AUDIÊNCIAS 1979

JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA GERAL


Quarta-feira, 21 de Novembro de 1979

Valor do matrimónio uno e indissolúvel

à luz dos primeiros capítulos do Génesis




1. Recordemo-nos ter Cristo apelado para o que era «no princípio», quando foi interrogado sobre a unidade e a indissolubilidade do matrimónio. Citou as palavras escritas nos primeiros capítulos do Génesis. Procuramos por isso, no decurso das presentes reflexões, penetrar no sentido próprio destas palavras e destes capítulos.

O significado da unidade original do homem, Que Deus criou «varão e mulher», obtém-se (particularmente à luz do Gn 2,23) conhecendo o homem na completa dotação do seu ser, isto é, em toda a riqueza daquele mistério da criação, que está na base da antropologia teológica. Este conhecimento, quer dizer, a busca da identidade humana daquele que no princípio está «só», deve passar sempre através da dualidade, da «comunhão».

Recordemo-nos da passagem de Génesis 2, 23: «Ao vê-la, o homem exclamou: 'Esta é realmente o osso dos meus ossos e a carne da minha carne. Chamar-se-á mulher, visto ter sido tirada do homem'». À luz deste texto, compreendemos que o conhecimento do homem passe através da masculinidade e da feminilidade, que são como duas «encarnações» da mesma solidão metafísica, diante de Deus e do mundo — como dois modos de «ser corpo» e ao mesmo tempo homem, que se completam reciprocamente — como duas dimensões complementares da autoconsciência e da autodeterminação e, ao mesmo tempo, como duas consciências complementares do significado do corpo. Como já mostra Génesis 2, 23, a feminilidade encontra-se, em certo sentido, a si mesma, diante da masculinidade, ao passo que a masculinidade se confirma através da feminilidade. Precisamente a função do sexo, que é, em certo sentido, «constitutivo da pessoa» (não apenas «atributo da pessoa»), mostra quão profundamente o ser humano, com toda a sua solidão espiritual, com a unicidade e irrepetibilidade própria da pessoa, é constituído pelo corpo corno «ele» e como «ela». A presença do elemento feminino, ao lado do masculino e juntamente com ele, tem o significado dum enriquecimento para o homem em toda a perspectiva da sua história, incluindo a história da salvação. Todo este ensinamento sobre a unidade foi já expresso originalmente em Génesis 2, 23.

2. A unidade, de que fala Génesis 2, 24 («os dois serão uma só carne»), é sem dúvida aquela que se exprime e realiza no acto conjugal. A formulação bíblica, extremamente concisa e simples, indica o sexo, feminilidade e masculinidade, como a característica do homem — varão e mulher — que permite aos dois, quando se tornam «uma só carne», submeter contemporaneamente toda a sua humanidade à bênção da fecundidade. Todavia, o contexto completo da formulação lapidar não permite determo-nos na superfície da sexualidade humana, não nos consente tratarmos do corpo e do sexo fora da plena dimensão do homem e da «comunhão das pessoas», mas obriga-nos desde o «princípio» a descobrir a plenitude e a profundidade próprias desta unidade, que o homem e a mulher devem constituir à luz da revelação do corpo.

Portanto, antes de tudo, a expressão, que anuncia que «o homem... se unirá à sua mulher» tão intimamente que «os dois serão uma só carne», leva-nos sempre a dirigirmo-nos ao que o texto bíblico exprime anteriormente a respeito da união na humanidade, que liga a mulher e o homem no mistério mesmo da criação. As palavras de Génesis 2, 23, que acabamos de analisar, explicam este conceito de modo especial. O homem e a mulher, unindo-se entre si (no acto conjugal) tão intimamente, que se tornam «uma só carne», redescobrem, por assim dizer, cada vez e de modo especial, o mistério da criação, voltam assim àquela união na humanidade («osso dos meus ossos e carne da minha carne»), que lhes permite reconhecerem-se reciprocamente e, como da primeira vez, chamarem-se pelo nome. Isto significa reviver, em certo sentido, o original valor virginal do homem, que deriva do mistério da sua solidão diante de Deus e no meio do mundo. O facto de se tornarem «uma só carne» é forte laço estabelecido pelo Criador, por meio do qual eles descobrem a própria humanidade, quer na sua unidade original quer na dualidade dum misterioso atractivo recíproco. O sexo, porém, é alguma coisa mais que a força misteriosa da corporeidade humana, que age quase em virtude do instinto. Ao nível do homem e na relação recíproca das pessoas, o sexo exprime uma sempre nova superação do limite da solidão do homem, ingénita na constituição do seu corpo, e determina-lhe o significado original. Esta superação sempre em si contém certo assumir a solidão do corpo do segundo «eu», como própria.

3. Por isso, anda esta ligada à escolha. A formulação mesma de Génesis 2, 24 indica não só que os seres humanos, criados como homem e mulher, foram criados para a unidade, mas também que precisamente esta unidade, através da qual se tornam «uma só carne», tem desde o início carácter de união que deriva duma escolha.Lemos de facto: «o homem deixará o pai e a mãe para se unir à sua mulher». Se o ser humano pertence «por natureza» ao pai e à mãe em virtude da geração, «une-se» pelo contrário à mulher (ou ao marido) por escolha. O texto de Génesis 2, 24 define esse carácter do laço conjugal em referência ao primeiro homem e à primeira mulher, mas simultaneamente fá-lo na perspectiva de todo o futuro do homem na terra. Por isso, na devida altura, virá Cristo a apelar para este texto, como ainda actual na Sua época. Criados à imagem de Deus, ainda quando formam autêntica comunhão de pessoas, o primeiro homem e a primeira mulher devem constituir o início e o modelo dessa comunhão para todos os homens e mulheres, que em qualquer tempo sucessivo se virão a unir entre si tão intimamente que sejam «uma só carne». O corpo que, através da própria masculinidade ou feminilidade, auxiliar ambos («um auxiliar que lhe seja semelhante») a encontrarem-se em comunhão de pessoas, torna-se, de modo particular, o elemento constitutivo da união deles, quando se tornam marido e mulher. Isto realiza-se, porém, através duma escolha recíproca. É a escolha que estabelece o pacto conjugal entre as pessoas (1), que só baseadas nele se tornam «uma só carne».

4. Isto corresponde à estrutura da solidão do homem, e em concreto à «dupla solidão». A escolha, expressando autodeterminação, apoia-se no fundamento daquela estrutura, isto é, no fundamento da sua autoconsciência. Só com base na estrutura própria do homem, é ele «corpo» e, através do corpo, é também macho ou fêmea. Quando ambos se unem entre si tão intimamente que se tornam «uma só carne», essa união conjugal pressupõe madura consciência do corpo. Mais, esta traz consigo uma particular consciência do significado daquele corpo na entrega recíproca das pessoas. Também neste sentido, Génesis 2, 24 é texto anunciador. Mostra, de facto, que, em cada união conjugal do homem e da mulher, é de novo descoberta a mesma original consciência do significado unitivo do corpo na sua masculinidade e feminilidade: com isto indica o texto bíblico, ao mesmo tempo, que em cada uma de tais uniões se renova, em certo modo, o mistério da criação em toda a sua profundidade original e força vital. «Tirada do homem» como «carne da sua carne», a mulher torna-se em seguida, como «mulher» e através da sua maternidade, mãe de todos os vivos (Cfr. Gén Gn 3,20), tendo também no homem a sua maternidade a própria origem. A procriação está radicada na criação e cada vez, em certo sentido, reproduz o mistério criativo.

5. A este assunto será dedicada uma reflexão especial: «O conhecimento e a procriação». Nela será necessário apelar ainda para outros elementos do texto bíblico. A análise feita até agora, do significado da unidade original, mostra de que modo «desde o princípio» aquela unidade do homem e da mulher, inerente ao mistério da Criação, é também dada como exigência na perspectiva de todos os tempos sucessivos.

Notas

1. «A íntima comunidade conjugal de vida e amor foi fundada e dotada de leis próprias pelo Criador; baseia-se na aliança dos cônjuges, ou seja, no seu irrevogável consentimento pessoal» (GS 48).

Saudações

A uma peregrinação de Treviso (Itália)

Estou particularmente grato a D. António Mistrorigo, Bispo de Treviso, e às Autoridades civis que acompanharam a numerosa peregrinação da diocese de Treviso para me dirigirem de novo o seu agradecimento pela minha visita de 26 de Agosto passado.

Ao manifestar-vos a minha cordial satisfação por este encontro, que me recorda as muitas emoções espirituais daquela tarde, desejo repetir-vos que o Papa está sempre no meio de vós, que vos ampara com a sua oração, vos encoraja no caminho real da caridade e da solidariedade fraterna, e vos indica a sublimidade do sacrifício cristão que se ilumina com a luz da graça, infinitamente mais do que as belíssimas montanhas que vi naquele inesquecível dia.

Exprimo também os meus paternos bons votos à Comunidade paroquial da Cidade de San Doná di Piave, que celebra o quinto aniversário da sua erecção canónica. A vós e a todos os participantes na peregrinação, a minha Bênção Apostólica, extensiva às respectivas famílias.

Aos participantes no Congresso dos Reitores dos Santuários Marianos da Itália

Participa nesta Audiência o numeroso grupo dos Reitores de muitos Santuários italianos, reunidos em Roma por ocasião do XV Congresso, organizado pela União mariana, submetido ao tema: "Os Santuários para uma pastoral de esperança do homem que sofre".

A vossa presença, caríssimos Sacerdotes, é para mim motivo de sincera satisfação: não só porque me recordais os lindos Santuários que até agora visitei, mas sobretudo porque vós, juntamente com os vossos colaboradores, atraís, com a assídua escuta e meditação da Palavra de Deus na sua Casa, força contínua e coragem para responder a tantas expectativas dos peregrinos que acorrem aos Santuários, para momentos de reflexão e de prece.

A minha Bênção paternal vos acompanhe no vosso santificante ministério.

Ao "Piccolo Coro dell'Antoniano" de Bolonha (Itália)

Desejo agora dirigir uma cordial e paternal saudação ao "Piccolo Coro dell'Antoniano" de Bolonha, que quis celebrar nestes dias o XX aniversário da proclamação dos Direitos da Criança.

Caríssimos meninos! Exprimo-vos o meu louvor e o meu encorajamento pela mensagem de bondade, de solidariedade e de paz, que difundis com os vossos cantos, não só entre os da vossa idade mas também entre os adultos. Conservai sempre intacta no vosso coração esta carga de entusiasmo, que vos vem da amizade sincera e profunda com Jesus.

A todos vós e àqueles que vos são queridos a minha Bênção Apostólica.

Ao jovens

Saúdo e abençoo os jovens e as jovens, os rapazes e as meninas, presentes neste encontro. Queria recomendar-lhes que fossem sempre gratos a Deus pela grande sorte que têm e que não é só a da sua juventude, mas sobretudo a de serem cristãos, filhos de Deus; e esta é fortuna eterna, condição de eterna juventude: sede felizes, queridos jovens. O Papa reza por vós a fim de não desaparecer nunca da vossa vida, seja em que circunstância for, esta luz da alma, e permaneça sempre viva em vós esta sensibilidade e alegria interiores.

Aos doentes

Um pensamento particularmente afectuoso e respeitoso dirijo aos doentes. Como poderia deixar de experimentar afecto sincero e paternal, por quem em qualquer família ou instituto, talvez na solidão, é provado por aflições penosas, físicas e espirituais? Mas a saudação que vos dirijo, queridos doentes, além de ser afectuosa é também respeitosa, porque sois entre nós urna presença especial do Senhor; possuís urna semelhança particular com Cristo Redentor; tendes uma missão singular de salvação e de santificação, para vós próprios e para os outros.

O Senhor vos conforte com a riqueza da sua graça; vos livre, se é da sua vontade, das vossas tribulações; e vos dê serenidade e coragem, muita fé e muita esperança. A vós, cordialíssima, a minha Bênção.

Aos jovens Casais

E agora a minha saudação aos jovens Casais, os meus parabéns e bons votos para a vossa nova vida e para a vossa actual e futura família. Vós, queridos Casais, quisestes Jesus no Sacramento do Matrimónio; viestes ter com o Papa, Vigário de Jesus, para receber d'Ele a Bênção do Senhor; se iniciastes tão bem, corno verdadeiros cristãos, a vossa convivência, não posso desejar-vos nada melhor do que isto: estai sempre com Jesus, na fé e na vida de cada dia; tende-O sempre, Jesus, no meio de vós, também com a vossa oração. Deste modo não vos será difícil caminhar juntos no amor, na fidelidade, no acordo mútuo, na compreensão e paciência recíprocas e na paz; e os vossos filhos receberão de vós a melhor educação, o melhor bom exemplo, e a mais querida e salutar recordação. Por conseguinte, sempre com Jesus, e Jesus esteja sempre convosco. E convosco também a minha Bênção.

A vários grupos de peregrinos de expressão francesa

Aos hoteleiros que se encontram reunidos no Congresso internacional em Roma, e que desejaram fazer-me visita, dirijo a minha saudação e os meus agradecimentos.

Permiti-me que vos exprima os meus sinceros bons votos. Oxalá as vossas Pousadas e Hotéis — aliás como é vosso desejo — favoreçam em condições de hospitalidade sã e agradável, o acolhimento, o respeito, a discrição e até mesmo um estilo de fraternidade entre aqueles que neles se hospedam! Mais ainda: sejam as vossas Casas comunidades de trabalho onde Direcção e Pessoal se esforcem por viver os seus encargos exigentes, em espírito de compreensão e de entendimento! Enfim, oxalá todos aqueles que asseguram o bom funcionamento das vossas Pousadas hoteleiras ou que vêm nelas procurar repouso e conforto se lembrem dos sofrimentos dos menos favorecidos e dos apelos dos irmãos necessitados! F com estes sentimentos que peço a Deus que vos ajude.

A um grupo de Religiosos e Religiosas

Saúdo especialmente os membros da Confederação internacional dos Quadros que vão realizar um Congresso em Roma sobre o tema "Os dirigentes europeus de empresas na sociedade dos anos de 80". No contexto económico actual, muitas vezes precário, as dificuldades não faltam para equilibrar ou manter a produção, para regular os intercâmbios, e por conseguinte para assegurar a viabilidade e a promoção das vossas empresas. E tudo isto acarreta consequências graves no emprego, na vida das pessoas, de que vos é necessário também avaliar os riscos e pesar maduramente as soluções em colaboração com as outras forças sociais. Outros países, industrialmente menos desenvolvidos debatem-se também com graves problemas. É honra vossa enfrentar os meios que estão sob a vossa responsabilidade e, para isso, esclarecer-vos mutuamente durante o vosso Congresso. Peço a Deus que vos assista naquilo que constitui um serviço indispensável, exigente e delicado da sociedade actual.

A jornalistas católicos da República Federal da Alemanha

Saúdo cordialmente os participantes na "Semana romana para periódicos católicos" organizada pela sociedade de publicistas católicos, vindos da República Federal da Alemanha, assim como saúdo os directores responsáveis das agências de periódicos católicos da Europa Central que colaboram com o seu trabalho no "Centrum Informationis Catholicum" de Roma.

Mediante este encontro, no núcleo mesmo da cristandade, desejais informar-vos sobre a vida actual da Igreja. Espero que nos vossos contactos, sem dúvida ricos, e nas vossas experiências, tenhais ampliado e aprofundado não só o conhecimento sobre a Igreja mas, também e ao mesmo tempo, a própria autocompreensão como periodistas católicos que operais na Igreja e na sociedade do nosso tempo.

Perante as extraordinárias conquistas técnicas no campo da comunicação social, que podem ser utilizadas para grande proveito ou para grave prejuízo da humanidade, sois urgente e encarecidamente chamados — por responsabilidade cristã — a pôr estas conquistas ao serviço exclusivo da verdade, da promoção e da defesa do homem, e da sua única e singular dignidade.

Sigo com o maior interesse e simpatia o vosso trabalho, não sempre fácil, mas vital para a Igreja e a sociedade, e com a minha especial Bênção Apostólica peço para vós a ajuda iluminadora e fortificante de Deus.

Aos "Carabinieri"

Uma afectuosa e sincera saudação desejo agora dirigir aos membros da "Banda dell'Arma dei Carabinieri", que acabou de dar uma última prova daquela alta qualidade musical, que a tornou célebre em todo o mundo.

Caríssimos Carabineiros! Membros daquela Arma que justamente o dilecto Povo italiano chamou e continua a chamar "A Benemérita"! Sede sempre dignos da gloriosa farda que vestis; sede sempre testemunhas coerentes das virtudes típicas do Corpo Militar: fidelidade absoluta à Pátria; alto sentido da justiça; respeito dedicado pelos cidadãos; e solidariedade atenta com os fracos. Os italianos — e com eles também o Papa — amam-vos, estimam-vos e apreciam-vos, porque sabem que encontram em vós não só os tutores da ordem pública, mas irmãos, fortes e generosos, sempre prontos e solícitos a darem-se sem reserva pelo bem da comunidade.

E neste momento não podemos deixar de dirigir o nosso comovido pensamento e de elevar a nossa amargurada oração de sufrágio por todos aqueles Carabineiros que perderam a vida no cumprimento do seu dever: e de modo particular por aqueles vossos colegas militares — pais de família ou jovens na flor da vida — que foram mortos barbaramente este ano.

Precisamente esta manhã, em Génova, dois Carabineiros foram barbaramente assassinados: pelo eterno repouso das suas almas e para conforto cristão dos seus parentes elevamos a nossa súplica a Deus, defensor supremo da justiça. O horror deste desumano e cruel crime, que uma vez mais atinge e ensanguenta a vossa Arma, deve unir cada vez mais os bons, numa vontade decidida contra a violência. E não podemos esquecer os 2.100 colegas vossos que, sempre este ano, foram feridos também durante o seu duro trabalho.

Sobre vós, sobre todos os Carabineiros da Itália, sobre o Ordinário Militar, Monsenhor Mário Schierano, sobre o vosso Comandante, General Pietro Corsini, sobre todos os Altos Oficiais presentes, sobre todos os que vos são queridos, invoco — por intercessão de Nossa Senhora Virgo Fidelis, vossa celeste padroeira — a abundância dos favores divinos, e concedo-vos de coração a Bênção Apostólica, sinal da minha constante benevolência.



                                                                    Dezembro de 1979

JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA GERAL


Quarta-feira, 5 de Dezembro de 1979

Sirvamos a grande causa do Advento do Senhor




1. O Senhor Jesus chamou André em primeiro lugar entre todos os Apóstolos. Ele encontrou primeiro a seu irmão Simão e disse-lhe: «Encontrámos o Messias» (que quer dizer Cristo). E levou-o a Jesus. Fitando-o, Jesus disse-lhe: «Tu és Simão, filho de João; chamar-te-ás Celas» (que quer dizer Pedro) (Jn 1,41 s).

Este particular, referido no Evangelho segundo São João, requeria de há tempos que eu fosse visitar a antiga Sé dos Patriarcas em Constantinopla, a qual venera, de modo especial, Santo André Apóstolo; e requeria que eu o fizesse exactamente a 30 de Novembro, no dia ligado, pelo calendário litúrgico da Igreja tanto ocidental como oriental, com a recordação daquele que o Senhor Jesus chamou em primeiro lugar. Hoje quero agradecer à Providência divina esta visita, que tanto desejei e que — dominada por um especial sopro daquela eterna Sabedoria, adorada durante tantos séculos na igreja sobre o Bósforo — se veio a realizar com reforço de ambos os que percorrem agora os caminhos, que abriram o patriarca Atenágoras I e os meus grandes Predecessores, os Papas João XXIII e Paulo VI.

Se é pois lícito apelar para a analogia que deriva do acontecimento evangélico, o sucessor de Pedro na Sé romana deseja hoje exprimir a satisfação que experimenta por ter ouvido o apelo vindo do Oriente — daquela Sé que rodeia de particular veneração André, irmão de Pedro —, por ter ouvido e ter correspondido a tal chamamento. Graças a isto, de novo se encontrou na presença de Cristo, o confirmador da vocação de Simão Pedro que Lhe fora trazido pelo laço fraterno que o unia com André.

2. E, agradecendo à Providência divina que, nos últimos dias antes do princípio do Advento, dirigiu os meus passos para o Oriente, desejo ao mesmo tempo agradecer a todos quantos, na qualidade de executores da Providência, tomaram sobre si os múltiplos encargos humanos necessários para tornar possível tão importante visita. Penso em especial nas autoridades turcas, a começar pelo ilustríssimo Senhor Presidente da República, e penso no Governo e no Ministro dos Estrangeiros. Esta visita ofereceu a oportunidade de me encontrar com eles e de trocar, com grande utilidade, experiências e ideias sobre temas tão importantes para a convivência das Nações e dos Países em todo o mundo e, em particular, naquele ponto importante do globo, que é quase uma Porta da Europa e da Ásia.Assim a imediata prontidão em receber o hóspede de Roma, como também a grande solicitude pelo decurso e pela segurança de toda a viagem, merece a minha especial gratidão, que mais uma vez desejo exprimir neste momento.

3. Embora o objectivo principal da minha visita fosse o «Fanar», sede do Patriarcado ecuménico em Istambul, a recente viagem deu-me todavia ocasião de me encontrar também com a comunidade arménia na pessoa do seu Patriarca Kalustian e do Arcebispo católico Tcholakian. A Igreja Arménia ortodoxa está empenhada num intenso diálogo com a Igreja Católica, em particular desde a memorável visita a Roma de Vasken I, que é chefe, isto é «catholicos», dessa Igreja, que tem o centro em Etchmiadzin. A visita realizou-se em Maio de 1970. A Igreja Arménia católica, que se encontra em plena comunhão com a Sé apostólica de Roma, conta no mundo inteiro 150 mil fiéis. Também para todas as comunidades arménias vai o meu pensamento e a minha gratidão. Desejo, além disso, recordar os representantes da comunidade hebraica, com quem pude encontrar-me por ocasião da liturgia realizada na catedral católica latina, dedicada ao Espírito Santo, em Istambul.

4. Considero o encontro com o Patriarca Dimítrios I como fruto de especial acção do Espírito Santo de Cristo, que é o Espírito da unidade e do amor. Precisamente neste espírito decorreu o encontro, que deste espírito deu aliás testemunho. O seu momento culminante foi a oração comum, dando-se a recíproca participação na liturgia eucarística, embora não tenhamos ainda podido partir o Pão juntos e beber o mesmo Cálice. A participação deu-se, primeiro na vigília de Santo André, à tarde, na catedral latina do Espírito Santo, onde o Patriarca Dimítrios I esteve connosco (como também o Patriarca arménio), e onde trocamos solenemente o ósculo fraterno de paz, dando juntos, no fim, a bênção. E, em seguida, na solenidade mesma do Apóstolo na igreja patriarcal, onde me foi consentido, como a toda a Delegação da Sé Apostólica, não só participar na esplêndida liturgia de São João Crisóstomo, mas também renovar eu, com a mesma alegria dos cristãos presentes, o ósculo de paz com o meu Irmão da Sé do Oriente, tomar a palavra e, sobretudo, ouvir o discurso desse Irmão.

Quão profundo amor não manifestou ele pela Igreja e pela sua unidade, sempre tão viva no desejo de Cristo! Ao mesmo tempo, quanta solicitude, cheia de amor, pelo homem no mundo contemporâneo! O grande mistério da «Divindade e da humanidade», tão maravilhosamente aprofundado por toda a tradição oriental patrística e teológica, é a mais abundante fonte desta solicitude.

O Patriarca disse: «É também a paz e a bondade que nós desejamos e procuramos, tanto para a Igreja como para o mundo. É, buscando este santo objectivo comum, que nós nos encontra-mos ... Em tal caminhada, foi Jesus ressuscitado que esteve presente ... Por isso, quer dizer, tendo em vista esta comunhão plena e a fracção do pão, é que uns e outros seguimos a par até hoje».

5. Se, pois, temos direito de repetir, com São Paulo, o amor de Cristo nos constrange (2Co 5,14), então hoje este amor de Cristo assume a forma particular da solicitude pelo homem e pela sua vocação no mundo contemporâneo, tão prometedora mas também tão inquietante. E, por isso, juntamente com o diálogo teológico, já tão necessário, que deve começar proximamente entre a Igreja católica e a Igreja ortodoxa no seu conjunto (isto é: com todas as Igrejas autocéfalas ortodoxas), é sempre indispensável também o diálogo do amor fraterno e da recíproca aproximação, que já dura há vários anos, isto é, desde os tempos do Concílio Vaticano II. Certamente que este diálogo deve, mais ainda, reforçar-se e aprofundar-se. Deve encontrar sempre nova expressão externa. Deve, em certo sentido, tornar-se elemento integral dos programas pastorais de ambos os lados. A união só pode ser fruto do conhecimento da verdade no amor. E uma e outro têm de actuar lado a lado; separadamente não bastam, porque a verdade sem o amor não é ainda verdade plena, como o amor não existe sem a verdade.

Muito se pode esperar deste novo período das nossas iniciativas ecuménicas e depois das provas do benévolo apoio que, por ocasião da recente visita a Constantinopla, deram todos os Patriarcas ortodoxos ao Patriarca Dimítrios. Este, na qualidade de Patriarca «ecuménico», é o primeiro entre os outros.

6. Na moldura deste feliz encontro foram ainda trocadas ofertas muito eloquentes. O Patriarca ecuménico deu ao seu Hóspede uma antiga estola episcopal, pensando naquela Eucaristia que Deus clementíssimo talvez nos permita celebrar juntos, como tão ardentemente desejaram o Papa Paulo e o Patriarca Atenágoras. O outro presente, o que deixei em Constantinopla, foi um ícone da Mãe de Deus: Aquela com que me familiarizei em Jasna Gora e Czestochowa, desde os primeiros anos da minha juventude. Oferecendo-o, deixei-me guiar não só por motivos de natureza pessoal, mas também e sobretudo pela especial eloquência da história. O ícone claramontano (de Jasna Gora) encerra em si os traços sintomáticos que falam ao espírito do cristão tanto do Oriente como do Ocidente. Provém ainda daquela terra, em que se deu, no decorrer da história, o encontro destas duas grandes tradições da Igreja. E verdade que a minha Pátria recebeu de Roma o cristianismo e, ao mesmo tempo, a grande herança da cultura latina; mas também Constantinopla se tornou a fonte da cristandade e da cultura, na forma oriental, para muitos Povos e muitos Países Eslavos.

Manifestei já estas ideias durante a minha peregrinação à Polónia, em Junho passado. Assim, o nosso encontro no «Fanar», em Istambul, apresentou-se cheio de grandes problemas e profundos conteúdos. Interrogado por um dos jornalistas acerca das «impressões», disse eu que era difícil falar a tal respeito. E é-o verdadeiramente. Estamos noutra dimensão. Estamos e devemos ficar com o olhar fixo naquela efígie da Sabedoria, que nos fala do cimo do grande monumento do Bósforo. É uma efígie do Advento. E também nós apenas servimos a grande causa do Advento do Senhor.

Felizes de nós, se ao voltar o Senhor nos encontrar vigilantes (Cfr. Mt Mt 24,46).

Esta intenção recomendei de modo particular entre as ruínas de Éfeso, onde a Virgem Maria, obediente da maneira mais profunda e mais simples ao Espírito Santo, foi proclamada solenemente pela Igreja «Theotókos», isto é, Mãe de Deus.

Saudações

A um grupo de Sacerdotes da Congregação dos Irmãos Cristãos

Tenho de novo a alegria de me encontrar com um grupo de Irmãos Cristãos reunidos em Roma para um curso de renovação espiritual. Nas vossas pessoas presto homenagem às gerações de generosos servos do Evangelho, homens consagrados ao Senhor Jesus e à Sua palavra de salvação, homens dedicados à mais alta missão possível: comunicar o conhecimento e o amor de Cristo. Lembrai-vos, meus Irmãos, que a eficiência das vidas depende da autenticidade do vosso apostolado. Permanecei no amor de Cristo. Continuai a viver na fé do Filho de Deus, hoje e sempre. Cumprimento, alegria, utilidade e serviço sim, tudo depende disto.

A dois grupos de fiéis de Paróquias romanas

E agora uma saudação particularmente afectuosa aos peregrinos das Paróquias romanas, respectivamente de São Francisco Xavier à Garbatella, e de São Bruno à Pisana, que vieram aqui com os seus Párocos e Vice-Párocos: os primeiros para retribuir, gentilmente, a minha visita pastoral à sua Comunidade no bairro da Garbatella; os outros, por ocasião do XV aniversário da erecção da sua Paróquia. Agradeço-vos esta manifestação de fé para com Cristo e de afecto para com o seu Vigário. Dir-vos-ei simplesmente: amai a vossa Paróquia! É ela que, de facto, vos acolhe na celebração litúrgica; que revivifica a vossa fé e vos ajuda a praticar a caridade das boas obras com os irmãos necessitados. A minha Bênção paternal vos acompanhe sempre.

Às Delegadas do Movimento feminino da "Coldiretti"

Saúdo de bom grado as numerosas Delegações do Movimento Feminino da Confederação dos Cultivadores Directos, reunidas em Roma nestes dias para o seu congresso trienal. Caríssimas filhas, sabei que a Igreja conta muito também com o empenho e o testemunho das mulheres do campo, e deseja lhes uma inserção cada vez mais qualificada no mundo de hoje. No entanto, defendei sempre e ciosamente os vossos valores típicos, genuinamente humanos, de simplicidade, laboriosidade e alegria, dos quais a sociedade industrial sente salutar nostalgia.

E a minha Bênção Apostólica, que de coração faço extensiva a todos os que vos são queridos, vos acompanhe.

Aos jovens

Caríssimos jovens, queridos rapazes e meninas. Dirijo-vos a minha cordial saudação e, já que estamos no início do novo ano litúrgico, desejo exortar-vos a viver intensamente o tempo do Advento, e a entrar no "espírito da Liturgia" que é grande ajuda para dar valor espiritual às vossas acções e saborear as alegrias e consolações que provêm da intimidade com Cristo.

A Liturgia, bem conhecida e vivida, vos torne cristãos alegres e corajosos.

Com estes votos concedo-vos a minha Bênção particular.

Aos Doentes

Caríssimos Doentes. O período do Advento, já iniciado, prepara-nos para o Santo Natal e, segundo o espírito da Liturgia, faz-nos viver misticamente o sentido da expectativa do Salvador, que permeia todo o Antigo Testamento.

Se a expectativa é característica típica de cada cristão, vós, queridos doentes, dê modo particular deveis ter o sentido da expectativa! Nada se perde do sofrimento, unido a Cristo Redentor da humanidade.

É esta a mensagem do Advento que vos exorto a meditar e a viver, ao mesmo tempo que vos acompanho com a minha afectuosa Bênção.

Aos jovens Casais
Caríssimos jovens Casais!

Apresento-vos a minha saudação e os meus parabéns, exortando-vos a ser testemunhas convictas e coerentes de Cristo, única salvação do homem!

Sede-o sempre com todos e em todos os lugares, na alegria e no sofrimento, nas ocasiões de ansiedade e nos tempos de consolação. O Advento recorda-nos que a humanidade precisa de Jesus" Cristo: só Ele, com a sua palavra divina, nos ilumina no nosso destino eterno, nos dá o verdadeiro significado da vida, nos oferece a força ç a coragem para aceitar a história como é, para a transformar e salvar.

A minha Bênção vos conforte.



JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA GERAL


Quarta-feira, 12 de Dezembro de 1979

Os significados das primordiais experiências do homem




1. Pode dizer-se que a análise dos primeiros capítulos do Génesis nos obriga, em certo sentido, a reconstruir os elementos constitutivos da original experiência do homem. Neste sentido, o texto javista é, pelo seu carácter, uma fonte especial. Falando das originais experiências humanas, pensamos não tanto no seu afastamento no tempo, quanto e mais ainda no seu significado fundamental. O importante não é, por conseguinte, que estas experiências pertençam à pré-história do homem (à sua «pré-história teológica»), mas que elas se encontrem na raiz de toda a experiência humana. É isto verdade, se bem que a estas experiências essenciais, na evolução da ordinária existência humana, não se preste muita atenção. Elas, de facto, encontram-se tão ligadas às coisas ordinárias da vida, que em geral não damos conta de serem extraordinárias.

Baseados nas análises até agora feitas, pudemos dar-nos conta de, aquilo que chamamos no princípio «revelação do corpo», nos ajudar dalgum modo a descobrir o extraordinário do que é ordinário. Isto é possível porque a revelação (a original, que encontrou expressão, primeiro na narrativa javista de Gn 2-3 depois no texto de Gn 1) considera precisamente essas experiências primordiais em que aparece de maneira quase completa a absoluta originalidade daquilo que é o ser humano varão e mulher: enquanto homem, isto é, também através do seu corpo. A experiência humana do corpo, tal como a descobrimos nos textos bíblicos citados, encontra-se sem dúvida no limiar de toda a experiência «histórica» sucessiva. Parece todavia basear-se em tal profundidade ontológica, que o homem não a capta na própria vida quotidiana, embora, entretanto e em certo modo, a pressuponha como parte do processo de formação da sua imagem.

2. Sem tal reflexão introdutória, seria impossível precisar o significado da nudez original e realizar a análise de Génesis 2, 25, que diz assim: Estavam ambos nus, tanto o homem como a mulher, mas não sentiam vergonha. A primeira vista, o aparecer este particular, aparentemente secundário, na narrativa javista da criação do homem, pode parecer coisa sem valor e mesmo fora de propósito. Poderia julgar-se que a passagem citada não tem comparação com aquilo de que tratam os versículos precedentes e que, em certo sentido, não se harmonizam com o contexto. Todavia, este pensamento não resiste a uma análise aprofundada. Com efeito, Génesis 2, 25 apresenta um dos elementos-chaves da revelação original, tão determinante como os outros textos do Génesis (2, 20 e 2, 23), que já nos permitiram precisar o significado da solidão original e da original unidade do homem. A estes vem juntar-se, como terceiro elemento, o significado da nudez original, com clareza posto em evidência no contexto; e ele, no primeiro esboço bíblico da antropologia, não é coisa acidental. Pelo contrário, forma precisamente a chave para a sua plena e completa compreensão.

3. É óbvio que exactamente este elemento do antigo texto bíblico oferece à teologia do corpo um contributo específico, do qual não se pode de nenhum modo prescindir. É o que nos confirmam as análises seguintes. Mas, antes de a elas nos lançarmos, permito-me observar que precisamente o texto de Génesis 2, 25 exige expressamente que se liguem as reflexões sobre a teologia do corpo, com a dimensão da subjectividade pessoal do homem; é neste âmbito, de facto, que se desenvolve a consciência do significado do corpo. Génesis 2, 25 fala deste significado de modo muito mais directo do que fazem as outras partes do texto javista, que já definimos como primeira registação da consciência humana. A frase, segundo a qual os primeiros seres humanos, homem e mulher, «estavam nus», mas «não tinham vergonha», descreve indubiamente o estado de consciência de ambos, mais, a sua recíproca experiência do corpo, isto é, a experiência por parte do homem da feminilidade que se revela na nudez do corpo e, reciprocamente, a análoga experiência da masculinidade por parte da mulher. Afirmando que «não tinham vergonha», o autor procura descrever esta recíproca experiência do corpo com a máxima precisão que lhe é possível. Pode dizer-se que este tipo de precisão reflecte uma experiência basilar do homem em sentido «comum» e pré-científico, mas corresponde também às exigências da antropologia e em particular da antropologia contemporânea, pronta a apelar para as chamadas experiências de fundo, como a experiência do pudor (1).

4. Aludindo aqui ao esmero da narrativa, quanto ele era possível ao autor do texto javista, somos levados a considerar os graus de experiência do homem «histórico» carregado com a herança do pecado, graus porém que metodologicamente partem em rigor do estado de inocência original. Já verificámos antes que, ao referir-se ao «princípio» (por nós aqui sujeito a sucessivas análises contextuais), Cristo estabelece de modo indirecto a ideia de continuidade e de relação entre aqueles dois estados, como se nos permitisse retroceder do limiar da pecaminosidade «histórica» do homem até à sua inocência original. Precisamente Génesis 2, 25 exige de modo particular que se ultrapasse aquele limiar. Fácil é descobrir como este passo, juntamente com o significado a ele inerente da nudez original, se insere no conjunto contextua) da narrativa javista. De facto, alguns versículos depois, o mesmo autor escreve: Então, abriram-se os olhos aos dois e, reconhecendo que estavam nus, prenderam folhas de figueira umas às outras e colocaram-nas como se fossem cinturões (Gn 3,7). O advérbio «então» indica novo momento e nova situação, consequentes à ruptura da primeira Aliança; é situação que vem depois da falência na prova ligada à árvore do conhecimento do bem e do mal, que ao mesmo tempo constituía a primeira prova de «obediência», isto é, de atenção à Palavra em toda a sua verdade e de aceitação do Amor, segundo a plenitude das exigências da Vontade criadora. Este novo momento ou nova situação comporta também novo conteúdo e nova qualidade da experiência do corpo, de maneira que já não se pode dizer: «estavam nus e não tinham vergonha». A vergonha é portanto aqui experiência não só original, mas «de confim».

5. É significativa, portanto, a diferença de formulações, que divide Génesis 2, 25 de Génesis 3, 7. No primeiro caso, «estavam nus, mas não tinham vergonha»; no segundo caso, «reconheceram que estavam nus». Quer então dizer que, num primeiro tempo, «não reconheceram que estavam nus»? que não sabiam e não viam reciprocamente a nudez dos seus corpos? A significativa transformação que nos é testemunhada pelo texto bíblico acerca da experiência da vergonha (de que fala ainda o Génesis, sobretudo em 3, 10-12), dá-se a um nível mais profundo que o puro e simples uso do sentido da vista. A análise comparativa entre Génesis 2, 25 e Génesis 3 leva necessariamente à conclusão de não tratar-se aqui da passagem do «não reconhecer» ao «reconhecer», mas duma radical mudança do significado da nudez original, da mulher diante do homem e do homem diante da mulher. Vem a mudança da consciência de ambos, como fruto da árvore da consciência do bem e do mal: Quem te disse que estavas nu? Comeste, porventura, algum dos frutos da árvore que te proibi comer? (Gn 3,11) . Tal mudança diz respeito directamente à experiência do significado do próprio corpo diante do Criador e das criaturas. O que é confirmado pelas palavras do homem: Ouvi o ruído dos teus passos no jardim, e, cheio de medo, porque estou nu, escondi-me (Gn 3,10). Mas em particular aquela mudança, que o texto javista delineia de modo tão conciso e dramático, diz respeito directamente, talvez do modo mais directo possível, à relação homem-mulher, feminilidade-masculinidade.


AUDIÊNCIAS 1979