectuosa saudação, e pretendo saudar através de vós as vossas colegas e amigas, empregadas domésticas da Itália e do mundo inteiro!

Agradeço reconhecidamente à Presidência Nacional da Associação, bem como à Presidência Romana, a ocasião que se me oferece de encontrar-me convosco, para ouvir os vossos problemas de classe, as vossas dificuldades pessoais, os vossos ideais e as metas que desejais atingir.

As vossas pessoas representam o trabalho escondido, mas também necessário e indispensável; o trabalho sacrificado e não vistoso, que não recebe aplausos e, às vezes, nem reconhecimento e gratidão; o trabalho humilde, repetido, monótono e, por isso, heróico de uma multidão incontável de mães e de mulheres jovens que, com a sua canseira quotidiana, contribuem para equilibrar o balanço económico de tantas famílias e resolvem tantas situações difíceis e precárias, ajudando os pais que estão longe ou os irmãos necessitados.

E o Papa, que conheceu as dificuldades da vida, está convosco, compreende-vos, estima-vos, acompanha-vos nas vossas aspirações e nos vossos desejos, e augura sinceramente que o Congresso, em que serão tratados os vossos problemas, faça emergir cada vez mais as vossas justas exigências e as vossas inderrogáveis responsabilidades. Mas vós viestes aqui, à casa do Pai, para receber do Vigário de Cristo uma particular exortação. E eu, com simples familiaridade mas também com sentido afecto, dir-vos-ei algumas palavras que possam servir-vos de «viático» durante o Congresso e, depois, também por toda a vida.

1. Antes de mais, digo-vos com o ardor do meu ministério apostólico: sirva-vos de conforto a fé em Jesus Cristo!

Existem muitas e belas consolações humanas na vida, aumentadas e aperfeiçoadas pelo progresso, e devemos saber dar-lhes valor e gozá-las justa e santamente. Mas a consolação suprema é, e deve continuar a ser sempre, a presença de Jesus na nossa vida. Jesus, o Divino Redentor, assumiu a condição humana e colocou-se ao nosso lado, para caminhar connosco por todas as veredas da existência, para recolher as nossas confidências, para iluminar os nossos pensamentos, para purificar os nossos desejos, para consolar as nossas tristezas.

É particularmente comovente meditar sobre a posição de Jesus a respeito da mulher. Ele revelou-se audaz e surpreendente para aqueles tempos em que, no paganismo, a mulher era considerada objecto de prazer, de lucro e de trabalho e, no judaísmo, marginalizada e aviltada.

Jesus mostrou sempre a máxima estima e o máximo respeito para com a mulher, para com cada mulher, e foi particularmente sensível aos sofrimentos femininos. Ultrapassando as barreiras religiosas e sociais do tempo, Jesus restabeleceu a mulher na sua plena dignidade de pessoa humana diante de Deus e diante dos homens. Como não recordar os seus encontros com Marta e Maria (Lc 10,38-42) com a Samaritana (Jn 4,1-42), com a viúva de Naím (Lc 7,11-17), com a mulher doente de hemorragia (Mt 9,20-22) e com a pecadora (Jn 8,3-9) em casa de Simão, o fariseu (Lc 7,36-50)?

O coração vibra de comoção só com enumerá-los. E como não recordar sobretudo que Jesus quis associar algumas mulheres aos Doze (Lc 8,2-3), as quais o acompanhavam e serviam, e o confortaram durante a via-sacra e aos pés da Cruz? E depois da ressurreição, Jesus apareceu às piedosas mulheres e a Maria Madalena, encarregando esta de anunciar aos discípulos a sua Ressurreição (Mt 28,8).

Desejando encarnar e entrar na nossa história humana, Jesus quis ter uma Mãe, Maria Santíssima, elevando assim a mulher ao cume mais alto e admirável da dignidade, Mãe do Deus Encarnado, Imaculada, Elevada ao Céu, Rainha do Céu e da Terra. Por isso vós, mulheres cristãs, como Maria Madalena e as outras mulheres do Evangelho, deveis anunciar e testemunhar ter Cristo ressuscitado verdadeiramente, ser Ele a nossa única e verdadeira consolação! Tende, por isso, em conta a vossa vida interior, reservando todos os dias um pequeno oásis de tempo para meditar e para rezar.

2. Digo-vos em segundo lugar: seja o vosso ideal a dignidade da mulher e da sua missão!

É triste ver como a mulher, no decorrer dos séculos, foi sendo tão humilhada e maltratada. Mesmo assim devemos convencer-nos de que só em Cristo se encontra de modo total e exaustivo a dignidade quer do homem, quer da mulher!

Falando às mulheres italianas no imediato após-guerra, o meu venerado predecessor Pio XII dizia: «Na sua dignidade pessoal de filhos de Deus, o homem e a mulher são absolutamente iguais, como ainda a respeito do fim último da vida humana, que é a eterna união com Deus na felicidade do céu. É glória imperecível da Igreja ter reposto à luz e à consideração esta verdade e ter libertado a mulher de uma servidão degradante, contrária à natureza». E, particularizando, acrescentava: «A mulher deve concorrer com o homem para o bem da 'civitas', na qual é igual a ele em dignidade. Cada um dos sexos deve ocupar-se da parte que lhe diz respeito segundo a sua natureza, o seu carácter, as suas atitudes físicas, intelectuais e morais. Ambos têm o direito e o dever de cooperar para o bem total da sociedade, da pátria; mas está claro que se o homem é, por temperamento, levado a tratar das ocupações exteriores, dos negócios públicos, a mulher tem geralmente falando, maior perspicácia e tacto mais fino para conhecer e resolver os problemas delicados da vida doméstica e familiar, base de toda a vida social; o que não exclui que algumas saibam dar mostras de grande perícia em todos os campos da actividade pública» (Pio XII, Alocução de 21 de Outubro de 1945). Tal foi, de igual modo, o ensino do Concílio Vaticano II, bem como o contínuo e persistente Magistério ide Paulo VI (Paulo VI, cfr. por exemplo, as intervenções a respeito do Ano Internacional da Mulher, em AAS 67, 1975; 68, 1975). Esta doutrina, tão clara e equilibrada, serve de ponto de partida mesmo para reforçar o valor e a dignidade do trabalho doméstico.

Claro que tal trabalho deve ser visto não como uma imposição implacável e inexorável, como uma escravidão; mas antes como uma escolha livre, consciente e desejada, que realiza plenamente a mulher na sua personalidade e nas suas exigências. De facto, o trabalho doméstico faz parte essencial do bom ordenamento da sociedade e exerce enorme influência sobre a colectividade; exige dedicação contínua e total, sendo, por isso, uma ascética quotidiana, que requer paciência, autodomínio, vistas largas, criatividade, espírito de adaptação e coragem nos imprevistos; e contribui, ainda, para a produção de rendimento e riqueza, de bem-estar e valor económico.

Daqui nasce também a dignidade do vosso trabalho de empregadas domésticas: o vosso serviço não é humilhação, mas sim consagração! De facto, vós colaborais directamente no bom andamento da família; e esta é uma grande tarefa, poderia dizer-se quase uma missão, para a qual se requerem preparação e amadurecimento adequados, para se ser competente nas diversas actividades domésticas, para racionalizar o trabalho e conhecer a psicologia familiar, para aprender a chamada «pedagogia da fadiga» que leva a organizar melhor o próprio serviço, e ainda para exercer a necessária função educadora. São inúmeras coisas importantíssimas e preciosas que se abrem cada dia aos vossos olhos e à vossa responsabilidade. Vai por isso o meu aplauso para todas as mulheres aplicadas à actividade doméstica, e para vós, Colaboradoras familiares que gastais os vossos talentos e as vossas energias para o bem da casa!

3. Por fim, digo-vos ainda: sede semeadoras de bondade.

Nestes anos de justas reivindicações e de um mais acentuado respeito pela pessoa, vistes reconhecidos os vossos direitos, foram fixadas as normas de retribuição, de alojamento, de medicamentação e assistência na doença, de previdência, de repouso semanal e anual, das justas indemnizações, do atestado de trabalho, etc. Muitas coisas estão ainda por fazer, muitas realidades por enfrentar; e vós estudá-las-eis no vosso congresso, especialmente em defesa dos direitos e da personalidade das empregadas domésticas vindas do estrangeiro. Mas eu queria exortar-vos sobretudo a que trabalheis com amor nas famílias que vos recebem. Vive-mos tempos difíceis e complicados. Fenómenos grandiosos e indestrutíveis — como a industrialização, a urbanizacão, a culturalização, a internacionalização das relações, a instabilidade afectiva e a precocidade intelectual — lançaram a desordem nas famílias. Para aí podeis levar vós, com a vossa presença, a serenidade, a paz, a esperança, a alegria, o conforto e o encorajamento para o bem, sobretudo quando se encontram pessoas idosas, doentes, amarguradas, crianças diminuídas, jovens desencaminhados ou pervertidos. Nenhum código vos prescreve o sorriso. Mas vós podeis oferecê-lo; vós podeis ser o fermento da bondade na família. Recordai o que já São Paulo escrevia aos primeiros cristãos: Tudo o que fizerdes por palavras ou por obras, fazei-o em nome do Senhor Jesus, dando graças, por intermédio d'Ele, a Deus Pai (Col 3,17). Qualquer coisa que fizerdes, fazei-a com todo o coração, como se fora para o Senhor e não para os homens, sabendo que recebereis a herança do Senhor como recompensa (Col 3,23-24). Amai o vosso trabalho! Amai as pessoas com quem colaborais! É do amor e da bondade que hão-de nascer a vossa alegria e a vossa satisfação!

Assista-vos Santa Zita, vossa celeste Padroeira, que se santificou servindo humildemente com amor e total dedicação.

Ajude-vos e conforte-vos sobretudo Maria, que se consagrou totalmente ao cuidado da família, dando o exemplo e ensinando onde é que estão os verdadeiros valores.

Acompanhe-vos a minha propiciadora Bênção Apostólica.



                                                            Maio de 1979





DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS BISPOS DAS ANTILHAS


POR OCASIÃO DA VISITA


"AD LIMINA APOSTOLORUM"


Sexta-feira, 4 de Maio de 1979



Queridos Irmãos em Nosso Senhor Jesus Cristo

Com profundo amor fraternal dou-vos hoje as boas-vindas.

Como membros e observadores da Conferência Episcopal das Antilhas reunistes-vos junto do túmulo do Apóstolo Pedro — e ao mesmo tempo com o seu sucessor para celebrardes a vossa unidade em Cristo e na Igreja: Como provindes duma Conferência que se ocupa de tantas nações e povos diferentes das Caraíbas e do continente, julgo que podeis reflectir com especial interesse sobre o importante assunto da unidade da Igreja. Creio também que a insistência do Concilio Vaticano II no mistério da Igreja como "sinal e instrumento da união íntima com Deus e da unidade de todo o género humano" (Lumen Gentium LG 1) tem significado profundíssimo para todos vós. E como a reflexão sobre este assunto e ao mesmo tempo causa de imensa alegria e de fortaleza espiritual, eu apresento-vo-la esta manhã, pedindo ao Espírito Santo por cujo poder e a Igreja unificada na sua comunhão eclesial e no seu ministério (Cfr. Lumen Gentium LG 4) — que nos conceda a graça que pediu Cristo: que fôssemos consummati in unum (Jn 17,23).

Comunhão e ministério são verdadeiramente dois importantes aspectos da unidade da Igreja, de que nós somos servos e guardas. Ver a Igreja como comunhão é penetrar no coração do seu mistério e na identidade do nosso ministério como Bispos, que são chamados a proclamar que a nossa comunhão é com o Pai e com Seu Filho Jesus Cristo (1Jn 1,3).

A comunhão que nós promovemos e alimentamos é comunhão de fé em Deus. Cremos no Pai, que devido ao seu infinito amor se revela a Si mesmo, e mediante o poder do Espírito Santo nos dá a salvação na Sua Palavra Encarnada. Cremos em nosso Senhor Jesus Cristo, que pela Sua morte reúne na unidade da Sua Igreja os filhos de Deus que andam dispersos (Cfr. Jo Jn 11,52).

Para nós Bispos, esta comunhão de fé é a base da nossa missão apostólica de construir a Igreja pregando o Evangelho, encontrando-se cada um de nós solidário com São Paulo que diz: "Fui escolhido para o Evangelho como pregador, apóstolo e mestre..." (1Tm 1,11). A nossa comunhão de fé lança também luz sobre a unidade do nosso ministério, segundo o qual nós anunciamos com a Igreja universal a mensagem imutável da salvação em Cristo. A nossa comunhão de fé impõe-nos a grande responsabilidade, a que somos fiéis pelo poder de Deus, de dar ao nosso povo a plenitude da doutrina cristã. No seu último discurso, no dia mesmo em que morreu, o meu predecessor João Paulo I falou dela, do ponto de vista do Povo de Deus, dizendo: "Entre os direitos dos fiéis, um dos principais é o de receberem a palavra de Deus na sua integridade e pureza, com todas as suas exigências e o seu poder" (Discurso aos Bispos das Filipinas, 28 de Setembro de 1978).

A unidade da Igreja é igualmente manifestada na nossa comunhão de amor, amor que leva mais alto do que podemos por nós próprios e nos é infundido no Baptismo, amor pelo qual nós amamos a Deus com todo o nosso coração, alma e mente, e ao nosso próximo como a nós mesmos (Cfr. Mt Mt 22,37-39). Santo Agostinho apresenta-nos a verdade com grande penetração ao dizer: "Amar a Deus vem primeiro como mandamento, mas amar o nosso próximo vem primeiro como actividade" (Dei dilectio prior est ordine praecipiendi, proximi autem dilectio prior est ordine faciendi) (Santo Agostinho, In Ioann. Tract. 17). Compreendendo-o, o nosso ministério toma novo vigor quando nos apresentamos a todo o povo para lhe comunicar o amor de Cristo, pondo em prática o Seu mandamento de amor. Na comunhão de amor encontramos a força que nos conforta para servirmos a humanidade. Na mensagem do Evangelho aprendemos a respeitar o homem e a promover as exigências inevitáveis da dignidade humana e a ajudar a humanidade a continuar a construir a civilização do amor.

Na expressão do Concílio Vaticano II; a grande unidade que deseja Cristo para a Sua Igreja está modelada e encontra a sua fonte na unidade da Santíssima Trindade e subsiste na Igreja Católica (Cfr. Lumen Gentium LG 8 Unitatis Redintegratio UR 2,3). Sabemos porém que muito falta para estar acabada a missão de promover a restauração da unidade entre todos os cristãos. É missão que recebemos do Senhor. A fidelidade a Jesus Cristo requer prosseguirmos com vigor na causa da unidade cristã. Nos nossos dias, comunicou o Espírito Santo ao mundo vigoroso impulso neste particular: ut omnes unum sint (Jn 17,21). Este empenho do Concílio Ecuménico é claro, e eu, como Papa, conforme disse "desde a minha eleição, comprometi-me formalmente a promover a execução das suas normas e orientações, considerando estar nisso para mim um dever primordial" (Discurso ao Secretariado para a União dos Cristãos, 18 de Novembro de 1978).


Discursos João Paulo II 1979 - 27 de Abril de 1979