Discursos João Paulo II 1979 - 10 de Novembro de 1979

Dito isto, permiti-me ainda que vos chame a atenção para um ponto muito delicado. Bem sabeis, a indústria turística é principalmente fenómeno dos países ricos. Se há um turismo razoável, existem igualmente formas de turismo de luxo ou até simplesmente de desperdício, que formam insulto e provocação para dois terços da humanidade, que se debatem com situações económicas de miséria. Sem contar que, nos nossos países ricos, há também pessoas excluídas do turismo ou esmagadas por esta indústria que se desenvolve. Peço-vos que não esqueçais nunca os pobres. A promoção do turismo, por um lado, e a pastoral turística, pelo outro seriam incompletas e iriam desacreditar-se se não incluíssem ao mesmo tempo a educação para uma abertura e para compromissos em favor duma solidariedade mundial verdadeira e com envergadura.

Caros Irmãos e caros amigos, vem-me ao espírito uma passagem do evangelista São Mateus (9, 36): Contemplando a multidão, (Jesus) encheu-se de compaixão por ela, pois estava cansada e abatida, como ovelhas sem pastor. Seja este o leitmotiv do vosso Congresso. Uns e outros, sois membros do Corpo de Cristo. Sois hoje Cristo que passa no meio das multidões chamando-as à sua dignidade humana, à sua vocação de irmãos na humanidade e de filhos de Deus. Esteja à altura da vossa missão de Igreja a vossa vida de intimidade com o Senhor Jesus. Para que prossigam os vossos esforços pessoais e comunitários, abençoo-vos de todo o coração, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo.

E agora desejo dirigir uma palavra sincera aos peregrinos da França ocidental, que não conseguiram participar na audiência geral de quarta-feira passada. O turismo moderno comporta incertezas ... de que sofrem certamente os responsáveis pela pastoral turística aqui presentes.

Caros peregrinos, tenho alegria de me encontrar convosco e exprimir-vos dois bons votos. Ide sempre buscar às recordações desta peregrinação romana a alegria de pertencerdes mais e mais a Cristo e à sua Igreja. E segundo as vossas possibilidades, oferecei o melhor de vós mesmos à vida das vossas comunidades paroquiais e diocesanas. Abençoo-vos afectuosamente, a vós e a todos os que vos são queridos.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS EMPREGADOS DA FAO


12 de Novembro de 1979



Senhoras e Senhores, caros amigos

É para mim verdadeira alegria deter-me convosco, funcionários e empregados de várias categorias e graus, provenientes de diversas Nações do Mundo, que em contacto de sincera colaboração e atmosfera familiar, prestais, sob a orientação do exímio Director-Geral, um serviço digno de estima e de respeito, em proveito desta Organização para a Alimentação e a Agricultura.

Tenho bem consciência da importância do trabalho que realizais com competência e abnegação, como provam a vastidão dos programas e a gravidade dos problemas enfrentados pela FAO, os quais encontram em vós técnicos solícitos, peritos perspicazes e executores dinâmicos, animados por generoso zelo e por vivo espírito de sacrifício.

A Organização, que poderemos dizer confiada às vossas mãos experimentadas, ao vosso intuito e à vossa longa perícia, é uma das mais beneméritas iniciativas — todos estão de acordo neste ponto — aparecidas no período imediatamente sucessivo ao segundo conflito mundial quase consciente de querer reparar as tantas feridas abertas por aquele tremendo e angustioso acontecimento, e com a intenção, também, de poupar às gerações futuras uma laceração igual ou ainda maior. A subalimentação e a fome de que sofrem ainda demasiados seres humanos constituem, de facto, uma das ameaças mais graves para a paz; e em relação a este problema, a FAO contribuiu de maneira determinante para que o mundo inteiro tomasse consciência dele.

Por outro lado, a solução do problema da fome está condicionada pela solução do problema mais vasto e difícil do desenvolvimento dos povos que se encontram em condições de necessidade. O compromisso a este propósito torna-se educativo: trata-se de tomar conscientes todos os homens, da necessidade de criar, nos países actualmente menos favorecidos, aquelas condições técnicas e económicas que lhes assegurem a possibilidade de prover por si mesmos às próprias necessidades. Só esta meta assegura uma solução definitiva ao problema da fome e da miséria no mundo.

Como podeis verificar, para além destas exigências materiais que angustiam a humanidade, apresenta-se o compromisso moral de tomar cada homem responsável relativamente ao próprio irmão e à salvaguarda da sua dignidade que constitui um valor inalienável, espiritual e evangélico, que não pode ser ignorado sem grave ofensa ao Criador e a nós mesmos.

Não posso deter-me a analisar os valores morais que fostes chamados a manter e a defender mediante uma acção que só na aparência se apresenta como sendo de exclusivo carácter técnico, financeiro e económico. A vossa actividade incide muito mais profundamente e tem uma ressonância bastante mais vasta. Estou certo que, quando vos propusestes desenvolver o vosso trabalho nesta Organização — tanto no campo do estudo e da investigação como no administrativo e executivo — o fizestes sobretudo na convicção de contribuir, mediante a vossa fadiga, às vezes escondida e desconhecida, para a salvaguarda daqueles valores objectivos que constituem o sentido mais profundo da Organização para a Alimentação e a Agricultura. Valores e objectivos da defesa e da promoção da dignidade humana, que a Igreja, em conformidade com a sua missão, não deixa de submeter à comum consideração, encontrando, na mensagem de que é depositária, a inspiração para trabalhar em favor da fraternidade, da justiça e da satisfação das necessidades fundamentais da vida.

Intimamente sensível a estas perspectivas, louvo e admiro o vosso trabalho, que se destina a assegurar a todos os homens uma vida digna e feliz. Talvez não seja possível, em cada momento da vossa jornada, ter a percepção lúcida e exacta de desempenhardes um papel tão importante, todavia na vossa reflexão pessoal devereis frequentemente encontrar conforto na certeza — que neste momento desejo confirmar e corroborar — de satisfazerdes um mandato de altíssimo valor humano e social.

Quereria ainda dizer-vos uma palavra de paterno encorajamento. As provas e os riscos, que a humanidade deverá enfrentar no plano da alimentação no futuro próximo, terão um peso e uma importância que neste momento é difícil determinar em medida exacta; todavia, o seu imenso alcance pode, à primeira vista, induzir a algum desânimo. Não deixeis, por conseguinte, que vos entre no coração a tentação do desalento, da indiferença e do desamor. Tanto maior será a vossa generosidade, a vossa fé, quanto mais perto estiverem a oportuna solução e o consequente resultado positivo. Tal fé exige que se recuse admitir um determinismo fatalista na evolução económica do mundo e que se creia firmemente no bom êxito de uma acção coordenada e sobretudo sugerida por compreensão fraterna e por vontade de auxílio mútuo.

Vós — estou certo disso — possuís esta fé, Vós tendes confiança no homem, na sociedade e na possibilidade de utilizar e distribuir racionalmente os imensos recursos que o Criador colocou à disposição do homem. Exorto-vos a prosseguirdes e a intensificardes os vossos esforços, com todo o peso da vossa preparação científica e especialmente com todo o ímpeto do vosso coração, com toda a amplidão do vosso amor, para assegurar à família humana o necessário bem-estar fundamental, e a vós próprios a alegria de participardes de modo responsável no desenvolvimento de uma altíssima missão.

Agradeço-vos de coração o vosso acolhimento e, enquanto vos repito a minha satisfação por este encontro, com votos de todo o verdadeiro bem invoco sobre vós, sobre as vossas famílias e sobre o vosso trabalho, pelo bom êxito da Organização para a Alimentação e a Agricultura, as mais abundantes bênçãos do céu.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


NA SEDE DA FAO EM ROMA


12 de Novembro de 1979



Senhor Presidente
Senhor Director-Geral
Senhoras, Senhores

1. Esta minha visita prolonga dalgum modo a que efectuei à sede das Nações Unidas em Nova Iorque, como aconteceu também com o meu predecessor Paulo VI.

Alegro-me de a Organização para a Alimentação e a Agricultura, nascida em Quebec a 16 de Outubro de 1945, portanto pouco antes da ONU, se inspirar dos mesmos critérios fundamentais que esta, como também da Declaração universal dos direitos do homem, conservando porém na sua actividade a autonomia própria de todas as Organizações intergovernamentais.

A vossa Organização tem vocação universal, podendo a ela aderir, ao seu Acto constitutivo, todos os povos da terra. Tanto assim que viu os Estados membros passarem, de 42 na origem, a 146, representados na presente Conferência geral. Pode portanto dedicar-se a uma acção comum que é o fruto duma real convergência entre os países do mundo, quaisquer que sejam os seus sistemas económicos e as suas estruturas políticas.

2. A FAO pode orgulhar-se de exercer uma actividade especializada insubstituível, no quadro da família das Nações Unidas. Enfrenta, de facto, um sector que se pode considerar o mais importante da economia mundial, a agricultura, que fornece os alimentos indispensáveis para o mundo e ocupa 50 por cento da população do globo. É também um sector mantido tempo demais afastado do progresso dos níveis de vida, sector que a rápida e profunda mudança sócio-cultural do nosso tempo atinge de maneira particularmente dolorosa, descobrindo as injustiças herdadas do passado, agitando homens, famílias e sociedades, acumulando as frustrações e impondo migrações muitas vezes em massa e caóticas.

Segundo o preâmbulo do vosso acto constitutivo, a finalidade, que é libertar a família humana da fome, comporta o compromisso de os Estados membros levantarem o nível de alimentação e melhorarem a situação das populações rurais aumentando o rendimento das culturas e garantindo a eficácia da redistribuição.

3. Mas desejaria fazer também notar que, segundo o mesmo preâmbulo, a FAO tende assim a «contribuir, pela sua acção característica e colectiva, para a expansão da economia mundial e para o bem-estar geral».

Está portanto em perfeita harmonia com as Nações Unidas, no plano de conjunto e nas linhas fundamentais da política de desenvolvimento e de cooperação internacional, segundo as quais se realiza o serviço do homem, sobre a base dos grandes princípios que recordei longamente a 2 de Outubro último, diante da Organização das Nações Unidas.

Aqui também agora, encontramo-nos «em nome do homem tomado na sua integridade, na plenitude e na riqueza multiforme da sua existência espiritual e material» (João Paulo II, Discurso às Nações Unidas, n. 5).

4. É com particular satisfação que venho estabelecer este contacto directo com a FAO. Aceitei o convite para falar diante da 20ª Conferência geral, neste ano que assinala o 30° aniversário da decisão, tomada a 28 de Novembro de 1949, de transferir a FAO da sua sede provisória de Washington para esta definitiva de Roma, decisão que teve efeito em 1951.

Assim se realizava o que foi considerado como «regresso às origens romanas» da vossa Organização. Esta foi, com efeito, dalgum modo precedida pelo Instituto Internacional da Agricultura, fundado em 1905 sob a inspiração de David Lubin, e em seguida absorvido pela FAO. Desde essa época, Roma tornou-se um dos centros da agricultura mundial, e encontra hoje nova importância neste campo, em especial a seguir às decisões da Conferência mundial das Nações Unidas sobre a alimentação, tomadas no mês de Novembro de 1974.

5. Há em seguida uma tradição de relações diplomáticas especiais entre a Santa Sé e a FAO. Esta é a primeira Organização intergovernamental com que a Santa Sé estabeleceu relações regulares, inauguradas graças à acção previdente daquele que era então Monsenhor Montini, Substituto da Secretaria de Estado. Com efeito, o voto unânime da quarta sessão da Conferência da FAO concedeu à Santa Sé, a 23 de Novembro de 1968, este «estatuto de Observador permanente, único no seu género, que lhe garante o direito, não só de participar nas Conferências da Organização, mas também nos outros campos da sua actividade e de neles tomar a palavra pedindo-a, embora sem ter direito de voto». Tal situação corresponde perfeitamente à natureza da missão religiosa e moral da Igreja.

Assim começou a colaborar a Santa Sé com a vossa Organização, actividade de que Monsenhor Montini se comprazia então em realçar, satisfeito, os princípios morais e humanitários elevados, que a inspiravam (Cfr. Mons. G. B. Montini, Carta de 16 de setembro de1948 a M. Norris E. Dodd, Director-Geral da FAO).

Todos os trabalhos e todos os programas da FAO mostram, de facto, com evidência que toda a actividade técnica e económica, como cada opção política, implicam, em última análise, um problema de moral e de justiça.

A visita feita à vossa sede pelo Papa Paulo VI a 16 de Novembro de 1970, por ocasião do 25° aniversário da instituição da FAO, foi testemunho brilhante prestado ao progresso crescente dessas relações de confiança.

6. A estes considerandos vem juntar-se outro motivo: é com prazer que vejo na FAO um esforço para se chegar a realizar concretamente, no campo da alimentação e da agricultura, um aspecto do programa de desenvolvimento mundial, económico e social. Tal programa contribui certamente para se promover a paz, ajudando a vencer tensões profundas e dando efectivamente satisfação às reivindicações primeiras dos povos, reivindicações ligadas aos direitos inalienáveis do homem.

Deste ponto de vista, a vossa Organização especializada refere-se mais directamente aos direitos económicos e sociais reconhecidos na Declaração universal dos direitos do homem, que em seguida foram formulados de maneira mais precisa e obrigatória no Pacto internacional sobre os direitos económicos, sociais e culturais.

Mas o aperfeiçoamento da pessoa supõe, como já Pio XII o dizia na radiomensagem do Natal do ano de 1942, a realização concreta das condições sociais que formam o bem comum de cada comunidade política nacional, como do conjunto da comunidade internacional. Tal desenvolvimento colectivo, orgânico e contínuo, é o pressuposto indispensável para assegurar o exercício concreto dos direitos do homem, tanto dos que têm conteúdo económico como dos que dizem directamente respeito aos valores espirituais. Tal desenvolvimento requer todavia, para constituir a expressão duma verdadeira unidade humana, ser obtido apelando para a participação livre e para a responsabilidade de todos, no campo público como no campo privado, no nível interior como no nível internacional.

Deste ponto de vista, aparece a FAO como expressão concreta da vontade de passar do plano das declarações de princípio para o da acção e das realizações efectivas, apelando para a participação livre e activa de todos os Estados membros. Devem-se fazer votos por que a vontade política de cada um dos Estados assegure à FAO, para bem da acção comum, um concurso que não consista somente em manter princípios e operações de desenvolvimento interior que tenha pedido cada governo, sem se contentar também com harmonizar interesses nacionalistas fechados sobre si mesmos. A acção comum, que se realiza dentro da FAO, requer uma disponibilidade cada vez mais pronta para assumir compromissos verdadeiramente contínuos, graças aos quais cada um participe na acção decidida de comum acordo.

7. No decorrer da sua história, a FAO adquiriu estrutura cada vez mais vasta e mais adaptada, segundo mostram os seus diversos programas actuais e os documentos apresentados agora à vossa Conferência. Vós ides ter, na verdade, não só de fazer o balanço das acções levadas a termo nos últimos dois anos, mas também de fixar os objectivos que hão-de atingir-se nos anos próximos e de fazer as escolhas políticas que são necessárias para isso. O ano 2000 está de facto no horizonte das vossas perspectivas, com os problemas específicos que se apresentam à agricultura, para ela conseguir enfrentar as necessidades previsíveis: aumento acelerado da produção, necessidade da regulamentação das permutas e assistência exterior aos países que dela precisam para assegurarem a distribuição económica. Trata-se pois de tomar os meios para assegurar a todos este futuro melhor, em que os direitos fundamentais de cada um sejam respeitados. Neste sentido, a vossa Conferência geral de agora pode oferecer contributo importante, no que se refere ao campo da vossa Organização, à definição dos objectivos urgentes e dos critérios renovados, que deveriam permitir executar a nova estratégia internacional para o desenvolvimento durante o terceiro decénio das Nações Unidas, que se abre com o ano 80 e imediatamente seguintes.

8. Mas o mundo não se contentará com especulações teóricas. A luta contra a fome apresenta, de dia para dia, aspecto cada vez mais nítido e exige realizações concretas por parte dos Estados-membros e da Organização no conjunto. Esta luta também não se contentará, aliás, com apelos aos sentimentos, com lufadas esporádicas e ineficazes de indignação: constitui honra, e vontade digna de louvor, da vossa Organização procurar com perseverança definir os meios melhores e os métodos aptos, para as condições concretas de cada país, e prever-lhes com prudência as aplicações.

Terminou, de facto, o tempo das ilusões, quando se julgava resolver automaticamente os problemas do subdesenvolvimento e das diferenças de crescimento entre os diversos países, exportando os modelos industriais e as ideologias dos países desenvolvidos.

Terminou ó tempo em que se procurava garantir o direito de todos à alimentação, com programas de auxílio realizados por meio da dádiva de excedentes ou com programas de socorro de urgência em casos excepcionais.

A vossa Organização orienta-se para uma política em que o esforço de cada país, no sentido do seu próprio desenvolvimento, toma o primeiro lugar. Isto inclui, certamente, uma exigência: para que receba cada um dos que precisam, sem lesão da sua dignidade, o auxílio internacional e os investimentos convenientes, mas conservando a verificação dos elementos necessários para dar à agricultura o seu dinamismo próprio no desenvolvimento do país, é preciso cada vez mais ultrapassar as relações puramente bilaterais chegando a um sistema multilateral.

Outro reajustamento dos critérios e dos modelos de desenvolvimento — que a circunstância da crise económica actual torna ainda mais necessário para os países pobres, como aliás para os mais desenvolvidos — é o que tem em vista satisfazer as necessidades humanas reais, as que são verdadeiramente fundamentais. São estas necessidades que devem dinamizar e orientar a economia, e não as necessidades artificiais, em parte provocadas e sempre aumentadas pela publicidade, pelo jogo do mercado e pelas posições de força, adquiridas nos campos económico, financeiro e político. Importa prever e combater as perigosas consequências, sobre o homem, de certas soluções técnicas e económicas, favorecer activamente a participação livre e responsável do mesmo nas opções e nas realizações tentadas para o crescimento orgânico e programa das condições gerais da sua própria comunidade.

A experiência contemporânea leva-nos a reconhecer que o crescimento ordenado e contínuo de cada país, como a garantia efectiva do exercício dos direitos humanos fundamentais dos indivíduos e dos povos, reclamam necessariamente o desenvolvimento global e orgânico mundial. E faço notar com interesse que, neste campo, os diversos programas de cooperação técnica e assistência lançados pela vossa Organização e a promoção dum acordo internacional para assegurar as reservas cerealíferas indispensáveis, contribuem pouco a pouco para urna transformação da economia mundial.

10. Todavia, entre todos os problemas que solicitam a vossa atenção e a do mundo, o mais grave e mais urgente é o da fome. Milhões de pessoas estão ameaçadas na sua mesma existência; muitas morrem cada dia, porque não têm o mínimo de alimentação necessária. E, por desgraça, é bem preciso reconhecer como a experiência actual o mostra ainda cruelmente, que a fome no mundo não provêm sempre e unicamente de circunstâncias geográficas, climáticas ou agrícolas desfavoráveis — aquelas que vós procurais remediar pouco a pouco; provêm ainda do homem mesmo, das deficiências da organização social, que impedem a iniciativa pessoal; isto é, provêm do terror e da opressão de sistemas ideológicos e práticos, desumanos.

A busca do desenvolvimento mundial orgânico, por todos desejado, pede, por conseguinte, que o conhecimento objectivo das situações humanas de miséria tome o seu lugar na formação dos indivíduos e dos grupos, no sentido da liberdade autêntica e no da responsabilidade pessoal e colectiva.

11. As perspectivas da formação humana total ultrapassam certamente as que são próprias da vossa Organização. Sei contudo que vós não sois indiferentes a tal coisa. Vós favorecei-las, pela vossa parte, esforçando-vos por diversificar os vossos modelos técnicos de assistência e desenvolvimento, e por modelá-los em função das condições particulares não só físicas mas sócio-culturais de cada país, tendo assim em conta valores propriamente humanos, e portanto também espirituais, dos povos.

Entre estes, as concepções religiosas têm o seu lugar. Exprimem uma visão do homem, das suas verdadeiras necessidades, do sentido último das suas actividades: o homem não vive só de pão (Mt 4,4), ensina-nos o Evangelho. Reconhecemos por isso que o desenvolvimento técnico, por mais necessário que seja, não é tudo no homem, e deve integrar-se numa síntese mais vasta, plenamente humana. É assim que as realidades propriamente espirituais se impõem à vossa atenção. É neste campo também que a Igreja que sempre animou os vossos esforços e participa eficazmente, por seu lado, no desenvolvimento harmonioso do homem, quer encontrar-se com os vossos esforços e colaborar convosco para o bem da humanidade.

12. O trabalho, que é preciso realizar, é imenso, e ninguém deve desanimar quando a finalidade em vista parece às vezes afastar-se, à medida mesma dos esforços tentados para a atingir. Neste momento da história mundial, alegro-me de ver a FAO orientar toda a sua actividade, no seu domínio, que é essencial para promover a cooperação internacional, para o desenvolvimento. E nós esperamos todos que este desenvolvimento passará do nível técnico e económico para o progresso pessoal e social do homem.

Isto não se pode fazer se o homem, a sua dignidade e os seus direitos, não são, desde a partida, o critério activo inspirador e orientador de todos os esforços. Para vencer as inércias e os desânimos e para criar as condições susceptíveis para renovar o pensamento e manter a acção, não percais nunca de vista que nisso entra o homem, o homem concreto, o homem que sofre, o homem que em si esconde possibilidades imensas que é preciso libertar.

13. Acrescento que a soma dos esforços que projectais, empreendeis ou animais — para que a terra seja «cultivada» do melhor modo, para que as suas riquezas produtivas, terrestres ou marítimas, sejam conservadas e nunca desperdiçadas, e melhor ainda para que elas frutifiquem, multiplicando as suas potencialidades sem destruir imprudentemente o equilíbrio natural que serviu de berço à vida do homem, numa palavra, para que a natureza, ao mesmo tempo respeitada e enobrecida, atinja o seu melhor rendimento em serviço do homem — tudo isto obedece, em certo sentido, ao desígnio de Deus sobre a criação, que o texto inspirado do Génesis nos descreve de maneira arcaica mas sugestiva: Deus criou o homem à Sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher ... Enchei e dominai a terra ... O Senhor levou o homem e colocou-o no jardim do Éden para o cultivar e também para o guardar (Gn 1,27-28 Gn 2,15). Sim, a terra pertence aos homens, a todos os homens, sem esquecer as gerações que nos hão-de suceder amanhã e devem recebê-la das nossas mãos, habitável e frutuosa. Porque ela pertence primeiro a Deus, Criador, Senhor Soberano e fonte da vida, que dela fez dádiva aos homens e a eles a confiou como bons administradores. É em harmonia com o desígnio de Deus que vós sois chamados a trabalhar.

Este é o voto que formulo para vosso bem, na qualidade de Pastor da Igreja universal. E é neste espírito que peço ao Senhor Todo-Poderoso abençoe os esforços que fazeis, para servir a família humana, e abençoe as vossas pessoas e todos os que vos são queridos.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II DURANTE A VISITA


À PONTIFÍCIA ACADEMIA DAS CIÊNCIAS


Segunda-feira, 12 de Novembro de 1979



É este para mim dia extraordinário. Dia extraordinário para a Academia das Ciências, mas também para mim. É dia em certo sentido diverso do de sábado, que foi extraordinário no sentido público oficial. Hoje é ocasião extraordinária por um conjunto de motivos. O primeiro é o de poder-vos encontrar aqui no vosso ambiente de trabalho. Muitas vezes tenho passado diante deste Palácio mas não quis entrar. E julgo que este é o momento justo para nele entrar pela primeira vez. Este Palácio sem vós representa um objecto qualquer, convosco um objecto sem dúvida preciosíssimo.

Convosco este Palácio representa uma realidade humana a nível completamente especial. Este nível é constituído pelas vossas pessoas mesmas e pela autoridade científica que representa cada um de vós. Eis o motivo por que julgo este encontro e este dia, como verdadeiramente extraordinários.

Gostaria de repetir tudo quanto disse na tarde de sábado no meu discurso oficial; toda a minha dedicação à ciência como tal, à ciência como busca realizada por aqueles que estão interessados na verdade, na ciência como função, como actividade superior do homem, do espírito humano, ciência que neste sentido aperfeiçoa o homem como tal. É longa tradição humanista, longa tradição filosófica, que herdámos de Aristóteles sobretudo, o grande filósofo, a qual se tornou também a tradição cristã; ver o homem, apreciá-lo e estimá-lo. E nós estimamos o homem como tal, como servidor da verdade, como indivíduo que se aperfeiçoa a si mesmo por meio da verdade. Verdade procurada de modo leal, metódico e responsável; verdade possuída humildemente mas com atitude firme e perseverante, verdade transmitida também aos outros, aos vizinhos, aos estudantes e a toda a humanidade.

São estes os motivos da minha visita de hoje, com a qual desejo reevocar as observações que já fiz sábado passado no meu discurso oficial. Devo ainda manifestar que tenho especial alegria de que exista uma Pontifícia Academia das Ciências, que é aqui herança de Pio XI, herança para mim rica e consoladora. Devo agradecer ao meu grande Predecessor e devo agradecer à Divina Providência ter sido instituída esta Academia durante o seu pontificado, existir ela hoje e continuar. São os meus sentimentos, sentimentos profundos, sentimentos verdadeiros, os que estou a exprimir-vos, como confirmação de tudo quanto dizia antes: a minha disposição para convosco e para com a ciência, que vós representais. Não é simplesmente atitude desinteressada e intelectual, é também disposição do coração, sentimento de afecto. Deste modo, alegro-me eu deste encontro e alegrar-me-ei todas as vezes que vierdes aqui para vos reunir, para trabalhar juntos e para comunicar os frutos deste vosso trabalho.

Proponho-me também realizar todo o vosso projecto que, estou seguro, o Senhor Presidente terá a bondade de apresentar-me depois deste primeiro encontro, depois da vossa sessão de trabalho. Projecto que seguramente será orientado para o desenvolvimento desta Academia e daquele problema primário que é o problema das relações entre a ciência e a religião, entre a Pontifícia Academia das Ciências e a Santa Sé, entre a ciência e a missão da Igreja. Eis aqui, mais ou menos, as poucas palavras, as poucas ideias, que desejava comunicar-vos nesta circunstância, para mim bastante preciosa; diria antes, que se tornará para mim muito, muito preciosa.

Saúdo-vos uma vez mais, agradeço profundamente a vossa presença, o vosso trabalho nesta sessão, e convido-vos bem sinceramente a que o prossigais no futuro.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS BISPOS DA VENEZUELA


POR OCASIÃO DA VISITA


«AD LIMINA APOSTOLORUM»


Quinta-feira, 15 de Novembro de 1979



Queridos Irmãos no Episcopado

É para mim um prazer receber-vos hoje nesta Audiência que constitui o ponto culminante da visita "ad limina" de todos os Bispos venezuelanos. Neste instante quero reiterar-vos o meu afecto fraterno de comunhão apostólica.

Durante as audiências particulares que tivemos até agora, pude verificar do vosso lado uma idêntica correspondência nessa mesma comunhão de graça e de missão, em Cristo, que há-de animar o nosso serviço pastoral. Faço minhas, portanto, as vossas inquietações; compartilho também as vossas aflições e sacrifícios por amor da Igreja; associo-me de igual modo às vossas alegrias e esperanças na difusão do evangelho. Por tudo isto dou graças ao Senhor e celebro com alegria que Ele, "pela confiança que teve em vós, vos tenha designado para o seu serviço" (Cfr. 1Tm 1,12).

1. Não vou agora descrever, por ser coisa de todos sabida, qual é a função eclesial do Bispo no meio da comunidade cristã. Gostaria, pelo contrário — por considerar que se trata de um aspecto primordial de todas as visitas "ad limina" — de convidar-vos a uma reflexão conjunta, a intensificarmos a nossa consciência colegial, com a finalidade de que a nossa atitude pastoral se veja fortalecida cada vez mais no exercício da autêntica missão, que tem por objecto o amor mútuo que brota do coração puro, de uma boa consciência e de uma fé sincera (1Tm 1,5).

Sim, queridos Irmãos: a realização do amor mútuo, expressão inequívoca de uma vida enxertada em Cristo Salvador, é o que dá credibilidade à. nossa iniludível tarefa evangélica. Ambos, amor e evangelização, têm como parâmetro o homem interior, quer dizer, a pessoa humana que há-de ser formada como Deus quer (Ibid 1, 4), mediante a purificação dos corações, a rectidão moral das consciências e a orientação para Deus através da fé viva, traduzida em obras.

2. Sem perder de vista esta urgência de credibilidade na missão eclesial, sinto-me no dever de propor à vossa reflexão um campo, em que hoje, mais que nunca, se nota no vosso País a necessidade de um cuidadoso serviço por parte daqueles que são guias e mestres do Povo de Deus.

Refiro-me à instituição familiar. Sei muito bem que forma também para vós grande preocupação e que lhe dedicais atenção particular, porque estais conscientes do dom inestimável e próprio do sacramento do matrimónio para os cônjuges cristãos: "significarem e comparticiparem o mistério de unidade e amor fecundo entre Cristo e a Igreja, ajudarem-se mutuamente a conseguir a santidade na vida conjugal e na aceitação e educação dos filhos" (Cfr. Lumen Gentium LG 11). O sacramento do matrimónio e a sua perpetuação histórica na família fazem parte da aliança de amor de Deus com o homem, na criação e na redenção: aliança que se perpetua na Igreja, família do Povo de Deus.

Nas nossas considerações pastorais sobre a vida matrimonial e familiar temos de superar, pois, perspectivas estritamente externas, que às vezes ignoram e obscurecem em parte o seu sentido mais profundo e genuíno: a identidade própria do amor santificado pelo sacramento. Talvez um pouco superficialmente nos contentemos por vezes com a consulta de estatísticas — realizadas talvez com base em ideologias predeterminadas — que recolhem aspectos mutáveis e também manipuláveis, reflexo, por seu lado, de situações inconstantes de índole cultural, sociológica, política, económica...

Não esqueçamos que, por trás de muitas análises e estatísticas, permanece latente um grande vazio que envolve pessoas que manifestam, na realidade, a própria solidão, o próprio vazio moral e espiritual, porque não foram educadas pelo menos suficientemente no sentido autêntico da união matrimonial e da vida familiar como vocação para uma experiência fecunda, única e irrepetível, de comunicação, em sintonia com o projecto inicial e permanente de Deus.

Vocação de que brotam, evidentemente, deveres e responsabilidades graves a que é necessário permanecer fiel, por amor à própria prole e em obediência às prescrições divinas.

Perante esta evidência, não podemos deixar de intensificar o nosso trabalho usando todos os meios ao nosso alcance. Se estamos convencidos deveras "do poder salvador da Igreja, de que é a pessoa humana que é preciso salvar e de que é a sociedade humana que se tem de renovar" (Lumen Gentium LG 3), temos de oferecer e cultivar essa força e essa verdade na família, dentro da qual a pessoa nasce e se regenera por obra da graça. Onde existe vida e esta se aprecia e se respeita como dom de Deus, a família e a comunidade não enfraquecem, nem a consciência moral se relaxa, nem a existência quotidiana se deixa dominar pelo tédio; ao contrário, "formada como Deus quer", sentirá a plenitude de sentido na sua conexão com a Paternidade divina.

3. Do mesmo modo, devemos mencionar, pela sua importância no trabalho da evangelização, o agregado familiar como escola de formação. A família cristã, "Igreja doméstica" numa frase do meu venerado predecessor Paulo VI (Evangelii Nuntiandi EN 71) é o primeiro ambiente apto para lançar a semente do evangelho, onde pais e filhos, como células vivas, vão assimilando o ideal cristão do serviço a Deus e aos irmãos.

Deste dinamismo educativo surgirão sem dúvida alguma vocações para o sacerdócio e para a vida religiosa, tão necessárias para continuar o serviço aos homens, sobretudo em favor dos mais pobres, dos que sofrem na carne e no espírito. Inculcai, pois, nos pais a ideia de que o seguimento de Cristo é uma razão que dá pleno sentido a uma vida, porque é a resposta generosa à chamada divina.

4. Outro tema sobre que desejo chamar a vossa atenção de Pastores é o da catequese. Sei que estais empenhados em conduzir os vossos fiéis para uma evangelização progressiva que lhes configure toda a vida cristã. Animo-vos a continuardes e redobrardes os vossos esforços num campo tão vital para a Igreja, já que somente com um trabalho de catequese sistemática e em profundidade conseguirão as vossas comunidades cristãs chegar a uma vivência integral da mensagem da salvação e dar testemunho pessoal e colectivo das razões profundas da sua esperança em Cristo.

Esta tarefa deverá ser desempenhada colocando como ponto central o mistério de Jesus, Filho de Deus e Redentor do homem, que na Palavra revelada continua a transmitir o seu ensinamento salvador para o ser humano, em cada momento da história, e que nos sacramentos continua a distribuir hoje a eficácia da sua força divina, transformadora para quem d'Ele se aproxima.

Esta é a meta final de toda a catequese: o encontro vital, consciente e pessoal com o Cristo da fé, o Cristo da história, o único Redentor e a esperança do homem. Porém uma catequese bem programada e que parte da verdadeira realidade ambiental, não desprezará todas as ajudas e contributos de autêntica espiritualidade que se encontram em tantas formas de religiosidade popular. Bem orientadas e constituídas objecto de catequese apropriada, poderão ser caminhos certos para a desejada profundidade de uma vida plena em Cristo.

Nesta tarefa e para dar-lhe a amplidão, que de outra forma não vos consentiria a escassez de agentes de pastoral qualificados, servi-vos em tudo o que vos for possível dos meios de comunicação social, que podem multiplicar a vossa voz evangelizadora. Procurai também, neste como noutros campos, a ajuda dos leigos e de todas as pessoas bem formadas, que vos podem prestar uma colaboração preciosa. Que amplas perspectivas poderiam abrir-se nesse empreendimento para não poucos dos vossos melhores universitários, para os que estão conscientes da sua vocação Cristã e da sua nobre missão na Igreja e no mundo actual!

5. Há outro tema que tendes muito presente nos vossos ânimos e figura com frequência nos vossos relatórios quinquenais: a preocupação pelas situações sociais que se vos deparam no ministério das vossas Igrejas.

Sabeis muito bem que a missão prioritária e própria da Igreja é a evangelização: Apesar disso, não podemos fechar os olhos à repercussão que tem a mensagem do Evangelho mesmo na ordem social. A Igreja demonstrou já ao longo dos tempos profunda sensibilidade quanto ao ser humano, vítima de injustiças, opressões e menosprezos da sua dignidade de homem e de filho de Deus. A visão do trabalhador não devidamente respeitado e retribuído, do camponês sem possibilidades de conveniente acesso a urna propriedade em que se realize com dignidade, do habitante de certos bairros sem casa nem meios de cultura ou de trabalho, do filho de lares humildes sem oportunidades de adequada formação para a sua vida, e do emigrante mal acolhido ou mal tratado, são realidades — às quais outras poderíamos acrescentar — que exigem justa atenção por parte de quantos na Igreja podem contribuir, nas tarefas de maior humanização das estruturas e ambientes, para que umas e outros se adaptem ao homem e à sua dignidade.

É a educação das inteligências e dos corações o que mais se impõe, à luz dos grandes princípios do ensino social e humanitário da Igreja.

6. Para não demorar excessivamente este encontro, deixo à vossa consideração e sensibilidade de Pastores outros assuntos que tocámos nas nossas conversas destes dias.

Desejo dizer-vos, por fim, que o Papa se sente intimamente unido às aspirações e esperanças da Igreja de Deus no vosso País. Nas minhas orações a Deus Pai e à Virgem de Coromoto tenho muito presentes todos e cada um dos venezuelanos, pedindo ao Deus Uno e Trino que estes votos se convertam em realidade cristã.

Com grande afecto dou-vos, como a todos os membros das vossas Igrejas, a minha especial Bênção.




Discursos João Paulo II 1979 - 10 de Novembro de 1979