Discursos João Paulo II 1979 - Domingo, 21 de Outubro de 1979

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS BISPOS DE PAPUA-NOVA GUINÉ


E DAS ILHAS SALOMÃO POR OCASIÃO


DA VISITA «AD LIMINA APOSTOLORUM»


Terça-feira, 23 de Outubro de 1979



Queridos Irmãos em Cristo

1. Com profundo afecto fraterno dou-vos as boas-vindas a sé de Pedro, e saúdo-vos com as palavras de Paulo: A vós a graça e a paz da parte de Deus nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo (Ep 1,2).

É grande felicidade para mim abraçar nas vossas pessoas todos os fiéis das duas nações que representais: Papua-Nova Guiné e as Ilhas de Salomão: Por meio de vós, envio saudações a cada comunidade que se encontra em todos os espaços geográficos que vás sois chamados a atravessar em nome de Cristo e pela causa do seu nobilitante Evangelho de salvação.

É particularmente consolador notar a presença de Bispos autóctones entre vós, sabendo muito bem que a vida da Igreja se destina por sua natureza ao pleno florescimento das comunidades locais. E, na verdade, momento especial na evangelização, quando Cristo, por meio da sua Igreja, chama ao Episcopado um filho do povo, ao qual Ele comunicou a Sua palavra salvadora.

É assim justo para mim prestar homenagem a todos vós, e a todos os missionários que, no decurso de gerações, se gastaram em levar a Boa Nova de Jesus Cristo ao povo das vossas extensas áreas. A história daquela evangelização, de que vós sois os arautos de hoje, é triunfo da graça de Deus infundida nos corações; é triunfo das mirabilia Dei que tomam lugar na história humana, apesar dos múltiplos obstáculos e reveses. A Igreja universal expressa hoje agradecimentos profundos por aquilo que foi realizado para o estabelecimento do Reino de Deus nas vossas regiões; por meu intermédio, reconhece a Igreja universal a dívida de gratidão que sentimos para convosco e para com os vossos predecessores — para com todos os que implantaram a Igreja — dívida de gratidão pela vossa generosidade de fé e de amor.

2. Reunirmo-nos hoje tem profundo significado porque manifesta a natureza da Igreja de Cristo e do Colégio dos Bispos. Congregados com o Bispo de Roma e, por meio dele, unidos com todos os vossos irmãos Bispos, dispersos pelo mundo, encontrais uma dimensão da vossa própria unidade que tem consequências importantes para o vosso apostolado. Acima de tudo, viestes celebrar o mistério da Igreja e ser confirmados por Pedro na fé de Jesus Cristo, Filho de Deus. Estou certo que esta profunda dimensão eclesial da nossa unidade continuará a ser fonte de energia e gozo, para o vosso ministério nos anos futuros.

Além disso, os vossos contactos com a Cúria Romana são úteis para ajudar esta a prestar serviço ainda mais eficiente, em meu nome, às vossas Igrejas locais. Tenho confiança que, pela divina graça, as trocas de experiências produzirão fruto, ajudando meritórias iniciativas pastorais, para o bem do povo de Deus. Mas, deixando qualquer consideração de ordem prática, a vossa reunião em Roma exprime o mistério profundo da solidariedade eclesial, e em particular, a responsabilidade pastoral pelas Igrejas locais que pertence ao inteiro Colégio dos Bispos, à sua cabeça, o Bispo de Roma. Reconhecendo e celebrando juntos a nossa unidade no apostolado, sabemos que ela tem eficácia sobrenatural quanto ao vosso ministério diocesano.

3. Não queria perder a oportunidade de enaltecer, entre as muitas realizações da Igreja nas vossas terras, o grande testemunho de amor cristão que foi dado pelos missionários. Tal testemunho foi manifestado durante gerações por actividade quer pessoal quer combinada dentro da Igreja, por atenção amorosa às necessidades materiais do povo, por esforços no campo educativo, por iniciativas médicas e assistenciais, e por múltiplos serviços livremente prestados à causa da dignidade humana. Acima de tudo, evidenciou-se este testemunho de amor num ardente desejo de levar o Evangelho de Cristo ao coração de cada indivíduo e cada comunidade, para ele desempenhar a função fundamental da Igreja, que está em "dirigir o olhar do homem e endereçar a consciência e experiência de toda a humanidade para o mistério de Cristo, ajudar todos os homens a tornarem-se familiares com a profundidade da Redenção que se verifica em Cristo Jesus" (Redemptor Hominis RH 10). Oxalá este testemunho continue sempre na Pápua-Nova Guiné e nas Ilhas de Salomão.

4. É evidente que o serviço missionário será útil e necessário para o futuro apostolado nos vossos países. A grande fase inicial está acabada, e constitui um triunfo da graça de Deus. Mas a consolidação e desenvolvimento de cada Igreja local há-de continuar. Tem este progresso duas dimensões: cada Igreja local tem a sua própria identidade como comunidade de indivíduos pertencentes à Igreja, com as suas qualidades distintivas de natureza e de graça, colocadas dentro da unidade e da variedade do povo de Deus. Cada Igreja local é portanto oferta especial de Cristo ao seu Pai; dá expressão única a um aspecto da plenitude de Cristo. Ao mesmo tempo, cada Igreja local é autêntica, precisamente pela dimensão que em miniatura exemplifica a única, santa, católica e apostólica Igreja de Cristo. Para a Igreja universal há apenas uma santidade e justiça; é a que nasceu da verdade (Cfr. Ef Ep 4,24). E esta verdade é a eterna verdade da palavra de Deus. Por esta razão, queridos Irmãos, encontramos abundante energia para continuar o nosso apostolado pregando, apesar de todos os obstáculos, com grande paciência e amor, e com grande fidelidade ao depósito da palavra de Deus como é proclamada pela Igreja universal. A perfeita identidade das Igrejas locais encontra-se em completa abertura para com a Igreja universal; é alimentada por uma consciência da unidade católica.

5. Em cada esforço, que nós devemos fazer para levar o Evangelho ao nosso povo e em cada aspecto da sua vida — e esta é a nossa vocação —, devemos garantir que a mensagem que pregamos continua a ser a palavra de Deus sem alterações. Nunca temamos que a empresa seja grande demais, para o nosso povo: ele foi remido pelo sangue precioso de Cristo; é o Seu povo. Por meio do Espírito Santo, Jesus Cristo chama a Si a responsabilidade última pela aceitação da Sua palavra e pelo desenvolvimento da Sua Igreja. É ele, Jesus Cristo, que há-de continuar a distribuir a graça ao Seu povo a fim de satisfazer as exigências da Sua palavra, apesar de todas as dificuldades, apesar de todas as fraquezas. E pertence-nos a nós continuar a proclamar a mensagem da salvação na sua integridade e pureza, com paciência, compaixão e convicção, pois aquilo que é impossível ao homem é possível a Deus. Vós mesmos constituís unicamente parte duma geração na história da salvação, mas Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e pelos séculos (He 13,8). Ele é verdadeiramente capaz de nos sustentar, se reconhecemos a força da Sua graça, o poder da Sua palavra e a eficácia dos Seus méritos.

6. A nossa grande força encontra-se na nossa unidade eclesial, que por sua vez é alimentada pela oração. E é a oração que forma o nosso programa dominante do apostolado: Actiones nostras, quaesumus, Domine, aspirando praeveni et adiuvando prosequere! Por meio da oração, que nos une cada vez mais intimamente com o desígnio de Cristo quanto à Sua Igreja, nós podemos fazer planos mais eficientes e mais confiados para o futuro. Deste modo, Irmãos, dedicai os vossos melhores esforços a estas grandes questões que dizem respeito a todos vós: a questão das vocações, a importância das comunicações sociais, o papel dos catequistas, e a promoção geral do laicado — não só como meios práticos de distribuir a responsabilidade quanto ao Evangelho, mas como sastisfação da vontade divina que deseja associar o laicado à missão salvadora da Igreja. Na oração encontrareis a força e conhecimento para continuar no caminho da evangelização, confiando no poder da palavra de Deus para elevar e transformar todas as culturas humanas, levando-lhes o contributo original incomparável, vindo directamente de Jesus Cristo, que incorpora a Si a humanidade inteira.

7. Desejava pedir-vos que presteis especial atenção a fomentar a santidade do matrimónio cristão e a proclamar a riqueza do plano de Deus quanto à família. É verdadeiramente grande esta tarefa: o conhecimento dos homens e a sensibilidade humana vos ajudarão, mas só a sabedoria divina vos iluminará suficientemente para este ministério. E lembrai-vos sempre que, pela força da palavra de Cristo e na unidade da Igreja de Deus, vós sereis capazes de levar o vosso povo por sendas direitas por amor do seu nome (Ps 23,3).

8. Os meus pensamentos vão hoje para todos os vossos colaboradores no Evangelho — para as pessoas religiosas, homens e mulheres, que ajudam a construir a Igreja com a palavra e a acção. A sua recompensa deve ser imensa no céu.

De maneira especial, estou a pensar nos vossos sacerdotes, a quem a providência de Deus reserva tão importante trabalho na proclamação do Evangelho. A este respeito permiti-me que dirija a vós as palavras que disse há pouco aos Bispos da Irlanda: "A nossa relação com Jesus constituirá a base mais frutuosa da nossa relação com os nossos sacerdotes, se nos esforçarmos por ser seus irmãos, pais, amigos e guias. Na caridade de Cristo nós somos chamados a ouvi-los e a compreendê-los; a trocar pontos de vista a propósito :da evangelização e da missão pastoral que eles compartilham connosco, como cooperadores da ordem episcopal. Devemos ser, para toda a Igreja mas especialmente para os sacerdotes, um sinal visível e humano do amor de Cristo e da fidelidade da Igreja. Deste modo, nós amparamos os nossos sacerdotes com a mensagem evangélica, confortando-os com a certeza do magistério e fortificando-os contra as pressões a que devem resistir. Com a palavra e com o exemplo devemos convidar constantemente à oração os nossos sacerdotes" (João Paulo II, Discurso de 30 de Setembro de 1979).

9. E peço para todas as vossas Igrejas locais que elas gozem de paz e progresso, e se encham da consolação do Espírito Santo (Cfr. Act Ac 9,31); Queridos Irmãos em Cristo: Caminhemos para a frente juntos, sob a protecção da nossa Bem-aventurada Mãe, Maria, fiéis à nossa responsabilidade comum, para a glória do nome de Cristo, proclamando a Boa Nova da salvação — o anúncio duma grande alegria, que o será para todo o povo (Lc 2,10). E a todo o vosso clero, aos religiosos e aos leigos envio eu a minha Bênção Apostólica, no amor de Jesus Cristo, Filho de Deus e Salvador do mundo.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


À COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL


26 de Outubro de 1979

: Veneráveis Irmãos e amados Filhos

1. Com grande prazer vos saudamos, membros da Comissão Teológica Internacional — primeiramente o seu Presidente, Cardeal Franjo Seper, e também o Cardeal Joseph Ratzinger — quando vós Nos visitais, no Palácio Vaticano, a primeira vez como Pastor da Igreja universal.

Apraz-Nos começar por dizer-vos: muito aprovamos e estima-mos a vossa Comissão, fundada pelo Nosso venerando Predecessor Paulo VI no ano de 1969, e dela muito esperamos. Ao mesmo tempo damo-vos os maiores agradecimentos pela variadíssima obra já realizada, sobretudo nos últimos cinco anos agora terminados.

2. Vós não sois apenas investigadores da matéria teológica, exímios aliás, mas a autoridade suprema da Igreja chamou-vos a prestar auxílio ao Magistério, primeiramente ao Romano Pontífice e à Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, oferecendo-lhes cooperação nas matérias teológicas. Mas o vosso trabalho reverte ainda em benefício das Igrejas locais, que no nosso tempo, muito mais facilmente que antes, podem comunicar entre si.

Tudo isto mostra o grave dever ou responsabilidade, que dalgum modo partilhais com o Magistério da Igreja. Dizemos «dalgum modo», porque, segundo o referido Predecessor Nosso Paulo VI afirmou com acerto, o Magistério autêntico, de origem divina, «está dotado de certo carisma de verdade, que não pode ser comunicado a outras pessoas e ao qual ninguém mais pode substituir-se» (Paulo VI, Alocução de 11 de Outubro de 1973: AAS 65 PP 557 s.).

3. Aliás já nos anos passados destes abundantes provas deste serviço, que ofereceis ao Magistério e à Igreja universal, conscientes do dever que tendes de vos inserir na vida eclesial, que se vê hoje assoberbada com tantas dificuldades e tantos pareceres diversos e perigosos. Queremos recordar alguns desses pontos: com louvável empenho e não pequena utilidade aplicastes-vos a considerar a questão do sacerdócio ministerial, que tem sido objecto de muitas discussões nestes últimos anos; constituiu assunto de grande importância a unidade da fé ao lado do pluralismo teológico; encarastes igualmente algumas questões sobre o método da teologia moral e também sobre os critérios do acto honesto; perscrutastes com diligência as relações entre o Magistério Eclesiástico e os teólogos; aplicastes-vos a estudar um problema da maior actualidade: referimo-nos ao problema relativo à teologia da libertação, que dá origem aos estudos de muita gente sobretudo nalgumas regiões da Igreja católica, problema que pode abrir caminho a conclusões que precisarão com certeza de ser controvertidas; nem podemos passar em silêncio terdes agitado questões doutrinais sobre o sacramento do matrimónio, que bem precisam da actividade de teólogos a fim de que, a respeito delas, se proponha devidamente e de maneira persuasiva a vontade de Deus Criador e Salvador.

Aquilo, pois, que fizestes é digno de toda a estima e muito vo-lo agradecemos; simultaneamente exortamo-vos com insistência a que prossigais com entusiasmo e assim abrais, neste mundo tão difícil mas também tão aberto à verdadeira esperança, o caminho a todos os discípulos do Senhor para a alegria e a paz na crença (Cfr. Paulo VI, Alocução citada, p. 557; cfr. Rom Rm 15,13).

4. Sabemos que vós, nesta sessão plenária, ides tratar questões selectas de Cristologia e esperamos que o vosso trabalho produza frutos não diferentes dos primeiros. Já vimos boa quantidade de elementos — ou relações ou estudos históricos e teológicos — a respeito deste assunto; e leremos atentamente as conclusões que haveis de redigir segundo a vossa competência. De facto, na Cristologia podem-se descobrir novos aspectos que devem investigar-se atentamente, mas sempre à luz das verdades contidas na fonte da Revelação e enunciadas infalivelmente pelo Magistério no decurso dos séculos.

Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo (Mt 16,16): este o testemunho que o Príncipe dos Apóstolos, iluminado pela graça e inspirando-se na sua própria experiência, referiu com clareza; não foram nem a carne nem o sangue quem to revelou, mas o meu Pai que está nos céus (Ibid. 17). Com estas palavras é-nos dado quase um compêndio de toda a nossa fé. Na verdade, a fé cristológica, que a Igreja católica professa, baseia-se, sob a guia e o impulso da graça, na experiência de Pedro e dos outros Apóstolos e dos discípulos do Senhor, que trataram com Jesus, que foram testemunhas e cujas mãos tocaram no Verbo da vida (Cfr. 1Jn 1,1). O que deste modo tinham experimentado, interpretaram-no depois à luz da Cruz e da Ressurreição, e movidos pelo Espírito Santo. Daí nasceu aquela primeira «síntese», que se manifesta nas profissões e nos hinos das cartas apostólicas. Com o decorrer do tempo a Igreja, apelando constantemente para estes testemunhos e indo-os experimentando na vida, expressou com palavras cada vez mais próprias a sua fé nos artigos dos grandes Concílios. Vós, como teólogos da Comissão, aplicastes-vos ao estudo destes Concílios, em especial do Concílio de Niceia e de Calcedónia. Na verdade, as fórmulas destes Sínodos universais têm força permanente; é claro que não se devem descurar as circunstâncias históricas e as questões, que naqueles tempos se apresentavam à Igreja, questões a que esta respondeu com definições conciliares. Todavia os problemas que hoje se apresentam relacionam-se com as questões dos primeiros séculos, e as soluções a que nessa altura se chegou abrem caminho às novas respostas; na verdade, as respostas de hoje pressupõem sempre dalgum modo os enunciados da Tradição, embora não possam completamente reduzir-se a eles.

Este valor permanente das fórmulas dogmáticas explica-se mais facilmente porque foram pronunciadas com palavras comuns, que se usam na vida ordinária, se bem que apareçam às vezes locuções na aparência filosóficas. Daí não se conclui que o Magistério tenha aderido a alguma escola determinada, porque essas locuções apenas significam o resultado de qualquer experiência humana. Inquiristes também como tais fórmulas se referem à Revelação do Novo Testamento, conforme a Igreja a entende.

5. É claro porém que o estudo dos teólogos não se limita à repetição pura e simples, por assim dizer, das fórmulas dogmáticas, mas é necessário que ele ajude a Igreja a conseguir cada vez mais profundo conhecimento dos mistérios de Cristo. O Salvador dirige-se também ao homem do nosso tempo; adverte de facto o Concílio Vaticano II: «Na realidade ,o mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente». Na verdade «Cristo, novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime ... Pela sua Encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-se de certo modo a cada homem. Trabalhou com mãos humanas, pensou com uma inteligência humana, agiu com uma vontade humana, amou com um coração humano. Nascido da Virgem Maria, tornou-se verdadeiramente um de nós, semelhante a nós em tudo, excepto no pecado» (Gaudium et Spes GS 22).

Com razão pois, na Carta Encíclica «Redemptor Hominis» escrevemos: «O homem que quiser compreender-se a si mesmo profundamente ... deve — com a sua inquietude, incerteza e também fraqueza e pecaminosidade, com a sua vida e a sua morte — aproximar-se de Cristo. Deve, por assim dizer, entrar n'Ele com tudo o que é em si mesmo, deve 'aproximar-se' e assimilar toda a realidade da Encarnação e da Redenção, para se encontrar a si mesmo» (Redemptor Hominis RH 10).

Sendo assim, torna-se evidente a importância do estudo daqueles que mais cientificamente investigam este mistério de Cristo. Eis o vosso encargo, eis a importância da vossa presença na Igreja. A teologia, quase desde os princípios da Igreja, desenvolveu-se a par e passo com a prática pastoral e nesta mesma teve sempre grande influência como a tem ainda presentemente, e do mesmo modo na catequese. Mas o vosso encargo de investigação realiza-se de facto por caminhos diversos: é sabido que, já nos tempos antigos, existiam várias escolas teológicas; e também é sabido que actualmente existe variedade de opiniões legítimas e de pareceres, de maneira que se pode falar dum são pluralismo. Deve-se todavia cuidar sempre de manter íntegro o «depósito da fé» e de que o teólogo fuja daqueles princípios filosóficos que não se podem harmonizar com a mesma fé.

6. Toca-se aqui de passagem o assunto da relação entre «as ciências humanas» e a Revelação, assunto de que vós tratastes longamente. Alguns, ampliando exageradamente o campo próprio destas ciências, chegam a esvaziar o mistério de Cristo, como já se queixava São Paulo, e põem de parte a loucura da Cruz ao exaltarem a sabedoria humana. Acontece felizmente que muito maior número de teólogos, a exemplo de São Tomás de Aquino, estão convencidos que a filosofia deve ser levada até às metas da fé. Com efeito, toda a ciência deriva, como de raízes, ;de princípios próprios; donde se conclui julgar a teologia que lhe toca resolver até ao fundo todas as suas questões partindo dos princípios da fé. Iria contra a sua natureza se, ajustando-se a princípios alheios, aceitasse conclusões inconciliáveis com os seus princípios.

7. As vezes surgem também dificuldades quanto às relações entre o magistério e os teólogos. Como já indicámos, tratastes em especial este assunto há poucos dias numa sessão própria, ponderando três aspectos deste assunto, isto é, os elementos comuns, respeitantes tanto ao Magistério como ao múnus dos teólogos, e a diferença entre o Magistério e a teologia. Desejamos pôr em realce o primeiro destes aspectos, pois é da maior importância: ao prestarem serviço à verdade, o Magistério e os teólogos estão ligados por vínculos comuns, quer dizer, estão sujeitos ao Verbo de Deus «ao sentido da fé», que vigorou na Igreja dos tempos passados e vigora ainda na actual, sujeitos aos documentos da tradição, com os quais a fé do povo comum foi proposta, e finalmente à solicitude pastoral e missionária, da qual o Magistério e os teólogos devem ter conta.

Se forem atendidos devidamente todos estes pontos, facil mente se vencerão as dificuldades que podem surgir. Além disso, os teólogos que transmitem a própria ciência aos discípulos nos centros de estudos superiores, não deixem nunca de se lembrar que não ensinam por própria autoridade mas sim em virtude da missão recebida da Igreja, como se adverte na Constituição Apostólica «Sapientia Christiana» (Cfr. Sapientia christiana art. 27, par. 1).

Tudo isto, que tocamos ao de leve, ilumina bastante a importância da teologia e portanto do vosso encargo. Procurai também enriquecer a Igreja, mesmo nos tempos vindouros, com os resultados da vossa indagação e do vosso serviço. Como mestres, esforçai-vos por formar jovens de bom talento, alunos da vossa matéria, de tal modo que a Igreja disponha sempre de teólogos verdadeira mente peritos, de que sempre necessita.

8. Dando-se a oportunidade, é justo recordarmos dois membros da vossa Comissão, Eduardo Dhanis e Otão Semmelroth, que a morte levou do meio de vós e cujas almas instantemente recomendamos a Deus.

Por último, abraçando-vos com amor sincero — por intercessão da Bem-aventurada Virgem Maria, que invocamos como sede da sabedoria — instantemente pedimos ao Senhor que vos assista sempre, vos fortaleça e vos dê os prémios segundo os méritos. Confirme estes votos a Bênção Apostólica, que de todo o coração vos concedemos.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AO PONTIFÍCIO CONSELHO «COR UNUM»


Sábado, 27 de Outubro de 1979



É com prazer que, já pela segunda vez, recebo o Pontifício Conselho Cor Unum por ocasião da sua Assembleia geral. Tendo podido, ao longo deste ano, seguir mais de perto a vossa actividade, sinto-me particularmente feliz com este encontro que me permite um contacto mais profundo com o conjunto dos membros do vosso Conselho.

1. Como não começar por recordar convosco aqueles que, nestes dias, estão presentes, de modo particular, na vossa memória e na vossa oração? Deixaram-nos sucessivamente o Padre John Molloy, religioso monfortino, que foi um destes colaboradores discretos mas preciosos que asseguram eficácia ao trabalho; depois, o Cardeal Jean Villot, vosso primeiro Presidente, tão caro a todos nós. Esteve intimamente ligado à fundação e à orientação do Cor Unum, e todos vós sabeis como tomava a peito, apesar das suas múltiplas e pesadas responsabilidades, seguir as vossas actividades e trazer-vos todo o apoio necessário; e finalmente, o Padre Henri de Riedmatten, O.P., que, sem cálculos e até ao limite das suas forças, pôs ao serviço do Cor Unum, quer dizer ao serviço dos mais pobres, capacidade e competência ambas sem igual, que marcaram os primeiros anos desta instituição e de que vós continuais a beneficiar.

Recomendamo-los ao Senhor, desejosos de continuar a obra da Igreja a que eles se consagraram, cada um a seu modo, com fidelidade.

2. Eram duas as perspectivas que guiavam o meu predecessor, o Papa Paulo VI, ao instituir o Pontifício Conselho Cor Unum. Primeiro, uma visão realista das coisas: as necessidades são imensas, apelos angustiantes chegam de todo o lado, os recursos são limitados, o amor fraterno e o dever de partilha que ele implica estão muitas vezes arrefecidos. É preciso, então, tornar possível a ajuda ao «próximo», organizá-la, evitar dispersões de forças e de recursos, coordenar as iniciativas, graças a uma colaboração dos diferentes organismos votados à acção caritativa. Mas o segundo aspecto, o mais importante, consistia numa viva consciência das implicações eclesiais da exigência evangélica da caridade para com todos os homens. Ao sentido do próximo, natural a todo o homem consciente da. sua própria natureza e da sua própria dignidade, junta o Evangelho uma exigência suplementar — caritas Christi urget nos (impele-nos o amor de Cristo) — que encerra uma forma de participação na vida da Igreja, essencial para dar à partilha e à ajuda fraterna o seu pleno significado, que é o de exprimir a caridade de Cristo. Esta perspectiva evangélica, espiritual e eclesial, constitui a mais profunda justificação da existência do Conselho Cor Unum. Com efeito, ela funda-se, afinal, na consciência da Igreja como Corpo místico de Cristo. Faço hoje inteiramente minha esta orientação que o meu grande predecessor Paulo VI quis dar ao conjunto das acções caritativas, porquanto o Senhor, chamando-me à Cátedra de Pedro, me chamou a presidir efectivamente «à caridade universal».

3. Há oito anos que vos esforçais por agir neste sentido. Não quero, nestes breves instantes, realçar o modo como esta perspectiva eclesial inspirou as vossas relações com as Conferências Episcopais, as vossas relações ecuménicas e, de igual maneira, a vossa acção, face às situações de miséria e às urgências, infelizmente bem numerosas, ou os estudos que levais a efeito sobre a forma cristã de enfrentar os problemas da promoção humana ou da saúde. Queria, antes, aproveitar o nosso encontro desta manhã para examinar convosco as perspectivas do futuro.

4. Na linha do que acabo de lembrar, o Cor Unum pôs, justamente, no primeiro plano das suas preocupações o cuidado de uma colaboração cada vez mais activa e desenvolvida com as Conferências Episcopais, quer as dos países que prestam ajuda material, quer as dos países que a recebem. Depende disto, repito, não só a eficácia nas realizações, mas também a própria concepção de Igreja que, no exercício da caridade concreta, deve ser expressão da caridade espiritual que a anima e que é fruto do Espírito Santo. Encorajo-vos, pois, a prosseguir nesta linha, desejando que o Cor Unum se torne cada vez mais, em particular aquando das visitas ad limina, um lugar onde se partilhe, na perspectiva que vos é própria «o cuidado de todas as Igrejas». Não será para desejar que os Bispos achem normal vir à sede do Cor Unum, como vêm aos diversos organismos da Cúria, e como os representantes do Cor Unum visitam as Conferências Episcopais ao irem em missão?

5. Por outro lado, sei como vós mesmos, responsáveis por centros de ajuda local, e todos os que trabalham convosco, sois monopolizados pela obrigação de satisfazer, dia após dia, as urgências de toda a espécie que vos assaltam. É-vos necessário, todavia, estar muito atentos à autenticidade propriamente eclesial da vossa acção. Nem só de pão vive o homem, deste pão que faz muita falta a grande parte da humanidade; vive também da verdade, vive da palavra de Deus. Se o papel dos centros de ajuda e das instituições caritativas é o de agir, torna-se necessário que esta acção se inspire sempre no Evangelho. Embora distintas entre si, a missão propriamente evangelizadora da Igreja e a sua acção caritativa derivam da mesma fonte — o amor de Cristo Redentor, que revela plenamente o homem ao homem (Cfr. Redemptor Hominis RH 10). Elas não devem dar sequer a impressão de se inspirar em fontes diferentes. Mostra isto a necessidade da vossa colaboração com as Conferências Episcopais de todos os países incluídos. No Corpo místico de Cristo, todos dão e todos recebem consoante o que o Senhor distribuiu a cada um, mas não há nunca troca em sentido único. Mostra isto ainda a exigência de uma análise propriamente cristã, evangélica, dos acontecimentos: é ela que serve de base à doutrina social da Igreja na sua especificidade e na sua amplitude; é ela que conduz a sua acção caritativa, muito para além das perspectivas meramente técnicas ou políticas que determinam demasiadas vezes no mundo a apreciação das necessidades e a maneira de lhes dar resposta.

6. O papel de coordenação que, na esteira do Papa Paulo VI, desejo ver desempenhado pelo vosso organismo, situa-se nestas perspectivas. Do Vigário de Cristo, que o Conselho Pontifício tem informado dos seus problemas concretos, vós recebeis o ânimo e o incitamento que asseguram esta perspectiva evangélica que é necessário não deixar enfraquecer ou desnaturar. É ela que justifica e inspira o trabalho de coordenação que vos está confiado. Da mesma forma, deve inspirar a coordenação recíproca de todas as organizações membros, graças a uma troca de informações e de consultas sobre a oportunidade das acções a desenvolver. E ninguém receie que a eficácia técnica e material, que o alivio dos sofrimentos humanos, que são a vossa razão de ser, possam com isso ser diminuídos. Muito pelo contrário, é o desinteresse próprio, dos filhos de Deus, e é a própria caridade de Cristo que brilharão por isso mais alto aos olhos dos homens. Sim! seja através da acção de todas as obras caritativas que se manifeste a compaixão do Senhor por todas as multidões sofredoras.

7. É com estes sentimentos que vos dirijo o meu vivo incitamento a desenvolverdes sem cessar as instituições que levaram o meu venerado predecessor a fundar o Pontifício Conselho Cor Unum. Retomai e meditai os documentos que são a carta da vossa Instituição.

Agradecendo-vos tudo o que fazeis, concedo-vos de todo o coração a Bênção Apostólica, a vós próprios e a todos os que colaboram convosco e vós representais.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


A UMA PEREGRINAÇÃO FRIULANA (ITÁLIA)


POR OCASIÃO DO XXX ANIVERSÁRIO


DA FUNDAÇÃO «FOGOLAR FURLÁN»


Sábado, 27 de Outubro de 1979



Venerável Irmão Caríssimos filhos e filhas

Ao agradecer sentidamente as palavras que me dirigiu o Bispo de Údine ao começar este encontro desejado por vós, sinto-me contente por vos saudar a todos com vivo afecto. Saúdo nomeadamente todos os membros do "Fogolár Furlán" de Roma, o grupo de surdos-mudos e seus pais, e todas as pessoas que provêm da Região de Friuli.

Permiti-me dizer-vos que vejo em vós os representantes de uma gente nobre, como é a friulana, que reúne harmoniosamente em si preclaras qualidades humanas de dignidade, amor ao trabalho e ponderação, com uma fé cristã sólida e profunda, que a fez grande no passado e a torna forte no presente. A vossa situação geográfico-cultural, que teve outrora o seu glorioso centro na Sé Patriarcal de Aquileia, faz de vós um povo-charneira entre duas civilizações, a latina e a eslava, que no Cristianismo encontraram e podem ainda encontrar o seu ponto superior de contacto; ambas conferem-vos uma providencial predisposição para a universalidade do pensamento e da fé, capaz de superar qualquer tentação de particularismo. Um povo que se torna Igreja: eis um motivo de alegria autêntica e de louvor ao Senhor.

O que vos quero desejar com todo o coração é que não percais nunca o património e a eficácia destes valores, que têm em si a capacidade de vos manter acima de toda e qualquer dificuldade ou sofrimento, e por isso mais fortes. Quer a apontada escassez de recursos económicos; com a consequente e forçada emigração, quer sobretudo o não longínquo e terrível, terramoto, devem servir-vos, como outros tantos estímulos, para encorajardes e consolidardes — para além de qualquer resignação passiva ou, ainda pior, de todo o desespero estéril — a vossa robustez espiritual interior e o vosso louvável sentido de solidariedade, que faz de todos vós um único "lar".

Por isso, agradeço convosco ao Senhor as admiráveis iniciativas de ajuda cristã a que o mencionado desastre deu azo, quase libertando energias latentes de autêntico espírito evangélico e revelando, assim, toda a profunda e fecunda consistência de alguns termos fundamentais do vocabulário cristão, tais como comunhão, amor, serviço, dom e altruísmo. Pois as vossas necessidades tornaram-se não só oportunidade, mas também local de prova da fraternida de cristã, a qual, por graça de Deus e para sua glória, foi brilhantemente afirmada, mesmo se, infelizmente, ainda nem tudo foi resolvido.

Coragem, pois! A vossa fé e o Senhor mesmo sejam sempre a vossa força, porque ele não abandona quem nele confia. Da sua benéfica assistência garantia a minha Bênção Apostólica que do coração vos concedo a todos, em particular aos doentes e às crianças, encarregando-vos de a levar a quantos vos são caros, como sinal da minha paternal benevolência.




Discursos João Paulo II 1979 - Domingo, 21 de Outubro de 1979