AUDIÊNCIAS 1979


JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA GERAL

Sala Paulo VI

Quarta-feira, 28 de Março de 1979




A «esmola» e a «justiça»

1. Paenitemini et date eleemosynam (Cfr. Mc Lc. 12, 33)

A palavra «esmola» não gostamos hoje de a ouvir. Encontra-mos nela alguma coisa de humilhante. Esta palavra parece supor um sistema social em que reina a injustiça, a desigual distribuição dos bens, um sistema que deveria ser mudado com reformas adequadas. E se tais reformas não fossem realizadas, delinear-se-ia no horizonte da vida social a necessidade de mudanças radicais, sobretudo no campo das relações entre os homens. A mesma convicção encontramo-la nos Profetas do Antigo Testamento, a que muitas vezes recorre a liturgia no tempo da Quaresma. Os Profetas consideram este problema a nível religioso: não há verdadeira conversão a Deus, não pode haver «religião» autêntica sem reparar injúrias e injustiças nas relações entre os homens, na vida social. E mesmo neste contexto, exortam os Profetas à esmola.

Não usam sequer a palavra «esmola», que aliás em hebraico é «sedaqah», isto é precisamente «justiça». Pedem auxílio para aqueles que sofrem injustiça e para os necessitados: não tanto em virtude da misericórdia, quanto preferentemente em virtude do dever da caridade activa. Sabeis qual é o jejum que eu aprecio?... É romper as ligaduras da iniquidade, desatar os nós do jugo, deixar ir livres os oprimidos e quebrar toda a espécie de jugo; é repartir o próprio pão com o esfomeado, dar abrigo aos infelizes sem abrigo, vestir o nu e não desprezar o teu irmão (Is 58,6-7).

A palavra grega «esmola» encontra-se nos livros tardios da Bíblia, e a prática da esmola é prova de religiosidade autêntica. Jesus faz da esmola uma condição da entrada no Seu reino (Cfr. Lc Lc 12,32-33) e da verdadeira perfeição ( paral). Por outro lado, quando Judas — diante da mulher que ungia os pés de Jesus — pronunciou a frase: Porque não se vendeu este perfume por 300 denários e não se deram aos pobres? (Jn 12,5), Cristo defendeu a mulher respondendo: Pobres, sempre os tereis convosco, mas a mim nem sempre me tereis (Jn 12,8). Uma e outra frase oferecem motivo para longa reflexão.

2. Que significa a palavra «esmola»?

A palavra grega «eleemosyne» provém de «eleos» que significa compaixão e misericórdia; inicialmente indicava a atitude do homem misericordioso e, em seguida, todas as obras de caridade para com os necessitados. Esta palavra, transformada, ficou em quase todas as línguas europeias.

Em francês: «aumône»; espanhol: «limosna»; português: «esmola»; alemão: «almosen»; e inglês: «alms». Até o termo polaco «jalmuzna» é a transformação da palavra grega.

Devemos agora distinguir o significado objectivo deste termo, do significado que lhe damos na nossa consciência social. Como resulta do que já dissemos, ao termo esmola» atribuímos muitas vezes, na nossa consciência social, um significado negativo. Diversas as circunstâncias que para isso contribuíram e ainda hoje contribuem. Pelo contrário, o termo «esmola» em si mesmo, como ajuda a quem dela precisa, como fazer participar os outros dos próprios bens, não desperta nada de tais associações desfavoráveis. Podemos não estar de acordo com quem dá a esmola, pelo modo como a dá. Podemos também não concordar com quem estende a mão pedindo esmola, se não se esforça por ganhar a vida por si mesmo. Podemos não aprovar a sociedade, o sistema social, em que haja necessidade de esmola. Todavia, o facto mesmo de prestar auxílio a quem precisa, o facto de repartir com os outros os próprios bens deve merecer respeito.

Vemos quanto, na interpretação das expressões linguísticas, é necessário libertarmo-nos da influência das várias circunstâncias acidentais: circunstâncias muitas vezes impróprias, que pesam sobre o significado fundamental. Estas circunstâncias são aliás positivas às vezes, em si mesmas (por exemplo, no nosso caso: a aspiração a uma sociedade justa, em que não haja necessidade de esmola, por nela reinar a justa distribuição dos bens).

Quando o Senhor Jesus fala de esmola, quando pede que a demos, sempre o faz no sentido de prestarmos auxílio a quem dele precisa, de repartirmos os próprios bens com os necessitados, isto é, no sentido simples e essencial, que não nos permite duvidar do valor do acto designado pelo termo «esmola», pelo contrário nos leva a que o aprovemos; como acto bom, como expressão de amor para com o próximo e como acto salvífico.

Além disso, num momento de especial relevo, pronuncia Cristo estas palavras significativas: Pobres, sempre os tereis convosco (Jn 12,8). Com tais palavras não pretende dizer que as mudanças das estruturas sociais e económicas nada valham e que não se hajam de tentar caminhos diversos para eliminar a injustiça, a humilhação, a miséria e a fome. Só quer dizer que no homem haverá sempre necessidades, a que não se poderá prover senão com a ajuda ao necessitado e com levar a que os outros participem dos bens meus ... De que ajuda se trata? De que participação? Acaso só de «esmola» entendida sob forma de dinheiro, de socorro material?

3. Certamente Cristo não tira a esmola do nosso campo visual. Pensa também na esmola pecuniária, material, mas pensa a Seu modo. Mais eloquente que qualquer outro é, a este propósito, o exemplo da viúva pobre, que deitava no tesouro do templo alguns trocos: do ponto de vista material, era oferta que dificilmente se poderia comparar com as ofertas que davam os outros. Todavia Cristo disse: essa viúva ... deitou tudo o que tinha para viver (Lc 21,3-4). Conta portanto sobretudo o valor interior do que se dá: a disponibilidade para repartir tudo, a prontidão para nos darmos a nós mesmos.

Recordemos aqui São Paulo: Ainda que distribua todos os meus bens em esmolas ..., se não tiver caridade, de nada me aproveita (1Co 13,3). Também Santo Agostinho escreve sabiamente a este propósito: «Se estendes a mão para dar, mas no coração não tens misericórdia, nada fizeste; se, pelo contrário, no coração tens misericórdia, mesmo que nada tenhas para dar com a mão, Deus aceita a tua esmola» (Santo Agostinho, Enarrat. in Ps., CXXV, 5) .

Tocamos assim o núcleo central do problema. Na Sagrada Escritura e segundo as categorias evangélicas, «esmola» significa, primeiro que tudo, dom interior. Significa a atitude de abertura «para o outro». Precisamente esta atitude é factor indispensável da «metánoia», isto é, da conversão, do mesmo modo que são também indispensáveis a oração e o jejum. Na verdade, bem se exprime Santo Agostinho: «Como são ouvidas depressa as orações de quem pratica o bem! Esta é a justiça do homem na vida presente: o jejum, a esmola, e a oração» (Santo Agostinho, Enarrat. in Ps., XLII, b): a oração, como abertura para Deus; o jejum, como expressão do domínio de si próprio mesmo em privar-se dalguma coisa, em dizer «não» a si mesmo; e, por fim, a esmola, como abertura «para os outros». Este quadro descreve-o claramente o Evangelho quando nos fala da penitência, da «metánoia». Só com uma atitude totalizante — nas relações com Deus, consigo mesmo e com o próximo — atinge o homem a conversão e permanece no estado de conversão.

A «esmola» assim entendida tem um significado, em certo sentido, decisivo para tal conversão. Para disso nos convencermos, basta recordar a imagem do Juízo final que nos deu Cristo:

«Porque tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber; era peregrino e recebestes-me; estava nu e destes-me de vestir; adoeci e visitastes-me; estive na prisão e fostes ter comigo». Então, os justos responder-lhe-ão: «Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer, ou com sede e te demos de beber? Quando te vimos peregrino e te recolhemos, ou nu e te vestimos? E quando te vimos doente ou na prisão, e fomos visitar-te?». E o Rei dir-lhes-á em resposta: «Em verdade vos digo: Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes» (Mt 25,35-40).

E os Padres da Igreja dirão depois com São Pedro Crisólogo: «A mão do pobre é o gazofilácio de Cristo, porque tudo o que o pobre recebe é Cristo que o recebe» (São Pedro Crisólogo, Sermo VIII), e com São Gregório de Nazianzo: «O Senhor de todas as coisas quer a misericórdia, não o sacrifício; e nós damo-la por meio dos pobres» (São Gregório Nazianzo, De pauperum aurore, XI).

Portanto, esta abertura para os outros, que se exprime com o «auxílio», com o «repartir» a comida, o copo de água, a palavra amável, o conforto, a visita, o tempo precioso, etc., este dom interior oferecido ao outro homem chega directamente a Cristo, directamente a Deus. Decide do encontro com Ele. É a conversão.

No Evangelho, e mesmo em toda a Sagrada Escritura, pode-mos encontrar muitos textos que o vêm confirmar. A «esmola» entendida segundo o Evangelho, segundo o ensinamento de Cristo, tem na nossa conversão a Deus um significado definitivo, decisivo. Se falta a esmola, a nossa vida não chega ainda plenamente a Deus.

4. No ciclo das nossas reflexões quaresmais, será necessário retomar este tema. Hoje, antes de concluir, detenhamo-nos ainda um momento no verdadeiro significado da «esmola». E facílimo, de facto, falsificar-lhe o significado, como já notámos no princípio. Jesus dava também recomendações a respeito da atitude superficial, «exterior», da esmola (Cfr. Mt Mt 6,24 Lc 11,41) Este problema está sempre vivo. Se nos damos conta do significado essencial que a «esmola» tem para a nossa conversão a Deus e para toda a vida cristã, devemos evitar, à viva força, tudo quanto falsifica o sentido da esmola, da misericórdia, das obras de caridade: tudo o que pode deformar a imagem delas em nós mesmos. Neste campo, é importantíssimo cultivar a sensibilidade interior para com as necessidades reais do próximo, para saber em que o devemos ajudar, como proceder para não o ferir e como comportar-nos para aquilo que damos, que levamos à sua vida, ser um dom autêntico, dom não agravado pelo sentido ordinário negativo da palavra «esmola».

Vemos portanto o campo de trabalho, como é amplo e ao mesmo tempo profundo. a abrir-se diante de nós, se queremos pôr em prática o conselho: Paenitemini et date eleemosynam (Cfr. Mc Lc.12, 33). É campo de trabalho não só para a Quaresma, mas para todos os dias. Para toda a vida.



Saudações

Às crianças das escolas romanas

Caríssimos alunos e alunas das Escolas Elementares e das Escolas Médias de Roma, que viestes com os vossos condiscípulos doutras cidades italianas e ainda com outros rapazes e meninas pertencentes a associações católicas.

O Papa recebe-vos com paternal afecto e agradece-vos de todo o coração a visita que quisestes fazer-lhe. Este encontro, como sabeis, realiza-se na estação litúrgica da Quaresma, que tem por fim a fervorosa preparação para a Páscoa.

Estou certo que os vossos Professores e Assistentes vos instruíram acerca da importância deste período, exortando a que mediteis no mistério da nossa Redenção: Jesus, nosso irmão, tomou o nosso lugar para satisfazer pelo pecado, e para isto teve de sofrer a paixão e a morte da Cruz. Desejo-vos que, reflectindo sobre o infinito amor de Deus, sintais cada vez mais o dever da oração e da mortificação: Purificados, mediante estas, no espírito e no corpo, unimo-nos mais intimamente ao Pai do céu.

E agora é necessário completar a obra: reviver, do modo mais digno, o acontecimento único, irrepetível, da história do género humano — a Ressurreição do Divino Salvador — utilizando os meios colocados por Ele mesmo à nossa disposição, quer dizer, os sacramentos da Penitência e da Eucaristia, que procuram a inefável alegria de participarmos no triunfo de Cristo. Assim dareis execução fiel ao convite de São Paulo: Se ressuscitastes com Cristo, buscai as coisas lá do alto, onde Cristo está sentado à direita de Deus. Afeiçoai-vos às coisas lá de cima e não às da terra (Col 3,1-2).

E com estes votos dou-vos a Bênção Apostólica, que desejo tornar extensiva a todos os que vos são queridos.

Às Religiosas de Santa Doroteia (Frassinetti)

Às Irmãs de Santa Doroteia, Frassinetti, que nestes dias estão aqui : em Roma para tomar parte no seu Capítulo Geral, desejo, segundo as palavras do Concílio Vaticano II, que possam verdadeiramente "cumprir com segurança e guardar fielmente a profissão religiosa e avançar com júbilo pelo caminho da caridade" (cfr. Lumen Gentium LG 43).

Aos Doentinhos

Desejo certificar todos os doentes e todos os que sofrem que estou especialmente perto deles com o coração e com a oração.

Caríssimos convido-vos a unir, sobretudo neste período de quaresma, os vossos sofrimentos aos de Cristo suspenso da cruz, e a oferece-los pela salvação de todos os homens.

Acompanho-vos com a minha palavra de ânimo e a minha bênção, que tenho o prazer de tornar extensiva aos vossos familiares e A todos quantos vos prestam assistência.

Aos participantes na XIX Reunião dos Ecónomos católicos da Itália

Desejo agora fazer chegar a minha bênção e saudação aos Religiosos e Religiosas, que hoje estão em número especialmente grande nesta Sala. Vá primeiramente uma especial menção aos Sacerdotes e às Religiosas que participam na XIX Reunião dos Ecónomos católicos da Itália: estou-vos muito reconhecido, caros filhos e filhas, pelo vosso serviço, às vezes desconhecido, mas preciosíssimo e meritório diante de Deus. O Senhor vos conforte no vosso trabalho.

Às participantes no Congresso sobre Comunicações Sociais e no Curso para "Mestras de Formação"

Dirijo um pensamento de bons votos às participantes no Encontro Nacional sobre as Comunicações Sociais e ainda às que seguem o Curso de "Mestras de formação levai a toda a parte o sinal sorridente da vossa bondade operosa, como revérbero do espírito mesmo de Cristo e do seu Evangelho. Fazei que seja sentida em toda a parte a vossa presença cristã.

Aos participantes no Encontro para a "Assistência Espiritual às Forças Armadas da Itália"

Também aos participantes no Encontro das Secções para a "Assistência Espiritual às Forças Armadas da Itália" desejo que o seu esforço — de animação cristã e de promoção dos valores supremos da paz e do respeito recíproco entre os indivíduos - seja coroado de bom êxito, que só: na força do Senhor encontra a sua plena realização.

A Associação dos Regressados da prisão e dos campos de concentração

Reservo, por fim, uma saudação especialmente afectuosa para a peregrinação da Associação dos Regressados da prisão e dos campos de: concentração, aqui presentes em companhia dum grupo de familiares e parentes de militares dispersos na campanha da Rússia. Caríssimos, vós, que trazeis ainda, nas vossas almas e nos vossos corpos, os sinais de antigas e ainda dolorosas feridas, tendes lugar especialíssimo no coração do Papa, que vos recorda constantemente na oração. A todos vos concedo uma Bênção especial.

Aos Jovens Casais

Vão agora para vós, jovens casais, uma especial saudação e os meus paternais votos: a vossa vida matrimonial — iniciada com a cerimónia sacra, de que estão ainda cheios os olhos e mais ainda a vossa alma — proceda ainda melhor de dia para dia, reforçada pelo amor recíproco e por um mútuo e activo sentimento de responsabilidade. Conservai longamente, conservai sempre, a carga de vitalidade que hoje vos alenta e vos leva a olhar para a frente com alegre esperança. Deus vos abençoe, como, em Seu nome, eu de coração vos abençoo.

Ao Séquito do Presidente da República do Zaire

Algumas palavras de boas vindas dirigidas às 70 pessoas que, na sua visita, acompanham o Presidente do Zaire. Terei o prazer de receber amanhã o General Mobutu Sese Seko e de lhe manifestar a minha solicitude pelo povo zairense. A vós dirijo as minhas saudações mais cordiais, prometendo-vos as minhas orações por vós, pelas vossas famílias e por todos os vossos compatriotas.



JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA GERAL

Quarta-feira, 4 de Abril de 1979




A esmola: sinal universal de justiça e solidariedade

Irmãs e Irmãos caríssimos

1. Desejo voltar mais uma vez aos assuntos das nossas três meditações quaresmais: oração, jejum e esmola; sobretudo a esta última. Se a oração, o jejum e a esmola formam a nossa conversão a Deus, conversão que é expressa de modo mais exacto com o termo grego «metánoia», se elas constituem o principal tema da liturgia quaresmal, um estudo penetrante desta liturgia persuade-nos que a «esmola» ocupa nesta um lugar especial. Procurámos explicá-lo brevemente na quarta-feira passada, apoiando-nos no ensinamento de Cristo e dos Profetas do Antigo Testamento, que ressoa muitas vezes na liturgia quaresmal.

Existe porém a necessidade de actualizar esta matéria, de a traduzir, por assim dizer, não só em linguagem de termos modernos, mas também em linguagem da realidade humana actual: interior e social, ao mesmo tempo. Como se referem à realidade actual as palavras pronunciadas há milhares de anos, num contexto histórico-social completamente diverso, palavras dirigidas a homens duma mentalidade tão diversa da de hoje? Como é possível então aplicá-las a nós mesmos? Que pontos nevrálgicos da nossa actual injustiça, das iniquidades humanas e das várias desigualdades, não eliminadas na vida da humanidade — embora tantas vezes a palavra de ordem «igualdade» tenha sido escrita em várias bandeiras —, que pontos devem as nossas palavras combater?

Ressoam com energia insólita as discretas palavras de Cristo dirigidas um dia ao apóstolo traidor: Pobres sempre tereis convosco; mas a mim nem sempre me tereis (Jn 12,8).

«Vós tereis sempre pobres convosco». Depois do abismo desta palavra, nenhum homem pôde nunca dizer o que é a Pobreza. (...) Quando se pergunta a Deus, Ele responde que é Ele precisamente o Pobre: «Ego sum pauper» (Léon Bloy, La femme pauvre, II.1, Mercure de France 1948).

2. A chamada à penitência, à conversão, significa chamada à abertura interior «para com os outros». Nada pode substituir, na história da Igreja e na história do homem, esta chamada. Esta chamada tem infinitos destinatários. Dirige-se a todos os homens e dirige-se a cada um pelos motivos próprios a ele mesmo. Cada um deve portanto ver-se nos dois aspectos do destino desta chamada. Cristo exige de mim uma abertura para com o outro. Mas para com que outro? Para com aquele que está aqui, neste momento. Não se pode «adiar» esta chamada de Cristo para um momento indefinido em que aparecerá aquele mendigo «qualificado» a estender a mão.

Devo estar aberto para cada homem, disposto a «oferecer-me». A oferecer-me levando quê? E sabido que às vezes com uma só palavra podemos «dar um presente» ao outro; mas com uma palavra só, podemos também golpeá-lo dolorosamente, injuriá-lo e feri-lo; podemos até «matá-lo» moralmente. É necessário portanto aceitar esta chamada de Cristo naquelas ordinárias situações quotidianas de convivência e de contacto, onde cada um de nós é sempre aquele que pode «dar» aos outros e, ao mesmo tempo, aquele que sabe aceitar o que os outros podem oferecer-lhe.

Responder à chamada de Cristo para me abrir interiormente para os outros, significa viver sempre pronto a encontrar-me do outro lado do destino desta chamada. Eu sou quem dá aos outros, mesmo quando sei receber, quando sou agradecido por todo o bem que me chega doutrem. Não posso ser fechado e ingrato. Não posso isolar-me. Aceitar o chamamento de Cristo para abrir-me aos outros exige, como se vê, uma reelaboração de todo o estilo da nossa vida quotidiana. É necessário corresponder a esta chamada nas dimensões reais da vida. Não adiar para outras condições e circunstâncias, para quando se apresentar a necessidade. Urge perseverar continuamente nessa atitude interior. Sem isso, quando se apresentar a ocasião «extraordinária», poderá acontecer-nos que não tenhamos a correspondente disposição.

3. Entendendo assim, de maneira prática, o significado da chamada de Cristo a «oferecermo-nos» aos outros na vida de cada dia, não queremos restringir o sentido desta doação apenas aos factos quotidianos, por assim dizer de pequenas dimensões. O nosso «oferecermo-nos» deve referir-se também aos factos longínquos, às necessidades do próximo com quem não estamos em contacto cada dia, mas de cuja existência somos conhecedores. Sim, hoje sabemos muito melhor quais as necessidades, os sofrimentos e as injustiças dos homens que vivem noutros países, noutros continentes. Estamos longe deles geograficamente, estamos separados por barreiras linguísticas, por fronteiras levantadas por cada um dos Estados ... Não podemos entranhar-nos directamente na fome deles, nas indigências, nos maus-tratos, nas humilhações, nas torturas, na prisão, nas discriminações sociais que os amarguram, nas condenações a um «exílio interior» ou à «proscrição» a que se vêem sujeitos; sabemos todavia que sofrem, e sabemos que são homens como nós, nossos irmãos. A «fraternidade» não foi escrita só nas bandeiras e nos estandartes das modernas revoluções. Já há muito a proclamou Cristo: ... vós sois todos irmãos (Mt 23,8). E mais ainda: a esta fraternidade deu Ele um ponto indispensável de referência: ensinou-nos a dizer «Pai nosso». A fraternidade humana pressupõe a paternidade divina.

A chamada de Cristo a abrirmo-nos «ao outro», ao «irmão», precisamente ao irmão, tem um raio de extensão sempre concreto e sempre universal. Diz respeito a cada um, porque se refere a todos. A medida deste «abrirmo-nos» não é só — e não é tanto — a proximidade do outro, quanto o são exactamente as suas carências: tinha fome, tinha sede, estava nu, na prisão, doente ... Respondamos a esta chamada procurando o homem que sofre, seguindo-o até além-fronteiras dos Estados e dos Continentes. Deste modo cria-se — através do coração de cada um de nós — aquela dimensão universal da solidariedade humana. A missão da Igreja está em guardar esta dimensão: Não limitar-se a algumas políticas e a alguns sistemas. Guardar a universal solidariedade humana sobretudo com aqueles que sofrem; conservá-la com respeito a Cristo que formou, duma vez para sempre, essa dimensão de solidariedade com o homem. O amor de Cristo nos constrange, persuadidos que, se um só morreu por todos, então todos estão mortos. Cristo morreu por todos para que os que vivem já não vivam para si mesmos, mas para Aquele que por eles morreu e ressuscitou (2Co 5,14 s). E deu-no-la como missão, uma vez para sempre. Deu-a a cada um. Quem é fraco, sem que eu também o seja? Quem tropeça, que eu não me consuma com febre? São palavras de São Paulo (2Co 11,29).

Portanto, na nossa consciência — na consciência individual do cristão —, na consciência social dos vários ambientes e das nações, devem formar-se, diria eu, zonas especiais de solidariedade precisamente com aqueles que mais sofrem. Devemos trabalhar sistematicamente para que as zonas de especiais carências humanas, dos grandes sofrimentos, dos agravos e das injustiças, se tornem zonas de solidariedade cristã de toda a Igreja e, por meio da Igreja, de cada sociedade e da humanidade inteira.

4. Se vivemos em condições de prosperidade ou de bem-estar, mais urna razão para termos consciência de toda a geografia da fome no globo terrestre; mais uma razão para dirigirmos a nossa atenção para a miséria humana, como fenómeno de massa; devemos despertar a nossa responsabilidade e estimular a prontidão para um auxílio activo e eficaz. Se vivemos nas condições de liberdade, de respeito dos direitos humanos, mais uma razão para sofrermos pelas opressões das sociedades que estão privadas da liberdade, pelas opressões dos homens que estão privados dos direitos fundamentais humanos. Isto diz respeito também à liberdade religiosa. De modo especial onde há respeito pela liberdade religiosa, devemos participar nos sofrimentos dos homens, às vezes de comunidades religiosas inteiras e de Igrejas inteiras, a quem é negado o direito à vida na religião segundo a própria confissão ou o próprio rito. Devo chamar pelos seus nomes a tais situações? Sem dúvida. É meu dever. Mas não podemos ficar só nisto. É necessário que nós, todos e em toda a parte, nos esforcemos por tomar uma atitude de solidariedade cristã com os nossos irmãos na fé, que sofrem discriminações e perseguições. É necessário, além disso, procurar formas em que esta solidariedade possa exprimir-se. Esta foi sempre, desde os tempos mais antigos, a tradição da Igreja. Na verdade, é bem sabido que a Igreja de Jesus Cristo não entrou «em posição de força» na história da humanidade, mas através de séculos de perseguições sofridas. E foram precisamente estes séculos que estabeleceram a mais profunda tradição da solidariedade cristã.

Também hoje tal solidariedade é a força duma renovação autêntica. É o caminho indispensável para a auto-realização da Igreja no mundo contemporâneo. Foi a verificação da nossa fidelidade a Cristo que levou a dizer: Pobres sempre tereis convosco (Jn 12,8 Jn 12,7), e ainda: Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes (Mt 25,40). A nossa conversão a Deus só se realiza no caminho desta solidariedade.

Abençoo-vos com muito afecto.

Aos jovens

Desejo agora dirigir urna palavra especial aos numerosíssimos jovens, provenientes de várias partes, que participam neste encontro.

Sede bem-vindos, caríssimos jovens.

A esta imponente Audiência, que deseja ser também festa dos corações, trazeis vós uma nota singular de alegria, de bondade e de esperança. Saúdo-vos cordialmente e expresso-vos a minha gratidão

Como tive já ocasião de dizer muitas vezes, a Igreja tem confiança em vós e no vosso entusiasmo por todas as causas nobres e grandes; deve ter confiança em vós, porque sois os homens de amanhã. Olhando para os vossos rostos, vemos o futuro. Na luz dos vossos alhos, brilha o ano 2000. Espectáculo este impressionante e animador, que, ao mesmo tempo, é também exigência de autêntica formação humana e cristã.

Ao olhar para vós, penso naquilo que sereis e é para mim motivo de conforto o vosso generoso esforço.

Uma só recomendação quero dirigir-vos hoje: recordai-vos que o mundo precisa de inocência. Todos os valores, são importantes e necessários para o desenvolvimento da pessoa e da sociedade e para o bom andamento da vida civil. Mas o cristão sabe que o valor principal e absoluto e a "graça" de Deus, que é participação na vida ,mesma da Trindade Santíssima e presença de Deus na própria alma; numa palavra, o primeiro valor é para todos a inocência de vida, mantida mediante a observância dos Dez Mandamentos, ou seja, da lei moral e mediante a oração e os Sacramentos.

De facto, o próprio Jesus ensinou-nos: Se alguém quiser vir após mim, renegue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; mas quem perder a sua vida por minha causa, encontrá-la-á. Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro se, depois, perde a sua alma? Ou que poderá dar o homem em troca da sua alma? (Mt 16,24-26).

E ainda Jesus nos roga que não nos separemos d'Ele, que é a "Videira verdadeira", quer dizer, que não percamos a "graça", para não nos tornarmos varas secas e inúteis: Permanecei em mim e eu permanecerei em vós. Como a vara não pode dar fruto por si mesma se não estiver na videira, assim acontecerá convosco se não estiverdes em mim. Eu sou a videira, vós as varas; quem está em mim e eu nele, esse dá muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer ( Jo Jn 15,4-6).

Por isso, exorto-vos também eu, como Jesus: conservai a inocência. Vivei na graça de Deus. Não vos deixeis atrair, enredar, arrastar e sufocar pelo mal, que — bem sabeis — existe sempre no mundo e também em nós mesmos, dada a nossa natureza, remida sim, mas ferida pelo pecado original.

Confio-vos a Maria Santíssima, que vos convido a invocar cada dia, e de coração a todos vos abençoo.

Saudações

Apelo

Antes de dirigir a minha palavra aos peregrinos das diversas Nações, nas suas próprias línguas, desejo ocupar o meu pensamento com uma situação particular, que muito me aflige.

Constituem para mim motivo de dor profunda as graves e preocupantes notícias, que chegam nestes dias do Uganda, País que, bem o sabeis, recebeu calorosamente o meu Predecessor Paulo VI, na sua histórica visita à África. Ele é agora teatro de recontros sangrentos, que produzem vítimas e destruições. Convido a que vos unais à minha oração, para que Deus alivie os sofrimentos daquelas provadas populações e lhes assegure, como a todo o Continente africano, o dom ambicionado duma paz justa e estável.

A peregrinações italianas

Saúdo com paternal afecto os Párocos e os fiéis das numerosas peregrinações italianas provenientes das respectivas paróquias perto ou longe, com os seus generosos propósitos de santa Páscoa. Especiais boas-vindas quero dar peregrinação da Diocese de Forlì, composta de mais de mil fiéis, presididos pelo Bispo, D. Giovanni Proni. Congratulo-me com eles pela fervorosa devoção à Santíssima Virgem, venerada com o título de "Madonna del Fuoco"; e peço-Lhe, juntamente com todos vós, que mantenha sempre as nobres tradições cristãs recebidas dos vossos pais, vos inflame de contínuo amor para com Deus e o próximo, e seja animadora de coesão fraterna não só em toda a Diocese a Ela consagrada mas ainda em toda a região da Romanha.

Aos doentinhos

Um especial e afectuoso pensamento para vós todos, doentes do corpo e do espírito, que de várias Nações viestes visitar o Papa.

Que encontro significativo, cordial e interessante é este, que se realiza entre todos os que representam a Humanidade sofredora e o Vigário na terra d'Aquele que quis ser o "Homem das dores", com o propósito de dar valor, conforto e esperança ao sofrer de cada existência humana!

O presente tempo litúrgico leva-nos a considerar a Cristo, que, ao agonizar no jardim de Getsémani, aceitou sujeitar-se ao pavor, à angústia e à tristeza profunda (cfr. Mc Mc 14,33). Orou, entregou-se totalmente à vontade do Pai Celeste e recebeu conforto e força suficiente para beber até ao fundo o cálice da dor (ibid.14, 36).

Caríssimos enfermos, conservai fixo o olhar em Cristo, vosso Amigo, vosso Modelo e vosso Consolador. Seguindo o seu exemplo, conseguireis que o vosso pavor se transforme em serenidade, a vossa angústia se troque em esperança e a vossa tristeza se mude em alegria, o vosso sofrimento se torne purificação e mérito para as vossas almas, além de precioso contributo para o bem espiritual da Igreja (cfr. Col Col 1,24).

De coração vos abençoo, aqueles que vos são queridos e todos os que amorosamente vos assistem.

Aos jovens Casais

Permiti-me, por fim, que me dirija a vós, jovens casais, que, como habitualmente, sois numerosos e vos encontrais animados do vivo desejo de prestar filial homenagem ao Papa, de ouvir a Sua palavra e receber a Sua bênção.

Com grande prazer descubro entre vós o grupo de cônjuges pertencentes ao Movimento dos Focolares, que provêm de vários Países europeus.

Filhos caríssimos, fazei que as novas famílias — nascidas do afecto do coração e do consentimento livre da vossa vontade, selado pela graça divina do Sacramento do Matrimónio — sejam sempre e profundamente penetradas por amor forte e fecundo, se mantenham firmes sobre a rocha da unidade e da fidelidade, e sejam vivificadas por aquelas virtudes cristãs, que fundam e garantem a paz e a prosperidade do lar doméstico que vós acabais de acender.

Sobre as vossas famílias que nascem invoco a assistência contínua do Senhor e a todos concedo de boa vontade a minha Bênção especial.



PAPA JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA GERAL

Quarta-feira, 11 de Abril de 1979




A nossa solidariedade com Cristo que sofre

1. Durante a Quaresma, a Igreja, referindo-se às palavras de Cristo, ao que ensinaram os profetas do Antigo Testamento, e à própria tradição de séculos, exorta-nos a uma especial solidariedade com todos quantos sofrem e experimentam dalgum modo a pobreza, a miséria, a injustiça e a perseguição. Disso falámos na quarta-feira passada, continuando as nossas reflexões quaresmais sobre o actual significado da penitência que se exprime por meio da oração, do jejum e da esmola. A exortação à solidariedade, em nome de Cristo, com todas as tribulações e as necessidades dos nossos irmãos, e não apenas com aqueles que entram no raio do nosso olhar e da nossa mão, mas com todos, mesmo com os gritos das almas e dos corpos atormentados, é quase a essência mesma de viver espiritualmente o período da Quaresma na existência da Igreja. Na última semana da Quaresma — depois de tais preparações (e só depois delas) — a Igreja exorta-nos a uma particular e excepcional solidariedade com o próprio Cristo que sofre. Embora nos acompanhe, durante todas as semanas deste período, o pensamento da paixão de Cristo, só todavia esta semana, a única no sentido pleno da palavra, é a semana da Paixão do Senhor. É a Semana Santa. A chamada a uma particular e excepcional solidariedade com Cristo que sofre faz-se sentir no fim do período quaresmal. Faz-se sentir quando está já desenvolvida em nós a atitude de conversão espiritual, e particularmente o sentido de solidariedade com todos os nossos irmãos que sofrem. Corresponde isto à lógica da revelação: o amor de Deus é o primeiro e maior mandamento, mas não pode cumprir-se fora do amor do homem. Não se cumpre sem este.

2. Ao mesmo tempo os mais profundos e mais fortes impulsos do amor devem brotar desta Semana, na qual somos chamados a uma particular e excepcional solidariedade com Cristo, na sua paixão e morte na Cruz. Deus de facto amou tanto o mundo — o homem no mundo—que lhe deu o seu Filho único (Jn 3,6). Deu-o à paixão e à morte. Contemplando esta revelação de amor que parte de Deus e se estende até ao homem no mundo, não podemos deter-nos mas devemos retomar o caminho «do regresso»: o caminho do coração humano que vai até Deus, o caminho do amor. A Quaresma — e sobretudo a Semana Santa - deve ser, cada ano da nossa vida na Igreja, um novo início deste «caminho do amor». A Quaresma identifica-se, como vemos, com o ponto culminante da revelação do amor de Deus para com o homem.

Portanto a Igreja exorta-nos a determo-nos, de modo particularíssimo e excepcional, ao lado de Cristo, só junto d'Ele. Exorta-nos — como São Paulo — (pelo menos nesta semana) a não sabermos coisa alguma ... a não ser Jesus Cristo e Este crucificado (1Co 2,2). Esta exortação dirige-a a Igreja a todos: não só à inteira comunidade dos crentes, a todos os seguidores de Cristo, mas também a todos os outros. Parar diante de Cristo que sofre, encontrar a pessoa em si mesma a solidariedade com Ele — eis o dever e a necessidade de todo o coração humano, eis a verificação da sensibilidade humana. Nisto se manifesta a nobreza do homem. A Semana Santa é pois o tempo da mais larga abertura da Igreja para a humanidade e juntamente o tempo-vértice da evangelização: através de tudo o que durante estes dias a Igreja pensa e diz de Cristo, através do modo com que vive a Sua paixão e morte, através da sua solidariedade com Ele, a Igreja volta, ano após ano, às raízes mesmas da sua missão e do seu anúncio salvador. E se nesta Semana Santa a Igreja, mais que falar, se cala, fá-lo para que possa tanto mais falar o próprio Cristo. Aquele Cristo a quem o Papa Paulo VI chamou o primeiro e perene Evangelizador (Cfr. Evangelii Nuntiandi EN 7).

3. A evangelização pratica-se com a ajuda das palavras. Precisamente as palavras de Cristo pronunciadas durante a Sua paixão têm força enorme de expressão. Pode-se também dizer que elas são lugar de especial encontro com cada homem; são a ocasião e o motivo para manifestar grande solidariedade. Quantas vezes voltamos àquele que os Evangelistas registaram como fio condutor da oração de Cristo no jardim das Oliveiras: Meu Pai, se é possível, passe de mim este cálix (Mt 26,39)? Não sente deste modo cada homem no sofrimento, na tribulação, diante da cruz: «Passe de mim»? Quão profunda verdade humana está encerrada nesta frase! Cristo como verdadeiro homem, sentiu repugnância diante do sofrimento: Começou a entristecer-se e a angustiar-se (Mt 26,37) e disse: «Passe de mim ...», não venha, não se encontre comigo! É necessário aceitar toda a expressão humana, toda a verdade humana destas palavras, para as saber unir com as de Cristo: Se é possível, passe de mim este cálix, todavia não seja como eu quero mas como tu queres (Mt 26,39). Todo o homem, encontrando-se diante do sofrimento, encontra-se diante dum desafio ... É este apenas um desafio da sorte? Cristo dá a resposta dizendo: «Como tu queres». Não se dirige a uma sorte, a uma «sorte cega». Fala a Deus. Ao Pai. As vezes esta resposta não nos basta, porque não é a última palavra, mas a primeira. Não podemos compreender nem o Getsémani nem o Calvário, senão no contexto do acontecimento pascal completo. De todo o mistério.

4. Nas palavras da paixão de Cristo há um encontro particularmente intenso do humano com o divino.Já o demonstram as palavras do Getsémani. Depois, Cristo calar-se-á sobretudo. Dirá uma frase a Judas. Depois àqueles que Judas conduziu ao jardim do Getsémani para o prenderem. Depois ainda a Pedro. Diante do Sinédrio não se defende, mas dá testemunho. Assim também diante de Pilatos. E diante de Herodes não respondeu nada (Lc 23,9). Durante o suplício realizam-se as palavras de Isaías: Era como cordeiro levado ao matadouro, como ovelha emudecida nas mãos do tosquiador, não abriu a sua boca (Is 53,7). As suas últimas palavras caem do alto da Cruz.Explicam-se no seu conjunto com o decurso do acontecimento, com o horrível suplício e ao mesmo tempo, por meio delas, apesar da sua brevidade e concisão, transparece o que é «divino» e «salvífico». Compreendemos o sentido «salvífico» das palavras dirigidas a sua Mãe, a João, ao bom ladrão, como também das palavras que se referiam•aos que o crucificaram. Perturbadoras são as últimas palavras dirigidas ao Pai: último eco e juntamente quase continuação da oração do Getsémani. Cristo diz: Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste (Mt 27,46), repetindo as palavras do Salmista (Cfr. Sl Ps 21,1). No Getsémani dissera: Se é possível, passe de mim este cálix (Mt 26,39). E agora, do alto da cruz, confirmou publicamente que o «cálix» não foi afastado, que tem de o beber até ao fundo. Tal é a vontade do Pai. De facto, o eco da oração do Getsémani é esta palavra: Tudo está consumado (Jn 19 Jn 30). E, por fim, esta só: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito (Lc 23,46).

A agonia de Cristo. Primeiro, a moral no Getsémani. Depois, a moral e física ao mesmo tempo, na Cruz. Ninguém, como Cristo, manifestou tão profundamente o tormento humano de morrer, exactamente porque era Filho de Deus; porque o «humano» e o «divino» constituíam n'Ele uma unidade misteriosa. Por isso, também aquelas palavras da paixão de Cristo, tão penetrantemente humanas, constituirão sempre uma revelação da «divindade» que em Cristo se ligou à humanidade, na plenitude da unidade pessoal. Pode-se dizer: era necessária a morte de Deus-Homem, para que nós, herdeiros do pecado original, víssemos o que é o drama da morte do homem.

Devemos, nesta Semana Santa, chegar a uma solidariedade particular com Cristo que sofre, que é crucificado e agoniza, para reencontrar na nossa vida a proximidade do que é «divino» e do que é «humano». Deus decidiu falar-nos com a linguagem do amor que é mais forte que a morte. Recebamos tal mensagem.

Saudações

Aos jovens

Dirijo-me agora, de modo especial, a vós rapazes e meninas, adolescentes e jovens, que vejo tão alegres e numerosos como sempre, nesta audiência:

Saúdo-vos com profundo afecto e agradeço a vossa presença, cheia de vida e entusiasmo. E ao mesmo tempo que a vós, desejo saudar os vossos pais e professores. Estamos na Semana Santa e meditamos a Paixão de Jesus, que terminará com a sua Ressurreição gloriosa: e por isso podemos também dizer que estamos na "Semana da Esperança". O mundo de hoje tem necessidade de esperança, encontra-se cada vez mais na dramática busca da "esperança que não engana". A vós pertence, caros jovens, serdes no mundo de hoje os mensageiros da verdadeira esperança que é Cristo. Diga cada um de vós a si mesmo: quero ser apóstolo da esperança. Com estes votos, cheguem até vós o meu augúrio mais afectuoso e a minha Bênção Apostólica.

Aos Doentinhos

Neste encontro da Semana Santa, quero sobretudo saudar os doentes e os que sofrem, os que estão nesta Praça e os que — todos muito queridos ao meu coração — vivem, em grande número e muitas vezes na solidão, sobre a face da terra. Para eles dirige o seu olhar Jesus que sofre, Jesus crucificado, para infundir conforto e coragem, para tornar preciosa a cruz deles, não só para que se purifiquem e santifiquem pessoalmente mas ainda para bem da Igreja e da humanidade atribulada. Isto; amados filhinhos, vos diz hoje o Papa, rezando por vós.

Aos jovens Casais

Um momento de especial e afectuosa "atenção desejo dirigir em seguida aos esposos aqui presentes. Obrigado por virdes ter com o Papa: é sinal de fé, e a fé vos acompanhe sempre a vós e às vossas famílias; porque a fé é presença de Deus, e Deus é a fonte da alegria, do amor e sobretudo daquelas virtudes que tornam e sempre tornarão sólida, segura e serena a vossa união.









AUDIÊNCIAS 1979