Discursos João Paulo II 1979 - 3 de Novembro de 1979

Dirigindo-se a todos vós, não é necessário que o Papa se alargue nestas considerações que são já objecto de firme convicção pela vossa parte. Já eu muitas vezes tive aliás ocasião de falar dos problemas familiares nestes últimos tempos, por exemplo, aos leigos reunidos em Limerick na Irlanda, aos Bispos americanos e às famílias reunidas para a missa no Capitol Mall de Washington. Insistirei contudo nalguns aspectos importantes.

3. Primeiro, para cristãos é fundamental elevar o debate considerando imediatamente o aspecto teológico da família, meditando por conseguinte na realidade sacramental do matrimónio. A sacramentalidade só pode ser compreendida à luz da história da salvação. Ora esta história da salvação qualifica-se como história de aliança e de comunhão entre Iavé e Israel primeiramente, depois entre Jesus Cristo e a Igreja, no período actual da Igreja, esperando a aliança escatológica. Do mesmo modo, precisa o Concílio, «o Salvador dos homens, Esposo da Igreja, vem ao encontro dos esposos cristãos pelo sacramento do matrimónio» (Constituição Apostólica Gaudium et Spes GS 48, parágrafo 2). O matrimónio constitui pois, ao mesmo tempo, memorial, actualização e profecia da história da aliança. «Este mistério é grande», diz São Paulo. Casando-se, os noivos cristãos vão começar apenas a sua aventura, mesmo entendida no sentido de santificação e de missão; começam uma aventura que os insere de maneira responsável na grande aventura da história universal da salvação. Sendo memorial, o sacramento dá-lhes a graça e o dever de fazerem memória das grandes obras de Deus e darem testemunho delas junto dos próprios filhos; sendo actualização, dá-lhes a graça e o dever de executarem no presente, um para com o outro e para com os filhos, as exigências dum amor que perdoa e resgata; sendo profecia, dá-lhes a graça e o dever de viverem e testemunharem a esperança do futuro encontro com Cristo.

4. Sem dúvida, todos os sacramentos comportam participação no amor nupcial de Cristo para com a sua Igreja. Mas, no matrimónio, a modalidade e o conteúdo desta participação são específicos. Os esposos participam ambos nisso como casal, a ponto de o efeito primário e imediato do matrimónio («res et sacramentum») não ser a graça sobrenatural, mas o laço conjugal cristão, comunhão entre dois tipicamente cristã por representar o mistério de aliança. E o conteúdo da participação na vida de Cristo é também específico: o amor conjugal inclui totalidade, em que entram todos os elementos da pessoa — apelo do corpo e do instinto, força do sentimento e da afectividade, aspiração do espírito e da vontade —; tende para uma unidade profundamente pessoal, aquela que, para além da união numa só carne, leva a não constituir mais que um coração e uma alma; exige a indissolubilidade e a fidelidade na doação recíproca definitiva; e abre-se para a fecundidade (Cfr. Encíclica Humanae vitae HV 9). Numa palavra, trata-se certamente das características normais de todo o amor conjugal natural, mas com significação nova que não somente os purifica e consolida, mas os eleva a ponto de fazer deles a expressão de valores propriamente cristãos. Eis a perspectiva a que devem erguer-se os esposos cristãos: nisso está a sua grandeza, nisso a sua força, nisso a sua exigência e nisso também a sua alegria.

5. É também nesta perspectiva que se deve encarar a paternidade responsável deles. Neste plano, os esposos, os pais, podem encontrar certo número de problemas que não consigam resolver-se sem um amor profundo, amor que encerre também um esforço de continência. Estas duas virtudes, amor e continência, exigem uma decisão comum dos esposos e a vontade de se submeterem eles próprios à doutrina da fé, ao ensinamento da Igreja. Sobre este vasto assunto, contentar-me-ei com três observações.

6. Primeiro, é preciso não falsificar a doutrina da Igreja, tal como foi claramente exposta pelo Magistério e pelo Concílio e pelos meus predecessores; penso explicitamente na Encíclica Humanae vitae de Paulo VI, no seu discurso às Equipas de Nossa Senhora de 4 de Maio de 1970, e nas suas outras numerosas intervenções. É para este ideal das relações conjugais, mantidas dentro dos limites e do respeito da natureza e das finalidades do acto matrimonial, que é preciso conservar continuamente a orientação, sem a desviar para uma concessão mais ou menos larga, mais ou menos explícita, em favor do princípio e da prática dos costumes contraceptivos. Deus chama os esposos à santidade do matrimónio, para bem próprio deles e para ser o que deve o testemunho dos mesmos.

7. Mantendo-se firme este ponto, por obediência à Igreja — e é honra vossa manterde-la custe o que custar —, não é menos importante ajudar os casais cristãos e os outros a fortificarem as suas próprias convicções, procurando com eles as razões profundamente humanas de assim se proceder. Bom é que eles entrevejam como esta ética natural corresponde à antropologia bem compreendida, de maneira que se fuja às armadilhas duma opinião pública ou duma lei que sejam permissivas, e mesmo para contribuir, em toda a medida do possível, para rectificar esta opinião pública. Muitos elementos de reflexão podem contribuir para que se forjem sãs convicções que venham ajudar a obediência do cristão ou a atitude do homem de boa vontade. E sei que isto é também parte importante da vossa tarefa educativa. Por exemplo, numa época em que tantas correntes ecológicas pedem respeito pela natureza, que pensar duma invasão de procedimentos e de substâncias artificiais neste campo eminentemente pessoal? Substituir por técnicas o domínio próprio a renúncia a si mesmo em favor de outrém e o esforço comum dos esposos, não assinala porventura uma regressão daquilo que forma a nobreza do homem? Então não se vê que a natureza do homem está subordinada à moral? Mediu-se acaso todo o alcance da recusa, constantemente acentuada, do filho sobre a psicologia dos pais — sendo que eles trazem em si o desejo do filho, inscrito na natureza deles — e dessa recusa sobre o futuro da sociedade? E que pensar duma educação sexual dos jovens que não os precavesse contra a busca dum prazer imediato e egoísta, dissociado das responsabilidades do amor conjugal e da procriação? Sim, é necessário preparar de muitos modos para o amor verdadeiro, a fim de evitar que se degrade, neste ponto capital, a partir de conceitos instáveis ou falseados, o tecido moral e espiritual da comunidade humana.

8. O respeito da vida humana já concebida faz evidentemente parte, a título especial, das convicções que é necessário iluminar e fortificar. É ponto em que a responsabilidade do homem e da mulher deve levá-los a acolher e proteger o ser humano de que eles foram os procriadores e que não têm nunca o direito de eliminar: é campo em que o ambiente, a sociedade, os médicos, os conselheiros conjugais e os legisladores têm o dever de permitir que tal responsabilidade se exerça, sempre no sentido do respeito da vida humana, apesar das dificuldades e sendo oferecida uma ajuda mútua nos casos de miséria. É ponto sobre o qual a Igreja se pronunciou de maneira unânime em todos os países, de modo que não há porque insistir agora. A legislação do aborto levará fatalmente muitos a deixarem de sentir este respeito e esta responsabilidade para com a vida humana, banalizando um pecado grave. E deve mesmo acrescentar-se que a generalização da prática contraceptiva por métodos artificiais leva também ao aborto, porque uma e outra situam-se, embora a níveis diferentes, na mesma linha do medo do filho, da rejeição da vida, da falta de respeito pelo acto e pelo fruto da união, tal como ela é querida — entre o homem e a mulher — pelo Criador da natureza. Aqueles que estudam a fundo estes problemas bem o sabem, ao contrário do que certos raciocínios ou certas correntes de opinião poderiam levar a crer. Honra vos seja por aquilo que fazeis e vireis a fazer para formar as consciências sobre este ponto do respeito da vida.

9. Por fim, é preciso pôr em prática tudo o que é capaz de ajudar concretamente os casais a que vivam esta paternidade responsável, e nisto o que está na vossa mão é insubstituível. As investigações científicas, que vós continuais e pondes em comum para adquirir conhecimento mais preciso do ciclo feminino e permitir utilização mais serena dos métodos naturais de regulação dos nascimentos, merecem ser melhor conhecidas, animadas e propostas efectivamente para serem aplicadas. Gosto de saber que um número cada vez maior de pessoas e organismos, no plano internacional, apreciam esses esforços de regulação natural. A esses homens de ciência, a esses médicos e a esses especialistas endereço todos os meus votos e as minhas palavras de ânimo, porque daí depende o bem das famílias e das sociedades, no cuidado legítimo que têm de harmonizar a fecundidade humana com as suas possibilidades, e contanto que apelem sempre para as virtudes do amor e da continência, daí depende o progresso do domínio humano conforme o desígnio do Criador.

Animo do mesmo modo todos os leigos qualificados, todos os pares que, na qualidade de conselheiros, professores e educadores, prestam o seu concurso para ajudar os casais a viver o seu amor conjugal e a sua responsabilidade parental de maneira digna, ajudando ao mesmo tempo os jovens a prepararem-se para isso mesmo.

A cada um de vós, aos vossos colaboradores, às vossas famílias e aos vossos queridos filhos, prometo a minha oração pelo vosso magnífico apostolado e concedo a minha paternal Bênção Apostólica.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS PROFESSORES CATÓLICOS


DAS ESCOLAS MÉDIAS ITALIANAS


Sábado, 3 de Novembro de 1979



Caríssimos Sócios da União Católica Italiana
de Professores das Escolas Médias!

1. É com o maior agrado que me encontro hoje convosco porque, graças a este primeiro contacto, posso conhecer de perto uma válida e florescente Associação profissional, em acção no interior da Escola Italiana para a enriquecer oferecendo-lhe o contributo dos valores éticos e pedagógicos da fé cristã.

Apreciei muito o vosso vivo desejo de serdes recebidos em audiência especial, durante o Encontro que celebrais. É este o 92° da série, e bastaria já este dado numérico para se compreender o desenvolvimento que teve a vossa Associação, e qual o espírito que a anima: espírito não só organizativo, mas também e sobretudo comunitário, aberto à mútua colaboração, disposto ao confronto das experiências e iniciativas em vista de um fim único: servir a juventude estudantil, promovendo a sua formação integral.

2. Mas, para além de vos ter ficado a conhecer e de ter notado a frequência das vossas reuniões, soube também, com satisfação, que o tema sobre o qual estais discutindo nestes dias é dedicado, ou melhor, está centrado sabre o homem. Congratulo-me sinceramente com esta escolha; dizer "Uma Escola para o Homem" significa, de facto, tocar no cerne de uma problemática de fundamental importância, que diz respeito à própria razão de ser da Escola e à sua intrínseca orientação para ser uma estrutura de serviço. Mas dizer "Uma Escola para o Homem" significa também oferecer-me, a mim que vos falo, uma oportunidade para desenvolver, na presente circunstância, algumas considerações em confirmação da confiança que a Igreja deposita na Itália no vosso louvável empenho de professores e de educadores cristãos, e para encorajamento, também, para que vos disponhais a continuar nesse empenho com generosidade e coerência, apesar das dificuldades destes anos cruciais.

3. No subtítulo do tema por vós escolhido, encontrei uma explicita e intencional referência àquilo que — como bem sabeis — é o "leitmotiv" da Encíclica Redemptor Hominis, que publiquei na primavera passada, poucos meses depois de o Senhor me ter chamado à suprema responsabilidade na sua Igreja visível. Quero confidenciar-vos, a propósito, que a reflexão sobre o homem e, antes ainda, um interesse peculiar e directo pelo homem concreto, por cada homem — como criatura constituída em dignidade natural e sobrenatural, graças à convergente e providente acção de Deus Criador e do Filho Redentor — é para mim um "habitus" mental, que tive desde sempre, mas adquiriu mais lúcida determinação depois da experiência da minha juventude e depois da chamada à vida sacerdotal e pastoral. Mas, obviamente, na Encíclica não se encontra apenas este elemento de ordem psicológica e pessoal, ou seja o reflexo da minha sensibilidade interior "de homine atque pro homine": nela encontra-se a objectiva e bem mais ampla razão que o homem é e permanecerá o caminho da Igreja (Cf. Redemptor Hominis RH 14).

Notai bem: não diz acaso Jesus no Evangelho que Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida (Jn 14,6)? Antes de ser Verdade e Vida, Ele define-se como Caminho, isto é, a estrada principal, o itinerário obrigatório e ao mesmo tempo seguro para quem quer ir ao Pai e atingir assim a salvação. É, sem dúvida, uma imagem análoga à que apresenta Jesus como Luz (Jn 8,12), ou como Porta (Jn 10,7). Na base destes imagens há um ensinamento substancialmente idêntico: é necessário caminhar seguindo o caminho traçado por Jesus, iluminado por Jesus; ou, mais simplesmente, é necessário seguir Jesus, que desde a Encarnação ao Calvário procurou constantemente o homem e só o homem, para o remir do pecado e restituí-lo à vida divina da graça.

Ora a Igreja, se é — como deve ser, sob pena de perder a própria identidade — a continuadora fiel da obra de Jesus, deve procurar ser ela mesma caminho para o homem. Como já entre Cristo e a Igreja, também entre a Igreja e o homem, a conexão é tão estreita que uma não pode estar sem a outra. Por isso é justa a verdadeira também a expressão recíproca: o homem é o caminho da Igreja; como pensei ser oportuno explicar no citado documento, ele é o "primeiro e fundamental caminho", que a Igreja deve percorrer na realização da sua missão.

4. Experimentemos agora transpor estes rápidos traços para o mundo da escola, no qual vós exercitais uma delicadíssima função. Pode a Escola ser deveras um caminho para o homem? E, vice-versa, o homem é verdadeiramente o caminho da Escola? A resposta é sem dúvida afirmativa: se é conatural à escola a função educativa, é claro que não pode existir senão para o homem. Que seria uma Escola que esquecesse esta sua dimensão original? Seria vazia de conteúdo e sem utilidade: não poderia, na verdade, bastar, de modo nenhum, urna comunicação, repetidora e a longo prazo caduca, de noções e de fórmulas! A Escola deve servir em concreto a vida e preparar para a vida: isto quer dizer que deve formar, não simplesmente informar, o homem; deve contribuir para o elevar; deve fazê-lo subir na ordem do ser.

Mas há mais: sei bem que estou a falar aos professores das Escolas Secundárias do primeiro e segundo grau, cujos alunos estão compreendidos entre 11-12 anos e 18-19 anos: são os "teenagers", que se encontram naquela decisiva estação da vida que "medeia" entre a infância e a primeira maturidade. É precisamente sob os vossos olhos, caros Amigos e Irmãos, que se dá tal passagem difícil, em que as transformações fisiológicas se entretecem — em recíproco condicionamento — com as modificações de ordem psicológica. A pouco e pouco desaparece a criança e, com ela, o seu típico e irrepetível mundo de sonho, de jogo e de inocência; paralelamente, segundo a linha de gradualidade que é própria da natureza (natura non facit saltus), nasce — quase como nova criatura — o homem na conseguida solidez do seu aspecto físico e na mais desenvolvida e complexa área da sua espiritualidade: fantasia, razão, vontade, amor e liberdade.

Neste processo, vós não podeis limitar-vos a olhar, não podeis permanecer passivos, ou quando muito olhando curiosamente; estais envolvidos nesse processo em primeira pessoa, como educadores responsáveis, por encargo expresso que vos foi conferido, antes ainda que pelos Poderes Públicos, pelos naturais titulares do direito-dever de ministrar a educação, ou seja, pelos pais dos vossos alunos. Da relação activa entre educador e educando deve brotar um aumento de humanitas: o homem adulto é chamado a seguir, orientar e ajudar — evitando igualmente exageros e negligências — o adolescente que se vai fazendo homem. Quando, para mais, o educador é cristão, que tem a fé como feliz posse, não poderá deixar de tirar dela inspiração para a actividade pedagógica a que é dedicado. Será então o ideal da humanitas christiana, ao qual competirá como possibilidade favorecer o encontro do aluno, homem "in fieri", com a pessoa de Cristo, Filho de Deus e homem perfeito (Cfr. Ef Ep 4,15), a fim de, aquele que está a entrar na vida, o conseguir acolher pela fé no seu coração, e ser capaz de compreender... qual é a largura, o comprimento e a profundidade do amor de Cristo, e conhecer a Sua caridade que excede toda a ciência (Ibid. 5, 17-19).

5. Será demasiado alta esta meta para um educador? Não certamente para um cristão que, convencido que já no plano humano o seu trabalho é missão, deve encontrar, na realidade do seu pertencer à Igreja, o motivo e o estímulo para dar à mesma actividade uma orientação cristocêntrica. O desejo, ou antes, o apelo que na Encíclica diz aos "educadores qualificados", Sacerdotes, Religiosos e Leigos, aqui o renovo agora para vós, a fim de que precisamente no ambiente escolar seja consentido aos jovens "aprofundar a experiência religiosa", para "o Evangelho ser absorvido na mentalidade dos alunos no terreno mesmo da sua formação e a harmonização da própria cultura ser feita à luz da fé" (Exortação Apostólica Catechesi Tradendae ).

Por vós rogo eu ao Senhor para que vos dê a luz e a força necessárias a fim de vos manterdes sempre a este nível ideal, na vossa profissão: servir a Ele, Cristo, é o mesmo que servir aos homens, seus irmãos! E em seu nome vos abençoo afectuosamente, assim como a todos os colegas da vossa benemérita Associação.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


ÀS PEREGRINAÇÕES ITALIANAS


DE MÓDENA E DE LEGNANO


Sábado, 3 de Novembro de 1979



Caríssimos irmãos e irmãs

Saúdo cordialmente em vós os participantes em duas diversas peregrinações: a da Diocese de Módena, acompanhada pelo Arcebispo D. Bruno Foresti, e a da Comunidade Paroquial dos Santos Mártires em Legnano, com o seu Pároco. É-me grato que no vosso programa tenhais desejado incluir este encontro, que não só me dá alegria, mas é também para mim motivo de sincero reconhecimento pela vossa filial devoção.

Uma peregrinação a Roma, que é a que louvavelmente empreendestes, deve ser sempre colocada, por sua natureza, numa perspectiva de fé. Esta, depois, pode precisar-se e definir-se, se soubermos responder à pergunta: Para que fazer uma Peregrinação a Roma? A resposta a esta interrogação é dupla.

Antes de tudo, vem-se a Roma porque aqui se encontram os túmulos dos gloriosos Apóstolos Pedro e Paulo, respectivamente na Basílica Vaticana e na Basílica da Via Ostiense. Eles, enquanto viveram, tiveram momentos e formas diversas de chamada, campos distintos de evangelização e também um estilo diverso quer pelo temperamento quer pela formação cultural; estiveram todavia unidos por uma fé total no único Senhor Jesus Cristo e, aqui em Roma, com a sua morte violenta, deram-Lhe um igual e resplandecente testemunho supremo. Diante dos seus sepulcros não se pode ficar indiferente; não são mudos, mas falam-nos dos dois Apóstolos com linguagem solene de uma memória nobre e indelével. De modo que, para vós e para todos os cristãos peregrinos em Roma, são válidas as palavras que Paulo escreveu em sentido espiritual aos Efésios: Já não sois hóspedes nem peregrinos, mas sois concidadãos dos santos e membros da família de Deus, edificados sobre o alicerce dos apóstolos (Ep 2,19-20). Aqui, de facto, cada baptizado volta quase ao início da árvore genealógica da própria identidade cristã, e sabe que está em família, porque o solo de Roma foi banhado com o sangue dos Mártires, nossos antepassados na fé e fundadores da nossa dignidade de homens remidos. Esta componente histórica é essencial para o nosso Credo e também para a vossa Peregrinação; ela, de facto, serve de intermediária num confronto adorante daquele que se fez homem e habitou entre nós (Jn 1,14) e mandou as suas testemunhas a Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria, e até aos confins do mundo (Ac 1,8), até aqui a Roma, e depois até às vossas Dioceses e às vossas Paróquias. A minha palavra, nesta altura, não pode deixar de se tornar exortação, repetindo-vos o texto da Carta aos Hebreus: Lembrai-vos daqueles que vos pregaram a palavra de Deus, considerai o êxito da sua conduta e imitai a sua fé (He 13,7).

Em segundo lugar, para os cristãos e sobretudo para os católicos que vêm a Roma, há também uma motivação que provém não já tanto do passado quanto do presente. Aqui, de facto, é a sede do sucessor vivo de Pedro, que não se ocupa apenas da Diocese romana, mas também assume um ministério de raio universal. A sua função pastoral, herdada do Pescador de Betsaida na Galileia, consiste quer em fortalecer os irmãos na fé (Lc 22,32), quer, mais em geral, em apascentar as ovelhas (Jn 21,17) do rebanho de Cristo não só impedindo que se percam e desagreguem, mas também promovendo o crescimento e a expansão das mesmas.

O nosso encontro hodierno, por conseguinte, seja para vós, mediante a confirmação de que pertenceis Igreja, ocasião propícia para reafirmardes a vossa límpida e exclusiva adesão a quem, como nenhum outro, nos amou e se deu a si mesmo por nós (Cfr. Gál Ga 2,20), e para haurirdes daqui um renovado estímulo e encorajamento para enfrentar os compromissos quotidianos e as inevitáveis dificuldades com serenidade e com impulso cristão.

Destes votos é penhor a minha paternal Bênção Apostólica que de coração vos concedo, como também a todos os que vos são queridos.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


À REUNIÃO PLENÁRIA DO SACRO COLÉGIO


Segunda-feira, 5 de Novembro de 1979



Veneráveis irmãos,
Membros do Sacro Colégio

O Cardeal Decano, com as suas palavras sempre tão cheias de amabilidade e verdade, quis dirigir-me, também, em nome de todos vós, os bons votos pelo meu dia onomástico. Devo, por meu lado, retribuí-las publicamente e além disso agradecer-lhe com afectuosa sinceridade não só aquilo que desejou recordar deste primeiro ano do meu serviço como Pastor da Igreja universal, mas também aquilo que ele, em vosso nome, quis augurar não só a mim, mas à Igreja e até mesmo à humanidade: isto é, que se realize uma renovação geral, na adesão prática à doutrina de Cristo.

E não é acaso esta, em síntese, a finalidade espiritual do Concílio Vaticano II, o grande acontecimento eclesial deste nosso século, acontecimento cuja aplicação está confiada ao esforço de todo o Povo de Deus? O caro Cardeal Confalonieri recordou justamente São Carlos Borromeo, meu celestial Patrono, quanto ele trabalhou, quanto sofreu, para tornar efectivas, na vastíssima arquidiocese de Milão, as sábias directrizes de carácter doutrinal, moral, pastoral e litúrgico do Concílio Tridentino.

A Ele, meu Protector — neste momento de graças e de bênção, que nos vê reunidos — elevo a minha fervorosa oração para que transmita aos nossos corações o seu ardor e a sua dedicação à Igreja e às almas.

1. Veneráveis Irmãos, Membros do Sacro Colégio.

No princípio do nosso encontro, desejo sobretudo exprimir a alegria de ver aqui reunido em totalidade o Colégio Cardinalício, que se destina principalmente a eleger o Bispo de Roma, como aconteceu, durante o ano passado, nada menos que duas vezes. O triste dever de apresentar despedidas aos Papas defuntos — primeiro a Paulo VI, depois de quinze anos de pontificado, e a seguir a João Paulo I, depois somente de 33 dias de ministério pontifício —, reuniu-nos duas vezes por breve tempo em Roma. Conforme as indicações da Constituição Apostólica Romano Pontifici eligendo, tivemos, nos dias que precederam o Conclave, as Congregações plenárias, presididas pelo Venerável Decano do Sacro Colégio e pelo Cardeal João Villot, Camerlengo, que o Senhor chamou a Si no princípio de Março deste ano.

Esses frequentes encontros em pleno do Colégio Cardinalício ofereceram ocasião de propor que o mesmo Colégio se reunisse, ao menos de vez em quando, fora até das ocasiões do Conclave. Aceitando esta proposta, pensei em convidar os Veneráveis Senhores Cardeais para uma reunião dessas, que me permito inaugurar e abrir com o presente discurso. Convidando-vos, tinha consciência de que a vinda a Roma incluiria para vós a necessidade de abandonar os muitos e importantes trabalhos que vos ocupam nos vossos países e nas várias dioceses. Hoje desejo portanto agradecer muito cordialmente a todos vós tal presença.

2. O nosso encontro é plenamente justificado pelo carácter da dignidade que tendes e pelas tarefas relativas ao Colégio Cardinalício, formado por vós todos: vós, de facto, Veneráveis Irmãos, além do encargo de eleger o Bispo de Roma, deveis também ajudá-lo especialmente na solicitude pastoral pela Igreja nas suas dimensões universais. Nesta solicitude participam directamente, de modo contínuo e constante, aqueles dentre vós que pertencem à Cúria Romana, onde desempenham os cargos de maior responsabilidade. Todavia, ao lado deste grupo de meritórios Colaboradores, todos os outros membros do Sacro Colégio comparticipam com o Papa na solicitude comum pela Igreja. A ligação de todos os Cardeais com esta Sé Romana é bem especial e constituem sinal exterior dela, por exemplo, as igrejas da Cidade Eterna que gozam do título, da dignidade e do padroado de cada um. Exactamente nesta singular ligação com a Igreja Romana está o motivo por que o Bispo de Roma deseja encontrar-se convosco mais vezes, a fim de aproveitar os vossos conselhos e as vossas múltiplas experiências. Além disso, a reunião dos membros do Colégio Cardinalício é uma forma de se exercer também a colegialidade episcopal e pastoral, que está em vigor há mais de mil anos e convém seja por nós aproveitada também na época actual. O que não enfraquece de qualquer modo os deveres e a função do Sínodo dos Bispos, cuja próxima reunião ordinária está prevista para o Outono do ano que vem. Actualmente estão a correr os trabalhos preparatórios desta reunião, cujo tema «De muneribus familiae christianae» foi estabelecido ainda pelo Papa Paulo VI de venerada memória, conformando-se com as sugestões de muitas Conferências Episcopais e doutros organismos.

3. Parece portanto que o encontro do Colégio Cardinalício no Outono deste ano se poderá ocupar com utilidade dum exame, pelo menos sumário, dalguns problemas um pouco diversos dos atribuídos ao Sínodo dos Bispos. Estes problemas, que de maneira introdutória desejo pelo menos esboçar, são importantes, dada a situação da Igreja universal, e ao mesmo tempo parecem estar mais intimamente ligados com o Ministério do Bispo de Roma do que os que serão tema do Sínodo dos Bispos. É óbvio que não se pode nisto estabelecer uma delimitação rigorosa.

Logo no princípio, desejo também fazer notar que, além das questões que dentro em breve apresentarei da minha parte, conto com as propostas, que apresente e explique cada um dos Participantes neste nosso encontro. Para isso está previsto o necessário tempo na distribuição das nossas sessões.Esta ordem, contrariamente ao que se dá no Sínodo dos Bispos, não se baseia em nenhum Estatuto particular. Foi disposta «ad hoc», segundo as exigências previstas para a actual reunião (um pouco segundo o modelo das Congregações, realizadas antes do Conclave no ano passado). E queria acrescentar imediatamente que, além do que se diga no decurso das reuniões, serão preciosas todas as observações e propostas que sejam feitas por escrito. Dou-me conta de não poder o conjunto dos nossos trabalhos levar a que percam demasiado tempo os Veneráveis Membros do Sacro Colégio; também isto tomámos em consideração ao preparar o programa e a ordem da nossa reunião.

4. Com a graça de Deus Altíssimo e sob a protecção da Mãe de Cristo e Mãe da Igreja, iniciei a 16 de Outubro de 1978, o exercício do universal serviço papal, a que me chamastes votando, Veneráveis Cardeais, durante o último Conclave. Conforme sei, segundo as minhas forças e com a melhor das vontades — mas sobretudo ajudado pela luz e pelo poder do Espírito Paráclito —, procuro desempenhar este serviço, e não cesso de pedir a todos e cada um, sobretudo a vós, Veneráveis e caros Irmãos, orações segundo esta intenção. Não pretendo informar-vos aqui de cada um dos trabalhos que encheram o primeiro ano do pontificado, mesmo porque já são bem conhecidos de vós todos. Desejo, em vez disso, recordar uma vez mais tudo o que me foi dado pôr em realce já no primeiro discurso no dia seguinte à eleição. A coerente aplicação do ensinamento e directrizes do Concílio Vaticano II é e continua a ser a principal tarefa do meu pontificado. Era isto, em substância, o conteúdo daquele discurso. O Concílio elaborara, de facto, e apresentara a toda a Igreja uma visão «complexiva» das tarefas que haviam de realizar-se no contexto do laço recíproco e duma dependência orgânica, servindo-se evidentemente de métodos múltiplos e tendo à disposição a própria perspectiva teológica e histórica.

5. Na Constituição Gaudium et Spes lemos: «Quando o Senhor Jesus pede ao Pai 'que todos sejam uma só coisa como nós também somos uma coisa só' (Jn 17,21-22), abre perspectivas inacessíveis à razão humana e sugere-nos que existe certa semelhança entre a união das Pessoas divinas e a união dos filhos de Deus, na verdade e na caridade» (Gaudium et Spes GS 24). A aspiração à união dos homens, como «filhos de Deus unidos na verdade e na caridade», não deixa de ser uma perspectiva de toda a vida e missão da Igreja, tanto no interior da sua própria comunhão como fora dela, na extensão de cada «círculo do diálogo», como lhe chamou o Papa Paulo VI na primeira Encíclica do seu pontificado. Todos nos damos bem conta de aquela aspiração à união na verdade e na caridade não deixar de ser a aspiração à verdade em que devemos encontrar-nos reciprocamente, como também a aspiração à caridade mediante a qual devemos unir-nos reciprocamente. Não pode ser diversamente no estado da existência humana terrestre. Neste sentido sobretudo, permiti-me pôr em evidência, na Encíclica Redemptor Hominis, que Jesus Cristo indica sempre à Igreja, e na nossa época de modo particular mediante a voz do Concílio, o caminho para o homem, para todos os homens, e neste sentido o homem toma-se em Cristo dalgum modo o caminho da Igreja.

Deste modo atingimos sempre de novo a perspectiva histórica da missão da Igreja, que para nós se une com a perspectiva teológica da fé, uma vez que a cada homem e a todos os homens juntos foi indicada aquela «união na verdade e na caridade», isto é, a unidade espiritual, como ligada à dignidade «de filhos de Deus». portanto necessário fazer que essa fórmula sintética, que nos deixou o Concílio na sua Constituição pastoral, una verdadeiramente em si todos e cada um dos esforços que formam a obra da aplicação do Concílio. Esta obra, na sua mais profunda realidade, está simbolizada naquela árvore da vida, com que o homem quebrou uma vez a relação por meio do pecado original (Cfr. Gén Gn 3,1-7), árvore que mediante Cristo começou de novo a desenvolver-se muito na história da humanidade. O Concílio não se aplicou tanto a desvelar diante de nós o eterno mistério deste desenvolvimento, quanto a mostrar antes, de modo insolitamente penetrante, a sua época contemporânea. Por isso, a obediência à doutrina do Concílio Vaticano II é obediência ao Espírito Santo, que é dado à Igreja, para recordar a cada época da história tudo o que o próprio Cristo disse, para ensinar à Igreja todas as coisas (Cfr. Jo Jn 14,26). A obediência ao Espírito Santo exprime-se na autêntica realização das tarefas indicadas pelo Concílio, em pleno acordo com o ensinamento nele proposto.

6. Não se podem tratar estes deveres como se não existissem. Não se pode ter a pretensão de levar a Igreja a retroceder, para assim nos exprimirmos, no longo decurso da história da humanidade. Mas também não se pode correr com presunção para diante, para formas de viver, de entender e de pregar a verdade cristã, enfim para modos de se ser cristão, sacerdote, religioso ou religiosa, que não se baseiem no ensinamento integral do Concílio «integral», isto é, entendido à luz de toda a Santa Tradição e com base no Magistério constante da Igreja mesma. Grande e múltiplo dever, o que põe diante de nós o imperativo da aplicação prática do Concílio! Requer vigilância contínua acerca do carácter autêntico de todas as iniciativas, que serão compreendidas nessa aplicação. A Igreja, comunidade viva dos filhos de Deus unidos na verdade e no amor, deve fazer grande esforço, neste período, para entrar no caminho recto da aplicação do Vaticano II e afastar-se das propostas contrárias, cada uma das quais se revela, no seu género, como afastamento deste caminho. Só este — isto é, a obediência honesta e sincera ao Espírito de verdade — pode servir à unidade e ao mesmo tempo à força espiritual da Igreja.

Só ele pode, além disso, servir a obra do ecumenismo, isto é, aquela renovada unidade que, numa primeira acepção, entendemos como união mediante a caridade, mas que, mais em profundidade, entendemos depois também como gradual encontro na plenitude da verdade, com todos aqueles que, juntamente connosco, crêem em Cristo. Só aquele caminho — o caminho da união interna da Igreja, do Povo de Deus — pode servir a obra da evangelização, isto é, a manifestação efectiva a todos os homens daquela verdade e vida, que é o próprio Cristo. Esta união na verdade e na caridade é exigência especial nos nossos tempos, também porque neles nos encontramos com a negação desta verdade e com a radical dúvida sobre o Evangelho e a religião em geral.

7. Este olhar sobre toda a situação leva a que se tirem algumas conclusões, que se podem definir «práticas» (enquanto o Concílio Vaticano II, baseando-se no Evangelho e na Tradição, formou só o esqueleto de toda a práxis cristã contemporânea, a práxis do Povo de Deus).

A conclusão mais importante refere-se ao conceito correcto e ao exercício da liberdade na Igreja. O Concílio, seguindo as palavras do Senhor, deseja servir o desenvolvimento desta liberdade — a liberdade dos filhos de Deus que, especialmente nos nossos tempos, tem grande significado, pois somos testemunhas de muitas formas de opressão do homem, incluindo as opressões da sua consciência e do seu coração. Não se deve nunca esquecer que o Senhor disse: Conhecereis a verdade e a verdade libertar-vos-á (Jn 8,32). Por isso a Igreja deve guardar no coração e na consciência de todos os seus filhos e filhas e, também, se é possível, no coração e na consciência de cada homem, a verdade da liberdade mesma. Muitas vezes a liberdade da vontade e a liberdade da pessoa são entendidas como direito de fazer toda a espécie de coisas, como direito de não aceitar nenhuma norma nem dever, que obrigue durante a vida inteira, por exemplo, os deveres provenientes das promessas matrimoniais ou da ordenação sacerdotal. Cristo não nos ensina tal interpretação e tal exercício da liberdade. A liberdade de cada homem cria deveres, requer o pleno respeito da jerarquia dos valores, está potencialmente orientada para o Bem sem limites, para Deus. A liberdade aos olhos de Cristo não é, primeiro que tudo, «liberdade de» mas é «liberdade para». O uso pleno da liberdade é o amor, em particular o amor mediante o qual o homem se dá a si mesmo. O homem, de facto, como lemos no mesmo capítulo da Gaudium et Spes, «não pode realizar-se plenamente senão pelo dom sincero de si mesmo» (Cfr. Gaudium et Spes GS 24).

Esta interpretação e este exercício da liberdade é que devem encontrar-se na base de toda a obra do renovamento. Só o homem, que entende e exerce a sua liberdade do modo indicado por Cristo, abre a alma para a obra do Espírito Santo, que é Espírito de verdade e amor. Da autêntica afirmação da liberdade dos filhos de Deus depende a grande obra das vocações sacerdotais, religiosas e matrimoniais; depende o efectivo progresso ecuménico; depende todo o testemunho cristão, isto é, a participação dos cristãos na causa de fazer que o mundo se torne mais humano. Esta é a primeira condição.

8. A segunda condição do renovamento da Igreja no espírito do Evangelho (isto é, no espírito do Vaticano II) é constituída por contínuo crescimento da solidariedade, isto é, do amor comunitário (social), quer no interior da Igreja, quer em relação com todos os homens sem atender às confissões ou convicções. Muito se fez neste sentido no último período, como o testemunha a actividade da Comissão Iustitia et Pax e também a do Conselho Cor Unum. É óbvio que a possibilidade, que tem a Igreja, de oferecer contributos económicos, para as múltiplas e diferenciadas necessidades materiais nos diversos pontos da terra, é limitada. Deve-se também sublinhar aqui que esta solidariedade «fora» da Igreja requer solidariedade «dentro». Procurei chamar a atenção para isto, sobretudo nos discursos das quartas-feiras durante a passada Quaresma. A Igreja mesma é grande comunidade, no âmbito da qual há situações diversas nas várias comunidades; não falta quem sofra estreitezas materiais, mas não faltam também os que sofrem opressão e perseguição. Em toda a comunidade católica, em cada Igreja local, deve crescer o sentido duma especial solidariedade com esses nossos irmãos na fé, especialmente com os que pertencem a Igrejas do rito oriental, que não têm sequer existência legal. No mundo contemporâneo, onde a seu modo domina todo o sistema da troca de informações, é necessária — tanto no interior da Igreja como no exterior, diante da opinião mundial — a troca permanente das informações respeitantes quer aos que sofrem miséria, quer também aos que sofrem pela fé. Devem estes últimos sentir de modo especial que não estão abandonados no sofrimento, que toda a Igreja se lembra deles, pensa neles e reza por eles, que estão no centro da atenção de todos e não na periferia.

Neste campo, a Igreja «rica e livre» (se é possível exprimir-nos assim) tem enormes dívidas e obrigações para com a Igreja «pobre e oprimida» (se também estes atributos se podem usar). Solidariedade quer dizer sobretudo devida compreensão e depois acção adequada, não com base naquilo que julga aquele que ajuda, mas com base naquilo que corresponde às necessidades reais de quem é ajudado e à sua dignidade.

Não esqueçamos aquele princípio fundamental da economia da salvação, segundo o qual o homem, que oferece aos outros, se salva a si mesmo. Pode acontecer portanto que o remédio — para múltiplas dificuldades internas dalgumas Igrejas locais e comunidades cristãs — se encontre precisamente nesta solidariedade. As dificuldades serão eficazmente vencidas quando essas Igrejas e comunidades começarem a servir os outros «na verdade e na caridade» (em certo sentido apartando o olhar de si mesmas). Este princípio interpreta, de modo mais simples, a função missionária da Igreja, e apresenta mesmo um postulado estimulante e, em certo sentido, um imperativo missionário para a nossa geração. Para a geração a que a Providência confiou uma grande obra de renovamento, geração que algumas vezes se encontra vacilante e desanimada, ao verificar o desabamento dalgumas frentes da vida tradicional da Igreja e a crise das instituições fundamentais; mais ainda, a crise que se verifica nos homens, nas suas atitudes e nas suas consciências.

9. O renovamento da Igreja, segundo o «programa» esplêndido que propôs o Concílio Vaticano II, não pode estar no seu esqueleto fundamental (nem também nas suas manifestações concretas) senão numa autêntica conversão para Deus, medida pelas exigências do nosso tempo. A chamada para a conversão («meta-noiete»), isto é, para a penitência, é não só a primeira palavra do Evangelho, mas também a sua palavra constante e insubstituível. Desta palavra vem toda a vitalidade da Igreja. A Igreja encontra-se tanto mais plenamente «in statu missionis» — isto tanto mais plenamente realiza a sua missão —, quanto mais se converte para Deus. E só mediante tal autoconversão, se torna ela mais poderosa como centro da conversão dos homens e do mundo para o Criador e Redentor.

Deve-se portanto olhar com certa inquietação para a diminuição bastante generalizada destes esforços fundamentais, que sempre dão testemunho do espírito de penitência e da dinâmica da conversão, entre os confessores de Cristo. É igualmente necessário, por outro lado, agradecer a Deus com alegria tudo aquilo que manifesta o autêntico «sopro do Espírito»; o despertar da necessidade da oração e da vida sacramental, especialmente da participação na Eucaristia; o regresso profundo à Sagrada Eucaristia; o aumento, ao menos nalgumas regiões, das vocações sacerdotais e religiosas — tudo o que se pode definir como «despertar espiritual». Este, Veneráveis Irmãos, devemos procurar conservá-lo com especial cuidado, criando as condições necessárias para nove desenvolvimento dessas abençoadas correntes, tão necessárias à Igreja e à humanidade; a humanidade vai tomando cada vez melhor consciência dos maus resultados a que leva o materialismo contemporâneo nas suas múltiplas manifestações.

10. Até agora no meu discurso procurei não tratar directamente problemas particulares, mas antes pôr em evidência as bases de que depende a realização da tarefa que se apresenta diante de toda a Igreja no período actual da história. Espero que isto ajude os Senhores Cardeais aqui reunidos a formularem as suas observações e propostas, que esperamos mesmo no decorrer deste encontro.

Depois do discurso introdutório de natureza geral, serão apresentadas três relações de carácter mais particular. Dizem respeito aos problemas concretos sobre os quais a Sé Apostólica julga útil informar o Ilustre Colégio, para deste receber o parecer responsável.

Para dar possibilidade a todos de se exprimirem, estão previstos, em particular, encontros nos círculos linguísticos.

A primeira relação, do Cardeal Secretário de Estado, referir-se-á ao conjunto das estruturas da Cúria Romana, assim como elas foram reordenadas, em consequência de sugestões do Concílio, na Constituição Apostólica do Papa Paulo VI Regimini Ecclesiae Universae. Estas estruturas encontram-se em nexo orgânico com as múltiplas orientações da actividade contemporânea da Igreja. A perspectiva da nova aplicação do Concílio Vaticano II depende em boa parte do funcionamento eficaz de tais estruturas — e da sua programada cooperação com análogas estruturas dentro das Igrejas locais e das Conferências Episcopais.

O assunto da segunda relação, que será apresentada pelo Cardeal Prefeito da Congregação da Educação Católica, é problema mais específico, mas não menos importante. Trata-se da actividade das várias Academias Pontifícias e em particular da Pontifícia Academia das Ciências.

Estas Entidades, instituídas pelo Papa Pio XI, têm fundamental importância no âmbito das relações entre a fé e o conhecimento, e entre a religião e a ciência. Também nisto é necessário encontrar uma forma mais colegial de conseguir a cooperação neste campo, que é importante para a Igreja na sua dimensão universal.

A Constituição pastoral Gaudium et Spes dedicou um capítulo próprio ao problema das relações entre a Igreja e a cultura. Seguindo o espírito deste documento, é necessário buscar depois uma expressão adequada da relação da Igreja com o vasto campo da antropologia contemporânea e das ciências do homem, assim como Pio XI procurou a expressão da relação da Igreja com as ciências matemáticas e naturais, instituindo a Pontifícia Academia das Ciências.

E alegro-me de que, dentro de poucos dias, se realize uma Sessão solene desta Academia Pontifícia para, na presença de todos vós, venerados e caros Irmãos, comemorar o centenário do nascimento de Albert Einstein.

O terceiro assunto, por fim, que será objecto da relação do Cardeal Presidente da Administração do Património da Sé Apostólica, refere-se àquele conjunto de problemas, que foram já tocados de modo introdutório, no decurso das Congregações cardinalícias que precederam o Conclave de Agosto passado. Tendo presentes os diversos campos da actividade da Sé Apostólica, que se deviam ampliar em vista da realização do Concílio e das actuais tarefas da Igreja, quer no campo da evangelização quer no do serviço aos homens em espírito evangélico — é necessário formular a pergunta sobre os meios económicos. Em particular tem o Colégio cardinalício o direito e o dever de conhecer exactamente o actual estado da questão.

11. Eis, Venerados e Caros Irmãos, brevemente esboçado o conjunto de problemas que devem constituir o tema deste encontro, que tanto desejei. Espero que a Sede da Sabedoria e Mãe da Igreja implore para nós a luz necessária para conseguirmos, num tempo relativamente breve, examinar estes problemas e assegurar-lhes soluções eficazes para o futuro serviço do Bispo de Roma.




Discursos João Paulo II 1979 - 3 de Novembro de 1979