AUDIÊNCIAS 1979

Estavam ambos nus, tanto o homem como a mulher, mas não sentiam vergonha (Gn 2,25).

3. Em seguida, imediatamente depois destes versículos, começa Génesis 3, a narrativa da primeira queda do homem e da mulher, narrativa ligada com a árvore misteriosa, que já antes fora chamada árvore da ciência do bem e do mal (Gn 2,17). Cria-se com isto uma situação completamente nova, essencialmente diversa da precedente. A árvore da ciência do bem e do mal é uma linha de demarcação entre as duas situações originais, de que fala o Livro do Génesis. A primeira situação é de inocência original, em que o homem (macho e fêmea) se encontra quase fora da ciência do bem e do mal, até ao momento em que transgride a proibição do Criador e come o fruto da árvore da ciência. A segunda situação, pelo contrário, é aquela em que o homem, depois de transgredir o mandamento do Criador por sugestões do espírito maligno simbolizado pela serpente, se encontra, em certo modo, dentro do conhecimento do bem e do mal. Esta segunda situação determina o estado de pecaminosidade humana, contraposto ao estado de inocência primitiva.

Se bem que o texto javista seja no conjunto muito conciso, basta contudo para diferenciar e contrapor com clareza aquelas duas situações originais. Falamos aqui de situações, tendo diante dos olhos a narrativa que é descrição dos acontecimentos. Apesar de tudo, através desta descrição e de todas as suas particularidades, surge a diferença essencial entre o estado de pecaminosidade do homem e o da sua inocência original (3) . A teologia sistemática descobrirá nestas duas situações antitéticas dois estados diversos da natureza humana: status naturae integrae (estado de natureza íntegra) e status naturae lapsae (estado de natureza decaída). Tudo isto deriva daquele texto «javista» de Génesis 2 e 3, que encerra em si a mais antiga palavra da revelação, e tem evidentemente um significado fundamental quer para a teologia do homem quer para a teologia do corpo.

4. Quando Cristo, referindo-se ao «princípio», manda os seus interlocutores para as palavras escritas em Génesis 2, 24, ordena-lhes, em certo sentido, que ultrapassem o confim que, no texto javista do Génesis, se interpõe entre a primeira e a segunda situação do homem. Não aprova o que «por dureza do coração» Moisés permitiu, e refere-se às palavras da primeira ordem divina, que neste texto está expressamente ligada ao estado de inocência original do homem. Significa isto que tal ordem não perdeu o seu vigor, ainda que o homem tenha perdido a inocência primitiva. A resposta de Cristo é decisiva e sem equívocos. Por isso, devemos tirar dela as conclusões normativas, que têm significado essencial não só para a ética, mas sobretudo para a teologia do corpo, a qual, como um momento particular da antropologia teológica, se constitui sobre o fundamento da palavra de Deus que se revela como é. Procuraremos tirar essas conclusões durante o próximo encontro.

(1) Se na linguagem do racionalismo do século XIX, o termo «mito» indicava aquilo que não se encontra na realidade, o produto da imaginação (Wundt) ou o que é irracional (Lévy-Bruhl), o século XX modificou o conceito de mito.

L. Walk vê no mito a filosofia natural, primitiva e irracional; R. Otto considera-o instrumento de conhecimento religioso; enquanto para C. G. Jung, o mito é a manifestação dos arquétipos e a expressão do «incônscio colectivo», símbolo dos processos interiores.

M. Eliade descobre no mito a estrutura da realidade que é inacessível à investigação racional e empírica: o mito transforma de facto o acontecimento em categoria e torna uma pessoa capaz de atingir a realidade transcendente; não é apenas símbolo dos processos interiores (como afirma Jung), mas acto autónomo e criativo do espírito humano, mediante o qual se realiza a revelação (cfr. Traité d'histoire des religions, Paris 1949, pág. 363; Images et symboles, Paris 1952, págs. 199-235.

Segundo P. Tillich o mito é um símbolo, constituído por elementos da realidade, para apresentar o absoluto e a transcendência do ser, aos quais tende o acto religioso.

H. Schlier insiste em que o mito não conhece os factos históricos e não precisa deles, pois descreve o que é destino cósmico do homem que e sempre o mesmo.

Por fim, o mito tende a conhecer o que é incognoscível.

Segundo P. Ricoeur: «Le mythe est autre chose qu'une explication du monde, de l'histoire et de la destinée; il exprime, en terme de monde, voire d'outre-monde ou de second monde, la compréhesion que l'homme prend de lui-même par rapport au fondement et à la limite de son existence. (...) Il exprime dans un langage objectif le sens que l'homme prend de sa dépendance à 1'égard de cela qui se tient à la limite et à 1'origine de son monde» (P. RICOEUR, Le conflit des interprétations, Paris, Seuil, 1969, pág. 383).

«Le mythe adamique est par excellence le mythe anthropologique; Adam veut dire Homme; mais tout mythe de l'«homme primordial» n'est pas «myte adamique», qui ... est Seul proprement anthropologique; par là trois traits sont désignées:

— le myte étiologique rapporte l'origine du mal à un ancêtre de l'humanité actuelle dont la condition est homogène à la nôtre (...)

— le mythe étiologique est la tentative la plus extrême pour dédoubler 1'origine du mal et du bien. L'intention de ce mythe est de donner consistance à une origine radicale du mal distincte de 1'origine plus originaire de l'être-bon des choses. (...). Cette distinction du radical et d'originaire est essentielle au caractère anthropologique du mythe adamique; c'est elle qui fait de l'homme un commencement du mal au seuil d'une création qui a déjà son commencement absolu dans lacte créateur de Dieu.

— le mythe adamique subordonne à la figure centrale de l'homme primordial d'autres figures qui tendent à décentrer le récit, sans pourtant supprimer le primat de la figure adamique. (...)

Le mythe, en nommant Adam, l'homme, explicite l'universalité concrète du mal humain; l'esprit de pénitence se donne dans le mythe adamique le symbole de cette universalité. Nous retrouvons ainsi (...) la fonction universalisante du mythe. Mais en même temps nous retrouvons les deux autres fonctions, également suscitées par l'expérience pénitentielle (...). Le mythe proto-historique servit ainsi non seulement à généraliser 1'expérience d'Israël à l'humanité de tous les temps et de tous les lieux, mais à étendre à celle-ci la grande tension de la condamnation et de la miséricorde que les prophètes avaient enseigné à discerner dans le propre destin d'Israël.

Enfin, dernière fonction du mythe, motivée dans la foi d'Israël: le mythe prépare la spéculation en explorant le point de rupture de 1'ontologique et de 1'historique» (P. RICOEUR, Finitude et culpabilité: II. Symbolique du mal, Paris 1960, Aubier, págs. 218-227).

(2) Quanto à etimologia, não se exclui que o termo hebraico 'is derive duma raiz que significa «força» ('is ou 'ws); e 'issa está ligada a uma série de termos semitas, cujo significado oscila entre «fêmea» e «esposa».

A etimologia proposta pelo texto bíblico é de carácter popular e serve para insistir na unidade da proveniência do homem e da mulher; isto parece confirmado pela assonância de ambas as palavras.

(3) «A própria linguagem religiosa exige a transposição de 'imagens' ou, melhor, 'modalidades simbólicas', para 'modalidades conceituais' de expressão.

À primeira vista esta transposição pode parecer mudança puramente extrínseca (...). A linguagem simbólica parece inadequada para tomar o caminho do conceito por um motivo que é peculiar da cultura ocidental. Nesta cultura, a linguagem religiosa foi sempre condicionada por outra linguagem, a filosófica, que é a linguagem conceituai por excelência (...). Se é verdade que um vocabulário religioso é compreendido só numa comunidade que o interpreta e segundo uma tradição de interpretação, é também verdade que não existe tradição de interpretação que não tome como intermediário alguma concepção filosófica.

A palavra 'Deus', que nos textos bíblicos recebe o próprio significado da convergência de diversos modos do falar (narrativas e profecias, textos de legislação e literatura sapiencial, provérbios e hinos) — vista, esta convergência, seja como ponto de intersecção seja como horizonte a fugir de toda e qualquer forma—teve de ser absorvida no espaço conceitual, para ser reinterpretada nos termos do Absoluto filosófico, como primeiro motor, causa primeira, Actus Essendi, ser perfeito, etc. O nosso conceito de Deus pertence, por conseguinte, a uma onto-teologia, na qual se organiza toda a constelação das palavras-chaves da semântica teológica, mas numa moldura de significações ditadas pela metafísica» (PAUL RICOEUR, Ermeneutica bíblica, Brescia 1978, Morcelliana, págs. 140-141; título original: Biblical Hermeneutics, Montana 1975).

A questão sobre se a redução metafísica exprime realmente o conteúdo que a linguagem simbólica e metafórica esconde em si, é assunto à parte.

Saudações

A uma peregrinação mexicana

Saúdo cordialmente a peregrinação mexicana, organizada pelo programa radiofónico "Caminos de la luz".

Queridos irmãos e irmãs: agradeço-vos sinceramente esta visita que, como as outras dos vossos compatriotas, me trazem o eco fiel dos dias intensos de graça, vividos em terras mexicanas. Desejo exortar-vos hoje a prosseguir fomentando no vosso interior os mesmos sentimentos de Jesus Cristo (cfr. Flp Ph 2,5 ss.), a luz verdadeira que, vindo ao mundo, iluminou todos os homens (cfr. Jo Jn 1,9) e mostrou o caminho que conduz à vida, à morada do Pai (ibid. 14, 1-6).

Ao voltardes para junto das vossas famílias, levai a todos a saudação do Papa e uma bênção especial.

Aos novos alunos do Pontifício Colégio Mexicano

Dou também as minhas cordiais boas-vindas aos novos alunos do Pontifício Colégio Mexicano.

Caríssimos: Oxalá a vossa estadia em Roma, que tem por fim completar a vossa formação, seja sempre grata aos olhos do Senhor. Tende sempre presente que fostes eleitos, como seus ministros, para serdes mensageiros e testemunhas fidedignas da vida nova em Cristo ressuscitado.

A vós e aos vossos formadores. urna Bênção especial.

Aos peregrinos das Dioceses de Pádua e de Aosta

Apraz-me dirigir agora cordiais boas-vindas aos dois grupos de peregrinos provenientes de duas antigas Igrejas locais, as Dioceses de Pádua e de Aosta. Caríssimos filhos, a vossa presença afirma a vitalidade da vossa fé e do vosso compromisso cristão. Faço votos por que este encontro romano, no centro da cristandade, marque uma ulterior etapa no vosso caminho de fé, assinalada pelo amor a Cristo, pela fidelidade à Igreja e pela caridade para com os irmãos. Quando voltardes para casa, levai para as vossas famílias e para o vosso trabalho a força dos bons propósitos hauridos no Túmulo de Pedro e através da viva voz do seu Sucessor, que agora vos fala. Para vós a minha Bênção.

A um grupo de ucranianos

Seja louvado Jesus Cristo!

A vós, que viestes a Roma para venerar os Túmulos dos Apóstolos por ocasião do 40° aniversário de episcopado do vosso e Nosso querido e venerável Cardeal José Slipyj, e que vedes nesta Sé Apostólica um sinal da vossa união com o Vigário de Cristo, uma especial saudação. A Nossa paternal saudação é também dirigida às vossas famílias, aos vossos Bispos, Sacerdotes, Religiosos e Religiosas, assim como a todos os Ucranianos que estão na Pátria e na diáspora. Deus, por intercessão da Virgem Mãe de Deus, vos assista na vossa vida cristã.

Seja louvado Jesus Cristo!

A duas peregrinações de Doentes das Marcas e do Molise (Itália)

Uma saudação, como sempre cordial, vai esta tarde para duas peregrinações de doentes, acompanhados pela Associação UNITALSI das Marcas e pela Associação dos Pais de diminuídos físicos e mentais, do Molise. A vossa presença recorda-me de modo particular a minha recente visita a Loreto, onde, entre as primeiras intenções da minha oração inseri a necessidade espiritual e física de vós que sofreis. Abençoo com todos vós, aqueles que com tanto amor vos tratam, vos assistem e vos confortam.

Aos membros do Capítulo Geral dos Cooperadores paroquiais de Cristo Rei

E agora dirijo uma particular saudação aos membros do Capítulo Geral dos Cooperadores paroquiais de Cristo Rei. Sabei, caríssimos filhos, que o Papa aprecia o contributo que dais à vida e às actividades da paróquia, "célula da diocese", como recordou o Concílio, o qual salientou também que "ela oferece um luminoso exemplo de apostolado 'comunitário', fundindo todas as diferenças humanas que nela se encontram e inserindo-as na universalidade da Igreja" (cfr. Decr. Apostolicam Actuositatem AA 10).

Com a minha paternal Bênção Apostólica.

A uma peregrinação do Quénia

E agora a minha especial saudação à peregrinação organizada pelos Bispos do Quénia. Visitastes a terra que se tornou santa pelas vidas terrestres de nosso Senhor Jesus Cristo, da sua Mãe, e de muitos outros santos do Antigo e do Novo Testamento. Continuastes a vossa peregrinação vindo a Roma. São Lucas considerava a chegada de São Paulo a esta cidade um objectivo adequado para concluir a história do progresso da Igreja depois da ascensão de Jesus. A cidade devia ser santificada mais tarde velo martírio não só de São Paulo mas também de São Pedro, o primeiro dos apóstolos, a rocha sobre a qual Cristo construiu a sua Igreja.

Faço votos por que mediante esta peregrinação Deus vos conceda muitas graças para o espírito e o coração, graças que vos permitirão ser santos e levar a santidade a todo o vosso povo. Dou a minha bênção a vós, às vossas famílias, a todos aqueles que vos são queridos e a todo o vosso país.

Aos membros da Sociedade de São João

Sinto-me contente por saudar os membros da Sociedade de São João, fundada há 140 anos pelo célebre Padre Lacordaire com o fim de desenvolver a arte cristã. Encorajo-vos, queridos amigos, não só a fortalecerdes o laço fraternal e espiritual que vos une, mas também a dardes o vosso contributo para a promoção da arte sacra, a de ontem e a de hoje, a fazerdes que seja apreciada e a dar-lhe a devida honra, porque a arte sacra é sempre um caminho muito importante para lembrar o mistério cristão e levar as almas ao diálogo com Deus.

Abençoo-vos de todo o coração.

Aos participantes na IX Conferência internacional sobre a Automatização

Saúdo também os participantes na IX Conferência internacional sobre a Automatização, reunida para estudar os problemas inerentes à modernização da organização bancária. Deus vos ajude a realizar estes esforços como serviço à sociedade e abençoe as vossas famílias.

Aos Missionários da Sagrada Família

Dou especiais boas-vindas aos Missionários da Sagrada Família, aqui presentes, e que nestes dias se encontram reunidos num curso de renovação espiritual, e também aos alunos dos seminários de Francoforte, Mogúncia e Wulzburgo. Espero que este acontecimento impressionante, de ver a "Igreja de todo o mundo" aqui junto do Túmulo e da Cátedra de São Pedro, infunda gozo na vossa fé e na vossa vocação, e corrobore o vosso amor a Jesus Cristo e à sua Igreja.

Oxalá Cristo na sua bondade reforce a vossa vocação sacerdotal, a conserve e a conduza à perfeição, ao mesmo tempo que vos acompanha sempre a minha Bênção Apostólica.



Aos Jovens

Queridos rapazes e meninas! Chegue até vós, particularmente cordial e sentida, a minha saudação, a vós que vos debruçais para a vida, que estais cheios de vida, que esperais tudo da vida! Vós, de modo particular, estais presentes no meu afecto e na minha orarão. e eu exorto-vos a que vos mantenhais sempre unidos a Jesus! Ninguém pode apagar a presença de Jesus da história dos homens! Fazei de modo que Ele esteja sempre presente na vossa vida de cada dia com a sua graça, com a sua luz e com a sua consolação.

Por isto vos dou de todo o coração a minha Bênção.

Aos Doentes

Caríssimos Doentes! Dirijo a vós que sofreis com tanta paciência e resignação, a minha saudação reverente e afectuosa no Senhor!

Todos devemos confortar-nos com a presença de Cristo na história e na vida dos homens; mas especialmente vós que sofreis, e a quem tantas vezes faltam as consolações Jesus, o Verbo Encarnado, que quis sofrer e morrer na cruz, chagado, dessangrado, sedento, atormentado por pregos e espinhos, está sempre junto das vossas dores, recolhe as vossas lágrimas, escuta os vossos gemidos e assegura-vos que nenhum sofrimento se perde, se for unido ao seu amor e à sua obra redentora.

A presença contínua de Cristo em vós e convosco vos dê consolarão e serenidade, ao mesmo tempo que vos acompanha a minha Bênção.

Aos jovens Casais

Caríssimos jovens Casais! Também para vós reservo a minha saudação especial, unida às felicitações e, bons votos pela vossa nova vida!

É lógico que se dirijam aos jovens Casais bons votos de alegria imperecedoura no amor recíproco e na consecução dos comuns ideais que se propuseram.

Mas o segredo da vossa consolação está na presença de Cristo que vos uniu no matrimónio com a sua graça divina. Permanecei unidos em Cristo: eis os meus votos! A presença de Jesus, na vossa casa, no vosso amor, nas vossas escolhas, seja sempre a luz que vos ilumine e a consolação que vos alegre.

Com a minha Bênção e a minha constante benevolência.

Apelo

Desejo agora fazer-me, mais uma vez, intérprete da dor de uma família, atingida nos seus afectos mais queridos pela chaga, que alastra, dos sequestros de pessoa. Trata-se da família Casana, de Turim, à qual foram raptados há quase um mês, os dois filhos, Giorgio e Marina, respectivamente de 14 e 15 anos.

Como exprimir o desânimo e a execração perante este acto de violência sem nome que atinge, com determinação cruel, quem, devido à sua tenra idade, é mais frágil e inerme? Não terá ficado, no ânimo dos rapinadores, uma centelha de humanidade que os disponha a acolher este meu apelo à compreensão da ansiedade que dilacera o coração dos pais? Não posso consolar-me em pensar nisso, e por conseguinte, convido todos a que vos unais à minha oração, a fim de que o Senhor comova os responsáveis e os leve a restituir, quanto antes, os dois jovens, sãos e salvos, ao afecto da família.



JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA GERAL


Quarta-feira, 26 de Setembro de 1979

Relação entre a inocência original

e a redenção operada por Cristo




1. Cristo, respondendo à pergunta sobre a unidade e indissolubilidade do matrimónio, apelou para aquilo que sobre o tema do matrimónio foi escrito no Livro do Génesis. Nas nossas duas precedentes reflexões sujeitamos a uma análise tanto o chamado texto eloísta (Gn 1) como o javista (Gn 2). Desejamos hoje tirar dessas duas análises algumas conclusões.

Quando Cristo se refere ao «princípio», pede aos seus interlocutores que transponham, em certo sentido, o confim que, no Livro do Génesis, separa o estado de inocência original e o de pecaminosidade, iniciado pela queda original.

Simbolicamente pode-se ligar este confim com a árvore do conhecimento do bem e do mal, que no texto javista delimita duas situações diametralmente opostas: a situação de inocência original e a do pecado original. Estas situações têm dimensão própria no homem, no seu íntimo, no seu conhecimento, na sua consciência, escolha e decisão, tudo isto em relação com Deus Criador que no texto javista () é, ao mesmo tempo, o Deus da Aliança, da mais antiga aliança do Criador com a sua criatura, isto é, com o homem. A árvore do conhecimento do bem e do mal, como expressão e símbolo da aliança com Deus quebrada no coração do homem, delimita e contrapõe duas situações e dois estados diametralmente opostos: o da inocência original e o do pecado original, e ao mesmo tempo da pecaminosidade hereditária do homem que do último deriva. Todavia as palavras de Cristo, que se referem ao «princípio», permitem-nos encontrar no homem certa continuidade essencial e um laço entre estes dois estados diversos ou duas dimensões do ser humano. O estado de pecado faz parte do «homem histórico», tanto daquele a que se refere Mateus 19, isto é, do interlocutor de Cristo nessa altura, como também de qualquer outro interlocutor, potencial ou actual, de todos os tempos da história, e portanto, naturalmente, também do homem de hoje. Tal estado porém — o estado «histórico» precisamente — em qualquer homem sem nenhuma excepção, mergulha as raízes na sua própria «pré-história» teológica, que é o estado da inocência original. que é o original.

2. Não se trata aqui somente de dialéctica. As leis do conhecimento correspondem às do ser. E impossível compreender o estado de pecaminosidade «histórica» sem referência ou alusão (e Cristo de facto alude) ao estado de original (em certo sentido, «pré-histórica») e fundamental inocência. Surgir portanto a pecaminosidade como estado, como dimensão da existência humana, está desde os princípios em relação com esta real inocência do homem como estado original e fundamental, como dimensão do ser criado «à imagem de Deus». E assim acontece não só com o primeiro homem, macho e fêmea, como drámatis personae e protagonistas dos acontecimentos descritos no texto javista dos capítulos 2 e 3 do Génesis, mas também assim acontece com o inteiro percurso histórico da existência humana. O homem histórico está portanto, por assim dizer, radicado na sua pré-história teológica revelada; e por isso cada ponto da sua pecaminosidade histórica explica-se (tanto para a alma como para o corpo) com a referência à inocência original. Pode dizer-se que esta referência é «co-herança» do pecado, e precisamente do pecado original. Se este pecado significa, em todos os homens históricos, um estado de graça perdida, então ele comporta também uma referência àquela graça, que era precisamente a graça da inocência original.

3. Quando Cristo, segundo o capítulo 19 de Mateus, apela para o «princípio», com esta expressão não indica só o estado de inocência original como horizonte perdido da existência humana na história. As palavras, que Ele pronuncia mesmo com a sua boca, temos o direito de atribuir ao mesmo tempo toda a eloquência do mistério da redenção. De facto, já no mesmo texto javista de Génesis 2 e 3, somos testemunhas de o homem, macho e fêmea, depois de ter quebrado a aliança original que tinha com o seu Criador, receber a primeira promessa de redenção nas palavras do chamado Proto-evangelho em Génesis 3, 15 *, e começar a viver na perspectiva teológica da redenção. Assim portanto o homem «histórico» — quer o interlocutor de Cristo naquele tempo de que fala Mt. 19, quer o homem de hoje — participa desta perspectiva. Participa não só da história da pecaminosidade humana, como sujeito hereditário e ao mesmo tempo pessoal e não repetível desta história, mas participa igualmente da história da salvação, também agora como seu sujeito e concriador. Ele está portanto não só fechado, pela sua pecaminosidade, à inocência original, mas ao mesmo tempo aberto para o mistério da redenção, que se realizou em Cristo e por meio de Cristo. Paulo, autor da carta aos Romanos, exprime esta perspectiva da redenção em que vive o homem «histórico», quando escreve: ... também nós próprios, que possuímos as primícias do espírito, gememos igualmente em nós mesmos, aguardando ... a libertação do nosso corpo (Rm 8,23). Não podemos perder de vista esta perspectiva quando seguimos as palavras de Cristo que, na sua conversa sobre a indissolubilidade do matrimónio, recorre ao «princípio». Se aquele «princípio» indicasse só a criação do homem como «macho e fêmea», se— como já insinuamos — conduzisse os interlocutores só atravessando o confim do estado de pecado do homem até à inocência original, e não abrisse ao mesmo tempo a perspectiva duma «redenção do corpo» a resposta de Cristo não seria de facto entendida de modo exacto. Precisamente esta perspectiva da redenção do corpo assegura a continuidade e a unidade entre o estado hereditário do pecado do homem e a sua inocência original, se bem que esta inocência tenha sido historicamente perdida por ele, de modo irremediável. É também evidente ter Cristo o máximo direito de responder à pergunta que Lhe foi feita pelos doutores da Lei e da Aliança (como lemos em em Mc 10), na perspectiva da redenção sobre que se baseia a Aliança mesma.

4. Se no contexto substancialmente assim descrito pela teologia do homem-corpo, pensamos no método das análises seguintes a respeito da revelação do «princípio», em que é essencial a referência aos primeiros capítulos do Livro do Génesis, devemos logo dirigir a nossa atenção para um factor que é especialmente importante para a interpretação teológica: importante, pois consiste na relação entre revelação e experiência. Ao interpretarmos a revelação a respeito do homem, e sobretudo a respeito do corpo, temos por motivos compreensíveis de referir-nos à experiência, porque o homem-corpo é percebido por nós sobretudo na experiência. A luz das mencionadas considerações fundamentais, temos pleno direito de alimentar a convicção de esta nossa experiência «histórica» dever, em certo modo, fazer alto no limiar da inocência original do homem, porque relativamente a ele mantém-se inadequada. Todavia, à luz das mesmas considerações introdutórias, devemos chegar à convicção de a nossa experiência humana ser, neste caso, um meio dalgum modo legítimo para a interpretação teológica, e ser, em certo sentido, indispensável ponto de referência, para que devemos apelar na interpretação do «princípio». A análise mais particularizada do texto permitir-nos-á chegar a uma visão mais clara.

5. Parece que as palavras da carta aos Romanos 8, 23, que citámos, indicam do melhor modo a orientação das nossas investigações centradas na revelação daquele «princípio», a que se referiu Cristo na sua conversa sobre a indissolubilidade do matrimónio ( Mc. 10). Todas as análises seguintes, que a este propósito serão feitas com base nos primeiros capítulos do Génesis, reflectirão quase necessariamente a verdade das palavras paulinas: Nós próprios, que possuímos as primícias do espírito, gememos igualmente em nós mesmos, aguardando a libertação do nosso corpo. Se nos colocamos nesta posição — tão profundamente concorde com a experiência**— o «princípio» deve falar-nos com a grande riqueza de luz que provém da revelação, à qual deseja responder sobretudo a teologia. O prosseguimento das análises explicar-nos-á porquê e em que sentido deve esta teologia ser teologia do corpo.

* Já a tradução grega do Antigo Testamento, a dos Setenta, que remonta a cerca do século II a.C., interpreta Gén. 3, 15 no sentido messiânico, aplicando o pronome masculino autós referido ao substantivo neutro grego sperma (semen na Vulgata). A tradição judaica continua esta inter pretação.

A exegese cristã, a começar de Santo Ireneu (Adv. Haer. III, 23, 7), vê este texto como «proto-evangelho», que prenuncia a vitória sobre satanás, obtida por Jesus Cristo. Embora nos últimos séculos os especialistas em Sagrada Escritura tenham interpretado diversamente esta perícope e alguns tenham contestado a interpretação messiânica, nos últimos tempos está-se a voltar a esta sob um aspecto um pouco diverso. O autor javista une, de facto, a pré-história com a história de Israel, que atinge o seu vértice na dinastia messiânica de David, a qual levará ao cumprimento das pro messas de Gén. 3, 15 (cfr. 2S 7,12).

O Novo Testamento explicou o cumprimento da promessa na mesma perspectiva messiânica; Jesus é o Messias, descendente de David (Rm 1,3 2Tm 2,8), nascido de mulher (Ga 4,4), novo Adão-David (1Co 15). que deve reinar «até que ponha todos os inimigos debaixo dos pés» (1Co 15,25). E por fim Apoc. 12, 1-10 apresenta o cumprimento final da profecia de Gén. 3, 15, que embora não sendo anúncio claro e imediato de Jesus como Messias de Israel, leva todavia a Ele por meio da tradição real e messiânica que une o Antigo e o Novo Testamento.

** Falando aqui da relação entre a «experiência» e a «revelação», mais, duma surpreendente convergência entre elas, queremos só fazer notar que o homem, no seu actual estado do existir no corpo, experimenta múltiplos limites — sofrimentos, paixões, fraquezas e por fim até a morte —, os quais, ao mesmo tempo, referem este seu existir no corpo a outro estado diverso ou outra dimensão. Quando São Paulo escreve sobre a «redenção do corpo», fala com a linguagem da revelação; a experiência, na verdade, não é capaz de atingir este conteúdo, ou antes, esta realidade. Ao mesmo tempo, no total deste conteúdo, o autor de Rom. 8, 23 retoma tudo quanto, não só a ele mas também em certo modo a cada homem (independentemente da sua relação com a revelação), é oferecido através da experiência da existência humana, que é existência no corpo.

Temos portanto o direito de falar da relação entre a experiência e a revelação, mais, temos o direito de apresentar o problema da relação recíproca entre as duas, ainda que para muitos passe entre ambas uma linha de demarcação que é linha de antítese total e de antinomia radical. Esta linha, segundo julgam, deve sem mais ser traçada entre a fé e a ciência, entre a teologia e a filosofia. Ao formular este ponto de vista, são sobretudo tomados em consideração conceitos abstractos e não o homem como sujeito vivo.

Saudações

A vários grupos de Sacerdotes, Religiosos e Religiosas

E particularmente numerosa hoje a presença de Religiosos e Religiosas: estão os participantes no Capítulo geral dos Missionários de Mariannhill, os membros do Conselho geral extraordinário da Companhia de Maria (Monfortinos); os Superiores-Maiores da Sociedade do Apostolado Católico (Palotinos); os membros do Congresso internacional dos Fate-Bene-Fratelli — Hospitaleiros de São João de Deus; e ainda um grupo de missionários e missionárias de 24 Institutos diversos, reunidos para um Curso de renovação espiritual e cultural, e um de sacerdotes, religiosos e leigos, que participam num Curso de preparação para a missão em África.

Caríssimas filhas e filhos! Seria meu vivo desejo poder saudar-vos pessoalmente um a um, para exprimir a cada qual o meu apreço, testemunhar a minha confiança, dirigir uma palavra particular de encorajamento. Oxalá aquilo que a falta de tempo não permite, possa actuar-se perante Deus no encontro espiritual da oração, se torne fonte de conforto e estímulo quotidiano de uma doação cada vez mais plena a Cristo, à Igreja e às almas. Seja disso penhor a Bênção paternal que de coração vos concedo, e também aos vossos institutos e às pessoas confiadas à vossa solicitude pastoral.

A peregrinos da Diocese de Telese ou Cerreto Sannita

Saúdo com afecto paternal os numerosos peregrinos da Diocese de Telese ou Cerreto Sannita e também os numerosos do Centro Voluntário do Sofrimento da Região umbra.

Caríssimos filhos, estou-vos muito grato por esta visita e, sobretudo, pela caridade que anima a fé cristã, quer a vossa, Telesinos, que vos distinguis pelo apego às tradições religiosas da vossa terra, quer a vossa, Voluntários do Sofrimento, que sois os generosos e engenhosos realizadores do Mandamento novo (cfr. Jo Jn 13,34), o qual vos faz reconhecer o próprio Cristo na assistência alegre ao irmão doente. O Senhor vos abençoe e vos acompanhe sempre.

Aos sacerdotes e leigos pertencentes às comunidades neocatecumenais

Participa na Audiência de hoje um numeroso grupo de associados no Movimento, que se propõe ajudar os cristãos a redescobrirem a realidade do baptismo e a viverem, na alegria, a sua riqueza libertadora. Oxalá o vosso testemunho, em plena sintonia com os legítimos pastores, suscite em muitos irmãos o desejo e o compromisso de uma vida mais coerente com as exigências do baptismo e da sua inexaurível riqueza.

A minha Bênção Apostólica vos acompanhe.

A um grupo de monges e leigos budistas provenientes do Japão

Calorosas boas-vindas à Delegação japonesa de pessoas consagradas à religião, na maior parte representantes das veneráveis escolas tradicionais do Budismo: as escolas Zen, Pure Land, Shingon e Nichiten; e especialmente ao eminente Chefe do Rinzai Zen japonês.

Agradeço-vos terdes vindo à Europa para um intercâmbio Este-Oeste a nível espiritual. Faço votos por que o diálogo inter-religioso decorra a este nível básico.

Felicito aqueles dentre vós que viveram em pequenos grupos nos grandes mosteiros cristãos e tomaram parte na sua vida de oração e trabalho, durante três semanas. A experiência que fizestes é na verdade um acontecimento que marca época na história do diálogo inter-religioso. Espero que a vossa experiência vos tenha dado melhor compreensão daquilo que pode significar Cristo para o homem e uma visão mais profunda daquilo que significa Cristo quando fala de Deus, seu Pai.

Abençoo todos aqueles que se encontram no Japão e na Europa e, com os seus esforços, tornaram possível a realização deste projecto.

Rezo para que o Espírito inspire cada vez mais o diálogo inter-religioso no Japão, especialmente o diálogo a nível espiritual.

Aos peregrinos de língua inglesa

Desejo especiais boas-vindas aos sacerdotes das dioceses de Glasgow e Motherveil na Escócia que estão a concluir um curso de renovação em teologia, iniciado há um mês:

Guardai, generosa e ardentemente; o rebanho de Deus, é esta a vossa missão, sendo exemplos para o rebanho. E quando o Pastor supremo se manifestar, vós obtereis a inalterável coroa de glória.

Saúdo também os novos estudantes do Colégio Norte-Americano e do Veneráel Colégio Inglês aqui em Roma, os estudantes do Colégio Mount Carmel em Bangalore, Índia, os membros do "Women's International Club" em Jacarta, Indonésia, a peregrinação dos Eparcas icranianos de Toronto, Canadá, e os de Saint Joseph's Paris em Limerick, Irlanda onde espero celebrar a Missa na próxima segunda-feira. Invoco para cada um de vós e para os outros visitantes aqui presentes as mais abundantes graças do Senhor.

Ao grupo de peregrinos do "Kirchenzeitung für das Erzbistum Köln"

Saúdo cordialmente o grande grupo de peregrinos do "Kirchenzeitung für das Erzbistum Köln". Com esta viagem anual à Cidade Eterna, continuais uma tradição que já conta 20 anos. Exprime visivelmente a vossa união de fé com o Sucessor de São Pedro, o qual, por seu lado, vos fortifica e anima na vossa fé. Permanecei fiéis a Cristo e à sua Igreja Santa. Recomendando a minha próxima viagem apostólica, também e de modo especial, às vossas orações, concedo de coração a vós e às vossas famílias que ficaram na pátria, a Bênção Apostólica.

Aos jovens

Caríssimos jovens!
Queridos rapazes e meninas!

Saúdo-vos com grande simpatia e afecto, e para cada um de vós formulo os meus mais sentidos bons votos!

Iniciou-se o novo ano escolar e eu desejo-vos todo o bem e toda a mais bela consolação. Ao voltardes às vossas aulas e tornardes a ver os vossos Professores e os vossos condiscípulos, transmiti-lhes a saudação do Papa e dizei-lhes que Ele recorda todos com amor e reza por todos.

Começam de novo as vossas obrigações de escola: pois bem, estai contentes por ocupardes, também vós, com diligência, o vosso tempo. Levai convosco para a escola a bondade, a seriedade do estudo, o sentido da disciplina e do dever. Deste modo, o tempo da escola tornar-se-á também agradável, e produzirá frutos de alegria e de satisfação.

A minha Bênção vos ajude.

Aos Doentes

Caríssimos Doentes!

Chegue até vós, particularmente cordial e afectuosa, a saudação do Papa que vos recorda sempre, vos tem presente na oração e vos agradece tudo o que fazeis e ofereceis ao Senhor por Ele e pela sua Missão!

Claro que deveis sempre esperar a vossa cura, e fazer uso de todos os recursos da medicina e da farmacologia para restituírem saúde ao corpo e alívio ao espírito. Mas, quando a doença infelizmente continua a atormentar o coroo, olhemos para o Crucifixo! Visto efectivamente Deus ter querido salvar a humanidade mediante o sofrimento, empenhai-vos também vós em sofrer pela salvação do mundo!

Maria Santíssima, a Mãe das Dores, a Rainha dos Mártires, vos assista sempre e vos dê a coragem necessária! E a minha Bênção vos acompanhe e conforte.

Aos jovens Casais

Caríssimos jovens Casais!

Também a vós, que iniciastes nova vida, cheguem a minha saudação e os mais sentidos bons votos!
Vós fostes os "ministros" do vosso Matrimónio; e por conseguinte a "graça sacramental" de Cristo, que torna sagrada e perene a vossa união, recebeste-la através da vossa própria vontade de amor e de consagração recíproca.

A dignidade do matrimónio é imensa! Por isso, permanecei no amor de Cristo!

Recordai-vos do que disse Jesus: "Eu sou a videira, vós as varas! Quem está em Mim e Eu nele, esse dá muito fruto... Nisto é glorificado o meu Pai: Dando vós muito fruto!" (cfr. Jo Jo Jn 15). Levai frutos de bondade, de caridade, de santificação: seja este o vosso compromisso de vida conjugal. A minha Bênção propiciadora vos ajude.

                                                                                  Outubro de 1979


AUDIÊNCIAS 1979