Discursos João Paulo II 1979

JOÃO PAULO PP. II






ENCONTRO DO PAPA JOÃO PAULO II


COM OS JOVENS NA BASÍLICA VATICANA


Quarta-feira, 28 de Fevereiro de 1979

Caríssimos!

1. Antes de tudo, desejo dirigir a cada um de vós uma cordial saudação e um sincero agradecimento. Esta vossa presença, tão numerosa e alegre, é um significativo testemunho do amor que vos liga ao Papa, em quem sabeis reconhecer, com fé iluminada e penetrante, o Vigário de Cristo.

É-me fácil, portanto, abrir um diálogo convosco, um diálogo simples e familiar que desejaria fosse escutado por todos como se fosse dirigido a cada um pessoalmente. O tema da nossa conversação de hoje é-nos sugerido pela celebração litúrgica da "quarta-feira de cinzas". Vós sabeis que neste dia, em que tem inicio o período de preparação para a Páscoa, a Igreja impõe as cinzas sobre a cabeça dos fiéis e os convida à penitência. Esta palavra "penitência" repete-se em muitas páginas da Sagrada Escritura, ecoa na boca de muitos Profetas e, por fim, de modo particularmente eloquente, ecoa na boca do próprio Jesus Cristo: Convertei-vos, porque está próximo o reino dos céus (Mt 3,2).

2. A "penitência" em sentido evangélico significa sobretudo isto: "converter-se". Jesus contesta o modo puramente exterior com que muitos contemporâneos seus cumpriam os actos próprios da penitência: a esmola, o jejum e a oração. Eles descuidavam o verdadeiro fim destes actos, que era a purificação interior, necessária para nos podermos encontrar no íntimo da consciência, "no segredo do coração", com a santidade misericordiosa de Deus.

Recordais aquela página singular do Evangelho segundo Mateus? Quando, pois, deres esmola, não permitas que toquem trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas... a fim de serem louvados pelos homens...; que a tua mão esquerda não saiba o que faz a direita, a fim de que a tua esmola permaneça em segredo; e teu Pai, que vê o oculto, premiar-te-á. Quando orardes, não sejais como os hipócritas, que gostam de rezar, de pé, nas sinagogas e nos cantos das ruas, para serem vistos pelos homens... Tu, quando orares, entra no teu quarto, e, fechada a porta, reza em segredo a teu Pai, pois Ele, que vê o oculto, recompensar-te-á (Mt 6,2-6).

É este, pois, o verdadeiro significado de todo o autêntico compromisso "penitencial": subtrair-se à corrente das coisas exteriores, fazer calar o rumor invasor de tantas vozes humanas, para reentrar em si mesmo, na própria interioridade mais profunda, porque é no silêncio da consciência que Deus nos espera. De facto, quando Jesus diz: "entra no teu quarto e fecha a porta", não convida a um isolamento que seja fim a si mesmo. Aquele "fechar a porta" está em função da única abertura decisiva do coração humano: a abertura para Deus: teu Pai, que vê o oculto, premiar-te-á. No encontro com Deus está a "recompensa" a que aspira cada coração humano: a experiência do perdão e da libertação espiritual.

3. A penitência, por conseguinte, não é só esforço; é também alegria.

Mais ainda: por vezes é uma grande alegria do espírito humano, uma alegria que não pode brotar de outras fontes.

Não vos parece, queridos jovens, que muitos dos vossos coetâneos tenham perdido, em certa medida, o gosto desta alegria? Perderam-no porque perderam o profundo sentido daquele esforço espiritual que leva a que nos encontremos a nós mesmos em toda a verdade da própria humanidade. A nossa civilização, sobretudo no ocidente — ligada como está ao progresso da ciência e da técnica entrevê a necessidade do esforço intelectual e físico; mas não considera suficientemente a importância do esforço necessário para recuperar e promover os valores do homem. E isto paga-o com aquele sentido de vazio e desorientação experimentado especialmente pelos jovens, por vezes mesmo de modo dramático.

A severa liturgia da "quarta-feira de cinzas", e todo o período da Quaresma que se lhe segue, constituem um chamamento sistemático à descoberta daqueles valores e à renovada experiência daquele encontro com Cristo, o único que pode dar pleno sentido à vida. Afirmemo-lo com clareza: a Quaresma é o caminho para a alegria do encontro com Cristo ressuscitado.

Os meus votos são por que cada um de vós, e convosco muitos, muitíssimos outros jovens, saibam aproveitar a oportunidade oferecida por este período do ano litúrgico para se porem corajosamente a caminho. Com a minha Bênção Apostólica.





DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


À COMUNIDADE DAS IRMÃS CAMALDULENSES


Quarta-feira, 28 de Fevereiro de 1979

Estou satisfeito caríssimas Irmãs em Cristo, deste encontro por vós tão desejado. Ao dirigir-vos uma afectuosa saudação, quero recordar-vos quão insistentemente olha a Igreja com maternal solicitude para o vosso compromisso de oração, de contemplação e de sacrifício.


Ocupar-se de Deus é considerado pelos mestres da vida espiritual como a mais nobre e mais alta forma de actividade do ser humano pois este concentra inteiramente a sua pessoa em adorar e ouvir o Ser Infinito, que deseja a salvação da humanidade inteira. Bem se compreende, assim, como a essa oração de louvor se junta a oração de propiciação e de impetração, para que se realize esta divina vontade.

E tanto mais é aceita a Deus esta oração, quanto mais inocente e pura é a alma que a apresenta. Eis aqui, portanto, a preciosa forma de colaboração que vós, Claustrais de vida eminentemente contemplativa, ofereceis à Igreja para o bem das almas.

Não só vos peço que persevereis nos vossos generosos propósitos, mas exorto-vos a que progridais constantemente na amizade com Deus, e reaviveis continuamente a chama do amor, como vulcões cobertos de neve. Na hora presente, tão difícil pelos numerosos estorvos que opõe, a vossa oração, alimentada pelo sacrifício na solidão e no silêncio, atraia para a bondade misericordiosa de Deus. E formulando este desejo invoco sobre toda a Comunidade a assistência divina e abençoo-vos paternalmente.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


ÀS ESTUDANTES DO TRINITY COLLEGE DE ROMA


Quarta-feira, 28 de Fevereiro de 1979



Sinto-mo feliz com a oportunidade de saudar alunas que estudam arte em Roma. A Igreja está sempre ansiosa de repetir quanto ama e estima os estudantes. Em particular a Igreja de Roma tem o gosto de vos dar as boas-vindas e de mostrar-vos a tradição de arte de que ela é guarda e diligente promotora.

A Igreja espera que, através da beleza da sua Cidade e da sua arte, sereis levadas a maior compreensão do mistério do homem, que é o centro de todas as coisas na terra (cfr. Gaudium et Spes GS 12). Ao mesmo tempo a Igreja mantém, professa e oferece a cada um, Cristo como "chave, centro e termo de toda a história humana" (ibid.10).

Caras jovens, nos vossos estudos eu peço que encontreis a Cristo, em toda a sua humanidade, em toda a sua divindade. Deus vos abençoe a todas.





                                                            Março de 1979

ALOCUÇÃO DO PAPA JOÃO PAULO II


A UMA REPRESENTAÇÃO DE MILITARES ITALIANOS


Quinta-feira, 1 de Março de 1979



Ilustríssimos Senhores e Senhoras
Caríssimos jovens

Sinto grande satisfação em receber-vos e manifestar-vos a minha gratidão sincera pelo pensamento delicado e a fé profunda que vos trouxeram aqui.

Dirijo a minha cordial saudação às Autoridades, e em primeiro lugar ao Senhor Ministro da Defesa, aos Chefes do Estado-Maior, aos Oficiais, aos Representantes de todos os ramos do Exército, ao Pessoal sanitário, aos empregados nos vários serviços, às Senhoras do Patronato, às Irmãs dos Hospitais militares e às Senhoras da Cruz Vermelha, e desejo tornar extensivo o meu pensamento a todas as pessoas que vos são queridas.

Em especial vos saúdo a vós, jovens, que prestais o serviço militar, e apraz-me fazer notar que vejo em vós, primeiro que tudo, a juventude, sempre generosa e ousada nas suas aspirações, nos seus profundos sentimentos, nos seus ideais, nas suas exigências diante das grandes opções da vida; depois, vejo em vós a Itália, a vossa Pátria, esta Nação sugestiva e privilegiada, amada e visitada por todas as gentes do mundo e para a qual as outras nações olham com admiração, por causa da Sé de Pedro e dos incalculáveis tesouros de arte, de literatura e de belezas naturais, que levaram grandes poetas e pensadores do mundo inteiro a descrevê-la e a cantá-la como "pátria" do coração; vejo ainda em vós, na Farda que vestis, o testemunho dum compromisso solene na defesa dos valores fundamentais da liberdade, da ordem, da justiça e da paz.

Reflectindo agora um instante sobre a vossa idade juvenil e na vossa actual missão, e alargando também o olhar a todos os vossos amigos da Itália que representais aqui, quero exprimir alguns pensamentos que me ocorrem espontâneos.

1. A vossa idade é a da pergunta última: Que sentido tem a vida? E, por conseguinte, que sentido tem a história humana?

É sem dúvida a pergunta mais dramática e é também a mais nobre, que verdadeiramente qualifica o homem na sua natureza de pessoa, inteligente e volitiva. De facto, o homem não pode fechar-se no limite do tempo, no círculo da matéria, no modo duma existência imanente e auto-suficiente; pode tentar fazê-lo, pode até afirmar de palavra e com gestos que a sua pátria é só o tempo e que a sua piorada é só o corpo. Mas na realidade a pergunta última agita-o, punge-o e atormenta-o. É pergunta a que não se pode fugir. Sabemos como, infelizmente, grande parte do pensamento moderno, ateu, agnóstico e secularizado, insiste em afirmar e ensinar que a interrogação suprema seria uma doença do homem, uma montagem de género psicológico e sentimental, que exige cura, enfrentando corajosamente o absurdo, a morte e o nada.

É filosofia subtilmente perigosa, porque sobretudo o jovem — ainda frágil no pensamento, agitado pelas dolorosas viragens da história passada e presente, pela instabilidade e incerteza do futuro, por vezes traído nos afectos mais íntimos, marginalizado e desempregado — pode sentir-se impelido a refugiar-se na droga, na violência ou no desespero.

2. A vossa idade é a do encontro consciente e voluntário com Cristo. Caríssimos jovens, só Jesus Cristo é a resposta adequada e última à pergunta suprema acerca do sentido da vida e da história.

Respeitando mesmo todos os que têm outras ideias e sabendo perfeitamente que a fé em Cristo tem os seus tempos e as suas estações, e exige uma maturação pessoal, ligada à "graça" de Deus, eu digo-vos com franqueza confiada que, passadas a idade ingénua da meninice e a época sentimental da adolescência e atingida a juventude, isto é, na vossa idade exuberante e crítica, a mais bela e entusiasmante aventura que vos possa tocar é o encontro pessoal com Jesus, que é o único a dar verdadeiro significado à nossa vida.

Não basta procurar; é necessário procurar para encontrar a certeza. E a certeza é Jesus que afirma: Eu sou o caminho, a verdade e a vida (Jn 14,6); Eu sou a luz do mundo; quem me segue não anda nas trevas... (Jn 8,12); Eu vim para dar testemunho à verdade (Jn 18,37).

Só Jesus tem palavras convincentes e consoladoras; só ele tem palavras de vida eterna: Deus tanto amou os homens que lhes deu o seu Filho Unigénito, para que todo aquele que n'Ele crê não morra mas tenha a vida eterna; Deus não mandou o Filho ao mundo para julgar o mundo, mas para o mundo se salvar por meio d'Ele (Jn 3,16-17).

Não há solução para o cepticismo e o desespero, senão na fé em Cristo. Só Jesus revela o significado da nossa existência no ilimitado mistério do universo, no vértice obscuro e imprevisível da história. O grande e bem conhecido filósofo e matemático Blaise Pascal, chegado finalmente ao encontro definitivo e gozoso com Cristo, escrevia nos seus pensamentos, com insuperável lucidez: "Não só conhecemos a Deus unicamente por meio de Jesus Cristo, mas só nos conhecemos a nós mesmos por meio ele Jesus Cristo. Nós não conhecemos a vida e a morte senão por meio de Jesus Cristo. Fora de Jesus Cristo não sabemos o que seja a nossa vida ou a nossa morte, o que seja Deus e nós mesmos. Por isso, sem a Escritura que tem só por objecto a Jesus Cristo, não conhecemos nada e não vemos senão obscuridade e confusão na natureza de Deus e na nossa natureza" (Pascal, Pensées. n. 548). E o Concílio Ecuménico Vaticano II insistiu em que "só no mistério do Verbo Encarnado encontra luz plena o mistério do homem" (Const. Past. Gaudium et Spes GS 22).

3. Por último, e e a conclusão prática, 'a vossa é a idade da decisão mais importante. Qualquer caminho que escolhais na vida, a decisão mais importante é viver — em toda a parte, sempre e com todos — o ideal cristão do amor a Deus e ao próximo.

Não vos afasteis de Cristo. Decidi pelo lado d'Ele. A humanidade precisa sobretudo de bons Samaritanos, porque precisa de Cristo.

Gosto de recordar uma exortação que Paulo VI, meu venerado predecessor, exactamente nesta sala, dirigia a 12.000 jovens, há dois anos: "Não vos deixeis enganar por aqueles que desejassem introduzir no vosso coração ideais diversos e mesmo em contraste com os da vossa fé. Só em Cristo está a solução de todos os vossos problemas. E Ele que liberta o homem das cadeias do pecado e de toda a escravidão: é Ele a luz que resplandece no meio das trevas; é Ele "a verdade que tanto nos sublima" (Dante, Paraíso, 22. 43); é Ele quem dá á vida as razões pelas quais vale a pena viver, amar, trabalhar e sofrer; é Ele o nosso sustentáculo e o nosso conforto" (L'Osservatore Romano, 24.04.1977).

Para acertar nesta decisão tão sublime e tão necessária, sabei abrir os vossos corações e as vossas consciências ao Sacerdote, que é ministro de Cristo: agora aos vossos Capelães e depois aos sacerdotes que se aplicam ao cuidado cio vosso espírito. Encontrareis neles auxilio e apoio para a vossa vida cristã.

Passai com sentimentos de amizade, de fraternidade e com dedicação amorosa este período de serviço, mantendo vivas nos vossos corações as saudades dos que vos são queridos e vos esperam, e mantendo ao mesmo tempo o respeito pelos vossos Superiores, na convicção de a grandeza e a honra da Pátria dependerem da honestidade e da seriedade de cada cidadão.

Com estes votos, ao invocar para vós e as vossas famílias, de Deus e da Virgem Santíssima, a continua assistência e a abundância dos favores celestes, de coração a todos abençoo.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS PÁROCOS E AO CLERO DE ROMA


2 de Março de 1979



1. Encontramo-nos no princípio da Quaresma. Neste período, cada um de nós deve renovar, isto é, encontrar dalgum modo de novo, sobretudo o próprio «ser cristão», a identidade que deriva de se pertencer a Cristo, primeiramente por meio do Baptismo. Toda a tradição do período quaresmal é orientada nesta direcção, e o seu remate, na antiga prática da Igreja, era precisamente o Baptismo dos catecúmenos.

Recordemos que o substrato fundamental do nosso «sacerdócio» é «sermos cristãos»; a nossa «identidade sacerdotal» mergulha as suas raízes na «identidade cristã» (christianus — alter Christus; sacerdos — alter Christus).

Preparando-nos na fé, com todos os nossos irmãos, para a renovação das promessas baptismais na vigília do Sábado Santo, preparamo-nos de modo especial para a renovação das promessas sacerdotais na liturgia de Quinta-feira Santa, o dia dos sacerdotes. Todo o tempo da Quaresma deve servir para essa preparação.

2. O Concílio Vaticano II expôs de modo claro e preciso a essência da santidade própria dos sacerdotes (Decreto sobre o ministério e a vida sacerdotal). Devemos procurar as formas concretas de tal santidade, exercendo os múltiplos encargos que pertencem à nossa vocação e ao nosso ministério pastoral.

Se nos perguntam quais os elementos característicos da santidade a que é chamado o sacerdote, os elementos que, por assim dizer, constituem o que é a sua natureza específica, podemos reconhecê-la em dois aspectos intimamente complementares, que eu formularia assim: a) homem totalmente possuído pelo mistério de Cristo; b) homem que edifica de maneira particularíssima a comunidade do Povo de Deus.

a) O padre encontra-se colocado no centro mesmo do mistério de Cristo, que abraça constantemente a humanidade e o mundo, a criação visível e a invisível. Ele opera, de facto, in persona Christi, especialmente quando celebra a Eucaristia: mediante o seu ministério, Cristo continua a realizar no mundo a sua obra de salvação. Com fundamento pode, portanto, cada sacerdote exclamar com o apóstolo Paulo: Considere-nos cada um como ministros de Cristo e administradores dos mistério de Deus (1Co 4,1).

Não é difícil descobrir as consequências que brotam de tal dado e facto. Limito-me a indicar as seguintes:

— Se é fim do seu ministério a santificação dos outros, é óbvio que o sacerdote deve sentir-se responsabilizado e não pode «dispensar-se» de tal obrigação, sem por isso mesmo se condenar a uma vida «inautêntica» ou, para usar as palavras do Evangelho, sem transformar-se de «bom pastor» em «mercenário» (Cfr. Jo Jn 10,11-12).

— Vem depois a consequência do velho problema teológico das relações entre o opus operatum e opus operantis.Recordais-vos das palavras do Decreto Presbyterorum ordinis? «Ainda que a graça de Deus possa realizar a obra da salvação por ministros indignos, todavia, por lei ordinária, prefere Deus manifestar as suas maravilhas por meio daqueles que, dóceis ao impulso do Espírito Santo, pela sua íntima união com Cristo e santidade de vida podem dizer com o Apóstolo: Se vivo, já não sou eu, é Cristo que vive em mim (Ga 2,20Presbyterorum ordinis, 12.

— Por fim, encontra aqui lugar o problema do «estilo» da vida interior do sacerdote em cura de almas. O Concílio enfrentou-o com corajosa clareza: «Os presbíteros — observa o Decreto recém-citado — mergulhados e dispersos em muitíssimas obrigações do seu ministério, podem perguntar, não sem ansiedade, como lhes será possível reduzir à unidade a sua vida interior e a sua acção exterior. Esta unidade de vida não pode ser construída com a mera ordenação externa do seu ministério, nem apenas com a prática dos exercícios de piedade, por mais que isto concorra para ela. Mas poderão os presbíteros concluí-la, seguindo, na prática do ministério, o exemplo de Cristo Nosso Senhor, cujo alimento era fazer a vontade d'Aquele que O enviou para realizar a sua obra» (Ibid., 14).

Estas palavras constituem uma reinterpretação específica das muitas e preciosas reflexões, levadas à maturidade através dos séculos, sobre as relações entre vida activa e vida contemplativa. Uma coisa é certa: se a consciência do sacerdote é penetrada pelo imenso mistério de Cristo, se ela está totalmente dominada por ele, então todas as suas actividades, mesmo as mais absorventes (vida activa) encontrarão raiz e alimento na contemplação dos mistérios de Deus (vida contemplativa), de que ele é administrador.

b) O segundo aspecto da vocação do sacerdote à santidade reconheci-o na sua missão de edificar a comunidade do Povo de Deus. Poderia parecer aspecto «exterior», ligado à dimensão institucional da Igreja e portanto pouco significativo do ponto de vista da santidade pessoal. Mas todo o ensinamento do Vaticano II, que sobe aliás às fontes mais genuínas da eclesiologia, indica também neste sector o que é próprio da santidade sacerdotal. O padre, conquistado pelo mistério de Cristo, é chamado a conquistar os outros a este mistério: esta dimensão «social» do seu sacerdócio, vive-a ele dentro das estruturas da Igreja-instituição. O sacerdote não é só o homem «para os outros»; é chamado a ajudar «os outros» a tornarem-se comunidade, isto é, a viverem o alcance social da sua própria fé. Deste modo, o zelo com que o padre «reúne» —e não «dispersa» (Cfr. Mt Mt 12,30) —, o zelo com que «edifica» a Igreja, torna-se a medida da sua santidade.

A saudação com que ele inicia a liturgia eucarística «a comunhão do Espírito Santo esteja convosco», torna-se o seu programa: o padre é o porta-voz e o intermediário desta comunhão. Deve, por isso, cultivar em si mesmo uma atitude de fraternidade e de solidariedade, deve aprender a arte da colaboração, da colocação em comum das experiências e da ajuda recíproca. Sendo parte viva do presbitério, que se estreita à roda do próprio Bispo, deve ele sentir-se continuamente solicitado a uma projecção missionária no sentido dos que estão longe e ainda não fazem parte do «único aprisco» (Cfr. Jo Jn 10,16).

E por fim: como os crentes vivem no tempo, animados pela esperança do encontro definitivo com Cristo glorioso, o padre edifica a comunidade dos irmãos colocando-se no interior dela como testemunha da esperança escatológica. Os fiéis, a quem é enviado, esperam dele, como selo decisivo da sua missão, um testemunho claro e inequívoco da vida eterna e da ressurreição da carne. A esta luz deve ser também olhada a obrigação do celibato, que aparece então como contributo muito importante para a edificação da Igreja e, por isso mesmo, como elemento caracterizante da espiritualidade do sacerdote.

3. Filhos caríssimos, detive-me a esboçar os principais traços da nossa identidade sacerdotal, pois o período da Quaresma é verdadeiramente o «momento favorável» (2Co 6,2) para uma oportuna revisão de vida diante do dom extraordinário da vocação.

É revisão que deve cada um fazer no interior da comunidade, tanto presbiteral como paroquial, de maneira que ela se traduza num renovado esforço de vida cristã por parte de todos.

A Quaresma sempre marcou uma renovação das actividades pastorais no interior das Paróquias: antigamente davam-se missões paroquiais, havia práticas de piedade especiais e exercícios penitenciais comunitários. Hoje, tendo mudado as condições do ambiente, o esforço de renovação da vida cristã deverá exprimir-se doutras formas.

Os encontros, que pude já ter com os Responsáveis do presbitério diocesano, permitiram que me desse conta do prometedor florescimento de iniciativas, programadas para esta Quaresma nos sectores da catequese, das celebrações litúrgicas e das iniciativas de caridade. Desejo aproveitar esta ocasião para manifestar o meu sincero apreço e o meu cordial incentivo. Trabalhai, filhos caríssimos, sem vos deixar abater pelas dificuldades e maus êxitos. Aproveitai a experiência para ajustar novas iniciativas, procurar novos caminhos, ir ao encontro dos homens, nossos irmãos, e levar-lhes a «Palavra que salva». Palavra de que têm fome, sem por desgraça o saberem. O sacerdote como pastor deve sempre imitar a Cristo — Pastor que procura.

Tal procura, realizada juntamente com o Bom Pastor de modo desinteressado e muitas vezes com sofrimento, confere ao seu sacerdócio aquela autêntica característica, tão essencial tanto do ponto de vista da sua personalidade sacerdotal como do simples mente humano, que se impõe à consideração e à estima de quantos dele se aproximam.

Devemos guardar-nos bem de «dividir» a nossa personalidade de sacerdotes. Devemos guardar-nos bem de permitir que o nosso sacerdócio deixe de ser para nós a coisa «mais essencial», o elemento «unificante» de tudo aquilo de que nós nos ocupamos. Não deve nunca ele tornar-se alguma coisa «secundária» e «suplementar».

4. É este o objecto fundamental do nosso trabalho a respeito de nós mesmos, da nossa vida interior, numa palavra, da formação sacerdotal permanente no seu tríplice aspecto: espiritual, pastoral e intelectual.

Formámo-nos «para» exercer a actividade sacerdotal e vamo-nos formando «por meio da» actividade sacerdotal. Devemos neste campo ter uma autêntica e sã ambição. Devemos ter a peito prestar, do modo mais eficaz, o serviço da palavra (como prego? como dou a catequese?). Deve ser o nosso cuidado chegar às almas, para ajudar os homens nos seus problemas de consciência: confissão, direcção espiritual, especialmente das pessoas consagradas a Deus (às vezes ouvem-se lamentações sobre a falta de bons directores).

Devemos — é evidente — estar ao lado dos que sofrem e dos necessitados. Mas devemos estar sempre com eles «como sacerdotes».

5. Só de há poucos meses sou Bispo de Roma. Começo pouco a pouco a conhecer a minha nova diocese. Dou-me conta de se basear a minha missão «universal» sobre a «particular», e por este motivo procuro dedicar-me a esta última quanto posso, ajudando-me do grande auxílio do Cardeal Vigário de Roma, de Monsenhor Vice-Gerente e dos Bispos Auxiliares. Nestes meses tive ocasião de visitar algumas paróquias, pondo-me antes em contacto com os pastores de cada uma.

Têm sido experiências muito belas, nas quais recolhi a confirmação da simpática espontaneidade da população, da sincera e confiante disponibilidade dos sacerdotes e da vivacidade generosa dos leigos, sobretudo dos jovens. Nesta altura, apraz-me aproveitar a ocasião para agradecer ao Senhor Cardeal Vigário, aos Ex.mos Bispos das zonas, ao clero e aos fiéis, a cordialidade e o calor dos acolhimentos oferecidos.

Conto muito com estes encontros, que é minha intenção fazer coincidir, quanto possível, com as visitas mais aprofundadas, que faz cada Bispo nas várias zonas pastorais. Julgo muito útil, em tais circunstância, tomar contacto directamente com os grupos de leigos, apostolicamente dedicados a cada paróquia. Entre estes, gosto de nomear, em especial, os grupos catequísticos, formados quer de pais quer de jovens, cujo trabalho, especialmente neste tempo em que escasseiam os sacerdotes, se revela cada vez mais necessário. Só o esforço de grupos escolhidos e bem preparados — que saibam interessar também as famílias dos jovens naquele esforço de maturação da fé, que deve ser a catequese — só esse esforço pode medir-se com os graves problemas apresentados por uma sociedade secularizada.

Sobre a base da colaboração com as famílias e no contexto dum diálogo aprofundado com os jovens, deve desenvolver-se a pastoral das vocações, sobre cuja urgência não vale verdadeiramente a pena que eu esteja aqui a gastar palavras. Naturalmente, não é de admirar que esta acção pastoral específica se revele mais difícil, numa cidade com milhões de habitantes. Todavia, sendo exercida com método e zelo, poderia com o tempo mostrar-se, num ambiente de tão vasto alcance, mais eficaz ainda. Quero insistir, em todo o caso, sobretudo na necessidade de os sacerdotes pedirem ao Senhor da messe que os ajude a serem mediadores eficazes, com a própria vida e o próprio ensino, nesta obra de promoção das vocações.

6. Ao concluir este encontro convosco, o meu pensamento corre para o futuro, para a próxima Quinta-feira Santa, quando todo o presbitério, sacerdotes seculares e religiosos, se encontrar de novo recolhido à volta do seu Bispo. É o dia da nossa unidade sacerdotal. Devemos procurar uma forma concreta desta unidade, sobretudo aqui em Roma, onde — como é sabido —o clero está, de maneira especial, diferenciado. Devemos pensar naquilo que pode servir para aprofundar esta unidade e também no que se pode fazer para reconhecer o que a poderia dificultar.

Da relação que foi apresentada à vossa assembleia de 15 de Fevereiro último, cujo tema era «O Clero de Roma diante das exigências da diocese», pude dar-me conta do esforço que estais fazendo para reavivar e incrementar as estruturas de participação e colegialidade, como ainda para consolidar os vínculos de solidariedade e comunhão. É programa que merece todo o incentivo, porque vai responsavelmente ao encontro daquelas exigências de fraternidade, que derivam da comum ordenação sacerdotal, do comum serviço e da comum missão. Cultivai, como atitude habitual e consciente do vosso espírito, um verdadeiro affectus collegialis, como lhe chamaria por analogia com o vínculo da colegialidade que une os Bispos. Também isto faz parte da vossa espiritualidade própria.

Ao despedir-me de vós, todos a mim estreito num único abraço espiritual e todos com grande afecto abençoo. Quando, no tempo pascal, visitardes as famílias das vossas paróquias, levai-lhes a saudação e a bênção do Bispo de Roma, humilde Sucessor de Pedro, o Papa João Paulo II.





DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS REITORES DOS SEMINÁRIOS MAIORES


INGLÊS, ESCOCÊS E DE MALTA


Sábado, 3 de Março de 1979



A presença aqui esta manhã dum grupo de Reitores de seminários, incluindo importantes Colégios desta Cidade, sugere ao meu espírito muitas considerações. Há numerosos pensamentos que eu, como Bispo de Roma e Pastor da Igreja universal, desejo comunicar-vos, meus amados irmãos e filhos no sacerdócio de nosso Senhor Jesus Cristo. E espero que as minhas palavras de hoje cheguem também ao conhecimento doutros Reitores de seminários distribuídos pelo mundo, e que, por meio deles, a expressão do amor que lhes dedico chegue a todos os estudantes dos mesmos seminários.

Hoje, portanto, o meu primeiro pensamento dirige-se a todos os seminaristas. Peço-vos que lhes leveis as minhas saudações, certificando-os, em meu nome, de quanto significa para a Igreja a fidelidade deles, de quanto o futuro da evangelização depende dessa generosidade e do grande papel que estão chamados a desempenhar na renovação autêntica do Povo de Deus tal como foi desejada pelo Concílio Vaticano II. Sim, a minha mensagem aos seminaristas é de profundo interesse pelo bem-estar dos mesmos e de afecto profundo por eles, como futuros ministros do Evangelho de Cristo.

Precisamente por causa da grande esperança que deposito nos seminaristas desta geração, tenho especial prazer em reflectir convosco, seus Reitores, no encargo que vos toca. Fostes chamados pelos vossos Bispos para exercer um cargo de não vulgar autoridade espiritual na Igreja de Cristo. E hoje desejo falar-vos a respeito dalguns pontos fundamentais com o intuito de vos confirmar na vossa missão.

Meditando vós nestes pontos, vereis cada vez com maior clareza qual a finalidade do vosso ministério próprio de serviço, na preparação de futuros sacerdotes. Assim ficareis possuindo critérios claros para conhecer o que a Igreja acima de tudo ambiciona como fundamento da vida seminaristica; ficareis com claras orientações que determinem as prioridades dos vossos institutos e os meios verdadeiramente aptos para serem levadas ã prática tais prioridades.

Numa palavra, a prioridade absoluta para os seminários é hoje o ensino da palavra de Deus em toda a sua pureza e integridade, com todas as exigências e todo o alcance. A palavra de Deus — e a palavra de Deus só — é a base para todo o ministério, para toda a actividade pastoral e para toda a acção sacerdotal. A força da palavra de Deus constituiu a base dinâmica do Concílio Vaticano II, e João XXIII indicou isto claramente no dia da inauguração: "O maior empenho do Concílio Ecuménico é este: que o sagrado depósito da doutrina cristã seja conservado e ensinado com maior eficácia" (João XXIII, Discurso de 11 de Outubro de 1962, na inauguração do Concílio Ecuménico Vaticano II). E se os seminaristas desta geração estão a ser preparados adequadamente para receber a herança e a exigência deste Concílio, devem ser exercitados acima de tudo na palavra de Deus: no "depósito sagrado da doutrina cristã". Todos nós sabemos qual o amor que teve São Paulo pela palavra de Deus e como as suas palavras se hão-de aplicar a todos os sacerdotes da Igreja: Guarda o bom depósito, pela virtude do Espírito Santo que habita em nós ( Tim. 1, 14). Em corresponder a esta santa responsabilidade, devem os seminaristas ter um papel primário e dar um testemunho preeminente.

Um segundo ponto de grande importância, que interessa profundamente os seminários hoje, é o da disciplina eclesiástica. Com simplicidade e franqueza João Paulo I falou ao seu clero da "grande disciplina" (João Paulo I, Discurso de 7 de Setembro de 1978, ao Clero). Nessa ocasião afirmou: "A 'grande disciplina' requer uma atmosfera conveniente. E primeiro que tudo, uma atmosfera de recolhimento". Estou convencido que, havendo esta conveniente atmosfera e ajudando a graça de Deus, a grande disciplina, requerida .para os seminários, será conseguida e facilmente conservada. A razão de tudo isto deve procurar-se na força do amor de Cristo e dos irmãos. O sacrifício, o esforço e a generosidade, que se requerem na preparação para o sacerdócio, só têm significado se são feitos propter amurem Dei. E só se tornam possíveis com a oração.

Quando a palavra de Deus é considerada como base de toda a vida e formação do seminário, e quando a grande disciplina da Igreja é abraçada pelos seminaristas como serviço de caridade, então até os seminários se tornam, nas palavras de Paulo VI, "casas de fé profunda e de autêntico ascetismo cristão, tanto como alegres comunidades sustentadas pela piedade eucarística" (Paulo VI, Discurso de 16 de Abril de 1975).

Nos anos futuros, todos nós devemos trabalhar pela purificação da Igreja, em concordância com o Evangelho, e seguindo as directrizes do Concílio Vaticano II. Fazendo assim, esperamos nós oferecer ao Salvador a sua Igreja — santa e digna do seu amor: Igreja em que numerosos jovens se impregnem do mistério de Cristo, e, baseando as próprias vidas na sua palavra, se entreguem em generosa preparação para o ministério de Cristo.

Esta preparação e exercício dependem, em grande medida, de vós. Repito: fostes chamados a exercer uni cargo de não vulgar autoridade espiritual na Igreja. Cristo depende de vós e está convosco. Também o Papa está convosco e vos abençoa.




Discursos João Paulo II 1979