Discursos João Paulo II 1979 - Quarta-feira, 7 de Fevereiro de 1979


DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

AOS MEMBROS DO COLÉGIO

DE DEFESA DA NATO


8 de Fevereiro de 1979



Queridos amigos,

O meu predecessor Paulo VI teve o prazer de receber diversas visitas, ao longo dos anos, da faculdade, do pessoal e dos membros da NATO. E hoje, desejo eu apresentar, a todos vós, as minhas pessoais e cordiais boas-vindas ao Vaticano. É um prazer saudar-vos, como às vossas famílias, pela primeira vez, sentir a alegria da presença das crianças, e considerar brevemente convosco o papel que desempenhais ao serviço da paz no mundo.

Na minha Mensagem para o Dia Mundial da Paz deste ano, tentei chamar a atenção para as estreitas relações entre a educação e a paz. Precisamente porque sois uma instituição de educação, estou convencido de que tendes oportunidades especiais para estudar os requisitos e as condições de paz, as componentes de paz e as exigências de paz.

Vivendo e estudando num clima de solidariedade internacional, podeis meditar nos princípios de paz: para consolidar ideias e para reforçar atitudes que a promovam. Sim, a condição da construção de paz depende da firmeza com que os princípios da sua fundação são adoptados. E assim, eu desejaria esperar que no âmago das vossas actividades haja uma reflexão sobre os grandes princípios relacionados com a paz, e uma renovada dedicação, da vossa parte, para a aplicação dos mesmos.

A este respeito, como é necessário para todos os indivíduos e os povos cultivarem aquela verdade mútua que é uma obrigação nascida dos laços que nos unem como filhos de Deus! A sensibilidade para com as imensas necessidades da humanidade traz consigo uma espontânea rejeição da corrida às armas, que é tão incompatível com todo o combate contra a fome, as doenças, o subdesenvolvimento e o analfabetismo. A reflexão sobre a santidade da vida humana, sobre as exigências de justiça, e sobre a rejeição da violência nas suas muitas formas — a reflexão sobre estes temas é verdadeiramente necessária para assegurar as bases da paz. Numa palavra, a causa da paz do mundo está efectivamente protegida quando a dignidade da pessoa humana é assegurada. A dignidade inviolável de cada indivíduo e de todos os povos na plena realidade da sua origem, existência e destino é fundamental para que se produza a paz no mundo.

Rezo por que vós próprios tenhais pensamentos de paz, façais nascer novas atitudes de paz nas gerações mais jovens, e promovais efectiva e perseverantemente as condições que levam à paz. Que Deus possa dar-vos paz nos vossos corações e nos vossos lares - hoje e sempre.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


POR OCASIÃO DO RECEBIMENTO DO PRÉMIO


"GOLDENE KAMERA" OFERECIDO


PELA REVISTA AUSTRÍACA "HÖRZU"


Quinta-feira, 8 de Fevereiro de 1979

: Eminência, Senhoras e Senhores

Com a vossa visita, hoje, em companhia do venerável Senhor Cardeal König, desejastes premiar um acontecimento cuja transmissão televisiva em mundivisão obteve, o ano passado, uma repercussão mundial positiva.

E vós próprios, membros da redacção da Revista da Radiotelevisão Hörzu, quisestes indicar a transmissão televisiva da celebração eucarística que inaugurou o meu Pontificado, como o acontecimento mais notável do ano de 1978.

Do mesmo modo que esta liturgia inaugural, o ano passado houve também outros grandes acontecimentos relativos ao Papado os quais, graças aos modernos meios de comunicação social, aumentaram sensivelmente o interesse público pela pessoa e pela obra dos Papas. As emissões e os comentários relativos ao mais alto cargo da Igreja católica suscitam, presentemente, grande atenção. Isto não pode deixar de nos encher de alegria.

É neste sentido que desejaria igualmente considerar a vossa oferta honorífica, a "Goldene Kamera" que recebo com reconhecimento; um reconhecimento sincero para convosco e para com todos aqueles que contribuíram para o bom êxito das emissões relativas ao importante acontecimento eclesial.

E, se me permitis, desejaria ainda fazer-vos um pedido pessoal, eu queria pedir-vos que ajudásseis os radiouvintes e os telespectadores a adquirirem uma compreensão religiosa mais profunda deste género de emissões eclesiais, publicando sobre o assunto, na vossa Revista dos programas, de tão vasta difusão, adequadas apresentações e comentários judiciosos; por este meio formá-los-eis de um modo geral para um uso reflectido e crítico dos meios modernos da comunicação social, a fim de que estas maravilhosas conquistas da técnica os Levem a um autêntico progresso espiritual e moral.

Que, para isso, vos acompanhe a minha Bênção.





DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


NO FIM DO CONCERTO EM SUA HOMENAGEM


Sala Paulo VI

8 de Fevereiro de 1979

1. Desejo agradecer, em nome de todos os presentes, em primeiro lugar aos organizadores e aos artistas que nos ofereceram este momento de gozo espiritual: para estes e para quantos colaboraram para o feliz êxito desta manifestação vá a expressão do meu sincero e cordial reconhecimento.

2. O meu pensamento dirige-se, em seguida, para o Maestro Krzysztof Penderecki. Não é a primeira vez que eu assisto à execução duma obra sua. Recordo a "Passio et mors Domini Nostri Iesu Christi" segundo São Lucas, no pátio académico do Castelo de Wawel; e recordo a execução da "Utrenia" na igreja de Santa Catarina em Cracóvia. Nunca imaginaria que me viria a ser concedido receber o Senhor Penderecki na sala "Paulo VI" no Vaticano, nos primeiros meses do meu pontificado.

Estou profundamente comovido.

3. Desejo congratular-me consigo, Senhor Maestro, por esta obra-prima, que no conteúdo confirma a linha dos seus precedentes esforços artísticos. É-me difícil dizer alguma coisa mais, no que se refere à parte essencial, o aspecto estritamente musical, pelo qual me tenho de limitar a manifestar uma simples impressão. Devo confessar que esta impressão é profunda. No que diz respeito ao conteúdo, vem-me ao espírito uma frase pronunciada, talvez ainda antes da guerra, por um homem de arte, bem meu conhecido:

"Toda a grande obra de arte é — na sua inspiração e na sua raiz — religiosa".

Julgo que as grandes obras do Maestro Penderecki confirmam este princípio.

Desta vez dirigiu-se a Milton. Julgo que o "Paradise Lost" se tornou ocasião para exprimir, na linguagem tão original da sua composição, algumas perguntas que o homem faz a si mesmo; as perguntas que dizem respeito aos problemas fundamentais da sua existência e do seu destino.

A resposta a estas perguntas, que encontramos nas primeiras páginas da Sagrada Escritura, nos primeiros capitulas do livro do Génesis, não pode deixar de impressionar pela sua profundidade e pela sua lógica.

Não se trata de simples crónica de alguns acontecimentos; estão aí registadas as experiências fundamentais a que o homem, na sua existência, deve voltar sempre, apesar das precisações que a hermenêutica bíblica trouxe nesta matéria. Diria que os primeiros capítulos do livro do Génesis livram do risco de alienações aquilo que em cada um de nós existe de substancialmente humano.

Quero portanto congratular-me consigo, Maestro, pela ideia de dirigir-se a tal fonte através do poema do grande escritor inglês.

Pessoalmente muito me alegro de que tal obra musical tenha saído da pena dum compositor polaco. mais um testemunho da matriz cristã que penetra toda a nossa cultura. E como a linguagem da música é mais universal que a da literatura, faço votos por que este fruto, da criatividade artística dum meu compatriota, se venha a tornar motivo de emoções artísticas para todos os homens contemporâneos nossos, independentemente da própria nacionalidade de cada um.

Isto agradeço-o cordialmente ao Senhor.

Concluo com um aplauso sincero a cada artista, aos óptimos solistas, aos componentes da orquestra do Teatro da "Scala" e ao coro da ópera de Chicago, que tão magistralmente souberam interpretar a inspirada composição.

A todos a minha Bênção Apostólica.





DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


DURANTE O ENCONTRO


COM OS JOVENS NA BASÍLICA VATICANA


Quarta-feira, 14 de Fevereiro de 1979



Meninas e meninos caríssimos

Vejo-vos hoje muito numerosos e entusiastas como sempre. Saúdo-vos a todos juntos, com muito afecto. Sei que provindes de várias Escolas e pertenceis a Grupos diversos, mas para mim sois todos igualmente queridos. Estai sempre certos que o Papa está especialmente perto de vós e muito espera de vós, do alegre compromisso do vosso testemunho cristão e da seriedade com que vos preparais a participar responsavelmente na construção dum futuro melhor para o mundo inteiro.

Sabeis certamente da viagem que fiz há dias ao México, para me encontrar em Puebla com os representantes de todos os Bispos da América Latina. Pois desejo convidar-vos também a que dirijais o vosso pensamento de jovens cristãos aos trabalhos que lá realizaram aqueles Bispos nestes dias, sobre o tema da evangelização no presente e no futuro daquele Continente.

Evangelizar quer dizer anunciar o Evangelho, e o Evangelho resume-se todo na pessoa de Jesus Cristo: naquilo que ele pessoalmente significa para nós, como radical libertação de toda a forma de mal.

Caros jovens! A vós, como aos povos da América Latina, tenho esta única mensagem para transmitir: ponde, como estímulo da vossa vida, precisamente aquele Jesus Cristo que, segundo a Carta aos Hebreus, é o mesmo ontem, hoje e sempre (He 13,8).

Foi este Jesus que os primeiros missionários anunciaram na América, quando lá desembarcaram pela primeira vez, há mais de 400 anos. E este Jesus que ainda constitui a razão de ser de milhões de homens daqueles Países, que n'Ele não abandonaram mas nobilitaram as antigas tradições dos seus antepassados. É este Jesus que lhes dá força para realizar o compromisso concreto para a edificação duma sociedade mais justa e mais humana. E ainda será sempre este Jesus, Filho de Deus e Nosso Senhor, que no futuro também não abandonará nunca a sua Igreja difundida pelo mundo, mas por meio do seu Espírito sempre lhe infundirá capacidade para levar os homens a descobrir cada vez mais a beleza que encerra o ser cristão.

Por isso, é necessário reforçarmos todos nós, mais e mais, os vínculos da nossa comunhão eclesial. Todos juntos devemos sentir-nos mais "igreja" e mais "povo de Deus". Os meus caros Irmãos no Episcopado do Continente Latino-Americano dão este testemunho de unidade: "é o amor de Cristo que os constrange" (Cfr. 2Co 5,14) a empenharem-se pelo Evangelho em favor dos seus povos; e nisto são ajudados eficazmente pelos membros mais desenvolvidos daquelas Igrejas, isto é, por grande número de Sacerdotes, Religiosos e Leigos, que dispendem a própria vida para formar um Povo de Deus fundado na justiça, na verdade e no amor. Todavia, devemos pedir ao Senhor que desperte vocações cada vez mais numerosas e qualificadas, para a promoção evangélica daquelas dilectas comunidades.

Caros jovens, cedo ou tarde deveis pensar também vós como vos podereis tornar úteis para melhorar a sociedade humana e o mundo em que vivemos. Então pensareis também no que poderá servir mais e melhor para esta finalidade. Pois bem, recordai-vos que só com o Evangelho de Jesus Cristo sereis capazes de libertar verdadeiramente o homem de toda a escravidão e de dar-lhe a felicidade mais profunda. De facto, o Evangelho coloca no centro o amor e não o ódio, a igualdade de todos e não a opressão exercida por poucos, o diálogo na paz e não o choque nas lutas, a pessoa humana e não uma ideologia abstracta, a promoção da vida em todas as suas manifestações e nunca o dar-lhe a morte.

É isto o que, com o auxílio de Deus e com a protecção de Nossa Senhora de Guadalupe, estão a fazer os verdadeiros cristãos na América Latina, em união e em sintonia com os seus Bispos.

Isto é também o que vos desejo de todo o coração, ao mesmo tempo que paternalmente vos abençoo a todos, e também aos que vos são queridos.

MENSAGEM DO PAPA JOÃO PAULO II

AOS CATÓLICOS DA BOLÍVIA

: Queridos filhos bolivianos

A paz do Senhor esteja sempre convosco!

Neste momento sinto unia grande satisfação por estar entre vós, ao inaugurar, via satélite, esta nova estação de comunicação social de Tiwanacu. Este acto dá-me ocasião para expressar as minhas mais sinceras congratulações porque ele é reflexo de um progresso técnico, destinado a fomentar cada vez mais o intercâmbio fraterno e pacífico com os outros povos, tornando-vos reciprocamente participantes da própria riqueza humana e espiritual.

Mas sobretudo dá-me ocasião para vos testemunhar, de perto, o meu afecto de Pai e de Pastor universal; um afecto profundo, ao qual se une no meu coração uma alegre confiança, na certeza de que, em conformidade com a vossa secular adesão à mensagem evangélica, continuareis a oferecer ao mundo e de modo especial à Igreja, a genuína imagem de uma comunidade cheia de vitalidade, intimamente unida pelos vinculas da fé, da caridade e da paz cristãs. Seja esta comunhão, fruto da presença do Espírito nas vossas almas, a dar sempre um perfil inconfundível ao vosso povo e a impulsionar diariamente a busca de ulteriores metas de progresso e de bem-estar comum.

Sei que estais já a preparar ou a ampliar uma cruzada de oração em família; e isso é motivo real de esperança. A oração nobilita, dignifica o cristão, colocando-o em sintonia de submissão e de gratidão a Deus, que se deu todo aos homens, tornando-nos participantes, mediante Seu Filho, da Sua própria vida divina. Poderá haver comunicação maior e mais intima? Pela oração pessoal, pela oração no lar e mais ainda pela oração litúrgica, o homem renasce cada dia, à medida que vai assimilando e dando vida no seu comportamento, aos dons divinos, até se converter deveras em familiar próximo, em filho de Deus. Rezar é estar em família, edificar comunidade, entroncar-se salutarmente na nova e definitiva Aliança, selada por Cristo no sacramento do amor: a Eucaristia.

Exorto-vos, pois, queridos filhos, a intensificardes a oração em família e a oração litúrgica em torno da Eucaristia: sejam elas a seiva que alimente toda a vossa vida individual e comunitária. Através delas ireis descobrindo e saboreando a ventura da solidariedade plena que se desdobra de maneira instintiva e genuína onde quer que haja pobres, doentes, pessoas que sofrem injustiças ou que não encontram mãos amigas que as ajudem a superar as suas limitações. E associai sempre a vossa oração perseverante e unânime a Maria, Mãe de Deus e nossa Mãe, que, sob a invocação de Nossa Senhora de Copacabana, é, junto do Senhor, advogada segura dos vossos bons desejos.

De todo o coração vos abençoo, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo.

Vaticano, 16 de Fevereiro de 1979

JOÃO PAULO PP. II






DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS MEMBROS DO TRIBUNAL


DA SAGRADA ROTA ROMANA


Sábado, 17 de Fevereiro de 1979



Fico-vos agradecido por esta visita e, em particular, ao vosso venerado Monsenhor Decano, que se tornou intérprete dos vossos sentimentos.

Saúdo-vos a todos do coração e alegro-me com esta oportunidade que me permite encontrar-me, pela primeira vez, com aqueles que encarnam por excelência a função judicial da Igreja ao serviço da verdade e da caridade para a edificação do Corpo de Cristo. E permite-me reconhecer, neles como ainda em todos os outros administradores da justiça e nos cultores do direito canónico, os que tomam como profissão um encargo vital na Igreja, as testemunhas infatigáveis duma justiça superior num mundo caracterizado pela injustiça e pela violência e, portanto, os preciosos colaboradores na actividade pastoral da própria Igreja.

1. Como bem sabeis, entram também na vocação da Igreja a obrigação e o esforço de ser intérprete da sede de justiça e dignidade que os homens e as mulheres sentem vivamente na época actual. E nesta função de proclamar e defender os direitos fundamentais do homem em todos os estádios da sua existência, a Igreja sente-se confortada pela comunidade internacional que recentemente celebrou com especiais iniciativas o 30.° aniversário da Declaração universal dos direitos do homem, e proclamou este ano de 1979 como Ano Internacional da Criança.

Talvez o século XX venha a classificar a Igreja como o principal baluarte na defesa da pessoa humana em todo o decurso da sua vida terrena desde a concepção. Na evolução da autoconsciência eclesial, a pessoa humano-cristã encontra não só um reconhecimento, mas também e sobretudo uma tutela aberta, activa e harmónica, dos seus direitos basilares em sintonia com os da comunidade eclesial. Também isto é encargo irrenunciável da Igreja, que no terreno das relações pessoais oferece um modelo de integração entre o desenvolvimento ordenado da sociedade e a realização da personalidade do cristão numa comunidade de fé, esperança e caridade (Cfr. Lumen Gentium LG 8).

O direito canónico desempenha função sumamente educativa, individual e social, no intuito de criar uma convivência ordenada e fecunda, em que germine e amadureça o desenvolvimento integral da pessoa humano-cristã. Esta, de facto, só se pode realizar na medida em que se negue como individualidade exclusiva, sendo a sua vocação ao mesmo tempo pessoal e comunitária. O direito canónico consente e favorece este aperfeiçoamento característico, enquanto conduz a que se ultrapasse o individualismo: da negação de si como individualidade exclusiva leva à afirmação de si como genuína socialidade, mediante o reconhecimento e o respeito do outro como «pessoa» dotada de direitos universais, invioláveis e inalienáveis, e revestida de dignidade transcendente.

Porém a missão da Igreja e o mérito histórico dela, de proclamar e defender em toda a parte e sempre os direitos fundamentais do homem, não a exime, antes a obriga, a ser diante do mundo «speculum iustitiae». A Igreja tem neste campo responsabilidade própria e específica.

Esta opção fundamental, que representa uma, tomada de consciência por parte de todo o «Povo de Deus», não deixa de atingir e estimular todos os homens da Igreja — e em particular aqueles que, como vós, têm missão especial neste particular — a que amem a justiça e o direito Sl. 33, 5. ). Mais, tal coisa compete sobretudo aos agentes dos tribunais eclesiásticos, àqueles, numa palavra, que devem julgar com justiça (Ps 7,9 Ps 67,5 etc. ). Como afirmava o meu venerado Predecessor Paulo VI, vós que vos dedicais ao serviço da nobre virtude da justiça, podeis ser chamados, segundo a belíssima expressão já usada por Ulpiano, «Sacerdotes iustitiae», porque se trata de facto dum «nobre e alto ministério, sobre cuja dignidade reverbera a própria luz de Deus, Justiça primordial e absoluta, fonte puríssima de toda a justiça terrena. A esta luz divina se deve considerar o vosso «ministerium Iustitiae», que deve ser sempre fiel e irrepreensível; a esta luz compreende-se como ele deve evitar qualquer mínima mancha de injustiça, para conservar a tal ministério o seu carácter de pureza cristalina» (Insegnamenti di Paolo VI, III, 1965, 29-30).

2. O grande respeito devido aos direitos da pessoa humana, que devem ser tutelados com todo o empenho e solicitude, há-de levar o juiz à observância exacta das normas processuais, que precisamente constituem as garantias dos direitos da pessoa.

O juiz eclesiástico, além disso, não só deverá ter presente que a «exigência primária da justiça é respeitar as pessoas»(L. BOUYER, L'Eglise de Dieu, Corps du Christ et temple de l'Esprit, Paris 1970, 599) mas, para além da justiça, deverá tender à equidade, e, para além desta, à caridade (Cfr. P. ADRIEU-GUITRANCOURT, Introduction sommaire à l'étude du droit en général et du droit canonique en particulier, Paris 1963, 22).

Nesta linha, historicamente consolidada e experimentalmente vivida, declarara-se no Concílio Vaticano II que «com todos se é obrigado a proceder segundo a justiça e a humanidade» (Dignitatis humanae DH 7), e mesmo para a sociedade civil, se falara dum «ordenamento jurídico positivo, que organize uma oportuna divisão das funções e dos órgãos do poder, juntamente com uma protecção eficaz e independente dos direitos» (Gaudium et Spes GS 75). Baseada em tais pressupostos, por ocasião da reforma da Cúria, a Constituição «Regimini Ecclesiae Universae» estabeleceu que se instituísse uma segunda secção no Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica, com a competência de dirimir as «contentiones ... ortas ex actu potestatis administrativae ecclesiasticae, et ad eam, ob interpositam appellationem seu recursum adversus decisionem competentis Dicasterii, delatas quoties contendatur actum ipsum legem aliquam violasse» (A.A.S. 59, 1967, 921-22).

Para recordar, por último, o insuperável perfil que dele traçou o Papa Paulo VI «o juiz eclesiástico é, por essência, aquele quaedam iustitia animata de que fala São Tomás citando Aristóteles; deve por isso sentir e cumprir a sua missão com ânimo sacerdotal, adquirindo, juntamente com a ciência (jurídica, teológica, psicológica, social, etc.), grande e habitual domínio de si, com um empenho reflexo de crescer na virtude, de maneira que não ofusque possivelmente com o aspecto duma personalidade defeituosa e contorcida os superiores raios de justiça que o Senhor lhe concede para o recto exercício do seu ministério. Será assim, mesmo ao pronunciar o juízo, Sacerdote e pastor de almas, solum Deum prae oculis habens» (Insegnamenti di Paolo VI, IX, 1971, 65-66).

3. Desejo aludir a um problema que se apresenta imediatamente ao observador da fenomenologia da sociedade civil e da Igreja; quer dizer, o problema da relação que medeia entre tutela dos direitos e comunhão eclesial. Não há dúvida que a consolidação e a salvaguarda da comunhão eclesial é missão basilar que dá consistência a todo o ordenamento canónico e guia as actividades de todos os seus organismos. Mesmo a vida jurídica da Igreja, e por isso também a actividade judicial, é em si mesma —por sua natureza — pastoral «inter subsidia pastoralia, quibus Ecclesia utitur, ut homines ad salutem perducat, est ipsa vita iuridica» (Insegnamenti di Paolo VI, XV, 1977, 124). Deve ela portanto no seu exercício ser sempre animada profundamente pelo Espírito Santo, a cuja voz hão-de abrir-se as mentes e os corações.

Por outro lado, a tutela dos direitos e a consequente verificação dos actos da administração pública constituem, até para os poderes públicos, garantia de indiscutível valor. No contexto da possível rotura da comunhão eclesial e da exigência inderrogável da sua recomposição, juntamente com os vários institutos preliminares (como a «aequitas», a «tolerantia», a arbitagem, a transacção, etc.) o direito processual é um facto de Igreja, como instrumento de superação e resolução dos conflitos. Mais, na visão duma Igreja que tutela os direitos de cada fiel, mas promove também e protege o bem comum como condição indispensável para o desenvolvimento integral da pessoa humana e cristã, insere-se positivamente também a disciplina penal: também a pena cominada pela autoridade eclesiástica (mas que na realidade é reconhecer uma situação em que o sujeito mesmo se colocou) é vista, de facto, como instrumento de comunhão, isto é, como meio de recuperar aquelas carências de bem individual e de bem comum que se revelaram no comportamento antieclesial, delituoso e escandaloso do povo de Deus.

Esclarece ainda Paulo VI: «Sed iura fundamentalia baptizatorum non sunt efficacia neque exerceri possunt, nisi quis officia ipso baptismate cum illis connexa agnoscat, praesertim nisi persuasum sibi habeat eadem iura in communione Ecclesiae esse exercenda; immo haec iura pertinere ad aedificationem Corporis Christi, quod est Ecclesia, ideoque eorum exercitium ordini et paci convenire, non autem licere ut detrimentum afferant» (Ibidem).

Se depois o fiel reconhece, sob o impulso do Espírito, a necessidade duma profunda conversão eclesiológica, transformará a afirmação e o exercício dos seus direitos em aceitação de deveres de unidade e solidariedade para o exercício dos valores superiores do bem comum. Recordei-o explicitamente na mensagem ao Secretário da ONU por ocasião do 30.° aniversário da Declaração dos direitos do homem: «Ao insistir — e com razão — na defesa dos direitos humanos, não se devem perder de vista as obrigações e os deveres que derivam dos direitos. Cada indivíduo tem obrigação de exercer os seus direitos fundamentais duma maneira responsável e eticamente justificada. Cada homem ou mulher tem o dever de respeitar nos outros os direitos que reclama para si. Além disso, todos nós temos de contribuir com a nossa parte para a construção duma sociedade que torne possível e real o gozo dos direitos e cumprimento dos deveres consequentes desses direitos» (Mensagem ao Secretário-Geral das Nações Unidas, neste jornal com a data de 24.12.1978, pág. 6).

4. Na experiência existencial da Igreja, as palavras «direito», «juízo» e «justiça», apesar das imperfeições e dificuldades de qualquer ordenamento humano, lembram o modelo duma justiça superior, a Justiça de Deus, que se coloca como meta e termo de confronto inevitável. Isto comporta um esforço formidável em todos aqueles que «administrem a justiça».

Na tensão histórica para uma equilibrada integração dos valores, pretendeu-se algumas vezes acentuar sobretudo a «ordem social» com prejuízo da autonomia da pessoa, mas a Igreja nunca cessou de proclamar «a dignidade da pessoa humana, como ela se conhece quer por meio da palavra de Deus revelada quer até por meio da razão» (Dignitatis humanae DH 2); ela sempre resgatou de qualquer forma de opressão as «miserabiles personas», denunciando as situações de injustiça, quando os direitos fundamentais do homem e até a sua salvação o requeriam, e pedindo — com respeito mas com clareza — que a semelhantes situações lesivas da justiça se pusesse remédio.

Em conformidade com a sua missão transcendente, o «ministério da justiça» a vós confiado coloca-vos numa responsabilidade especial para tornar cada vez mais transparente o rosto da Igreja «speculum iustitiae», encarnação permanente do Príncipe da justiça e da paz.

Estou certo que todos quantos colaboram na actividade judicial da Igreja, especialmente os Prelados Auditores, os Oficiais e todo o pessoal do Tribunal Apostólico, e também os Senhores Advogados e Procuradores, estão plenamente conscientes da importância da missão pastoral em que participam, e prontos a desempenhá-la com diligência e dedicação, segundo o exemplo de tantos juristas insignes e zelosos Sacerdotes, que a este Tribunal dedicaram com admirável solicitude os seus dotes de mente e coração.

Apraz-me neste momento recordar o Cardeal Boleslaw Filipiak, chamado à pátria celeste o ano passado; e desejo também prestar homenagem ao exemplo de diligência e abnegação do venerado Monsenhor Carlo Lefebvre, de cuja preciosa experiência continua a beneficiar a Santa Sé depois do serviço por ele prestado até há poucos meses à Sagrada Rota Romana.

O meu reconhecimento dirige-se também aos Prelados Auditores, que por motivos de saúde não puderam continuar no serviço que prestavam.

A todos vós a minha viva gratidão e o meu sincero apreço, com a certeza da minha oração: o Senhor vos acompanhe com o seu auxílio, e ajudem-vos o meu incitamento e a minha bênção.





PALAVRAS DO PAPA JOÃO PAULO II


NA VISITA À CAPELA DEDICADA


AO BEATO MAXIMILIANO KOLBE


Domingo, 18 de Fevereiro de 1979

Queridos Irmãos e Irmãs

É para mim motivo de satisfação exprimir, depois da celebração eucarística na Igreja paroquial de São Gregório Magno a Pian due Torri, a minha cordial e abençoadora saudação também a vós, jovens, trabalhadores, fiéis todos que vos reunis para os vossos encontros litúrgicos e sacramentais nesta Capela subsidiária da Magliana, felizmente intitulada ao Beato Maximiliano Maria Kolbe, meu venerado compatriota.

Agradeço-vos sinceramente o entusiasmo com que me recebestes neste lugar de culto e, sobretudo, o fervoroso espírito de fé com que o frequentais.

Exprimo-vos igualmente a minha paterna satisfação pela significativa escolha do vosso protector, definido pelo sempre saudoso e grande Papa Paulo VI como "imagem luminosa para a nossa geração" (Exort. Gaudete in Domino). Como sabeis, durante as provas mais trágicas que ensanguentaram a nossa época, o Beato Kolbe ofereceu-se espontaneamente à morte para salvar um irmão que lhe era desconhecido (Francisco Gajownicek), que, embora inocente, tinha sido condenado à morte por represália em seguida à fuga de um prisioneiro, no campo de concentração de Oswiecim. O heróico mártir foi condenado a morrer de fome e, a 14 de Agosto de 1941, entregou a Deus a sua alma, depois de ter assistido e confortado os seus companheiros de desventura.

Humilde e manso Filho de São Francisco, e Cavaleiro apaixonado de Maria Imaculada, Kolbe atravessou os caminhos do mundo, da Polónia à Itália e ao Japão, fazendo bem a todos, a exemplo de Cristo que, pertransivit benefaciendopassou fazendo bem (Ac 10,38). Jesus, Maria Santíssima e Francisco foram os três grandes amores, isto é, o segredo da sua caridade heróica: "Só o amor cria", repetia a todos os que dele se aproximavam. É esta a expressão que, como uma lâmpada ilumina toda a sua vida. Foi este ideal superior, este dever primordial de todo o cristão autêntico, que lhe fez superar a crueldade e a violência da sua tremenda prova com o esplêndido testemunho do seu amor fraterno e do perdão concedido aos perseguidores.

Oxalá que o exemplo e a ajuda do Beato Maximiliano vos conduzam também ao verdadeiro e desinteressado amor cristão para com todos os irmãos num mundo em que o ódio e a vingança não cessam de despedaçar a convivência humana.

Invocando sobre vós a sua protecção e o sorriso da Virgem Imaculada, abençoo-vos a todos, e, convosco, também os vossos familiares, parentes e amigos.



ENCONTRO DO PAPA JOÃO PAULO II


COM OS JOVENS NA BASÍLICA VATICANA


Quarta-feira, 21 de Fevereiro de 1979

Caríssimos

1. Cada encontro é para mim e para vós nova descoberta, fonte de alegria autêntica. O Papa quer conhecer, chamar a diálogo e sentir os seus pequenos e jovens amigos; mas também vós, pela vossa parte, tendes grande desejo de manifestar ao Papa a vossa alegria, o vosso entusiasmo e também, porque não?, os vossos problemas.

Ora, vós sois particularmente sensíveis ao grande problema da "liberdade", da "libertação". Mas, perguntamo-nos, vós e eu, "liberdade", em que sentido?, "libertação" de quem, de quê, de que condicionamento e de que escravidão?

Mais uma vez me refiro hoje ao tema da terceira Conferência do Episcopado Latino-Americano, dedicada à evangelização, no presente e no futuro da Igreja. Evangelizar significa fazer tudo, segundo as nossas capacidades, para que o homem "creia", para que o homem se reencontre a si mesmo em Cristo, para que encontre n'Ele o sentido pleno e a dimensão adequada da própria vida. Este "encontro" é, ao mesmo tempo, a fonte mais profunda da libertação do homem. Cristo libertou-nos para ficarmos livres, diz-nos São Paulo (Ga 5,1). A libertação é certamente uma realidade de fé, inscrita profundamente na missão salvífica de Cristo, na sua obra e no seu ensino.

2. Também Jesus associa "libertação" e conhecimento da verdade: Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará (Jn 8,32). Há nesta afirmação o significado íntimo da liberdade que nos dá Cristo. A libertação é transformação interior do homem, como consequência proveniente do conhecimento da verdade; trata-se dum processo espiritual de maturação, mediante o qual o homem se torna representante e porta-voz da justiça e da santidade verdadeira (Ep 4,24) nos diversos níveis da vida pessoal, individual e social. Mas esta verdade não é a simples verdade de carácter científico ou histórico, é o próprio Cristo — Palavra do Pai encarnada — que pode dizer de si mesmo: Eu sou o caminho, a verdade e a vida (Jn 14,6). Por isso, Jesus, repetidamente e coro energia, se opôs na sua vida terrena com firmeza e decisão à "não-verdade", embora estivesse consciente daquilo que o esperava.

Este serviço prestado à verdade, participação no serviço profético de Cristo, é missão da Igreja, que procura cumpri-la nos diversos contextos históricos. É necessário chamar claramente pelo nome a injustiça, a exploração do homem por parte do homem, a exploração do homem por parte do Estado ou por parte dos mecanismos inerentes aos sistemas e aos regimes. É necessário chamar pelo nome toda a injustiça social, toda a discriminação e toda a violência infligida ao homem no que se refere ao seu corpo, ao seu espírito, à sua consciência, à sua dignidade de pessoa e à sua vida.

A libertação, mesmo no significado social, toma início no conhecimento e na proclamação corajosa da verdade, sem manipulações e sem falsificações de importância.

3. Também vós, jovens e meninos, estais sempre intensamente unidos a Cristo-Verdade, sois testemunhas da Verdade, que é Ele mesmo e a sua mensagem, confiada esta ao homem, frágil e forte ao mesmo tempo. Recordais-vos da iluminadora meditação de Pascal sobre o homem? "O homem não é senão uma cana, a mais fraca da natureza; mas é uma cana pensante. Não é necessário que o universo inteiro se arme para esmagá-la: um vapor, uma gota de água bastam para matá-lo. Mas, ainda mesmo que o universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre que aquilo que o mataria, porque sabe que morre e, pelo contrário, da superioridade que tem sobre ele, não sabe nada o universo" (B. Pascal, Pensées, 347).

Eis que esta frágil cana, precisamente porque é "pensante", se supera a si mesma; leva dentro de si o mistério transcendental e aquela "inquietação-criativa", que dele provém. Todavia, anuncia-se precisamente nestes tempos que a condição para a "libertação do homem" será a sua libertação "de Cristo", da sua mensagem, da sua lei de amor, isto é, da religião, que é definida como "alienação do homem".


Discursos João Paulo II 1979 - Quarta-feira, 7 de Fevereiro de 1979