Discursos João Paulo II 1980 - Segunda-feira, 7 de Janeiro de 1980

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


ÀS IRMÃS DA CARIDADE


DE SÃO VICENTE DE PAULO


11 de Janeiro de 1980

Minha Reverenda Madre
Minhas Irmãs

Imaginai comigo que São Vicente de Paulo e Santa Luísa de Marillac — os vossos dois fundadores, tão unidos na sua paixão evangélica de servir os pobres, Santos que voltaram para o Senhor com poucos meses de intervalo um do outro, há mais de três séculos — imaginai que se encontram presentes nesta reunião de família. Mas estão deveras connosco embora misteriosamente. Permiti-me que lhes dê a palavra, tornando-me eu intérprete apenas.

Enquanto vós continuais os trabalhos da Assembleia geral da Companhia, aqueles que venerais como vosso Pai e vossa Mãe querem, primeiro que tudo, confirmar-vos na consciência da actualidade da vocação que tendes. O calor da caridade é com certeza aquilo de que os homens mais precisam hoje, como sempre aliás. Certamente que as misérias sociais do século XVII e da época da Fronda estão já bem longe. Mas «tendes sempre pobres convosco». Quem nos dará estatísticas exactas sobre a pobreza real em cada país e à escala do mundo inteiro? São muitas vezes publicados números relativos ao comércio, à agricultura, à indústria, aos bancos, aos armamentos, etc. Mas, na época dos «computers», sabemos porventura quais os números exactos dos analfabetos, das crianças abandonadas, dos subalimentados, dos cegos, dos doentes, dos lares desunidos, dos presos, dos marginalizados, das prostitutas, dos desempregados, das pessoas que vivem nos bairros de lata ou favelas do mundo inteiro? Caras Irmãs, não tenhais olhos nem coração senão para os pobres, como «monsieur Vincent» e «Mademoiselle Legras». E para vos estimulardes mais — se necessário fosse! — considerai que vos dizem:

Contemplai Nosso Senhor Jesus Cristo, ouvi-O repetir-vos qual o sentido da Sua missão: O Espírito do Senhor está sobre Mim... Ungiu-Me para anunciar a Boa Nova aos pobres, proclamar a libertação aos cativos, fazer recobrar aos cegos a vista, e mandar em liberdade os oprimidos... (Lc 4,18) Éverdade, o Evangelho apresenta-nos quase sempre Cristo entre os pobres. É o meio em que decorre a Sua vida.

Parece-me igualmente que estes dois grandes Santos da caridade vos impelem, com ternura e firmeza, a que defendais e desenvolvais a vossa entrega radical a Jesus Cristo, segundo as promessas que renovais cada ano a 25 de Março. A castidade, por causa de Cristo e do Evangelho, é dessa entrega o sinal mais profundo. E longe de ser alienação da pessoa, é admirável promoção das capacidades e necessidades de maternidade, inerentes a toda a mulher. Vós sois mães. Colaborais na protecção, na orientação, desenvolvimento, na cura e no encerramento em paz de tantas vidas humanas, tanto no plano físico como no moral e religioso. O vosso celibato consagrado vede-o sempre como caminho de vida até aos outros, e revelai este segredo às jovens que hesitam em enveredar pelo caminho que vós seguistes. Amai não somente os pobres, amai também serdes vós mesmas pobres, em espírito e em actos. São Vicente de Paulo e Santa Luísa de Marillac disseram mais com o serviço concreto dos pobres — dia e noite —, do que fariam com extensos tratados sobre a pobreza. Do mesmo modo São Francisco de Assis foi mais eloquente despojando-se do seu vestuário, do que se publicasse uma revista periódica sobre o desapego dos bens terrenos. E Charles de Foucauld mais enriqueceu com o seu sorriso e a sua bondade o ambiente dos pobres, do que se desse à imprensa a autobiografia de jovem oficial convertido, que escolheu estar no último lugar e entre os pobres. Poder-se-ia recordar também que o meu veneradíssimo predecessor Paulo VI, pondo de parte o uso da tiara, fez um gesto que não acabou de dar os seus frutos na Igreja.

Vós ouvis, por último, instar convosco os vossos dois modelos devida para que não deixeis que se apague o espírito de dependência, quando cada pessoa tanto tende hoje para se reservar um espaço livre em que não dependa de ninguém, para melhor se entregar à imaginação e fantasia. A obediência religiosa, bem o sabeis, é sem dúvida o mais agudo dos três cravos de ouro que prendem à vontade de Jesus os seus imitadores e as suas imitadoras. É lá possível contemplar alguém a cruz do Senhor Jesus sem se conformar ao Seu mistério de obediência ao Pai? Sejam os superiores religiosos, humanos e compreensíveis, é dever que têm. Mas sejam também os súbditos cada vez mais adultos e responsáveis, de maneira que aprofundem e vivam o valor de oblação da obediência.

Numa palavra, os vossos fundadores dizem-vos, como a todas as vossas companheiras: «Estai no mundo, sem nunca vos deixardes contaminar pelo espírito do mundo de que fala São João». Sabeis que o sal, se ficar insosso, não há com que temperar. E o que brilha é a pureza do cristal.

A vós, minha Reverenda Madre, que fostes agora reeleita, sinto especial alegria dirigir os meus votos de frutuoso serviço da Compa­nhia. As Capitulares, a quem agradeço a visita, e a todas as Irmãs da Caridade, que servem a Cristo nos Seus pobres no mundo inteiro — sem esquecer o serviço muito apreciado que prestam no Vaticano —, concedo a minha afectuosa Bênção Apostólica



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS MEMBROS DO CONSELHO NACIONAL


DA ACÇÃO CATÓLICA ITALIANA


Sábado, 12 de Janeiro de 1980



Caríssimos Irmãos e Irmãs

A graça e a paz de Deus, nosso Pai, e de Jesus Cristo, nosso Senhor (2Th 1,2).

1. Com sincera alegria e viva satisfação encontro-me hoje convosco, membros do Conselho Nacional da Acção Católica Italiana, reunidos nestes dias em Roma para meditar em comum sobre o tema: «Construir como leigos a comunidade eclesial para animar como cristãos a sociedade italiana». Cordial saudação dirijo ao Presidente Nacional, Professor Mário Agnes, ao assistente-Geral, dom Giuseppe Costanzo, aos Vice-Presidentes, aos Responsáveis pelos vários Movimentos e a todos vós um a um, que desempenhais com dedicação e empenho os cargos centrais, e por isso os mais onerosos, da grande Família da Acção Católica Italiana.

Sede bem-vindos à casa do Papa e ficai sabendo que ele vos estima, vos quer bem; segue e aprecia o trabalho complexo que deveis continuamente realizar, para que o Laicado católico italiano, bem organizado nas várias estruturas, continue a dar à Igreja e à sociedade civil aquele contributo concreto e eficaz de colaboração e vitalidade, felizmente expresso no tema do vosso encontro pelos dois termos: «construir» e «animar». São palavras que — segundo é sabido — sintetizam o luminoso ministério do Concílio Vaticano II quanto aos encargos, às funções e aos deveres dos leigos no âmbito da comunidade eclesial e também da comunidade civil, funções e deveres a que entregam, dia após dia, a própria vida.

2. Queria, além disso, neste momento tão significativo, renovar publicamente o meu aplauso a todos os membros da Acção Católica Italiana, que já ultrapassou um século de vida. Nestes mais de cem anos de história, quantos exemplos admiráveis de compromisso apostólico, de profunda vida espiritual! Quantos sacrifícios, quantos heroísmos foram praticados por homens e mulheres, jovens, rapazes, meninas e crianças, seriamente conscientes de que pertence à Acção Católica significativa participação pessoal, vital e dinâmica na própria missão salvífica da Igreja.

A Acção Católica Italiana, nascida num período especialmente delicado e difícil para as relações entre a Sé Apostólica e a Nação Italiana, demonstrou que se pode ao mesmo tempo dedicar profundo amor à Igreja e leal respeito pela Pátria. A vossa Associação constitui forja de pais e mães de família exemplares, de profissionais, operários e homens políticos: todos estes, firmemente convencidos de que «a todo o discípulo de Cristo incumbe o encargo de difundir a fé, segundo a própria medida» (Cfr. Const. dogm. Lumen Gentium LG 17 Decr. Apostolicam Actuositatem AA 3), deram ao mundo e, em particular, à Itália contemporânea luminosos testemunhos de vida cristã e realizaram, à custa de muitos sacrifícios e constante dedicação, tudo o que afirma o Concílio Vaticano II: «Os leigos... são chamados por Deus a concorrer para a santificação do mundo a partir de dentro como o fermento, e deste modo manifestarem Cristo aos outros, antes de mais com o testemunho da própria vida, pela irradiação da sua fé, esperança e caridade» (Cfr. Const. dogm. Lumen Gentium LG 31).

3. Li com particular atenção os esquemas relativos à sessão de estudo, na qual estais examinando problemas de grande interesse para a vida da associação. Entre tantos elementos, tão ricos e oportunos, merecedores todos de necessário aprofundamento, desejo hoje sublinhar um, de maneira especial: a fidelidade à vossa identidade.

Sim, caríssimos Irmãos e Irmãs. Seja a Acção Católica Italiana sempre fiel a si mesma, isto é, às finalidades, aos compromissos tomados e aos ideais que ela abraçou desde a fundação, quanto à Igreja e, por isso mesmo, quanto aos que dela fazem parte. A este propósito torno minhas as palavras que o meu Predecessor Paulo VI vos dirigiu a 11 de Janeiro de 1975. «A Igreja pede-vos que assumais as vossas responsabilidades no mundo contemporâneo conservando a vossa identidade, mas estando intimamente presentes na vida social, cultural, política e económica dos vossos compatriotas, sem todavia esquecer a dimensão universal das várias realidades e da comunidade internacional dos povos» (Insegnamenti di Paolo VI, XIII. 1975, p. 45 s).

Fidelidade à vossa identidade significa, antes de tudo oferecer claro testemunho das virtudes cristãs, da fé ardente, da serena esperança e da caridade activa numa profunda e vital união a Cristo. Brilhe a vossa luz diante dos homens, de modo que, vendo as vossas boas obras, glorifiquem vosso Pai, que está nos Céus (Mt 5,16 cfr. 1P 2,12).

Serdes fiéis à vossa identidade significa colocar a evangelização e a educação permanente para a fé entre os esforços prioritários e fundamentais, conforme insisti na minha Exortação Apostólica sobre a catequese: as várias associações e movimentos atingirão melhor as suas finalidades específicas e servirão melhor a Igreja se, na sua organização interna e no seu método de acção, souberem dar lugar importante à séria formação religiosa dos seus membros: «Neste sentido, todas as Associações de fiéis no seio da Igreja têm obrigação de ser, por definição, educadoras da fé » (Catechesi Tradendae CTR 70). Serdes fiéis à vossa identidade significa — como diz o vosso nome — actuar apostolicamente, e sempre em perfeita, alegre, leal e amorosa sintonia com a Hierarquia, porque a Acção Católica é um daqueles modos de os leigos serem chamados a «colaborar mais imediatamente com o apostolado da Hierarquia» (Cfr. Const. dogm. Lumen Gentium LG 33). Significa também não tolerar orientações diversas ou mesmo contrárias à indicações do Episcopado e menos ainda às formas de debilidade perante ideologias e modos de proceder que se oponham à fé católica: «Não façais nada sem o Bispo!», recomendava insistentemente Santo Inácio de Antioquia (EP ad Trallianos, 2, I; Funk, I. 242.).

Quinze anos depois de se concluir o Concílio Vaticano 11, apresentastes aos membros um lema que deseja ser programa e compromisso: «1980. 0 Concílio hoje». Sim, é preciso estudar ainda, aprofundar e reflectir sobre o ensinamento conciliar, que se encontra de modo especial na Constituição dogmática Lumen Gentium e no Decreto Apostolicam actuositatem. Mas este ensinamento deve também animar o proceder de todos os dias, nos vários níveis, na vida espiritual primeiramente, de maneira que esta seja fortificada pelos Sacramentos, por meio dos quais de modo especial da Eucaristia, é comunicada e alimentada aquela caridade para com Deus e os homens, que é «a alma de todo o apostolado (Const. dogm. Lumen Gentium LG 33); tal ensinamento deve portanto estar presente na vida de relação, na família, na escola, no lugar de trabalho, na associação, na paróquia, nos grupos do bairro, na cultura e nos instrumentos da comunicação social, no meio das crianças, dos jovens, dos pobres, dos marginalizados e dos que sofrem. O campo da vossa actividade apostólica estende-se até se perder da vista: é vasto, quanto a missão mesma da Igreja,.chamada a ser, «em Cristo, como que o sacramento ou sinal, e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano» (Cfr. Const. dogm. Lumen Gentium, I LG 11).

Coragem! A Igreja muito espera de vós; o Papa conta com o vosso entusiasmo sempre juvenil, muito prometedor. «Veri et germani estote chistiani — repito-vos com Santo Agostinho —, nolite imitari nomine chistianos opere vacuos»: quer dizer: «Sede verdadeiros e autênticos cristãos; não imiteis os cristãos de nome, mas vazios de obras (Serm. 363, IV: PL 39, 1562).

Para vós e para os membros da Acção Católica Italiana, a garantia do meu afecto, da minha esperança, que eu confirmo com uma especial Bênção Apostólica.





DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS IRMÃOS RELIGIOSOS DOS INSTITUTOS


CLERICAIS E LAICAIS DE ROMA


Sábado, 12 de Janeiro de 1980



Filhos caríssimos!

1. É-me verdadeiramente grato encontrar-me convosco esta manhã na familiaridade desta Audiência. Atribuo a este colóquio, particular importância de significado e de afecto. Na realidade, ele hoje é todo para vós, Irmãos leigos das várias Congregações, cujo contributo é tão importante para a vida e para a actividade das respectivas Famílias religiosas, e, mais em geral, para a vida da Igreja inteira. E, ao receber-vos, é minha intenção salientar o apreço que a Igreja nutre pela vossa função, e dar espaço a algumas reflexões que ponham em luz os aspectos próprios da vossa opção de vida.

Ao abrir-vos, pois, as portas da minha casa, Irmãos caríssimos, abro-vos de par em par também as do meu coração e dirijo-vos uma saudação afectuosa que, mediante as vossas pessoas, pretende chegar a todos os Religiosos leigos espalhados pelo mundo, e levar-lhes o testemunho da minha sincera estima e do meu elevado apreço.

2. Vós sois chamados a caminhar rumo à perfeição sobre a vida dos conselhos evangélicos, professados com generosa totalidade de compromisso. De facto, vós sois «Religiosos» a pleno título. O Concílio Vaticano II, como sabeis, afirmou solenemente o princípio segundo o qual a vossa escolha de vida «constitui em si um estado completo de prática dos conselhos evangélicos» (Decreto Perfectae Caritatis PC 10) e empregou uma palavra particular para «vos confirmar »na vossa vocação (Cfr. ibid. PC 10), a fim de que, da renovada «segurança» sobre a validade do vosso compromisso pudesse derivar uma consolidação dos propósitos e um impulso mais generoso de dina­mismo criativo.

Revivei, portanto, em vós a consciência e a alegria do vosso estado de pessoas consagradas: Cristo deve ser o objectivo e a medida da vossa vida. Do encontro com Ele teve origem a vossa vocação: a fé n'Ele determinou o «sim» do vosso compromisso, a esperança da sua ajuda ampara agora o perseverante cumprimento do mesmo, o amor que Ele acendeu nos vossos corações alimenta o impulso necessário para superaras inevitáveis dificuldades e para a quotidiana renovação da vossa oferta:

3. Em Cristo, que «por nós homens e pela nossa salvação desceu do céu», vós descobristes também a razão profunda do vosso dar-vos aos irmãos. Este é um ponto que merece um momento de reflexão. A vossa consagração religiosa não só reforçou o dom baptismal de união com a Trindade, mas chamou-vos a maior serviço ao povo de Deus.

Vós deveis viver o vosso serviço, qualquer que ele seja, com a alma aberta sobre toda a Igreja: para a sua vida contribuís com a vossa actividade e com o vosso testemunho (Cfr. Lumen Gentium LG 44). Aqui é oportuno descer ao concreto, na tentativa de esclarecer algum aspecto característico da riqueza que para a Igreja representa a vossa vida religiosa laical.

A vossa profissão religiosa coloca-se, antes de tudo, na linha da consagração baptismal, e exprime a bipolaridade do sacerdócio univer­sal, que se funda em tal consagração. Na vida religiosa laica, de facto, realiza-se a oferta do sacrifício espiritual, o exercício do culto em espírito e verdade, a que é chamado cada cristão; ao mesmo tempo, nela ressoa perante o mundo a proclamação claríssima das maravilhas da salvação. Uma direcção dupla, portanto, para Deus e para os homens, caracteriza a vossa vida; e na base de uma e outra está o mesmo e único sacerdócio baptismal, numa e noutra exprime-se o mesmo amor difundido pelo Espírito no coração Cfr. Rm 5,5), em ambas é vivido em plenitude o idêntico carisma do «laicado», conferido pela graça dos sacramentos da iniciação cristã.

Mais ainda, o Decreto Perfectae Caritatis indica uma forma parti­cular de «serviço eclesial» que os religiosos leigos são chamados a reali­zar. Eles participam de maneira utilíssima «na missão pastoral da Igreja na educação da juventude, na assistência aos doentes e noutros ministérios» (Perfectae Caritatis PC 10), que não são ulteriormente especificados, mas que cada um de vós pode bem exemplificar, pensando na actividade que desempenha. Pois, é importante que cada um de vós tenha plena consciência do carácter essencialmente eclesial do próprio trabalho, qualquer que ele seja.

Isto é sobretudo verdade segundo o dinamismo interior da graça, porque a vossa consagração religiosa, por sua natureza, orienta para a vida do Corpo místico todas as formas de actividade, para as quais sois chamados em virtude da obediência. O fiel sabe bem que a importância do próprio contributo para a vida da Igreja não depende tanto do tipo de actividade que desempenha, quanto, de preferência, da carga de fé e de amor que ele sabe depor no cumprimento do próprio serviço, por muito humilde que ele possa parecer.

Desejo pois sublinhar a «complementaridade» que existe entre o vosso testemunho e o do laicado «secular». O testemunho dos leigos, que vivem no mundo, pode ser útil para vos recordar que a vossa consagração não deve tornar-vos indiferentes à salvação dos homens nem ao progresso terreno, que é também querido por Deus. Por outro lado, recipro­camente, ao laicado comprometido no mundo, o vosso testemunho pode recordar convenientemente que o progresso terreno não é fim em si mesmo.

Isto coloca-vos, se me é consentida a expressão, no ponto de «soldadura» entre realidades humanas e eclesiais, entre reino do homem e Reino de Deus; com as vossas tarefas materiais que condicionam o bom andamento da Comunidade inteira, com o vosso serviço apostólico ao lado dos Irmãos sacerdotes, com a vossa presença no mundo da escola, do trabalho e da tecnologia, vós sois chamados a desempenhar uma tarefa de ligação quer no interior das respectivas Famílias religiosas, em vista de melhor unidade orgânica, quer no mundo exterior das profissões e do trabalho, onde podeis desempenhar um papel importantíssimo para favorecer uma aproximação daqueles ambientes, à Igreja.

4. E claro que a delicadeza de uma posição como esta traz consigo também riscos: subsiste sempre, de facto, a tentação de perder de vista «coisas eternas», do «laicismo», deixando arrefecer as relações vitais com Deus e perdendo assim o contacto com a Fonte, de que deriva o alimento e o apoio de cada actividade.

O vosso trabalho, realmente, torna-se expressão viva da consagração ao Senhor apenas se é referido de modo explícito a Ele, com um propósito conscientemente renovado de vida consagrada. Isto supõe, antes de tudo, uma revisão quotidiana de vida sobre a fidelidade aos compromissos assumidos com a profissão religiosa. Sede generosos, filhos caríssimos, a corresponder à voz de Cristo que vos chama a segui-1'O de perto, mediante a prática da pobreza, da castidade e da obediência.

5. Sabei, além disso, conservar aquele «primado da vida espiritual» de que fala o Decreto Perfectae Caritatis (Cfr. Perfectae Caritatis PC 6). A vida interior alimenta-se — é ali recordado — mediante o recurso assíduo às fontes genuínas da espiritualidade cristã, que são a Sagrada Escritura e a Liturgia.

A propósito desta última, recordai sempre que a participação consciente na oração litúrgica vos ajudará a comprenderdes mais a fundo vós mesmos e o sentido da vossa presença na Igreja. É necessário acrescentar, todavia, que tal participação não seria possível se faltasse o hábito da oração individual. É preciso que cada um aprenda a rezar também dentro de si e por si mesmo. A devoção pessoal, a meditação cultivada na intimidade do próprio espírito, o colóquio filial e espontâ­neo com Deus Uno e Trino, que reside nas profundidades da alma, constitui o pressuposto de uma oração autenticamente litúrgica.

Desejo indicar ainda uma condição para a autenticidade do vosso testemunho e para a sua plena eficácia apostólica: oferecer a vossa adesão cordial e responsável à vida comunitária religiosa é expressão concreta de amor pelos outros, e é segredo de maturação pessoal serena e harmoniosa. A aceitação do irmão com as suas qualidades e com os seus limites, o esforço de coordenação das próprias iniciativas com as decisões maturadas em conjunto, a autocrítica imposta pelo confronto conti­nuado com os critérios e os pontos de vista alheios, tornam-se não só um eficacíssimo exercício de virtudes humanas e cristãs, mas também, uma ocasião preciosa de constante verificação da seriedade com que nos empenhamos a traduzir na vida as obrigações assumidas na profissão religiosa.

6. Filhos caríssimos, que despendeis as melhores energias da mente e do coração na educação da juventude; e vós que fraterna e pacientemente vos dedicais ao cuidado dos enfermos, vendo neles Cristo que sofre (Cfr. Mt 25,36); e vós ainda, que prestais a vossa obra, tão preciosa quanto humilde, junto dos Irmãos sacerdotes, sede conscientes da particular missão a vós confiada pelo Senhor na vida da Sua Igreja.

Sabei cultivar uma espiritualidade que, abrindo-se à percepção da acção de Deus no mundo, assuma responsavelmente a tarefa de cooperar para o cumprimento dos seus desígnios de salvação. Vós deveis utilizar todos os recursos da vossa perspicácia para captar as exigências dos homens, vossos contemporâneos, para depois procurardes corresponder-lhes com toda a riqueza do vosso coração. Compete a vós empenhar-vos por fazer frutificar todos os dotes da vossa inteligência, afim de que o vosso serviço seja cada vez mais qualificado e, por conseguinte, mais digno daquele Jesus, que vós sabeis encontrar em cada irmão, para o qual vos dirigis impelidos pelo amor.

E sede alegres no exercício quotidiano das vossas tarefas, porque está escrito que Deus ama quem dá com alegria (2Co 9,7). Com este voto, confio os generosos propósitos que guardais nos vossos corações à maternal intercessão da Virgem Santíssima, vossa particular Padroeira e contínuo modelo na vida escondida de Nazaré; e, ao invocar sobre vós e sobre o vosso trabalho abundantes dons e confortos celestes, a todos concedo a minha Bênção Apostólica, como penhor da minha especial benevolência.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AO CORPO DIPLOMÁTICO ACREDITADO


JUNTO DA SANTA SÉ


14 de Janeiro de 1980



Excelências, Senhoras, Senhores

1. Os sentimentos calorosos e os votos ardentes, que há instantes acabou de apresentar o vosso Decano, interpretando os vossos pensamentos, constituem testemunho comovedor que agradeço vivamente. A perspectiva que ele desenvolveu ultrapassa sem dúvida os meus méritos pessoais, mas alegro-me convosco na medida em que ela pode manifestar, por meio da minha actividade, a vitalidade da Igreja e o papel particular da Santa Sé.

A minha saudação e os meus votos pessoais dirigem-se para todos e cada um dos diplomatas presentes e suas famílias. Além das vossas pessoas, saúdo também os povos e as nações a que pertenceis, os países que representais, os Governos em nome de quem desempenhais as vossas funções junto da Sé Apostólica. Torno extensivas as minhas saudações a todos os países e a todos os povos, mesmo àqueles que não estão aqui representados. Alguns dos vossos países têm, efectivamente, com a Igreja católica laços tradicionais de séculos, porque os filhos e as filhas dessas nações professam há muito e em grande maioria a fé católica. Noutras, a Igreja católica está presente só com um grupo restrito, às vezes muito restrito, de fiéis, mas aquelas pessoas que nelas exercem o poder julgam, ainda assim, oportuno manter relações diplomáticas com a Santa Sé. Sinto especial prazer em saudar os países que estabeleceram essas relações durante o ano passado, embora os seus Embaixadores não estejam ainda presentes no meio de vós. Sem esquecer nenhuma dessas nações que nos são igualmente queridas, gostaria de citar em particular a Grécia, com tudo o que este nome representa para a civilização e a cristandade. Por último, não posso deixar de pensar noutros países cujas populações profundamente católicas gostariam de ver travarem-se relações mais íntimas com a Santa Sé.

Numa palavra, a composição do Corpo diplomático permite que se compreenda melhor, duma maneira justa, o problema importante da presença da Igreja no mundo contemporâneo. Esta forma nada tira evidentemente à urgência do apostolado dos membros da Igreja por meio do testemunho quotidiano e da acção em todos os campos temporais em que estão inseridos pela vida e profissão. Todavia, as relações diplomáticas permitem, a outro nível, uma presença ao mesmo tempo directa e discreta da Igreja católica, enquanto tal e sua cabeça, junto dos povos mais diversos, junto dos seus Governos ou representantes. A Igreja respeita neles os sistemas políticos e as responsabilidades temporais, ao mesmo tempo que Lhes leva a ajuda dos recursos e das exigências espirituais e morais de que ela dá testemunho e que os seus filhos procuram levar à prática. Neste sentido, pretende ela contribuir para o bem das populações de cada país. E em troca, a actividade de cada um dos representantes diplomáticos favorece o cumprimento da missão que a Igreja julga seu dever realizar no mundo contemporâneo. Porque esta missão diz respeito às diversas dimensões da existência humana e às diversas comunidades, portanto também A. dimensão política e às comunidades políticas.

2. O nosso encontro realiza-se no princípio do Ano novo. Convém todavia lançar os olhos para o passado, voltando a alguns acontecimentos que, para a Sé Apostólica e sobretudo para aquele que vos fala, foram profundamente significativos e conservarão muito tempo importância capital. O vosso Decano teve aliás a bondade de os evocar. Trata-se das minhas viagens: constituíram outras tantas ocasiões de contactos profundos com os povos e seus governantes, sem contar a comunhão assim reforçada com as Igrejas locais que sempre constituía a primeira finalidade apostólica.

Antes de todas, a minha visita ao México, em relação com a Conferência de Puebla, e para corresponder ao desejo da Conferência episcopal latino-americana e especialmente dos Bispos mexicanos. Se pude prestar lá o meu serviço pastoral, foi também graças ao Senhor Presidente do México, que me convidou apesar da falta de relações diplomáticas, e graças ainda aos organismos administrativos que facilitaram com benevolência a execução do programa estabelecido. Era a primeira vez que o Sucessor de Pedro pisava terra mexicana e se transformava em peregrino de Nossa Senhora da Guadalupe. Justo era prestar homenagem ao povo católico do México que tão grandes méritos conquistou. Também não esqueço o encontro simpático com o povo de São Domingos, tão provado em seguida por um tufão, nem esqueço por último, a escala que fiz nas ilhas Bahamas.

Tinha igualmente de pagar uma dívida especial ao povo da Polónia, e foi este o motivo da minha peregrinação em Junho último. Era a primeira visita de um Papa a essa terra e a esse povo da Polónia; e, o que mais conta, do primeiro Papa vindo precisamente de estirpe polaca, do primeiro Papa eslavo. Como expressar a energia dos sentimentos que assinalaram esta peregrinação, que se tornou eco de todo o conteúdo não só da história mas ainda do movimento presente! Para além do aspecto puramente pessoal, esta peregrinação devia situar-se em toda a trama da história, baseada na fé e na tradição cristã, e devia dar testemunho da união — que, depois de tantas provações históricas, continua na situação actual —, da união entre o País e a Igreja. Devo também notar a atitude cortês e hospitaleira que tomaram, nessa circunstância, as Autoridades civis.

No Outono, a caminho da ONU, sentia-me igualmente chamado a visitar a Irlanda por duas razões. A Igreja e a cristandade muito devem ao povo irlandês pela contribuição histórica que prestou e pelo seu vigor actual; e eu devia confirmar esses irmãos e esses filhos na fé e animá-los na identidade cristã que possuem. Por outro lado, a situação presente chamava-me ao mesmo tempo e atraía-me a esses lugares, para lá pronunciar exortações vigorosas à paz, ao perdão e a colaboração fraterna na justiça. Continuo a esperar que elas venham um dia a ser ouvidas por esses irmãos divididos e atormentados, e primeiramente pelos responsáveis políticos.

Em seguida, não queria dirigir-me à sede das Nações Unidas, em Nova Iorque, sem procurar cumprir o meu encargo pastoral tomando contacto com a Igreja e a sociedade dos Estados Unidos da América, visitando, ao menos rapidamente, as populações dalgumas cidades ou terras prestigiosas. Muito apreciei o acolhimento que me reservaram essas multidões, de católicos sem dúvida mas também das outras confissões ou religiões, e estimei quando merecia o gesto sem precedentes do Presidente Carter e do Governo, que me convidaram a ir à Casa Branca. Presto homenagem aos responsáveis políticos que sabem promover encontros com os responsáveis espirituais para bem da paz.

Por último, na minha recente viagem à Turquia, encontrei igualmente compreensão nas Autoridades turcas, embora quase todos os cidadãos sejam lá da religião muçulmana e o Estado tenha escolhido manter-se em neutralidade quanto às religiões, separando claramente assuntos religiosos e atitudes políticas. Se bem que a minha visita tenha sido motivada sobretudo pelo desejo de me encontrar com o Patriarca de Constantinopla, Sua Santidade Dimítrios I, com finalidade ecuménica, e ainda de me encontrar com as outras comunidades cristãs, em particular com a dos arménios, eu alimentava também o desejo de promover laços de amizade com o país e as populações turcas, em particular as pessoas dos governantes. Era também ocasião para reafirmar os grandes princípios do Concílio Vaticano II no que se refere aos contactos com as religiões não cristãs, especialmente com o Islão.

Todas estas visitas, Excelências, pretenderam servir a causa da paz, e esta é a razão por que me permiti evocá-las diante de vós. Por certo, elas mantêm-se inteiramente ao serviço das finalidades religiosas, pastorais e ecuménicas; mas, ao mesmo tempo, levando o Papa a diversos pontos do globo, criam a ocasião de encontros com sociedades, realidades e mesmo sistemas políticos diferentíssimos. Mas como não se há-de reconhecer que elas favorecem a aproximação? Porque nisto está também um papel da Igreja que deseja unir e deseja servir a fraternidade dos homens e dos povos, ultrapassando o que os separa e por vezes os opõe.

3. Foi a esta missão de paz que se consagrou muito especialmente a minha visita à Organização das Nações Unidas. Os esforços contínuos da Santa Sé, para assegurar e reforçar a paz no mundo, encontraram nessa visita expressão suplementar. Não se tratava somente de fazer uma declaração ou enviar uma mensagem, mas de aprofundar a busca dos fundamentos mesmos da paz entre as nações, entre os países e entre os sistemas, seguindo a linha das encíclicas Pacem in terris e Populorum progressio, prolongando a actividade de João XXIII e Paulo VI.

A Igreja tem, de facto, método próprio de encarar os problemas da paz, método em correspondência com a sua missão doutrinal e pastoral, e quis encontrar expressão sintética no discurso A. ONU, como também na mensagem anual para o 1° de Janeiro, centrada este ano no tema «A verdade, força da paz», e em geral na atitude e nas actividades da Sé Apostólica.

Em Nova Iorque, para mim como para o meu predecessor Paulo VI, o encontro do Papa, chefe de uma comunidade espiritual universal, com os representantes de quase todos os países do mundo, foi ocasião única no género, que revestiu significado excepcional. Manifesta, como disse, que «a Organização das Nações Unidas aceita e respeita a dimensão religiosa e moral dos problemas humanos de que a Igreja se ocupa em virtude da mensagem de verdade e de amor que deve levar ao mundo» (Discurso à ONU, n. 5). Por seu lado, a Igreja interessa-se profundamente pelos ideais que tem em vista esta Organização; ao garantir direitos iguais a todos os homens e a todas as mulheres, como a todas as nações grandes e pequenas, quer ajudá-las a respeitarem-se e a colaborarem. Sim, a Igreja muito aprecia os esforços da ONU para estabelecer a cooperação pacífica entre essas nações. Vendo nesta Organização, mesmo com as suas imperfeições ou fraquezas, «o caminho obrigatório da civilização moderna e da paz mundial», como o dissera Paulo VI, a Igreja deseja-lhe que sempre encontre, mais e mais, os métodos e os meios adequados a um fim tão importante, e que veja reconhecida e respeitada em toda a parte a autoridade que lhe é necessária para levar a termo a própria tarefa ao serviço de todos. O bem comum, que lhe pertence promover, ultrapassa naturalmente os interesses particulares de cada nação.

Os problemas que surgem de facto, na hora presente, não deixam de ser preocupastes: seja o da proliferação ruinosa e perigosa dos armamentos por toda a parte no mundo; seja o das lutas armadas em certos pontos quentes da Ásia, entre outros a situação no Afeganistão, em vizinhança imediata com a Nação Iraniana.

Sim, perante factos dramáticos que se estão a dar no Afeganistão e mantêm suspensa a opinião pública do mundo inteiro ou quase, é impossível não nos interrogarmos sobre os motivos que podem desencadear acontecimentos tão graves e tão ameaçadores para a acalmia internacional. Aconteça o que acontecer, é acaso verdadeiramente possível considerar apenas o problema de uma região, separando-o do contexto de um conjunto completo a que ele anda ligado? Nem a todos está claro, mas não é de maneira especialmente grave aos que têm os maiores poderes, que vêm a tocar ainda as mais pesadas responsabilidades? É o que digo, dentro da minha missão espiritual, para reforçar nuns e noutros a consciência das exigências fundamentais da vida pacífica internacional: primeiramente o respeito da independência de cada país e o direito dos povos a serem árbitros dos próprios destinos, segundo os sentimentos patrióticos e religiosos que têm. Digo isto para defender as populações que sofrem sempre as consequências dos agravamentos dos conflitos. Digo isto para solicitar, como fiz na mensagem para o 1º de Janeiro, um acréscimo de verdade e de justiça. Tudo vale aliás para outros pontos quentes da Ásia. A minha solicitude e a minha simpatia dirigem-se em particular para o povo do Irão, cuja gloriosa história e tradições humanitárias são universalmente conhecidas: nós todos desejamos-lhe que vença as dificuldades actuais, e formulo os melhores votos pela sua vida, tranquilidade e progresso.

Os outros continentes não ficam porém esquecidos. Penso também nas relações pacíficas dos Estados americanos, a cuja Organização tive a honra de dirigir a palavra na altura da minha visita à ONU. Também não queria que o vasto continente africano se mantivesse fora da solicitude da família humana, sob pretexto de se encontrarem hoje fora dele grandes interesses económicos. A Africa conheceu e conhece ainda tremendas oposições fratricidas, de que às vezes certas potências parecem querer tirar proveito; Mas ela pode também vencê-las e estabelecer acordos positivos, como aquele que foi objecto de esforços em Zimbábue-Rodésia. Muitas vezes com meios limitados, vai a Africa envidando esforços pacientes no campo do desenvolvimento; deve continuar o seu caminho na paz, recebendo ajuda mútua desinteressada que respeite o seu génio próprio e as qualidades humanas e espirituais das suas civilizações. No decorrer do ano passado, tive o gosto de receber pessoalmente aqui vários chefes de Estado deste continente.

4. Qual é então o princípio que inspira a Sé Apostólica quando se dirige aos homens políticos ou se ocupa de coisas políticas? Uma frase do Concílio Vaticano II bem o pode resumir: «A Igreja que, por causa da sua missão e competência, de modo algum se confunde com a sociedade, nem está ligada a qualquer sistema político determinado, é ao mesmo tempo o sinal e a salvaguarda da transcendência da pessoa humana» ( Const. Gaudium et spes GS 78, par. 2). Eis um dos princípios que estão na base da minha primeira encíclica Redemptor hominis (Cfr. Redemptor hominis RH 13).

É certo que o bem comum de uma sociedade e de uma nação deve promover-se de muitos modos, como o conjunto das condições sociais permite o desenvolvimento dos grupos e das pessoas, e este bem comum toma uma extensão cada vez mais universal. «Simultaneamente aumenta, porém, a consciência da eminente dignidade da pessoa humana, por ser superior a todas as coisas e os seus direitos e deveres serem universais e invioláveis» (Const. Gaudium et spes GS 26, par. 2). 0 prólogo da Carta das Nações Unidas reafirma «a fé (dos povos signatários) nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana». O que a sabedoria das nações reconhece, a Igreja tem razões especiais e profundíssimas para o testemunhar e lhe garantir a salvaguarda, pois Cristo uniu-se a todo o homem e a Sua solicitude, por cada homem que remiu, tornou-se a solicitude da Igreja: «Não pode ficar insensível a tudo o que serve ao bem verdadeiro do homem, como não pode ficar indiferente ao que o ameaça» (Encíclica Redemptor hominis RH 13). Eis a razão por que, nesta encíclica como no discurso às Nações Unidas, insisti nos direitos do homem e mencionei certo número deles (Cfr. Discurso à ONU, n. 13); o conjunto dos direitos do homem corresponde, de facto, à substância da dignidade do ser humano, compreendido na sua integridade e não reduzido a uma dimensão só. E muitas vezes tive ocasião de voltar a este assunto capital.

E é ainda necessário conceber estes direitos no justo significado que têm. O direito à liberdade, por exemplo, não inclui evidentemente o direito ao mal moral, como se pudéssemos reclamar, entre outros, o direito de suprimir a vida humana, como no aborto, ou na liberdade de usar cada um coisas nocivas para si ou para os outros. Da mesma maneira não se deveria tratar dos direitos do homem sem considerar também os deveres que lhes são correlativos, os quais traduzem precisamente a própria responsabilidade de cada um e o seu respeito pelos direitos dos outros e da comunidade.

Seja-nos ainda permitido voltar a um dos direitos humanos fundamentais, evidentemente muito estimado pela Igreja: o da liberdade de consciência e de religião. Quantas vezes não lançou já a Santa Sé apelos, alguns dramáticos, em favor das pessoas, dos grupos e das Igrejas, quando há privação do direito fundamental de professar a própria fé de maneira pessoal e comunitária! Lembrei-o solenemente diante da Organização das Nações Unidas (Cfr. Discurso à ONU, n. 20).

A Santa Sé considera dever seu dirigir-se, a este propósito, às Autoridades de todos os Estados, do mesmo modo que às Organizações internacionais. Ainda hoje são numerosos, é certo, os casos de verdadeira violação da liberdade religiosa, quaisquer que sejam as explicações aduzidas, e eu recebo com frequência provas disso. A Santa Sé pensa igualmente terem as comunidades religiosas título particular para erguer a voz quando se trata de formular as aplicações concretas do princípio da liberdade religiosa, ou de velar pela execução prática dessas.

5. Mas voltemos agora ao objecto da presente reunião, que é marcar o princípio de um ano novo, e mesmo de um decénio novo. Passo pois, finalmente, aos votos fervorosos que me empenho em vos apresentar. Dado o carácter universal da Santa Sé e dada também a universalidade do amor de Cristo — de que eu, primeiro que todos, tenho obrigação de dar testemunho, apesar da minha indignidade — ouso dizer que os meus votos se dirigem a toda a família humana, a todos os povos e a todas as comunidades políticas, nacionais e internacionais, particularmente às nações e aos seus Governos que estão aqui representados. Deus lhes conceda a todos avançarem na paz e na verdade, o que é condição de paz, avançarem para situações mais felizes e mais justas, graças a um processo constante, material, social e moral.

O nosso pensamento comum volta-se especialmente para cada um dos países que sofrem, hoje mesmo, a provação de conflitos armados, ou estão ainda sob o choque de uma prostração indescritível, como a Camboja.

Os meus votos dirigem-se a categorias de pessoas que são objecto de uma atenção particular a nível internacional. Oxalá; em particular, as crianças dos diferentes países continuem a beneficiar da solicitude que lhes procurou o Ano da Criança.

Em numerosos países, sofrem já tragicamente estas crianças a fome; e com elas sofre grande número de adultos. Que irá acontecer com as gerações de amanhã? Actualmente, a situação alimentar mundial apresenta-se muito grave. Convidado amavelmente pelo Director-Geral, defendi a repartição mais equitativa dos produtos alimentares. Mas os planos gerais, que deveriam atenuar a carência presente e a futura, encontram-se comprometidos por muitos obstáculos, que dependem menos das possibilidades da natureza do que da culpa dos próprios homens: do descuido a que votam este problema, da falta de solidariedade e do mau emprego dos recursos existentes. Todavia este problema deveria mobilizar os homens e fazer convergir os esforços de todos. Em vez disto, que ingentes somas se consagram a multiplicar os armamentos e engenhos de morte! Quantas incoerências nas permutas comerciais! Quantas energias desperdiçadas em lutas ideológicas, em políticas de prestígio e de poder! Mas poder para quem? Para quê? Para que bem comum? As gerações vindoiras hão-de pedir-nos contas. Deus já no-las pede. Oxalá, Excelências, nós — que estamos reunidos hoje neste lugar, símbolo da paz e da caridade — contribuamos com todos os nossos meios para que a realidade angustiosa da fome dos nossos irmãos tome lugar de primazia nas políticas dos nossos países.

Senhoras, Senhores, os meus últimos votos referir-se-ão a vós mesmos, às vossas pessoas e às vossas famílias. Espero encontreis muitas satisfações nos vossos encargos como Embaixadores junto da Santa Sé, que são encargos «sui generis». Deus vos encha de alegria e de paz.




Discursos João Paulo II 1980 - Segunda-feira, 7 de Janeiro de 1980