AUDIÊNCIAS 1979

JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA GERAL


Quarta-feira, 24 de Outubro de 1979

A solidão original do homem

e a sua consciência de ser pessoa




1. Na reflexão precedente, começamos a analisar o significado da solidão original do homem. A sugestão foi-nos dada pelo texto javista, e em particular pelas seguintes palavras: Não é conveniente que o homem esteja só: vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele (Gn 2,18 Gn 2,2). A análise das relativas passagens do Livro do Génesis (cap. 2) levou-nos já a conclusões surpreendentes que dizem respeito à antropologia, isto é à ciência fundamental acerca do homem, contida neste Livro. De facto, relativamente em poucas frases, o antigo texto delineia o homem como pessoa com a subjectividade que a caracteriza.

Quando Deus-Javé dá a este primeiro homem, assim formado, a ordem que diz respeito a todas as árvores que crescem no «jardim do Éden», sobretudo a do conhecimento do bem e do mal, aos delineamentos do homem, acima descritos, junta-se o momento da opção e da autodeterminação, isto é da vontade livre. Deste modo, a imagem do homem, como pessoa dotada de urna subjectividade própria, aparece diante de nós como acabada no seu primeiro esboço.

No conceito de solidão original está incluída quer a auto-consciência, quer a autodeterminação. O facto de o homem estar «só» encerra em si tal estrutura ontológica e ao mesmo tempo é um índice de autêntica compreensão. Sem isto, não podemos compreender correctamente as palavras seguintes, que constituem o prelúdio da criação da primeira mulher: «vou dar-lhe uma auxiliar». Mas, sobretudo, sem aquele significado tão profundo da solidão original do homem, não pode ser compreendida nem correctamente interpretada a situação completa do homem criado «à imagem de Deus», que é a situação da primeira, ou melhor da primitiva Aliança com Deus.

2. Este homem, de quem a narração do capítulo primeiro diz que foi criado «à imagem de Deus», manifesta-se, na segunda narração, como sujeito da Aliança, isto é, sujeito constituído como pessoa, constituído à altura de «companheiro do Absoluto», dado dever discernir e escolher conscientemente entre o bem e o mal, entre a vida e a morte. As palavras da primeira ordem de Deus-Javé (Gn 2,16-17) que se referem directamente à submissão e à dependência do homem-criatura do seu Criador, revelam de modo indirecto precisamente tal nível de humanidade, como sujeito da Aliança e «companheiro do Absoluto». O homem está «só»: isto quer dizer que ele, através da própria humanidade, através daquilo que ele é, é ao mesmo tempo constituído numa única, exclusiva e irrepetível relação com o próprio Deus. A definição antropológica contida no texto javista aproxima-se, por seu lado, daquilo que exprime a definição teológica do homem, que encontramos na primeira narração da criação («Façamos o homem à Nossa imagem, à Nossa semelhança» (Gn 1,26).

3. O homem, assim formado, pertence ao mundo visível, é corpo entre os corpos. Retomando e, de certo modo, reconstruindo o significado da solidão original, aplicamo-lo ao homem na sua totalidade. O corpo, mediante o qual o homem participa no mundo criado visível, torna-o ao mesmo tempo consciente de estar «só». De outro modo não teria sido capaz de chegar àquela convicção, a que, efectivamente, como lemos, chegou (Cfr. Gén Gn 2,20), se o seu corpo o não tivesse ajudado a compreendê-lo, tornando o facto evidente. A consciência da solidão poderia ter enfraquecido, precisamente por causa do seu próprio corpo. O homem, 'adam, teria podido, baseando-se na experiência do próprio corpo, chegar à conclusão de ser substancialmente semelhante aos outros seres vivos (animalia). E afinal, como lemos, não chegou a esta conclusão, pelo contrário chegou à persuasão de estar «só». O texto javista não fala nunca directamente do corpo; até mesmo quando diz que «o Senhor Deus formou o homem do pó da terra», fala do homem e não do corpo. Apesar disto, a narração tomada no seu conjunto oferece-nos bases suficientes para perceber este homem, criado no mundo visível, exactamente como corpo entre os corpos.

A análise do texto javista permite-nos também relacionar a solidão original do homem com a consciência do corpo, mediante o qual o homem se distingue de todos os animalia e «se separa» deles, e também mediante o qual ele é pessoa. Pode-se afirmar com certeza que aquele homem assim formado tem contemporaneamente o conhecimento e a consciência do sentido do próprio corpo. E isto baseado na experiência da solidão original.

4. Tudo isto pode ser considerado como implicação da segunda narração da criação do homem, e a análise do texto permite-nos um amplo desenvolvimento.

Quando no início do texto javista, ainda antes de se falar da criação do homem do «pó da terra», lemos que «ninguém cultivava a terra e fazia jorrar da terra a água dos canais para regar o solo» (Gn 2,5-6 Gn 2,6) , associamos justamente este trecho ao da primeira narração, em que está expressa a ordem divina: enchei e dominai a terra (Gn 1,28). A segunda narração alude de modo explícito ao trabalho que o homem realiza para cultivar a terra. O primeiro meio fundamental para dominar a terra encontra-se no próprio homem.

O homem pode dominar a terra porque só ele — e nenhum outro ser vivo — é capaz de «cultivá-la» e transformá-la segundo as próprias necessidades («fazia jorrar da terra a água dos canais para regar o solo»). E então, este primeiro esboço de uma actividade especificamente humana parece fazer parte da definição do homem, tal como emerge da análise do texto javista. Por conseguinte, pode-se afirmar que tal esboço é intrínseco ao significado da solidão original e pertence àquela dimensão de solidão através da qual o homem, que desde o início, está no mundo visível como corpo entre os corpos, descobre o sentido da própria corporalidade.

Sobre este assunto voltaremos na próxima reflexão.

Saudações

A um grupo de Superiores regionais da "Sociáté des Missions Etrangères de Paris"

Tenho o prazer de saudar de modo particular o Superior-Geral e os Superiores regionais da Sociedade das Missões Estrangeiras de Paris. Acabámos de celebrar o Dia das Missões: vós sois, queridos amigos, a imagem viva do apostolado missionário. Muitos dos vossos irmãos de hábito abandonaram o próprio país natal para consagrar toda a vida, e por vezes até ao martírio, à propagação do Evangelho e à implantação da Igreja nos países da Ásia, sobretudo do Extremo Oriente, e agora noutros continentes. Graças a Institutos como o vosso, foi possível surgirem Pastores autóctones que tomaram a responsabilidade das suas comunidades. Mas não nos esqueçamos que muitos precisam sempre de uma ajuda fraternal e que o zelo missionário da Igreja não deve diminuir, ainda que, infelizmente, lhe sejam hoje inacessíveis alguns campos de apostolado. Vae enim mihi est, si non evangelizavero — Ai de mim se não evangelizar (1Co 9,16). Contribuí para que se mantenha este espírito, e continuai a servir onde quer que sejais chamados. Abençoo de todo o coração todos os vossos missionários.

Aos organizadores da `"Iniciativa da Estafeta internacional" para o desarmamento

Saúdo também os organizadores da "Iniciativa da Estafeta internacional". Encontrastes nela um meio para levar as populações da Europa a compreenderem a necessidade de afastar a ameaça dos armamentos de destruição em massa, e estais prontos a tornar conhecidas aos representantes dos povos as mensagens que dela derivam. O vosso contributo dá um testemunho suplementar dos homens de boa vontade. Quem poderia deixar de concordar com o grito de alarme que se levanta de todas as partes a este propósito? Bem-aventurados os que promovem a paz!

A um grupo de doentes provenientes da Inglaterra

Especiais boas-vindas a um grupo proveniente da Inglaterra: os peregrinos doentes e diminuídos mentais que vieram a Roma com o "Across Trust". Estou muito contente por vos ter sido possível estardes presente hoje aqui, e rezarei por vós e pelos vossos familiares que se encontram em casa. Recomendo-vos todos a protecção da nossa Bendita Mãe Maria.

Aos Superiores e aos Alunos do Colégio Pio Latino-Americano

Vá agora a minha saudação para os Superiores e Alunos do Pontifício Colégio Pio Latino-Americano, presentes nesta Audiência e acompanhados pelos Membros da Comissão Episcopal nomeada pela Santa Sé, que faz a sua visita ordinária.

Sinto grande alegria em receber-vos hoje, queridos Irmãos e Filhos, que formais a actual família de uma Instituição que já conta 120 anos de história.

Aproveitai bem a vossa permanência em Roma para vos formardes solidamente nas ciências sagradas e humanas. Enchei os vossos espíritos de profundo sentido sobrenatural acerca do valor da vossa vida consagrada ao serviço das almas. Deste modo implantareis fundamentos firmes para o vosso futuro ministério.

Transmito-vos a minha mais íntima palavra de coragem, a vós, Bispos, que representais perante o Colégio todo o Episcopado Latino-Americano, a fim de atenderdes com particular esmero e diligência, a esta importante e delicada tarefa.

Asseguro-vos, por fim, que peço ao Senhor por toda a grande família do Colégio e dou-lhe com afecto a minha especial Bênção.

Aos participantes na Assembleia extraordinária da categoria dos ascensoristas

Uma especial saudação também para o numerosíssimo grupo de ascensoristas, que participam nestes dias em Roma na Assembleia extraordinária da sua benemérita categoria.

Peço ao Senhor que vos conceda a graça da fidelidade e da perseverança no vosso compromisso humano e cristão a fim de que os bons propósitos inpirados por este encontro com o humilde Sucessor de Pedro deixem um sulcro profundo na vossa vida, para edificação das vossas famílias e de todos aqueles que encontrareis no âmbito do vosso trabalho. A todos vós a minha Bênção.

A um grupo de peregrinos de Fidenza (Itália)

Uma cordial saudação dirijo agora à numerosa peregrinação da Diocese de Fidenza, acompanhada pelo seu Bispo, D. Mario Zanchin, e exprimo a todos os participantes a minha sincera satisfação por este encontro, que assume o significado de um fervoroso testemunho de fé em Cristo e de afecto filial para com o sucessor de Pedro. Não posso deixar de vos repetir, caríssimos irmãos e irmãs, o meu mais forte encorajamento por tudo aquilo que fazeis de bom, de caritativo e de exemplar; desejo-vos que o compromisso de testemunho cristão seja contínuo e cada vez maior, e seja sempre fonte de verdadeira alegria e de paz operosa.

Aos Assistentes Paroquiais da Acção Católica Italiana

Saúdo de todo o coração o grupo dos Assistentes Paroquiais da Acção Católica Italiana, reunidos nestes dias em Roma para um congresso subordinado ao tema: "O itinerário de espiritualidade do adulto hoje".

O assunto é certamente muito importante, e eu encorajo-vos cordialmente a estudá-lo como convém, desejando de coração que o Senhor vos ajude no vosso precioso ministério, a fim de que, como disse São Paulo, "sejais poderosamente fortalecidos pelo Seu Espírito quanto ao crescimento do homem interior" (El. 3, 16).

E a minha Bênção Apostólica seja para vós louvor e estímulo.

Aos alunos do Distrito escolar de Chiusi-Pienza e Montepulciano (Itália)

Estão presentes na Audiência mais de dois mil rapazes e meninas dos Distritos escolares de Chiusi-Pienza e Monteoulciano, juntamente com o seu Bispo D. Alberto Giglioli, e muitos pais. Sois verdadeiramente tantos e, com certeza, todos felizes por terdes vindo a Roma e ao Papa, acompanhados por aqueles que vos querem bem. Tomastes verdadeiramente a sério o "Ano da Criança", empenhastes-vos de tantos modos para ajudar as crianças que sofrem e quisestes concluir aqui comigo as vossas iniciativas.

Agradeço de coração, a vós e aos vossos Superiores e Pais, esta actividade tão benemérita, e exorto-vos, queridos rapazes e meninas, a sempre vos manterdes assim, bons, generosos, sinceros, estudiosos, para consolação dos vossos pais e professores, para o bem da sociedade, para a edificação espiritual das Dioceses de que provindes, e para a vossa própria alegria interior de autênticos amigos de Jesus.

O meu afecto vos acompanhe sempre com a minha particular Bênção.

Às ex-Alunas do Instituto do Sagrado Coração

Uma afectuosa palavra de saudação, de encorajamento e de felicitações dirijo ao numeroso grupo das ex-Alunas do Instituto do Sagrado Coração, que se encontram em Roma para um congresso sobre o tema: "A oração".

Desejo dizer-vos, caríssimas irmãs, quanto aprecio esta vossa iniciativa espiritual, e — segundo o desejo que vós próprias manifestastes — deixo-vos, como recordação deste nosso encontro, um pensamento muito breve de Santo Agostinho sobre a oração: "Qui vult audiri a Deo, prius audiat Deum" ("Quem quer ser ouvido por Deus, oiça primeiro a Deus" - Serm. XVII, 4): Sim! Ouvi com docilidade a Deus que fala na Sagrada Escritura; que nos guia através do ensinamento e das directrizes da Igreja e dos seus Pastores; escutai a Deus, que se faz ouvir no silêncio misterioso da vossa consciência, rectamente iluminada.

A todas vós e a todos os. Que vos são queridos a minha Bênção Apostólica.

A dois grupos de Peregrinos de língua alemã

Dirijo uma especial saudação de boas-vindas ao numeroso grupo de peregrinos da Diocese de Limburg.Mediante a vossa peregrinação ao túmulo dos Apóstolos, revigora-se de maneira solene a vossa fé em Cristo e a consciência de pertencerdes à santa Igreja. Do mesmo modo que Cristo enviou os seus Apóstolos como mensageiros da fé, também vós sois chamados a ser testemunhas: na família, no trabalho, nas vossas comunidades. Voltai para a vossa pátria conscientes de Cristo, que hoje vos envia, permanecer sempre ao vosso lado, vos confortar e proteger. Permanecei também vós inabalavelmente fiéis a Ele!

Saúdo a seguir com singular satisfação o grupo de peregrinos do "Sindicato patronal católico de Electricistas" (Katholischen Arbeitgeberverbandes für Elektroberufe). A vossa actividade proporciona a muitos homens luz e calor. Em espírito de responsabilidade e solidariedade cristãs, esforçai-vos por alargar sempre essa responsabilidade e solidariedade entre os vossos empregados e colaboradores. Desejaria que este encontro com os lugares célebres da cidade de Roma e com o supremo Pastor da Igreja iluminasse a vossa vida e as vossas obras, como cristãos, com a graça de Deus, e fortalecesse a vossa fé.

Concedo-vos, pois, de coração, e a todos os peregrinos presentes, a Bênção Apostólica.

Aos jovens

Desejamos dirigir agora uma palavra a vós, jovens, alegria e primavera deste encontro. Não é uma imagem gasta que usamos; porque, como a primavera, sentis verdadeiramente em vós o tumulto da vida, e a alegria de a viver. Pois bem, dai lugar, no desdobrar-se da actividade de cada dia, ao autor das coisas, à fonte de todos os dons, à luz de toda a inteligência: a Jesus.

Aos doentes

Perante Deus, Ser dos seres, somos todos pobres doentes, necessitados da sua paterna misericórdia. Mas vós, por seu imperscrutável desígnio, participais mais de perto nesta misteriosa sorte.

E sois mais semelhantes a Cristo, que, embora sendo o Filho de Deus, provou o sofrimento: não da doença, mas da Paixão e da Morte.

Deus vos assista, vos ajude e vos console com a fé certíssima de que o vosso sofrimento é fecundo para a Igreja, e será transformado na mais pura alegria, hoje e na eternidade.

Aos jovens Casais

Aos jovens Casais, além de desejar todo o bem d'Aquele que instituiu a Matrimónio, quereríamos recordar as palavras do Apóstolo São Paulo aos Efésios (5, 22 ss.), o qual compara o Esposo com Cristo, a Esposa com a Igreja. E como Cristo morreu pela Igreja, e esta não tem outro desejo senão agradar-lhe e servi-lo, assim deveis fazer também vós. O pensamento da vossa recíproca dignidade será fonte de profundo respeito, de firmeza, de amor e de toda a ditosa consolação.



JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA GERAL


Quarta-feira, 31 de Outubro de 1979

Na própria definição do homem está a alternativa

entre a morte e imortalidade




1. Convém voltarmos ainda hoje ao significado da solidão original do homem, que se patenteia sobretudo na análise do chamado texto javista de Génesis 2. Permite-nos o texto bíblico, como já verificamos nas precedentes reflexões, pôr em relevo não só a consciência do corpo humano (o homem é criado no mundo visível como «corpo entre os corpos»), mas também a do seu significado próprio.

Tendo em conta a grande concisão do texto bíblico, não se pode, sem mais, ampliar muito este encadeamento. É porém certo que tocamos aqui o problema central da antropologia. A consciência do corpo parece identificar-se neste caso com o descobrimento da complexidade da própria estrutura que, baseada numa antropologia filosófica, consiste afinal na relação entre a alma e o corpo. A narrativa javista com a própria linguagem (isto é, com a sua própria terminologia) exprime-o dizendo: O Senhor Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida, e o homem transformou-se num ser vivo*. E precisamente este homem, «ser vivo», distingue-se em seguida de todos os outros seres vivos do mundo visível. O que leva a concluir a existência deste «distinguir-se» do homem, é exactamente o facto de só ele ser capaz de «cultivar a terra» (Cfr. Gén Gn 2,5) e de «a dominar» (Cfr. Gén Gn 1,28). Pode dizer-se que a consciência da «superioridade», inscrita na definição de humanidade, nasce desde o princípio baseada num actuar ou comportar-se tipicamente humano. Esta consciência traz consigo especial percepção do significado do corpo em si, percepção que resulta de tocar ao homem «cultivar a terra» e «dominá-la». Tudo isto seria impossível sem uma intuição tipicamente humana do significado do corpo em si.

2. Parece pois necessário falar antes de tudo deste aspecto, deixando para depois o problema da complexidade antropológica em sentido metafísico. Se a descrição original da consciência humana, indicada pelo texto javista, compreende, no conjunto da narrativa, também o corpo, se ela encerra quase o primeiro testemunho do descobrimento da própria corporeidade (e mesmo, como foi dito, a percepção do significado do próprio corpo), tudo isto se revela não com base numa concreta subjectividade do homem que seja bastante clara. O homem é um sujeito não só para a sua autoconsciência e autodeterminação, mas também com base no próprio corpo. A estrutura deste corpo é tal que lhe permite ser o autor duma actividade verdadeiramente humana. Nesta actividade o corpo exprime a pessoa. Ele é portanto, em toda a sua materialidade («formou o homem do terra»), quase penetrável e transparente, de maneira que evidencia quem é o homem (e quem deveria ser) graças à estrutura da sua consciência e da sua autodeterminação. Nisto se apoia a percepção fundamental do significado do corpo em si, que não se pode deixar de descobrir ao analisar a solidão original do homem.

3. Ora, com tal compreensão fundamental do significado do próprio corpo, o homem, como sujeito da antiga Aliança com o Criador, é colocado diante do mistério da árvore do conhecimento. Podes comer do fruto de todas as árvores do jardim, mas não comas o da árvore da ciência do bem e do mal, porque no dia em que o comeres, certamente morrerás (Gn 2,16-17). O significado original da solidão do homem baseia-se em experimentar a existência, existência que ele obteve do Criador. Tal existência humana caracteriza-se precisamente pela subjectividade, que também inclui o significado do corpo. Mas o homem, que na sua consciência original conhece apenas a experiência do existir e portanto da vida, poderia ele compreender o que significou a palavra «morrerás»? Seria capaz de chegar a compreender o sentido desta palavra através da estrutura complexa da vida, que lhe foi dada quando «O Senhor Deus ... lhe insuflou pelas narinas o sopro da vida ...»? É necessário admitir que esta palavra, completamente nova, apareceu no horizonte da consciência do homem antes que ele lhe tivesse nunca experimentado a realidade, e que ao mesmo tempo esta palavra apareceu diante dele como radical antítese de tudo aquilo de que o homem fora dotado.

O homem ouviu pela primeira vez a palavra «morrerás», sem ter com ela qualquer familiaridade na experiência feita até então; mas, por outro lado, não podia deixar de associar o significado da morte àquela dimensão de vida de que tinha gozado até esse momento. As palavras de Deus-Javé dirigidas ao homem confirmavam uma dependência no existir, tal que fez do homem um ser limitado e, por sua natureza, susceptível de não-existência. Estas palavras sugeriram o problema da morte de maneira condicional: «No dia em que o comeres ... morrerás». O homem, que ouvira tais palavras, devia encontrar-lhes a verdade na mesma estrutura interior da própria solidão. E, afinal, dependia dele, da sua decisão e livre escolha, se entraria também com a sua solidão no círculo da antítese que lhe revelara o Criador, juntamente com a árvore do conhecimento do bem e do mal, e assim tornaria própria a experiência do morrer e da morte. Ouvindo as palavras de Deus-Javé, deveria o homem compreender que a árvore do conhecimento lançara raízes não só no «jardim do Éden», mas também na sua humanidade. Ele, além disso, deveria compreender que aquela árvore misteriosa escondia em si uma dimensão de solidão, até essa altura desconhecida, da qual o Criador o tinha dotado no âmbito do mundo dos seres vivos, aos quais ele, o homem — diante do Criador mesmo —, tinha «designado com nomes», para chegar a compreender que nenhum deles lhe era semelhante.

4. Quando pois o significado fundamental do seu corpo já se encontrava estabelecido graças à distinção que o separava do resto das criaturas, quando por isso mesmo se tornara evidente que o «invisível» determina o homem mais que o «visível», então apresentou-se diante dele a alternativa, íntima e directamente ligada por Deus-Javé à árvore do conhecimento do bem e do mal. A alternativa entre a morte e a imortalidade, que deriva de Gén. 2, 17, ultrapassa o significado essencial do corpo do homem, pois inclui o significado escatológico não só do corpo, mas da humanidade mesma, distinta de todos os seres vivos, dos «corpos». Esta alternativa refere-se contudo de modo particularíssimo ao corpo criado do «pó da terra».

Para não prolongar mais esta análise, limitamo-nos a verificar que a alternativa entre a morte e a imortalidade entra, desde o princípio, na definição do homem e que pertence «desde o princípio» ao significado da sua solidão diante do próprio Deus. Este significado de solidão, impregnado pela alternativa entre morte e imortalidade, tem ainda um significado fundamental para toda a teologia do corpo.

Com esta verificação concluímos por agora as nossas reflexões sobre o significado da solidão original do homem. Tal verificação, que deriva de modo claro e impressionante dos textos do Livro do Génesis, leva também a reflectir tanto sobre os textos como sobre o homem, que tem provavelmente consciência demasiado débil da verdade que lhe diz respeito e se encontra já expressa nos primeiros capítulos da Bíblia.
* * *


* A antropologia bíblica distingue no homem não tanto «o corpo» e «a alma» quanto «corpo» e «vida». O autor bíblico apresenta aqui a entrega do dom da vida mediante o «sopro», que não deixa de ser propriedade de Deus: quando Deus o tira, o homem volta ao pó, do qual foi feito (cfr. Job Jb 34,14-15 Ps 104,29 s. ).

Saudações

Aos sacerdotes de Santa Rosa de Osos (Colômbia)

Saúdo com profundo afecto os sacerdotes de Santa Rosa de Osos, que vieram acompanhar o seu Bispo a Roma por ocasião da visita "ad limina".

Nas vossas pessoas saúdo todos os irmãos sacerdotes da vossa querida Diocese. Sede constantes na vossa missão pastoral de conduzir os fiéis por caminhos de autêntica fé, de esperança renovada e de caridade solidária. A todos dou de coração uma especial Bênção.

Aos peregrinos da diocese de Nardò (Itália)

Desejo também dirigir uma afectuosa saudação aos numerosos peregrinos da diocese de Nardò, que, sob a direcção do seu Bispo, D. António Rosario Mennonna, pretendem iniciar aqui, em Roma, junto do Papa, o ano mariano diocesano para maior incremento da vida espiritual da comunidade e para a santificação das almas.

Exprimo-vos o meu vivo apreço por esta iniciativa, que envolve todas as forças melhores da vossa comunidade. Sede interiormente dóceis às sugestões maternais que Maria Santíssima não deixará de vos inspirar neste período, a fim de poderdes testemunhar, perante o mundo, a vossa fé, que se concretize na adesão alegre e total às exigências morais da mensagem de Jesus; a vossa caridade generosa e operosa para com todos aqueles que se encontram em necessidade; e a vossa constante esperança no Senhor nosso Jesus Cristo (cfr. 1Th 1,2 s.).

Com estes votos invoco sobre todos, sobre o vosso Pastor e sobre os Presidentes das Câmaras das administrações municipais da diocese, a abundância das graças do Senhor e concedo-vos, de coração, a minha Bênção Apostólica.

A vários grupos de língua alemã

Saúdo também de maneira especial a grande peregrinação diocesana de Hildesheim, presidida pelo Bispo Auxiliar D. Henrich Pachowiak; saúdo também os peregrinos das Dioceses de Mainz, Limburg e Fulda, assim como os leitores, aqui presentes, da revista familiar "Leben und Erziehen" (Viver e educar).

A vossa peregrinação a Roma e a vossa oração junto do túmulo dos Apóstolos e dos santos, têm por objectivo não só a recordação venerável de defuntos que um dia fizeram grandes coisas por Cristo e pela Igreja, mas dirigem-se, antes de tudo, a irmãos na fé, insignes e exemplares, que hoje vivem na glória e na contemplação beatífica de Deus. A vossa peregrinação é solene confissão da Comunhão dos Santos, que não é algo passado, mas um presente vivo. A Festividade de amanhã, festividade de Todos os Santos, recorda-nos isto mais uma vez. Deus, que é um Deus de vivos, vos encha com o desejo forte de atingir o alto ideal da santidade, graças ao qual também a nossa vida deve encontrar um dia n'Ele a sua total plenitude. E o que vos desejo de coração a todos com a minha Bênção Apostólica.

Aos jovens

Uma saudação particularmente afectuosa para todos os jovens, que também hoje aqui vieram numerosos alegrar esta Audiência geral. Caríssimos, agradeço-vos de coração esta vossa significativa presença, sinal de doação a Cristo, e de comunhão com o seu Vigário na terra. As generosas aspirações do vosso ânimo proporcionam-me sempre muita alegria. Celebrando a Igreja, amanhã, a festa de Todos os Santos, convido-vos, queridos jovens, a dirigir o vosso pensamento para as realidades indefectíveis, razão da nossa esperança, e a tirar exemplo e conforto de quem seguiu o Senhor com adesão heróica, e quer agora ajudar-nos a percorrer com coragem a mesma estrada de salvação. A todos concedo uma especial Bênção.

Aos doentes

Desejo assegurar a todos vós, doentes, que estou particularmente perto de vós, com o coração e a prece, consciente de quão precioso é o vosso sacrifício, o qual, elevando e reforçando os vossos ânimos, é ao mesmo tempo fonte de muita graça para toda a Igreja. Concluindo-se hoje o mês do Rosário, apraz-me convidar-vos a tirar inspiração, alegria e conforto desta oração tão cara à tradição cristã. Dirigi constantemente o vosso olhar para a Virgem Santíssima: ela, que é a Mãe das Dores e também a Mãe da Consolação, pode compreender-vos até ao fundo e socorrer-vos.

Olhando para Ela, rezando-Lhe, obtereis que o vosso tédio se torne serenidade, a vossa angústia se mude em esperança, e o vosso sofrimento se transforme em amor. Acompanho-vos com a minha Bênção, que de boa vontade faço extensiva a todos aqueles que vos assistem.

Aos jovens Casais

E agora dirijo-me a vós, queridos jovens casais, para vos apresentar as minhas paternais felicitações, que são ao mesmo tempo convite à confiança e à alegria. A alegria, desabrochada nos vossos corações com a graça do Sacramento, vos acompanhe por toda a vida e vos ajude a vencer as tentações que derivam do egoísmo, o grande inimigo da união familiar. Fazei que as novas famílias — nascidas do vosso livre consentimento, vivificado e tornado oferta de amor pela presença de Cristo — sejam sempre acompanhadas da vontade constante e recíproca de bem; permaneçam sólidas na rocha da unidade e da fidelidade; sejam ricas daquelas virtudes cristãs que fundam e garantem a prosperidade do lar doméstico. Acompanho estes votos com a minha Bênção.





                                                                      Novembre de 1979

JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA GERAL


Quarta-feira, 7 de Novembro de 1979

A unidade original do homem

e da mulher na humanidade




1. As palavras do livro do Génesis Não é conveniente que o homem esteja só (1) são quase um prelúdio da narrativa da criação da mulher. Com esta narrativa, o sentimento da solidão original entra a fazer parte do significado da unidade original, cujo ponto-chave parecem ser precisamente as palavras de Génesis 2, 24, a que se refere Cristo na sua conversa com os fariseus: O homem deixará o pai e a mãe, e unir-se-á à sua mulher, e serão os dois uma só carne (2). Se Cristo, referindo-se ao «princípio», cita estas palavras, convém-nos precisar o significado dessa unidade original, que mergulha as raízes no facto da criação do homem como macho e fêmea.

A narrativa do capítulo primeiro do Génesis não conhece o problema da solidão original do homem: o homem, de facto, desde o princípio é «macho e fêmea». O texto javista do capítulo segundo, pelo contrário, autoriza-nos em certo modo a pensar primeiro, somente no homem enquanto, mediante o corpo, pertence ao mundo visível, mas ultrapassando-o; depois, faz-nos pensar no mesmo homem, mas através da duplicidade do sexo. Corporeidade e sexualidade não se identificam completamente. Embora o corpo humano, na sua constituição normal, traga em si os sinais do sexo e seja, por sua natureza, masculino ou feminino, todavia o facto de o homem ser «corpo» pertence à estrutura do sujeito pessoal mais profundamente que o facto de ele ser na sua constituição somática também macho ou fêmea.Por isso, o significado da solidão original, que pode referir-se simplesmente ao «homem», é substancialmente anterior ao significado da unidade original; esta última, de facto, baseia-se na masculinidade e na feminilidade, quase como sobre duas diferentes «encarnações», isto é, sobre dois modos de «ser corpo» do mesmo ser humano, criado à imagem de Deus (3).

2. Segundo o texto javista, no qual a criação da mulher foi descrita separadamente (4), devemos ter diante dos olhos, ao mesmo tempo, aquela «imagem de Deus» da primeira narrativa da criação. A segunda narrativa conserva, na linguagem e no estilo, todas as características do texto javista. O modo de narrar concorda com o modo de pensar e de falar da época a que o texto pertence. Pode-se dizer, segundo a filosofia contemporânea da religião e da linguagem, que se trata duma linguagem mítica. Neste caso, na verdade, o termo «mito» não designa conteúdo fabuloso, mas simplesmente um modo arcaico de exprimir um conteúdo mais profundo. Sem qualquer dificuldade, sobre o estrato da antiga narração, descobrimos aquele conteúdo, verdadeiramente admirável no que diz respeito às qualidades e à condensação das verdades, que nele estão encerradas. Acrescentemos que a segunda narrativa da criação do homem conserva, até certo ponto, uma forma de diálogo entre o homem e Deus-Criador, o que se manifesta sobretudo naquele período em que o homem ('adam) é definitivamente criado como macho e fêmea ('is-'issah) (5). A criação efectua-se quase contemporaneamente em duas dimensões; a acção de Deus-Javé ao criar desenvolve-se em correlação com o processo da consciência humana.

3. Assim pois, Deus-Javé diz: Não é conveniente que o homem esteja só; vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele (6). E ao mesmo tempo o homem confirma a própria solidão (7). A seguir lemos: Então o Senhor Deus adormeceu profundamente o homem; e, enquanto ele dormia, tirou-lhe uma das costelas, cujo lugar preencheu de carne. Da costela que retirara do homem, o Senhor Deus fez a mulher e conduziu-a até ao homem (8). Tomando em consideração o carácter próprio da linguagem, é preciso antes de tudo reconhecer que muito nos faz pensar aquele torpor do Génesis, no qual, por obra de Deus-Javé, o homem cai em preparação para o novo acto criador. Sobre o fundo da mentalidade actual habituada — graças à análise do subconsciente — a ligar ao mundo do sono conteúdos sexuais, aquele torpor pode suscitar uma associação particular Todavia a narrativa bíblica parece ir além do subconsciente humano. E se admitimos uma significativa diversidade de vocabulário, podemos concluir que o homem ('adam) cai naquele «torpor» para acordar «macho» e «fêmea». De facto, pela primeira vez encontramos em Gén. 2, 23 a distinção 'is -'issah. Talvez portanto a anologia do sono indique aqui não tanto um passar da consciência à subconsciência, quanto um especifico regresso ao não-ser (o sono tem em si um elemento de aniquilamento da existência consciente do homem), ou seja, ao momento que antecede a criação, para que dele, por iniciativa criadora de Deus, o «homem» solitário possa ressurgir na sua dupla unidade de macho e fêmea (10).

Seja como for, à luz do contexto de Gén. 2, 18-20 nenhuma dúvida há de o homem cair naquele «torpor» com o desejo de encontrar um ser semelhante a si. Se podemos, por analogia com o sono, falar aqui também de sonho, devemos dizer que este arquétipo bíblico nos permite admitir, como conteúdo daquele sonho, um «segundo eu», também ele pessoal e igualmente relacionado com o estado de solidão original, isto é, com todo aquele processo de estabilização da identidade humana relativamente ao conjunto dos seres vivos (animalia), enquanto é processo de «diferenciação» entre o homem e tal ambiente. Deste modo, o círculo da solidão do homem-pessoa quebra-se, porque o primeiro «homem» desperta do sono como «macho e fêmea».

4. A mulher é feita «com a costela» que Deus-Javé tirara ao homem. Considerando o modo arcaico, metafórico e imaginoso, de exprimir o pensamento, podemos estabelecer tratar-se aqui de homogeneidade de todo o ser de ambos; tal homogeneidade diz respeito sobretudo ao corpo, à estrutura somática, e é confirmada também pelas primeiras palavras do homem à mulher recém-criada: Esta é realmente o osso dos meus ossos e a carne da minha carne (Gn 2,23)(11). Apesar disso, as palavras citadas referem-se também à humanidade do homem-macho. Devem ler-se no contexto das afirmações feitas antes da criação da mulher, nas quais, embora não existindo ainda a «encarnação» do homem, ela é definida como «auxiliar semelhante a ele» (cfr. Gén 2, 20)(12). Assim pois, a mulher foi criada, em certo sentido, sobre a base da mesma humanidade. A homogeneidade somática, não obstante a diversidade da constituição ligada à diferença sexual, é tão evidente que o homem (macho), despertando do sono genético, a exprime imediatamente, ao dizer: Esta é realmente osso dos meus ossos e carne da minha carne. Chamar-se-á mulher, visto ter sido tirada do homem (13). Deste modo o homem (macho) manifesta pela primeira vez alegria e até exaltação, de que anteriormente não tinha motivo, por causa da falta dum ser semelhante a si. A alegria para o outro ser humano, para o segundo «eu», domina nas palavras do homem (macho) pronunciadas à vista da mulher (fêmea). Tudo isto ajuda a estabelecer o significado pleno da unidade original. Poucas são aqui as palavras, mas cada uma tem grande peso. Devemos portanto ter em conta — e fá-lo-emos em seguida — o facto de aquela primeira mulher, «criada com a costela tirada ... ao homem» (macho), ser imediatamente aceita como auxiliar semelhante a ele.


AUDIÊNCIAS 1979