Discursos João Paulo II 1979 - Segunda-feira, 5 de Novembro de 1979

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS VIAJANTES POR OCASIÃO


DO XXI DIA NACIONAL DO FERROVIÁRIO


Estação Ferroviária Termini

Roma, 8 de Novembro de 1979



Caríssimos Viajantes

Aproveitando esta breve paragem na Estação Termini, antes de chegar ao Depósito de locomotivas no Salário para a celebração da Santa Missa, ao festejar-se o Dia do Ferroviário quero dirigir uma saudação especialmente afectuosa a todos os que hoje param neste ponto de encontro de passageiros na Roma cosmopolita, a que também eu, por misteriosa vontade de Deus, cheguei da Polónia, como outrora São Pedro da Galileia, para ser Bispo da Urbe e Pastor da Igreja universal.

Desejo primeiramente expressar um cordial pensamento a todos os que se prodigalizam pelo bom funcionamento desta Estação e dos Caminhos de Ferro: ao Director-Geral, aos funcionários nos vários cargos, aos chefes de estação e chefes de comboios, aos condutores e maquinistas, a todos os empregados dos vários serviços de manutenção, reparação e limpeza. Recordo especialmente aqueles que trabalham aqui pela segurança pública, pela tutela da ordem social e moral, e pela defesa daquelas pessoas que, encontrando-se sós e como que perdidas numa grande estação como esta, podem ver-se em situações de perigo, físico e espiritual. Vá para todos eles o meu reconhecimento e também a minha palavra de ânimo para este delicado e importante serviço para bem da sociedade.

O meu pensamento abrange em seguida toda a imensa multidão dos viajantes, que por causa do trabalho ou do estudo, por motivos sociais, religiosos ou turísticos, estão em movimento pelos caminhos do mundo. Penso sobretudo nos emigrantes que, para garantir o necessário às próprias famílias, são obrigados a deixar a sua pátria e os que lhes são caros e a submeter-se a sacrifícios e dificuldades em terras desconhecidas.

Naqueles que andam de viagem reproduz-se um aspecto da vida de Jesus, que durante a vida pública, nos três anos da pregação messiânica, viajou constantemente duma região para outra, duma cidade para outra da antiga Palestina. E coma Jesus, que é o nosso "Caminho" (Cfr. Jo Jn 14,6), assim fizeram os Apóstolos, que se dispersaram pelos caminhos do mundo a anunciar a "boa nova" a todas as nações.

Quaisquer que sejam os motivos por que vos pondes em viagem, não deixeis de lhe dar também uma dimensão humana, porque mediante as viagens, como diz o Concílio, "afina-se o espírito e, além disso, enriquecem-se os homens através do conhecimento mútuo" (Gaudium et Spes GS 61); de tal modo oferecem-se boas oportunidades para estabelecer relações fraternas entre pessoas de todas as condições e estados sociais, como de todas as nacionalidades, para completarem assim a própria formação cultural e, sobretudo, para compreenderem as necessidades dos outros. De facto, da conversa e do confronto de ideias resulta maior consciência da necessidade da solidariedade humana e do auxílio reciproco.

Desejo, pois, de maneira especial que saibais dar às vossas viagens também uma dimensão espiritual, queria dizer, um sentido bíblico de peregrinação ideal para a terra prometida. No sentido que tinha também em vista Santo Agostinho, quando explicava aos seus fiéis: "Que significa caminhar? Andar para a frente bem, progredir na santidade... Se progrides, é sinal que andas, mas deves andar no bem, deves avançar na fé verdadeira, deves progredir na santidade" (Santo Agostinho, Sermo 256. 3: PL 38, 1193).

Confio estas aspirações à Virgem Santíssima, Nossa Senhora da Boa Viagem, a fim que lhes dê valor com a sua poderosa intercessão, ao mesmo tempo que, assegurando ter-vos presentes na oração, da melhor vontade concedo a todos vós, às vossas famílias e às vossas pessoas queridas que estão longe, a minha especial Bênção Apostólica.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS MEMBROS DO SACRO COLÉGIO


POR OCASIÃO DA CONCLUSÃO DA PLENÁRIA


9 de Novembro de 1979



Veneráveis Irmãos,
membros do Sacro Colégio

1. Ecce quam bonum ... habitare fratres in unum (Ps 132, I). Há circunstâncias especiais na vida da Igreja, em que mais a fundo compreendemos a beleza e a verdade destas palavras. Experimentámo-lo durante os dois Conclaves, que o ano passado vivemos juntos, numa experiência única da nossa vida consagrada a Cristo e ao Povo de Deus. E experimentámo-lo também nestes dias, em toda a sua interior riqueza e suavidade, quando nos reunimos neste primeiro encontro histórico por mim tão desejado e por vós favorecido com a presença e a colaboração. «Fratres in unum». Sentimo-nos irmãos, unidos com um mesmo vínculo de vocação e de missão: reunidos à volta do altar, à volta do Túmulo de Pedro, na segunda-feira 5 de Novembro, orando pelos Irmãos do Sacro Colégio que em grande parte estiveram ao nosso lado no ano passado e o Senhor chamou a si; unidos nesta sala, onde se sentiu aquela única paixão que a todos nos consagra para a obra do ministério, para a edificação do Corpo de Cristo, até que cheguemos todos à unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus (Ep 4,12 s).

E irmãos nos sentimos especialmente hoje, no vínculo desta nossa Igreja de Roma, a que estamos muito estreitamente ligados, eu como Pastor, vós como membros autorizados do clero romano, a que os vossos títulos e diaconias vos dão o direito original de pertencerdes; hoje, repito, em que a Igreja universal celebra a Dedicação da Basílica Lateranense, mater et caput omnium Eclesiarum, sede da cátedra do Bispo de Roma.

2. Um reflexo daquela alegria, que é própria da Jerusalém celeste, irradia também e especialmente sobre nós, aqui reunidos, para conclusão do encontro precisamente no dia consagrado à dedicação da Cátedra de Roma.

Com estes sentimentos agradeço-vos de todo o coração: terdes vindo a Roma de todos os Continentes, deixando por alguns dias as solicitudes pastorais que vos unem às vossas Igrejas, a que vos liga em Cristo um amor nupcial; terdes enfrentado os incómodos da viagem sem reparar nas exigências do trabalho. Obrigado pelas intervenções, sólidas e ponderadas, que fizestes aqui ouvir, pelo acordo com que a Assembleia e cada um dos Círculos trabalharam respondendo ao convite feito, e pela positiva colaboração manifestada.

Mas obrigado sobretudo pelo clima que se respirou aqui: clima de fraternidade, de família, de co-responsabilidade e de amor: caritas ... Christi urget nos (2Co 5,14).

3. Penso que deste modo a nossa reunião contribuiu:

— para percorrer em breve tempo um importante avanço no caminho da colegialidade, dentro do espírito do Concílio Vaticano II;

— para a reanimação desta maravilhosa instituição que é o Colégio Cardinalício conforme a sua natureza e a sua tradição.

Agradecendo não posso ao mesmo tempo deixar de pedir desculpa:

— pelas dificuldades, que tivestes de enfrentar;

— pelos encargos que, pela sua dimensão, pareciam ultra-passar as possibilidades do tempo, que a eles se podia dedicar.

Viu-se, porém, que mesmo num tempo relativamente breve se pôde fazer não pouco nesta qualificada Assembleia.

4. Os elementos principais serão indicados no comunicado final.

Em certo sentido, este encontro introduziu uma nova troca de ideias e solicitude pastoral.

Não há dúvida que este encontro teve carácter altamente pastoral, animado pela «sollicitudo omnium ecclesiarum» (Cfr. 2Co 11,28).

5. Não é minha intenção voltar aos temas, que foram submetidos à vossa reflexão mesmo durante os últimos meses. Baste-me dizer que, no que diz respeito à organização da Cúria Romana, serão tidos bem presentes as sugestões, os conselhos e as propostas que, animados por sincero amor pelo bem da Igreja universal, vós fizestes e fareis chegar aqui, ao coração mesmo da Igreja, para que o organismo da Cúria Romana, tão articulado e complexo, possa ficar habilitado a desempenhar um serviço cada vez mais qualificado, precioso e profícuo, aos Bispos e às Conferências Episcopais do mundo inteiro.

6. Não vos passou depois despercebido o interesse que, pessoalmente e com o auxílio dos meus directos colaboradores, eu pretendo dedicar aos problemas da cultura, da ciência e da arte que foram objecto de particular estudo por parte do Concílio Vaticano II, e esperam mais pronto contributo de todos nós, Homens de Igreja. Foi o Concílio que pôs em plena luz, na constituição pastoral Gaudium et Spes, a necessidade de promover o desenvolvimento da cultura: «Os cristãos — diz-se no documento — a caminho da cidade celeste, devem procurar e saborear as coisas que são do alto; o que, todavia, em nada diminui a importância, antes a aumenta, da obrigação de trabalhar com todos os homens e de esforçar-se pela construção de um mundo mais humano. Realmente, o mistério da fé cristã proporcionar-lhes-á óptimos incitamentos e apoios para se entregarem com maior entusiasmo a essa missão e, sobretudo, para descobrirem o sentido pleno das actividades capazes de dar à cultura o lugar eminente que lhe cabe na vocação integral do homem» (Gaudium et Spes GS 57).

A esta finalidade visam as solicitudes e as perspectivas, que me permiti tornar-vos presentes, explicadas depois competentemente pelo Cardeal relator. As intervenções mostraram claramente aquilo que vos preocupa no desenvolvimento deste campo vital, em que se joga o destino da Igreja e do mundo neste final do nosso século.

Atribuo, por isso, importância também grandíssima às opiniões que fareis que me cheguem sobre esta, para mim e para todos, central e iniludível questão.

7. No que diz respeito ao terceiro assunto, quer dizer, à questão «económica», parece oportuno fazer notar:

— continuando a troca das informações, iniciada já no mês de Agosto do ano passado, isto é, antes do Conclave, pudestes, Venerados Irmãos, tomar conhecimento, de maneira precisa, do estado dos problemas financeiros da Santa Sé;

— isto é muito importante para se formar exactamente a opinião pública na Igreja e em toda a sociedade católica quanto a este assunto. Essa fábula espalhada acerca das finanças da Santa Sé causou-lhe prejuízo não leve. Como nos tempos antigos, também nos nossos dias surgem mitos. O único modo de proceder em semelhante questão é o de considerar objectivamente o assunto em si mesmo. Devo, a este propósito, agradecer-vos vivamente porque também neste campo vós, com generosa disposição, estais prontos a colaborar segundo a tradição apostólica confirmada pela experiência de todas as épocas da Igreja.

A Sé Apostólica, para poder servir com eficácia a missão universal da Igreja, para poder realizar o programa pastoral do Concílio e para trabalhar em favor da evangelização, precisa também de meios financeiros. Objectivamente, estes meios, em comparação com os que o mundo contemporâneo, dispende, por exemplo, para os armamentos, são supermodestos.

Além disto, a manutenção daquele grande monumento da cultura, qual é a Basílica de São Pedro, e, relacionada com ela, doutras instituições, por exemplo, os Museus do Vaticano, é nosso dever perante a História.

Parece-me, por último, poder dizer que as finalidades, para as quais se tinha pensado em convocar esta reunião extraordinária dos Padres Cardeais, foram atingidas «Deo adiuvante».

Precisamente a Ele — ao «Pai da luz», de quem desce toda a boa dádiva e todo o dom perfeito (Jc 1,17) — sobe o agradecimento comum. A Ele confiamos os nossos propósitos e os nossos trabalhos. A Ele pedimos a graça de continuar com perseverança no caminho começado, para elevação do homem, para o verdadeiro progresso dos povos e para a paz universal. Aspirando praeveni, et adiuvando prosequere.

E Maria, Mãe da Igreja, Rainha dos Apóstolos, valorize os nossos votos comuns e fecunde-os com a sua protecção.

A Ela — e digo-o recolhendo o voto unânime expresso nesta sala — confio ainda a minha pessoa e toda esta nossa assembleia de Pastores.

A todos vós, Irmãos muito amados, a minha bênção especial.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


À PONTIFÍCIA ACADEMIA DAS CIÊNCIAS


POR OCASIÃO DO PRIMEIRO CENTENÁRIO


DO NASCIMENTO DE ALBERT EINSTEIN


10 de Novembro de 1979



Veneráveis Irmãos
Excelência
Senhoras, Senhores

1. Agradeço vivamente a Vossa Excelência, Senhor Presidente, as palavras calorosas e dedicadas que me dirigiu no princípio do seu discurso e alegro-me também consigo como ainda com os Senhores Dirac e Weisskopf, ambos membros ilustres da Pontifícia Academia das Ciências, por esta comemoração solene do centenário do nascimento de Albert Einstein.

A Sé Apostólica quer também prestar a Albert Einstein a homenagem que lhe é devida pela contribuição eminente que trouxe ao progresso da ciência, quer dizer, ao conhecimento da verdade, presente no mistério do universo.

Sinto-me plenamente solidário com o meu Predecessor Pio XI e com os que lhe sucederam na Cátedra de Pedro, convidando os membros da Pontifícia Academia das Ciências, e todos os sábios com eles, a fazerem «progredir, cada vez mais nobre e intensamente, as ciências, sem nada lhes pedir a mais; isto porque, neste excelente propósito e neste nobre labor, consiste a missão de servir a verdade, da qual nós os encarregamos ...» (Motu proprio In multis solaciis de 28 de Outubro de 1936, sobre a Pontifícia Academia das Ciências: AAS 28, 1936, p. 424).

2. A investigação da verdade é a tarefa fundamental da ciência. O investigador, que se move nesta primeira vertente da ciência, sente toda a fascinação das palavras de Santo Agostinho: «Intellectum valde ama» (Santo Agostinho, Epist. 120, 3, 13; PL 33, 459), «ama muito a inteligência» e a função que lhe é própria, de conhecer a verdade. A ciência pura é um bem, digno de ser muito amado, porque ela é conhecimento e portanto perfeição do homem na sua inteligência. Antes mesmo das suas aplicações técnicas, deve ela ser honrada por si mesma, como parte integrante da cultura. A ciência fundamental é bem universal, que todos os povos devem poder cultivar em plena liberdade de qualquer forma de servidão internacional ou de colonialismo intelectual.

A investigação fundamental deve ser livre diante dos poderes político e económico, que hão-de cooperar para o desenvolvimento dela, sem a deter na sua criatividade nem a fazer servir aos próprios interesses. Como toda a outra verdade, a verdade científica não tem, com efeito, de dar contas senão a si mesma e à Verdade suprema que é Deus, criador do homem e de todas as coisas.

3. Na sua outra vertente, volta-se a ciência para as aplicações práticas, que encontram o pleno desenvolvimento nas diversas tecnologias. Na fase das suas realizações concretas, a ciência é necessária à humanidade para satisfazer as justas exigências da vida e vencer os diferentes males que a ameaçam. Não há dúvida que a ciência aplicada prestou e prestará ao homem serviços imensos, contanto que seja, ao menos um tanto, inspirada pelo amor, regulada pela sabedoria e acompanhada pela coragem que a defende contra a ingerência indevida de todos os poderes tirânicos. A ciência aplicada deve aliar-se à consciência para que, no trinómio ciência-tecnologia-consciência, seja servida a causa do verdadeiro bem do homem.

4. Infelizmente, como tive ocasião de dizer na minha encíclica Redemptor Hominis «o homem de hoje parece estar sempre ameaçado por aquilo mesmo que produz ... E nisto parece consistir o capítulo principal do drama da existência humana contemporânea» (Redemptor Hominis RH 15). O homem deve sair vitorioso deste drama que ameaça degenerar em tragédia, e há-de encontrar a sua realeza autêntica sobre o mundo e o pleno domínio sobre as coisas que ele produz. Na hora actual, como eu escrevia na mesma encíclica «o sentido essencial desta 'realeza' e deste 'domínio' do homem sobre o mundo visível, que lhe foi confiado como tarefa pelo próprio Criador, consiste na prioridade da ética, no primado da pessoa sobre as coisas e na superioridade do espírito sobre a matéria» (Ibid. 16).

Esta superioridade tripla mantém-se na medida em que se conserva o sentido da transcendência do homem sobre o mundo e de Deus sobre o homem. Exercendo a sua missão de guarda e advogada duma e outra transcendência, a Igreja julga ajudar a ciência a conservar a sua pureza ideal na vertente da investigação fundamental, e a desempenhar o seu serviço em favor do homem na vertente das suas aplicações práticas.

5. A Igreja reconhece de boa vontade, por outro lado, ter beneficiado da ciência. É a esta, entre outras, que é preciso atribuir o que o Concílio disse a propósito de certos aspectos da cultura moderna: «As condições novas afectam igualmente a própria vida religiosa ... O desenvolvimento do espírito crítico purifica-a duma concepção mágica do mundo e de reminiscências supersticiosas, e exige uma adesão cada vez mais pessoal e activa à fé, o que faz que sejam numerosos aqueles que atingem um sentido mais vivo de Deus» (Gaudium et Spes GS 7).

A colaboração entre religião e ciência moderna resulta em vantagem para uma e para outra, sem violar de nenhum modo as suas autonomias respectivas. Do mesmo modo que a religião exige a liberdade religiosa, a ciência reivindica legitimamente a liberdade da investigação. O Concílio ecuménico Vaticano II, depois de reafirmar, com o Concílio Vaticano I, a justa liberdade das artes e das disciplinas humanas no campo dos seus princípios, reconhece solenemente «a autonomia legítima da cultura e em particular a das ciências» (Ibid.59). Ao realizar-se esta comemoração solene de Einstein, desejaria confirmar de novo as declarações do Concílio sobre a autonomia da ciência no seu trabalho de investigação sobre a verdade inscrita na criação pelo dedo de Deus. Cheia de admiração pelo génio do grande sábio em que se revela a marca do Espírito criador, a Igreja, sem intervir de qualquer modo, por um juízo que não lhe pertence formular, sobre a doutrina relativa aos grandes sistemas do universo, propõe-na todavia à reflexão de teólogos para descobrir a harmonia que existe entre a verdade científica e a verdade revelada.

6. Senhor Presidente. Disse Vossa Excelência com muita razão no seu discurso que Galileu e Einstein caracterizaram uma época. A grandeza de Galileu é a todos conhecida, como a de Einstein; mas diferentemente deste; que nós honramos hoje diante do Colégio Cardinalício no palácio apostólico, o primeiro muito teve que sofrer — não poderíamos escondê-lo — da parte de homens e organismos da Igreja. O Concílio Vaticano reconheceu e deplorou certas intervenções indevidas: «Seja-nos permitido lamentar — está escrito no número 36 da constituição conciliar Gaudium et Spes — certas atitudes que existiram até entre os próprios cristãos, por não terem entendido suficientemente a legítima autonomia da ciência. Fontes de tensões e de conflitos, elas levaram muitos espíritos a pensar que ciência e fé se opõem». A referência a Galileu está expressa claramente na nota relativa a este texto, que cita o volume Vita e opere di Galileo Galilei de Mons. Pio Paschini, editado pela Pontifícia Academia das Ciências.

Indo além desta tomada de posição do Concílio, desejo que teólogos, sábios e historiadores, animados por espírito de sincera colaboração, aprofundem o exame do caso de Galileu e, num reconhecimento leal dos erros de qualquer lado que tenham vindo, façam desaparecer as desconfianças que este assunto opõe ainda, em muitos espíritos, a uma concórdia frutuosa entre ciência e fé, entre a Igreja e o mundo. Dou todo o meu apoio a esta tarefa, que poderá honrar a verdade da fé e da ciência, e abrir a porta a futuras colaborações.

7. Seja-me permitido, Senhores, submeter à vossa atenção e reflexão alguns pontos que me parecem importantes para colocar de novo na sua verdadeira luz a questão de Galileu, em que as concordâncias entre religião e ciência são mais numerosas, e sobretudo mais importantes, que as incompreensões de que nasceu o conflito áspero e doloroso que se prolongou durante os séculos seguintes.

Aquele, que é chamado a justo título fundador da física moderna, declarou explicitamente que as duas verdades, de fé e de ciência, não podem nunca contradizer-se, «procedendo igualmente do Verbo divino a Escritura santa e a natureza, a primeira como ditada pelo Espírito Santo, a segunda como executora fidelíssima das ordens de Deus», segundo ele escreveu na carta ao Padre Benedetto Castelli a 21 de Dezembro de 1613 (Edição nacional das obras de Galileu, vol. V, PP 282-285). O Concílio Vaticano II não se exprime diferentemente; retoma mesmo expressões semelhantes quando ensina: «A investigação metódica, em todos os campos do saber, se é realizada de modo verdadeiramente científico e conforme às normas morais, não será nunca contrária à fé, porque as realidades temporais e as realidades da fé têm a sua origem no mesmo Deus» (Gaudium et Spes GS 36).

Galileu manifesta na sua investigação científica a presença do Criador que o estimula, que se antecipa às suas intuições e as ajuda, operando no mais profundo do seu espírito. A propósito da invenção da luneta astronómica, escreve no princípio do Sidereus Nuncius, recordando algumas das suas descobertas astronómicas: «Quae omnia ope Perspicilli a me excogitati divina prius illuminante gratia, paucis abhinc diebus reperta, atque observata fuerunt» (Sidereus Nuncius, Venetiis apud Thomam Baglionum, MDCX, fol. 4). «Tudo isto foi descoberto e observado nestes últimos dias, graças ao 'telescópio' que inventei, depois de ser iluminado pela graça divina».

A confissão galileana da iluminação divina no espírito do sábio encontra eco no texto já citado da Constituição conciliar da Igreja no mundo contemporâneo: «Quem, com perseverança e humildade, se esforça por penetrar nos segredos da realidade, é conduzido, embora sem o saber, como que pela mão de Deus» (Loc.cit.). A humildade, sobre que insiste o texto conciliar, é virtude do espírito, necessária tanto para a investigação científica como para a adesão à fé. A humildade gera clima favorável ao diálogo entre o crente e o sábio, invoca a iluminação de Deus, já conhecido ou ainda desconhecido mas amado, num caso como noutro, por aquele que investiga humildemente a verdade.

8. Galileu formulou normas importantes de carácter epistemológico, que se mostram indispensáveis para pôr de acordo a Escritura sagrada e a ciência. Na sua carta à Grã-duquesa mãe, da Toscana, Cristina de Lorena, reafirma a verdade da Escritura: «A Sagrada Escritura não pode nunca mentir, sob condição todavia de que seja penetrado o seu verdadeiro sentido, que — não julgo poder negar-se — está muitas vezes oculto e é diferentíssimo daquele que parece indicar o simples significado das palavras» (Edição nacional das obras de Galileu, vol. V, p. 315). Galileu introduz o princípio duma interpretação dos livros sagrados, que vai além do sentido literal mas é conforme ao intento e ao tipo de exposição que são próprios de cada um deles. É necessário, como afirma, que «os sábios que a expõem mostrem os sentidos verdadeiros dela».

O magistério eclesiástico admite a pluralidade das regras de interpretação da Sagrada Escritura. Ensina expressamente, de facto, com a encíclica Divino afflante Spiritu de Pio XII, a presença de géneros literários diferentes nos livros sagrados e portanto a necessidade de interpretações conformes ao carácter de cada um deles.

As concordâncias diversas que recordei não resolvem sozinhas todos os problemas da questão de Galileu, mas contribuem para criar um ponto de partida favorável para a solução honrosa deles, um estado de alma propício à solução honesta e real de velhas oposições.

A existência desta Pontifícia Academia das Ciências, à qual Galileu foi dalguma maneira associado por meio da instituição antiga, que precedeu aquela de que hoje fazem parte sábios eminentes, é sinal visível que mostra aos povos, sem qualquer forma de discriminação racial ou religiosa, a harmonia profunda que pode existir entre as verdades da ciência e as verdades da fé.

9. Além da fundação da vossa Academia pontifícia por Pio XI, o meu predecessor João XXIII desejou que a Igreja contribuísse para promover o progresso científico e para o recompensar, instituiu a medalha de Pio XI. Em conformidade com a designação feita pelo Conselho da Academia, tenho o prazer de conferir esta alta distinção a um jovem investigador, o Doutor António Paes de Carvalho, cujos trabalhos de busca fundamental trouxeram contributo importante ao progresso da ciência e ao bem da humanidade.

10. Senhor Presidente e Senhores Académicos: diante dos Eminentíssimos Cardeais aqui presentes, do Corpo diplomático acreditado junto da Santa Sé, dos ilustres sábios e de todas as personalidades que assistem a esta sessão académica, desejava eu declarar que a Igreja universal, a Igreja de Roma unida a todas as que há no mundo, atribui grande importância à função da Pontifícia Academia das Ciências.

O título de pontifícia, atribuído a esta Academia, significa, não o ignorais, o interesse e o apoio da Igreja que se manifestam sob formas bem diversas, sem dúvida, das do antigo mecenatismo, mas não menos profundas e eficazes. Como escrevia o insigne e saudoso Presidente da vossa Academia, Monsenhor Lemaitre: «Precisaria a Igreja da ciência? Certamente que não, a cruz e o evangelho bastam-lhe. Mas ao cristão nada de humano é alheio. Como poderia a Igreja desinteressar-se da mais nobre das ocupações estritamente humanas: a busca da verdade?» (O. Godard- M. Heller, Les relations entre la science et ta foi chez Georges Lemaître, Pontificia Academia Scientiarum Commentarii, vol. III, n. 21, p. 7) .

Nesta Academia que é vossa e minha, colaboram sábios crentes e não crentes, colaboram concordando na busca da verdade científica e no respeito das crenças alheias. Seja-me permitido citar ainda aqui uma página luminosa de Monsenhor Lemaître: «Ambos (o sábio crente e o sábio não crente) se esforçam por decifrar o palimpsesto multiplamente imbricado da natureza, em que os vestígios das diversas épocas da longa evolução do mundo se foram cobrindo e confundindo. O crente possui talvez a vantagem de saber que o enigma tem solução, que a escrita subjacente é afinal obra dum ser inteligente, portanto que o problema apresentado pela natureza foi posto para ser resolvido, e que a sua dificuldade é sem dúvida proporcionada à capacidade presente ou futura da humanidade. Isto não lhe dará talvez novos recursos na investigação, mas contribuirá para o conservar neste são optimismo sem o qual um esforço suportado não pode manter-se muito tempo» (O.c., p. 11).

Desejo-vos a todos este optimismo são, de que fala Monsenhor Lemaître, optimismo que vai buscar a sua origem misteriosa mas real, ao Deus em que pusestes a vossa fé, ou ao Deus desconhecido para o qual tende a verdade que é o objecto das vossas investigações iluminadas.

A ciência, que professais, Senhores Académicos e Senhores sábios, no campo da investigação pura como no da investigação aplicada, oxalá ajude a humanidade, com o apoio da religião e em concordância com ela, a encontrar o caminho da esperança e a atingir o fim último da paz e da fé.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS MEMBROS DO MOVIMENTO INTERNACIONAL


«NOVA SPES»


Sábado, 10 de Novembro de 1979



Venerável Irmão
Senhoras e Senhores, caros amigos

Tenho especial prazer em encontrar-me hoje convosco, que sois os dignos membros do Movimento Internacional "Nova Spes". A sua finalidade específica é a promoção dos valores humanos e do progresso do homem. Estais certamente bem informados que eu tenho muito a peito os vossos propósitos, como julgo ter mostrado amplamente na Carta Encíclica Redemptor Hominis.

O título muito apropriado que destes ao Colóquio Romano que estais a realizar é uma pergunta: "O homem: quem é ele na realidade?". Indubitavelmente está nisto um tema fundamental; e ser ele apresentado em forma de pergunta torna possível discernir a quase inesgotável profundidade do assunto, respeitando-a contudo verdadeiramente. De facto, há muita verdade no dito do antigo filósofo grego, segundo o qual, um ser humano é "um teatro muito grande para outro ser humano" (Epicuro, citado em Séneca Ad Luc. 7, 11). Mas aquilo que ele aplicava só às relações entre amigos, nós cristãos de bom grado admitimos ser verdade da natureza humana em geral, evitando assim qualquer banalização ou unilateralismo, precisamente porque no seu inacessível horizonte vemos que se reflecte a infinidade de Deus e o seu imperscrutável mistério. A dignidade inata do homem como "imagem" de Deus (Cfr. Gén Gn 1,27) consiste realmente em que, segundo o Eclesiástico, Deus pôs a sua luz no coração do homem (Cfr. Ecli Si 17,7), vindo mais tarde o Filho do Homem revelar em forma humana o verdadeiro Deus que ninguém viu nunca (Cfr. Jo Jn 1,18), o qual não se envergonha de chamar irmãos aos homens (Cfr. Heb He 2,11).

Por este motivo a pergunta sobre o homem envolve a pergunta correspondente sobre Deus; a grandeza ou pequenez de cada homem depende, de facto, em última análise, do que pensa cada um do seu Deus ou do seu ídolo. Entre os dois pólos há tal interdependência que nós somos obrigados também, dirigindo-nos ao homem de hoje, a repetir as palavras do antigo apologista cristão: "Mostrai-me o vosso homem e eu mostrar-vos-ei o meu Deus" (Teófilo de Antioquia, Ad Aut, 1, 2).

Caros Amigos, sei que o vosso empenho está na mais clara linha de discussão honesta sobre o problema, de solução procurada com amor, e de abertura mútua sem egoísmos. Por esta razão, desejo-vos todo o possível êxito nos vossos esforços tendentes a garantirem amor genuíno ao homem, amor nascido duma atitude profundamente enraizada no amor pela glória de Deus.

Com as minhas orações confirmo estas esperanças e garanto-vos os meus cordiais bons desejos e a minha profunda estima.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS PARTICIPANTES NO


II CONGRESSO MUNDIAL


SOBRE A PASTORAL DO TURISMO


10 de Novembro de 1979



Caros Irmãos no Episcopado
Caros amigos

Obrigado por me terdes tão amavelmente convidado para este encontro. Tenho igualmente o gosto de saudar os observadores chegados das outras comunidades cristãs, que se encontram também a braços com os problemas da mobilidade humana. Gostaria que a minha visita fosse, para todos e cada um de vós, o sinal da importância que o Pastor universal da Igreja atribui à pastoral do turismo. Quer se trate dos que praticam o turismo quer dos que o organizam, todos constituem sempre uma fracção importante do povo cristão e da humanidade. Trata-se, igualmente e cada vez mais, dum momento significativo da vida dos nossos contemporâneos que precisa de evangelização adequada.

Estes dias romanos permitiram-vos sobrevoar muitos «lugares» e muitas categorias de turismo através dos cinco continentes, e permitiram-vos ouvir o relato de experiências interessantes e diversíssimas.

Individualmente e todos juntos, tomastes consciência mais viva da mobilidade actual e das necessidades pastorais que ela apresenta. Por outro lado, expressastes muitas ideias, apresentastes numerosas questões, reunistes um conjunto de votos e resoluções que, no vosso regresso, comunicareis aos vossos colegas e a todos os vossos colaboradores, sacerdotes, religiosos e leigos que se ocupam do turismo.

Permiti-me que vos apresente algumas sugestões pessoais, em sinal de comunhão profunda com as vossas preocupações e de ardente incentivo a que prossigais no vosso bom trabalho.

A extensão do fenómeno da mobilidade humana, e mais precisamente do turismo, é um facto. Em vez de sucumbir à impressão de mal-estar e de impotência por sentirdes — melhor que outros — quanto a humanidade viajante de hoje tende a escapar às redes e ao influxo das instituições tradicionais, civis e religiosas, mantende-vos de pé, com perspicácia, actividade e inventiva. Vós sois a Igreja. A Igreja, que deve aprofundar sem descanso a realidade crescente e continuamente mudável do turismo. Com simpatia e lucidez é preciso ir mais longe no conhecimento dos aspectos económicos, políticos, sociológicos e psico-sociológicos do turismo actual, se quereis participar de maneira racional e competente na promoção dos verdadeiros valores do turismo, e dar autoridade, pouco a pouco na opinião pública, a uma ética do turismo. Porque o turismo é feito para o homem e não o homem para o turismo. A vossa tarefa exige tanto tacto como coragem e perseverança. Mas que felicidade contribuir para libertar este mundo novo do turismo das suas ambiguidades numerosas para lhe dar o seu aspecto humano e cristão!

O mesmo sentistes durante este Congresso: a pastoral do turismo exige cada vez mais — ao lado de boas vontades que continuam a ser um saldo precioso — pessoas devidamente preparadas e formadas para este serviço muito particular da evangelização. Penso, é claro, nos sacerdotes, nos religiosos e nas religiosas; mas penso mais ainda nos leigos cristãos, que até agora não tomaram suficientemente, ou não se atreveram mesmo a tomar o seu lugar num meio que lhes diz primariamente respeito. Quanto a este ponto concreto, desejo que certas universidades católicas se preocupem — antes que seja tarde demais — com dar esta formação apropriada a todos os que têm bons desejos de se comprometer, permanente ou temporariamente, na pastoral do turismo. São esses homens ou essas mulheres que poderão garantir uma presença evangélica e eclesial nos mais altos cargos do turismo, como o das agências de viagens e do pessoal acompanhante. São eles também que poderão empreender actividades nos centros e nas regiões de turismo, junto dos responsáveis locais, do pessoal hoteleiro e dos habitantes locais. Esta formação indispensável e esta acção combinada de todos os responsáveis turísticos são o caminho necessário para despertar e desenvolver no meio turístico uma mentalidade individual e colectiva, feita de respeito, de acolhimento, de hospitalidade, de confiança, de honestidade, de serviço, de intercâmbios profundos e mesmo de realizações comuns. Assim, os que organizam o turismo, os que dele vivem, e os próprios turistas tornar-se-ão aquilo que devem ser, no plano humano primeiramente e, para os que são cristãos, no plano da fé. Para melhor esclarecer o meu pensamento, neste campo da formação e da acção, gostaria que as Conferências episcopais e as Igrejas locais — já tão preocupadas com problemas fundamentais, como a catequese, o recrutamento sacerdotal, a pastoral familiar, os mass media, etc. — colaborassem mais entre si, para atingir todos esses migrantes do turismo, e oferecessem mais gente e maior número de meios práticos, a um sector que tanto interessa o homem moderno, em especial os jovens. Não é também a mobilidade humana um lugar de catequese?


Discursos João Paulo II 1979 - Segunda-feira, 5 de Novembro de 1979