Discursos João Paulo II 1979 - Quinta-feira, 15 de Novembro de 1979

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


NA VISITA AO PONTIFÍCIO ATENEU


INTERNACIONAL «ANGELICUM»


17 de Novembro de 1979



Ilustres Professores e caríssimos Estudantes

1. É com sentimento de alegria íntima que me torno a encontrar, depois de não breve espaço de tempo, nesta Aula, que me é bem conhecida por nela ter entrado tantas vezes como estudante nos anos da minha juventude, quando também eu cheguei de longe ao Pontifício Ateneu Internacional «Angelicum», a fim de aprofundar o pensamento do Doutor Comum, São Tomás de Aquino.

O Ateneu conheceu depois significativos progressos: foi elevado à categoria de Universidade Pontifícia pelo meu venerado predecessor o Papa João XXIII, e foi dotado de dois novos Institutos: às já existentes Faculdades de Teologia, Direito Canónico e Filosofia vieram juntar-se de facto as de Ciências Sociais e do Instituto «Mater Ecclesiae», destinado aos futuros «Mestres nas ciências religiosas». Verifico com prazer estes sinais de vitalidade da antiga cepa, que mostra ter em si correntes vivas de linfa, graças às quais pode corresponder com novas instituições científicas às exigências culturais que se vão manifestando.

A alegria do encontro de hoje é singularmente aumentada pela presença duma escolhida falange de doutos cultores do pensamento tomista que, vindos de toda a parte, aqui se reuniram para celebrar o primeiro centenário da Encíclica «Aeterni Patris», publicada a 4 de Agosto de 1879 pelo grande Pontífice Leão XIII. A Reunião, promovida pela «Sociedade Internacional Tomás de Aquino», liga-se idealmente com a que se realizou há não muito tempo em Córdova, na Argentina, por iniciativa da Associação católica argentina de filosofia, que desejou celebrar o mesmo acontecimento, chamando os maiores expoentes do pensamento cristão contemporâneo, para trocarem ideias sobre o tema «A filosofia do cristão hoje». Mais directamente centrada na figura e na obra de São Tomás, a actual Reunião, ao mesmo tempo que honra este insigne Centro romano de estudos tomistas, no qual pode dizer-se que o Aquinate reside «tanquam in domo sua», constitui também obrigatório acto de reconhecimento ao imortal Pontífice, que tanta parte teve em favorecer o renascimento do interesse para com a obra filosófica e teológica do Doutor Angélico.

2. Vá, portanto, a minha saudação deferente e cordial para os organizadores da Reunião, em primeiro lugar para Si, Reverendo Padre Vincent de Couesnongle, Mestre da Ordem dominicana e Presidente da «Sociedade Internacional Tomás de Aquino»; consigo saúdo também o Reitor desta Universidade Pontifícia, Reverendo Padre José Salguero, os caríssimos membros do Corpo académico e todos os ilustres cultores de estudos tomistas, que honraram com a sua presença esta Assembleia, animando-lhe o desenvolvimento pelo contributo da competência que lhes é própria.

Uma saudação afectuosa desejo dirigir também a vós, estudantes desta Universidade, que vos aplicais com generoso entusiasmo ao estudo da filosofia e da teologia, como também dos outros ramos científicos auxiliares, tendo como mestre e guia São Tomás, em cujo conhecimento sois introduzidos pelo esclarecido e diligente trabalho dos vossos Professores. O juvenil entusiasmo com que vos aproximais do Aquinate para lhe fazer perguntas, que vos sugere a sensibilidade quanto aos problemas do mundo moderno, e a impressão de luminosa clareza que tirais das respostas que ele vos oferece com lúcida e constituem a prova mais convincente da inspirada sabedoria que moveu o Papa Leão XIII a promulgar a Encíclica de que este ano celebramos o centenário.

3. Está fora de dúvida que a finalidade primária, a que visou o grande Pontífice ao dar aquele passo de importância histórica, foi retomar e desenvolver o ensinamento sobre as relações entre fé e razão, proposto pelo Concílio Vaticano I, no qual ele, como Bispo de Perúsia, tomara activíssima parte. Na Constituição dogmática «Dei Filius», de facto, os Padres conciliares tinham dedicado particular atenção a este tema escaldante: tratando «de fide et ratione»; tinham-se eles oposto concordemente às correntes filosóficas e teológicas inquinadas pelo racionalismo dominante e, baseados na Revelação divina — transmitida e interpretada fielmente pelos precedentes Concílios ecuménicos, explicada e defendida pelos Santos Padres e pelos Doutores do Oriente e do Ocidente — tinham declarado que fé e razão, longe de se oporem uma à outra, podiam e deviam amigavelmente encontrar-se (Cfr. Ench. Symb ).

A persistência dos violentos ataques, por parte dos inimigos da fé católica e da recta razão, induziram Leão XIII a repetir e desenvolver mais extensamente na sua Encíclica a doutrina do Vaticano I. Nela, depois de evocar o gradual e cada vez mais vasto contributo dado pelos luminares da Igreja, tanto no Oriente como no Ocidente, à defesa e ao progresso do pensamento filosófico e teológico, o Papa detém-se na obra de aprofundamento e síntese empreendida por São Tomás. Com palavras que merecem ser citadas no seu límpido latim clássico, não hesita em indicar no Doutor Angélico aquele que levou a investigação racional, sobre os dados da fé, a metas que se revelaram de valor imperecedoiro: «Illorum doctrinas, velut dispersa cuiusdam corporis membra, in unum Thomas collegit et coagmentavit, miro ordine digessit, et magnis incrementis ita adauxit, ut catholicae Ecclesiae singulare praesidium et decus fure meritoque habeatur ... Praeterea rationem, ut par est, a fide apprime distinguens, utramque tamen amice consocians, utriusque tum fura conservavit, tum dignitati consuluit, ita quidem ut ratio ad humanum fastigium, Thomae pennis evecta, iam fere nequeat sublimius assurgere; neque fides a ratione fere possit plura aut validiora adiumenta praestolari, quam quae iam est per Thomam consecuta» (Leonis XIII, Acta, vol. I, pp. 274-275).

4. Afirmações solenes e de responsabilidade. A nós, que as ponderamos a um século de distância, oferecem antes de mais uma indicação prática e pedagógica. Com elas, de facto, quis Leão XIII propor aos professores e aos estudantes de filosofia e de teologia um modelo incomparável de investigador cristão.

Ora, quais são os dotes que mereceram ao Aquinate, além dos títulos de «Doctor Ecclesiae» e «Doctor angelicus», que lhe atribuiu São Pio V, também o de «Patronus caelestis studiorum optimorum», que lhe conferiu Leão XIII com a Carta Apostólica «Cum hoc sit». de 4 de Agosto de 1880, quer dizer. no primeiro aniversário da Encíclica que estamos a comemorar (Cfr. Ibid., vol. II, PP 108-113)?

O primeiro dote foi indubitavelmente o de ter professado um pleno assentimento da mente e do coração à divina Revelação; assentimento renovado no leito de morte na abadia de Fossanova, a 7 de Marco de 1274. Como seria profícuo à Igreja de Deus que também hoje todos os filósofos e teólogos católicos imitassem o sublime exemplo dado pelo «Doctor communis Ecclesiae»! Este assentimento foi aplicado também pelo Aquinate aos Santos Padres e Doutores, como testemunhas concordes da Palavra revelada, de maneira que o Cardeal Caetano não hesitou em escrever — e o texto é citado na Encíclica —: «São Tomás, porque teve em suma reverência os Doutores Sagrados, herdou, em certo sentido, o pensamento de todos eles» (In Sum. Theol. II-II, q. 148, a. 4 c; Leonis XIII, Acta, vol. 1P 273).

O segundo dote, que justifica o primado pedagógico do Angélico, é o grande respeito que professava pelo mundo visível, como obra, e portanto vestígio e imagem, de Deus Criador. Quem ousou acusar São Tomás de naturalismo e empirismo, fê-lo portanto sem razão. «O Angélico Doutor, lê-se na Encíclica, deduziu as conclusões tirando-as das essências constitutivas e dos princípios das coisas, cuja virtualidade é imensa, contendo elas, como em seio, as sementes de verdades quase infinitas, que os futuros mestres fizeram depois frutificar na altura oportuna» (Leonis XIII, Acta, vol. 1P 273).

O terceiro dote, por fim, que levou Leão XIII a propor o Aquinate como modelo dos «mais altos estudos» a professores e alunos, é a sincera e total adesão, por ele sempre conservada, perante o Magistério da Igreja, a cujo juízo submeteu todas as suas obras, durante a vida e por ocasião da morte. Quem não se recorda da comovedora profissão, que ele quis pronunciar na cela do convento de Fossanova, de joelhos diante da Eucaristia, antes de recebê-la como Viático da vida eterna? «As obras do Angélico, escreve ainda Leão XIII, contêm a doutrina mais conforme ao Magistério da Igreja» (Ibid., p. 280). Nem se conclui dos escritos do Santo Doutor que ele tenha reservado o assentimento do espírito só ao Magistério solene e infalível dos Concílios e dos Sumos Pontífices. Facto este edificantíssimo e digno também hoje de ser imitado por todos os que desejam conformar-se com a Constituição dogmática Lumen gentium (Lumen Gentium LG 25).

5. Os três dotes aludidos, que se uniram a todo o esforço especulativo de São Tomás, foram também os que lhe garantiram a ortodoxia dos resultados. Eis a razão por que o Papa Leão XIII, querendo «agere de inunda philosophicorum studiorum ratione, quae et bono fidei apte respondeat, et ipsi humanarum scientiarum dignitati sit consentanea» (Leonis XIII, Acta, vol. 1P 256), se referia sobretudo a São Tomás, «inter Scholasticos Doctores omnium princeps et magister» (Ibid., p. 272).

O método, os princípios e a doutrina do Aquinate, recordava o imortal Pontífice, encontraram no decurso dos séculos o favor preferencial não só dos doutos, mas também do Magistério supremo da Igreja (Cfr. Encicl. Aeterni Patris, 1, c. , pp. PP 274-277). Também hoje, insistia ele, para a reflexão filosófica e teológica não se apoiar num «fundamento instável», que a torne «oscilante e superficial» (Ibid., p. 278) , é necessário que volte a inspirar-se na «áurea sabedoria» de São Tomás, para desta tirar luz e vigor no aprofundamento do dado revelado e na promoção dum conveniente progresso científico (Cfr. Ibid., 282).

Passados cem anos na história do pensamento, nós estamos capazes de medir quão ponderados e prudentes foram estas apreciações. Não sem motivo, portanto, os Sumos Pontífices, sucessores de Leão XIII, e até o Código de Direito Canónico Cfr. cân. 1366, parágrafo 2. retomaram-nas e fizeram-nas próprias. Também o Concilio Vaticano II prescreve, como sabemos, o estudo e o ensinamento do património perene da filosofia, do qual uma parte insigne é constituída pelo pensamento do Doutor Angélico. A este propósito apraz-me recordar que Paulo VI quis convidar para o Concílio o filósofo Jacques Maritain, um dos mais ilustres intérpretes modernos do pensamento tomista, pretendendo também deste modo exprimir alta consideração para com o Mestre do século XIII e ao mesmo tempo para com um modo de «fazer filosofia» em sintonia com os «sinais dos tempos» . O Decreto sobre a formação sacerdotal «Optatam totius», antes de falar da necessidade de no ensino ter em conta as correntes filosóficas modernas, especialmente «as que exercem maior influxo na própria nação», exige que «se ensinem as disciplinas filosóficas de forma que, antes de mais, se ajudem os alunos e adquirir sólido e coerente conhecimento do homem, do mundo e de Deus, apoiados num património filosófico perenemente estável» (Optatam totius OT 15).

Na Declaração sobre a Educação cristã «Gravissimum Educationis», lemos: «... consideradas cuidadosamente as questões e investigações modernas, veja-se de modo mais claro como a fé e a razão conspiram para a verdade única, conforme o ensinamento dos Doutores da Igreja, sobretudo de São Tomás de Aquino» (Gravissimum Educationis GE 10). As palavras do Concílio são claras: na íntima ligação com o pensamento cultural do passado, e em particular com o pensamento de São Tomás, viram os Padres um elemento fundamental para a adequada formação do clero e da juventude cristã, e portanto, em perspectiva, uma condição necessária para a desejada renovação da Igreja.

Não é caso de inculcar aqui a minha vontade de dar plena execução às disposições conciliares, uma vez que nesse sentido me pronunciei explicitamente já, na homilia de 17 de Outubro de 1978, no dia seguinte à minha eleição para a Cátedra de Pedro (Cfr. AAS, 70, 1978, PP 921-923) e depois repetidas vezes.

6.Sinto, portanto, muita satisfação de encontrar-me esta tarde no meio de vós, que encheis as aulas da Pontifícia Universidade de São Tomás, atraídos pela sua doutrina filosófica e teológica, como o foram os numerosíssimos discípulos de várias Nações que circundaram a cátedra do frade dominicano no século XIII, quando ensinava nas Universidades ou de Paris ou de Nápoles, ou até no «Studium curiae», ou no «estudo» do convento de Santa Sabina em Roma.

A filosofia de São Tomás merece atento estudo e aceitação convicta por parte da juventude dos nossos tempos, por causa do seu espírito de abertura e universalismo, características estas que é difícil encontrar em muitas correntes do pensamento contemporâneo. Trata-se da abertura ao conjunto da realidade em todas as suas partes e dimensões, sem reduções nem particularismos (sem absolutizações de aspectos particulares), assim como é requerido pela inteligência em nome da verdade objectiva e integral, no respeitante à realidade. Abertura, esta, que é também significativa nota distintiva da fé cristã, da qual a catolicidade é marca específica. Esta abertura tem o seu fundamento e origem no facto de que a filosofia de São Tomás é filosofia do ser, isto é, do «actus essendi», cujo valor transcendental é o caminho mais directo para chegar ao conhecimento do Ser subsistente e Acto puro, que é Deus. Por esse motivo, esta filosofia poderia ser mesmo chamada filosofia da proclamação do ser, o canto em honra do que existe.

A esta proclamação do ser vai a filosofia de São Tomás buscar a capacidade de acolher e «afirmar» tudo o que aparece diante da inteligência humana (o dado da experiência, no sentido mais lato) como realidade existente, determinada em toda a riqueza inexaurível do seu conteúdo; vai buscar, em particular, a capacidade de acolher e «afirmar» aquele «ser», que é capaz de conhecer-se a si mesmo, de maravilhar-se em si e principalmente de decidir de si e forjar a própria e irrepetível história ... Neste «ser», na sua dignidade, pensa São Tomás quando fala do homem como dalguém que é «perfectissimum in tota natura» (Sum. Theol.I, q. 29, a. 3), uma «pessoa», para a qual ele postula uma atenção específica e excepcional. Fica assim dito o essencial acerca da dignidade do ser humano, embora haja ainda muito para indagar neste campo, utilizando as reflexões mesmas oferecidas pelas correntes filosóficas contemporâneas.

Nesta afirmação do ser encontra também a filosofia de São Tomás a sua autojustificação metodológica, como disciplina irredutível a qualquer outra ciência, e mesmo tal que as transcende a todas apresentando-se diante delas como autónoma e ao mesmo tempo complemento delas em sentido substancial.

Mais, a esta afirmação do ser vai a filosofia de São Tomás buscar a possibilidade e ao mesmo tempo a exigência de ultra-passar tudo o que nos é oferecido directamente pelo conhecimento enquanto existente (o dado da experiência) para atingir o «ipsum Esse subsistens» e ao mesmo tempo o Amor criador, em que encontra a sua explicação última (e por isso necessária) o facto que «potius est esse quam non esse» e, em particular, o facto de existirmos nós ... «Ipsum enim esse — afirma o Angélico — est communissimus effectus, primus et intimior omnibus alliis effectibus, et ideo soli Deo competit secundum virtutem propriam talis effectus» (QQ. DD. De Potentia, q. 3, a. 7 c).

São Tomás encaminhou a filosofia segundo os vestígios de tal intuição, indicando contemporaneamente que só nesta via se sente o entendimento à vontade (como «em casa própria») e que por isto a esta via não pode de maneira nenhuma renunciar a inteligência, se não quer renunciar a si mesma.

Colocando como objecto próprio da metafísica a realidade «sub ratione entis», São Tomás indicou na analogia transcendental do ser o critério metodológico para formular as proposições acerca da realidade inteira, compreendendo o Absoluto. Difícil é exagerar a importância metodológica desta descoberta para a investigação filosófica, como aliás também para o conhecimento humano em geral.

Não vale a pena insistir no muito que deve a esta filosofia a teologia mesma, não sendo esta nada menos que «fides quaerens intelectum» ou «intellectus fidei». Nem a teologia, portanto, poderá renunciar à filosofia de São Tomás.

7. Deverá acaso temer-se que a adopção da filosofia de São Tomás venha a comprometer a justa pluralidade das culturas e o progresso do pensamento humano? Semelhante temor seria manifestamente vão, porque a «filosofia perene», em virtude do princípio metodológico mencionado, segundo o qual toda a riqueza de conteúdo da realidade encontra a fonte no «actus essendi», tem, por assim dizer, o direito antecipado a tudo o que é verdadeiro em relação com a realidade. Reciprocamente, toda a compreensão da realidade — que de facto reflicta esta realidade — tem pleno direito de cidadania na «filosofia do ser», independentemente daquele a quem toque o mérito de ter consentido tal avanço na compreensão e independentemente da escola filosófica a que per-tença. As outras correntes filosóficas, portanto, se as olhamos deste ponto de vista, podem, devem mesmo, ser consideradas como aliadas naturais da filosofia de São Tomás, e como partners dignos de atenção e respeito, no diálogo que se trava diante da realidade e em nome duma verdade sobre ela não mutilada. Eis porque a indicação de São Tomás aos discípulos — na «Epistula de modo studendi» — «Ne respicias a quo sed quod dicitur», deriva tão imediatamente do espírito da sua filosofia. Muito aprecio, portanto, a ordenação dos estudos da Faculdade de Filosofia desta Universidade, ordenação na qual, além dos cursos teóricos sobre Aristóteles e São Tomás, se incluem cursos de Ciência e Filosofia, Antropologia filosófica, Física e Filosofia, História da Filosofia moderna, O movimento fenomenológico, em conformidade com a recente Constituição Apostólica Sapientia christiana: De studiorum Universitatibus et Facultatibus Ecclesiasticis (AAS 71, 1979, PP 495-496).

8. Mas há outra razão que assegura a plena validez da filosofia de São Tomás: é a preocupação dominante da busca da verdade. «Studium philosophiae — escreve o Aquinate comentando o seu filósofo preferido Aristóteles — non est ad quod sciatur quid homines senserint, sed qualiter se habeat veritas» (De coelo et mundo I, lect. 22, ed. R. Spiazzi, n. 228). Eis porque se notabiliza a filosofia de São Tomás pelo seu realismo, a sua objectividade: é a filosofia «de l'être et non du paraitre». A conquista da verdade natural — que tem a origem suprema em Deus Criador, como a verdade divina o tem em Deus Revelador — tornou a filosofia do Angélico sumamente idónea para ser a «ancilla fidei», sem se aviltar a si mesma e sem restringir os seus campos de investigação, mas, pelo contrário, indo buscar à razão humana desenvolvimentos inesperados. Por isso o Sumo Pontífice Pio XI, de santa memória, ao publicar a Encíclica «Studiorum ducem», por ocasião do VI Centenário da Canonização de São Tomás, não hesitou em afirmar: «In Thoma honorando maius quiddam quam Thomae ipsius existimatio vertitur, id est Ecclesiae docentis aucto ritas» (AAS 13, 1923, p. 324).

9. São Tomás, na realidade, soube iluminar com a sua «ratio fide illustrata» (Conc. Vaticano I, Const. dogm. Dei Filius, cap. 4; DS 3016) , também os problemas relativos ao Verbo Encarnado, «Salvador de todos os homens» (Prólogo da terceira parte da Suma teológica). São os problemas a que aludi na minha primeira Encíclica «Redemptor hominis», em que apresentei Cristo como «Redentor do homem e do mundo, centro do cosmos e da história ... via principal da Igreja para a casa do Pai» (Redemptor hominis RH 1,8 Redemptor hominis, 1, 8 e 13). É assunto de primeiríssima ordem para a vida da Igreja e para a ciência cristã. Não é porventura a Cristologia o fundamento e a primeira condição para se elaborar uma antropologia mais completa, segundo as exigências dos nossos tempos? Não devemos, de facto, esquecer que só Cristo «revela plenamente o homem ao homem» (Cfr. Const. past. Gaudium et Spes GS 22). São Tomás inundou também, de luz racional, purificada e sublimada pela fé, os problemas relativos ao homem: a sua natureza criada à imagem e semelhança de Deus, a sua personalidade digna de respeito desde o primeiro instante da sua concepção e o destino sobrenatural do homem na visão beatífica de Deus Uno e Trino. Neste particular devemos a São Tomás uma definição precisa e sempre válida daquilo em que está a substancial grandeza do homem: «ipse est sibi providens» (Cfr. Contra Gentes, III, 81).

O homem é senhor de si mesmo, pode prover a si mesmo e projectar o próprio destino. Este facto, todavia, considerado de per si, não decide ainda da grandeza do homem e não garante a plenitude da sua auto-realização pessoal. Decisivo é somente o facto de o homem se submeter no seu agir à verdade, que ele não determina mas descobre apenas na natureza, dádiva a si feita juntamente com o ser. Deus é quem dá a realidade como criador e manifesta-a cada vez melhor como revelador em Jesus Cristo e na sua Igreja. O Concílio Vaticano II, qualificando esta auto-providência do homem «sub ratione veri» com o nome de ministério real («munus regale»), atinge na sua profundidade esta intuição.

Eis aqui a doutrina que me propus recordar e actualizar na Encíclica «Redemptor hominis», indicando no homem «a primeira e fundamental via da Igreja» (Redemptor hominis RH 14).

10. No termo destas considerações, necessariamente sumárias, impõe-se-me uma última palavra. É a palavra com que Leão XIII concluiu a «Aeterni Patris». «Exempla sequamur Doctoris Angelici», recomendava (Leonis XIII, Acta cit., p. 283). É o mesmo que eu repito esta tarde. A exortação, de facto, é plenamente justificada pelo testemunho de vida, com que São Tomás confirmou o ensinamento que distribuía da cátedra. Primeiro que metodologia técnica dum mestre, a sua foi a metodologia do santo, que vive em plenitude o Evangelho, no qual a caridade é tudo. Amor de Deus, fonte Suprema de toda a verdade; amor do próximo, obra-prima de Deus; amor das coisas criadas, também estes preciosos escrínios cheio dos tesouros, que Deus neles derramou.

Esta a força inspiradora de todo o seu afã de homem de ciência e este o impulso secreto da sua doação total de pessoa consagrada. «A caritate omnia procedunt sicut a principio et in caritatem omnia ordinantur sicut in finem», escreveu ele (In Io. Ev., XV, 2). E, de facto, o gigantesco pensamento foi estimulado, sustentado e orientado por um coração repleto de amor para com Deus e para com o próximo. «Per ardorem caritatis datur cognitio veritatis» (Ibid., V, 6). São palavras programáticas que deixam entrever, por trás do pensador capaz dos voos especulativos mais ousados, o místico habituado a beber, directamente, na fonte mesma de toda a verdade, a resposta às invocações mais profundas do espírito humano. Não confessou ele próprio, aliás, nunca ter escrito nem ter nunca dado lições sem primeiro recorrer à oração?

Quem se aproxima de São Tomás, não pode prescindir deste testemunho que deriva da sua vida; deve pelo contrário seguir corajosamente as suas pegadas no esforço de lhe imitar os exemplos, se quer chegar a saborear os frutos mais ocultos e agradáveis do seu ensinamento. É o que nos recorda a Oração que a liturgia nos põe nos lábios no dia da sua festa: «Senhor nosso Deus, que fizestes de São Tomás um modelo admirável de vida santa e de amor à ciência, dai-nos a graça de compreender os seus ensinamentos e de imitar a sua vida».

Isto pedimos também nós esta tarde ao Senhor, confiando a nossa prece à intercessão do próprio «mestre Tomás», mestre profundamente humano porque profundamente cristão e, mesmo porque profundamente cristão, profundamente humano.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS MEMBROS DA FEDERAÇÃO ITALIANA


DE TÉCNICOS ORTOPÉDICOS


Sexta-feira, 19 de Novembro de 1979



Caros Irmãos e Amigos
da Federação Italiana de Técnicos Ortopédicos

Com a melhor das vontades correspondi ao vosso desejo ardente de vos encontrardes comigo numa audiência especial, a seguir ao duplo e importante encontro científico que acabais de ter em Florença. Não só tenho a alegria da vossa presença e vos estou agradecido pelos sinceros sentimentos de respeito em que esta se inspira, mas sinto-me alegre por uma série de motivos, que desejaria expor imediatamente como demonstração da estima e do interesse que a vossa profissão e a vossa especialidade merecem, também por parte da Igreja.

1. A primeira palavra, quer dizer o primeiro motivo de complacência, refere-se ao carácter aberto e amplo do Congresso: promovido pela benemérita Associação F.I.O.T.O., teve clara e intencional dimensão internacional, compreendendo, ao lado dos experimentadores e alguns clínicos italianos, não poucos ilustres colegas doutras Nações e, nomeadamente, da área meditarrânea. Quer isto dizer muito, não só do ponto de vista científico, mas também do ponto de vista ético e espiritual. Um encontro assim alargado significa, certamente, disponibilidade para a colaboração, troca de experiências e de métodos, confronto de resultados e — além destes, objectivos — incremento indubiamente positivo das relações interpessoais. O vosso simpósio, amigos, consentiu certamente não só fecundo contacto a nível de especialistas mas também melhor e directo conhecimento recíproco, que se revelará utilíssimo mesmo no futuro. Tendo eu a responsabilidade da Igreja que — segundo conheceis — é essencialmente viva e activa comunhão entre os crentes, congratulo-me com sinceridade pelo espírito comunitário e fraternal que animou o presente congresso.

2. Mas não basta: como poderia, de facto, esquecer que o vosso interesse se concentrou de maneira especial nas doenças da infância e da adolescência e nos problemas que o tratamento delas apresenta à vossa profissão? Assim, no Ano Internacional da Criança, quisestes oferecer um contributo original e específico, debatendo numerosos assuntos, que vão desde o conhecimento às terapias, desde a indagação até aos aparelhos ortopédicos, necessários para prevenir ou curar as não raras deformações dos menores. Isto conseguiu-vos com bom direito o honroso patrocínio da UNICEF, mas também vos mereceu o aplauso e o reconhecimento de muitos pais, até mesmo da sociedade inteira, que não pode deixar de aproveitar com a saúde e a integridade das novas gerações. Quantas vezes verificámos com dor que certas deformações, não tendo sido diagnosticadas ou curadas a tempo, prejudicaram o desenvolvimento da criança e se tornaram irreversíveis?

Este vosso empenho — estou certo — continuará mesmo depois da circunstância que vos reuniu há pouco e reflectir-se-á no exercício quotidiano da ciência ortopédica no interior dos vossos consultórios e dos vossos hospitais. Não é, pois, necessário insistir em animar-vos: só desejo sugerir-vos que tenhais sempre consciência clara do alto valor humano e social do vosso trabalho, como também das vastas possibilidades que ele apresenta de aliviar tantos sofrimentos, que devem mais ainda solicitar o esforço e a dedicação, de vós, médicos, e de todo o pessoal sanitário, quando se trata de quem se apresenta no começo da vida. Este pensamento de aliviar a dor alheia e — tantas vezes — a dor inocente, deve, por sua vez, animar-vos ao sacrifício e fazer-vos arrostar os riscos que a vossa profissão comporta.

3. Nesta altura poderia pensar-se que valem as considerações, por mim feitas, para todos os sectores da ciência médica, as quais têm portanto carácter geral. Sem dúvida, os princípios da deontologia profissional e as normas éticas são fundamentalmente iguais para as várias especializações; mas parece-me que o vosso trabalho, caros Amigos, tem não só a sua óbvia fisionomia e o seu campo definido de aplicação, mas também uma capacidade típica de intervir no caso de certos males que mais atacam pelo seu carácter, diria eu, macroscópicos. Quero só pronunciar dois nomes: mutiladinhos e poliomielíticos. Quem não se lembra da obra admirável e exemplar que, depois da segunda guerra mundial, realizou na Itália o saudoso Don Carlo Gnocchi, com o indispensável contributo dos médicos e dos especialistas em ortopedia, para socorrer a multidão das crianças gravemente lesadas no seu físico e detidas no próprio desenvolvimento? E se hoje, graças ao progresso da ciência, a terrível doença da poliomielite deixou de ser ameaça grave social, quantas pessoas por ela atingidas ficam ainda sem cura, quantas consequências perduram ainda e quanto por fazer vos espera ainda, ortopedistas!

E deveria falar também das desgraças no trabalho, dos incidentes estradais e dos perigos crescentes da motorização; deveria falar de tudo isto para confirmar quanto aumentou o campo da vossa intervenção, especialistas. Longe de se concluir que o vosso sector haja de considerar-se um dos muitos da medicina, o vosso é realmente vasto e delicado, e de crescente importância; nele as responsabilidades morais igualam as dificuldades intrínsecas da profissão.

4. No prospecto, que anuncia e esclarece os vários temas do vosso simpósio, caíram-me os olhos numa litografia que, na parte superior, representa duas mãos com os indicadores a tocarem-se. Foi certamente tirada da cena miguelangelesca da Abóbada da Capela Sistina, em que está pintado com evidência plástica o dedo de Deus a transmitir a existência, a vida e a energia ao dedo do primeiro homem. Muito me agradou a representação: cada homem, na realidade, assim como é criado por Deus à sua imagem e semelhança (Cfr. Gén Gn 1,26), assim também recebe d'Ele superioridade ontológica sobre todas as coisas criadas e, com ela, tal poder que lhe consente perscrutar, utilizar, dominar e aperfeiçoar, em certo modo, a natureza (Ibid. 1, 28).

Sob este ponto de vista, pode-se afirmar que todo o homem é colaborador de Deus. Também na vossa profissão, nas técnicas que genialmente sabeis pôr no devido ponto para o bem dos irmãos que sofrem, deveis pensar nisto e isto deveis dizê-lo a vós mesmos: "Como médico sou também eu colaborador de Deus em restituir a saúde ao corpo doente; sou-o também como ortopedista, ao restabelecer algumas partes do corpo, atingidas pela doença ou por dolorosos acontecimentos, e ao reabilitá-las de maneira que e possam desempenhar a função original que lhes toca. Com a ajuda de Deus posso, por conseguinte, quero mesmo, contribuir para fazer recuperar aos doentes a meu cuidado — além da suspirada restituição da eficiência dos membros físicos — a necessária serenidade interior e a alegria de viver uma vida sã e livre, ao lado dos outros homens"

4. Para confirmar este voto e tornar recordado o encontro de hoje, abençoo-vos de coração, invocando, sobre as vossas pessoas e a vossa actividade, o superior conforto dos celestiais favores.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS BISPOS DA COLÔMBIA


POR OCASIÃO DA VISITA


«AD LIMINA APOSTOLORUM»


Sábado, 20 de Novembro de 1979



Amadíssimos Irmãos no Episcopado

1. Uma vez mais tenho a satisfação de ver junto de mim um numeroso grupo de Bispos da Colômbia, na renovada comunhão de sentimentos eclesiais e de afecto mútuo, objectivo e fruto da visita ad limina.

A vossa presença, para mim tão grata, faz-me recordar instintivamente os membros do Episcopado do vosso País que vos precederam. Sinto como se estivéssemos a prolongar agora os sentimentos e as reflexões que lhes apresentei e recebem agora complemento neste nosso encontro.

2. Uma nota peculiar caracteriza a nossa reunião de hoje, dado que vós, queridos Irmãos, como Prelados dos diversos Vicariatos Apostólicos e das Prefeituras Apostólicas da Colômbia, me trazeis a presença característica da Igreja missionária na vossa Pátria.

Por isso, a minha primeira palavra quer ser de estima e agradecimento pelo empenho que depondes no trabalho de edificação e consolidação da Igreja em cada uma das porções eclesiais confiadas ao vosso cuidado e à vossa responsabilidade pastoral.

Nesta tarefa, tão vital e meritória, recebeis uma ajuda preciosa por parte das Congregações e Institutos religiosos a que estão confiadas as vossas circunscrições missionárias. Quero, por conseguinte, expressar aqui o meu profundo apreço e gratidão, a que uno o testemunho da minha complacência e louvor mais vivos, aos membros dessas beneméritas famílias religiosas, que tão generosas energias consagram a essa missão, no meio de tantas dificuldades ambientais e de não poucas privações. Que o Senhor as recompense largamente! São sentimentos que se tornam extensivos a todos os outros — religiosos sobretudo — que prestam o seu abnegado serviço em estreita colaboração convosco.

3. Sei que estais comprometidos com um trabalho de cultivo intenso das vocações autóctones. Isto alegra-me realmente muito e encorajo-vos a não poupardes energias no prosseguimento deste caminho, que vai na direcção dás necessidades essenciais e prioritárias da Igreja.

Todavia, observando o panorama global da Igreja na vossa Nação, poderíamos perguntar-nos se outras Dioceses mais privilegiadas não estariam em condições de vos prestar uma ajuda válida, colocando generosamente à vossa disposição os agentes evangelizadores, sobretudo os sacerdotes é religiosos, que parece estão em condições de vos dar.

Este auxílio fraterno entre as comunidades eclesiais, além de ser um sinal evidente de comunhão em Cristo e de maturação na vivência da fé católica, além de contribuir para corrigir desníveis bastante notáveis quanto às forças evangelizadoras, favoreceria muito a elevação das vossas Circunscrições missionárias a Dioceses de direito comum, objectivo para que eu mesmo olho com agrado e a que aspiro vivamente, logo que as circunstâncias o permitirem.

A consciência activa da ajuda que uma Igreja particular pode e deve prestar à outra menos favorecida em agentes de pastoral e ainda em recursos materiais, longe de diminuir as energias próprias, fará revitalizar os mecanismos do seu vigor interno, suscitando novas forças de generosidade e fecundidade eclesiais, que são recompensa da própria abertura, na caridade dinâmica do Evangelho, e semente de seguras bênçãos divinas.


Discursos João Paulo II 1979 - Quinta-feira, 15 de Novembro de 1979