Discursos João Paulo II 1980

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS SÓCIOS DA FUNDAÇÃO «LUCIANO RE CECCONI


Segunda-feira, 28 de Janeiro de 1980



Caros Sócios da Fundação "Luciano Re Cecconi"

Agradeço-vos esta visita, com que desejastes demonstrar-me os vossos sentimentos, quer de cristãos quer de sócios desta benemérita Fundação. Apraz-me que ela, nascida recentemente em memória do conhecido e jovem jogador de futebol, queira contribuir "para a eliminação de todas as formas — físicas e ideológicas — de violência, e trabalhar para o desenvolvimento da consciência na afirmação dos princípios de liberdade, fraternidade e justiça social", como bem afirma o vosso Estatuto de fundação.

Louvo este compromisso programático, cujo valor humano e cristão se impõe ao respeito de todos os que se preocupam com o verdadeiro bem dos homens e da sua tranquila convivência civil. Evidentemente não posso aprofundar agora a análise pormenorizada de todos os elementos que formam o triste fenómeno da violência em geral e em particular da violência exercida nas manifestações desportivas; não quero todavia deixar de vos fazer uma recomendação. É esta: ao pordes em prática as finalidades da vossa Associação, deixai-vos guiar sempre, como orientação de base, pelos ensinamentos do magistério da Igreja. Procurai conhecer as directrizes do Concilio Vaticano II e as indicações das Encíclicas e das alocuções pontifícias, que ajudam a compreender, avaliar e evitar tantos fenómenos obscuros que ensanguentam os campos desportivos nesta nossa sociedade, que hoje vive sob o pesadelo da violência.

Demasiado frequentemente esquece-se que toda a actividade humana, e de modo particular a actividade desportiva, não pode prescindir da ordem moral: esta, bem longe de diminuir ou empobrecer a actividade desportiva, fá-la, pelo contrário, tornar-se maior, e enriquece-a com actuações de incomparável prestígio. O desporto, de facto, tem como finalidade o homem, o homem todo, na sua dimensão corporal e na dimensão espiritual. A agonística é importante, precisamente porque representa um momento de libertação do peso do dia, do trabalho exaustivo ou monótono, das ocupações e preocupações da vida, e ao mesmo tempo é um momento de recreação e realização de nós mesmos no modo que melhor corresponde às capacidades e às aspirações de cada um.

Estas finalidades, essenciais a todos os desportos, devem igualmente informar o desporto profissional que, sendo praticado não tanto para divertimento do jogador quanto para divertir os espectadores, se transforma em espectáculo e está mais exposto às tentações da violência. Infelizmente é precisamente nestes "espectáculos" que o sentido do desporto é desviado para finalidades estranhas ou até mesmo contrárias à sua mesma natureza. Então ele é explorado para outros fins e, o que é pior, apresenta-se algumas vezes com tais manifestações para dar largas às ignóbeis paixões do ódio, da rivalidade e da vingança, transformando assim lugares e momentos de divertimento, de alegria e serenidade, em lugares e momentos de susto, de terror e luto.

Recordemos que a violência é sempre uma ofensa, um insulto ao homem, quer de quem a faz quer de quem a recebe. Mas a violência é um contra-senso, um absurdo monstruoso quando é posta em acto por ocasião das manifestações desportivas, nos estádios ou noutro lugar, porque o desporto tem por finalidade a alegria e não o terror, o divertimento e não o susto, a solidariedade e não o ódio, a fraternidade e não a divisão.

A violência é ofensa ao homem, mas é sobretudo ofensa ao cristão, porque o cristão reconhece sempre em todos os homens irmãos e nunca inimigos. Para o cristão, todos os lugares e todos os tempos são momentos propícios para exprimirem os próprios sentimentos de fraternidade e solidariedade para com os outros. Mas isto vale em particular para os momentos e para os lugares onde se exerce a actividade desportiva, porque esta já em si mesma é destinada a promover sentimentos de solidariedade, de fraternidade, de amor, de alegria e de paz.

Caros Irmãos, este encontro com o Papa seja realmente para vós ocasião providencial para dar uma orientação decididamente cristã à vossa vida e à vossa obra. Oxalá ele coloque novamente na sua justa perspectiva aqueles valores que são os únicos a darem significado, dignidade e finalidade à vossa existência: o amor a Deus acima de tudo, e depois o amor generoso para com os irmãos, especialmente pelos mais provados. A este propósito, é-me grato o gesto de solidariedade que realizastes em favor dos prófugos cambojanos.

Peço ao Senhor que este momento de graça seja fecundo de frutos duradouros para as vossas almas e para a actividade da Associação a que pertenceis.

Torno extensivos, a minha cordial saudação e o meu apreço pela vossa presença, aos Directores e aos Jogadores das duas equipas desportivas romanas "a Roma" e "a Lácio". A todos concedo de coração a minha Bênção.



MENSAGEM DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS BISPOS NORTE-AMERICANOS




Caros Irmãos em Nosso Senhor Jesus Cristo

É com grande esperança e grande entusiasmo que envio as minhas saudações a todos vós aí reunidos em Dallas. Essa importante sede de trabalhos, o Centro de investigação Médico-Moral e de Educação, patrocinado pelo Papa João XXIII. e generosamente sustentado pelos Cavaleiros de Colombo, é esplêndida iniciativa ao serviço da verdade e da pessoa humana. Reunirem-se em tão grande número Bispos dos Estados Unidos e do Canadá, manifesta a consciência das vossas responsabilidades pastorais como mestres autênticos do povo de Deus, que está chamado a viver a vida cristã no mundo moderno.

O tema das vossas deliberações, "As novas tecnologias do nascimento e da morte", gira à volta de questões complexas e melindrosas de ética médica que se apresentam à Igreja e a toda a sociedade. Tive ocasião, na encíclica Redemptor Hominis (Redemptor Hominis RH 15) de fazer a seguinte declaração: "O progresso da técnica e o desenvolvimento da civilização do nosso tempo, que é marcado aliás pelo predomínio da técnica, exigem proporcional desenvolvimento também da vida moral e da ética. E, no entanto, este último infelizmente parece ficar sempre atrasado".

Nos vossos esforços conjuntos aí em Dallas, estais-vos zelosamente fazendo eco dos sentimentos do meu coração expressos em Outubro passado, em Washington, D.C.: "Não hesito em proclamar diante de vós e diante do mundo que toda a vida humana — desde o momento da concepção e durante todos os estádios sucessivos — é sagrada, porque a vida humana é criada à imagem e semelhança de Deus". A nossa missão é proclamar cada vez mais eficientemente a sacralidade da vida humana. Mas para o fazermos, devemos compreender as novas oportunidades e as novas ameaças que apresenta à pessoa humana cada nova tecnologia. Neste momento importante da história, sois chamados, como Bispos, a oferecer oportunas directrizes examinando novas questões à luz da Palavra eterna de Deus e com o auxílio oferecido pelo magistério da Igreja. Neste contexto, as vossas reflexões — iluminadas por médicos, teólogos e advogados, que generosamente oferecem os seus conhecimentos e experiências nessa sede de trabalhos ajudarão a contribuirdes para esse "proporcional desenvolvimento da vida moral e da ética" que a situação contemporânea tão seriamente exige.

Caros Irmãos: trata-se de um contributo, importante e vital, do serviço da Igreja de Jesus Cristo oferecido aos homens e às mulheres dos nossos dias.

Abençoe, o Senhor, o Centro do Papa João no desejo e obrigação que tem de estar ao serviço do Magistério da Igreja e da causa da humanidade. E dirija o Espírito Santo as vossas inteligências e os vossos corações, para entrardes mais profundamente nos mistérios da sua divina sabedoria e ficardes ainda mais inflamados no seu amor.

A todos os que estão esperando este encontro, e a todos os que ajudaram a torná-lo possível, concedo de coração a minha Bênção Apostólica: em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Amen.



                                                            Fevereiro de 1980



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


À COMUNIDADE AFRICANA EM ROMA


Sábado, 2 de Fevereiro de 1980



Senhor Cardeal
Excelências
Senhoras, Senhores
Caros amigos

Sois bem-vindos. Conheço a hospitalidade africana, tão cordial e generosa. Hoje, sois vós meus hóspedes. Oxalá vos sintais felizes, à vontade, como em vossas casas, nesta casa que deseja ser acolhedora para o universo inteiro, acolhedora como o coração de Cristo a quem sirvo.

1. Agradeço ao vosso digno intérprete as suas palavras cheias de delicadeza e sabedoria. E sinto-me comovido com o desejo, que bom número dentre vós manifestou, de um encontro comigo. Para dizer a verdade, viestes vós ao encontro da minha própria vontade. Há muito desejava eu reservar algum tempo e alguns contactos, se não para tal ou tal país africano — eles são bem numerosos —, ao menos para o conjunto dos filhos deste grande continente que residem em Roma.

Saúdo-vos portanto muito cordialmente na diversidade das vossas funções, na diversidade dos povos, das etnias e nas comunidades religiosas que representais. Os Chefes das Missões diplomáticas acreditadas junto da Santa Sé estão já familiarizados com esta casa, e tenho a satisfação de saudar hoje, ao lado deles, todos os seus colaboradores e o pessoal das suas Embaixadas. Depois há os diplomatas das outras Embaixadas junto da Itália, os peritos das missões junto da FAO ou doutros organismos internacionais, e todos quantos o trabalho próprio ou os estudos fixaram por algum tempo em Roma, com as suas famílias. Reservo lugar à parte para os sacerdotes, seminaristas, religiosas, catequistas e leigos que prosseguem aqui a sua formação cristã — eclesiástica, religiosa ou apostólica: possuem titulo especial para se reunirem também à volta do Papa. A todos, obrigado pela vossa visita.

Certamente, não tendes todos as mesmas convicções religiosas; a história, as tradições e a filiação étnica imprimiram em vós características bastante diversas. Não se trata, para vós, de ignorar essas diferenças, mas bem mais de vos reconhecerdes como sois, de vos respeitardes, de vos quererdes bem, de praticardes certa solidariedade, e sobretudo de descobrirdes as linhas convergentes das vossas riquezas morais e dos vossos projectos, capazes de assegurarem hoje e amanhã a felicidade duradoura, o progresso humano e espiritual dos Africanos

2. Primeiramente, desejo a cada um de vós, a cada um dos vossos lares, que encontre aqui, em Roma, as condições da sua expansão. Ainda que a população seja aqui familiar e acolhedora, há sempre, como para qualquer colónia estrangeira, uma expatriação que tem de vencer-se quanto a hábitos e à língua. Espero que nenhuma família africana se veja isolada, mas que vós tenhais ocasião de travar, com os romanos que vos recebem, e primeiro entre vós mesmos, relações amigáveis, ocasião de organizar encontros, de vos ajudardes uns aos outros como é preciso, seguindo a linha da solidariedade africana que não põe de lado nenhum dos parentes ou amigos. Desejo também, pelo que diz respeito aos cristãos, que chegueis sempre a estabelecer os laços necessários com uma comunidade cristã paroquial ou outra, a fim de que possais alimentar a vossa fé, desenvolvê-la e dar dela testemunho. Com efeito, longe de ser parêntesis na vossa vida espiritual, a vossa estadia romana deveria dar-lhe nova dimensão, graças aos testemunhos da fé que estão inscritos na história e na arte desta cidade, ou são vividos hoje pelas pessoas e pelas instituições católicas. Os meus votos tornam-se calorosos de modo especial quanto aos vossos filhos, tão naturalmente transbordantes de alegria e vitalidade, desejando que eles beneficiem do que é essencial neste período importante da sua formação.

3. Mas vós trazeis convosco, ou deveis trazer, cuidados que ultrapassam o ambiente das vossas pessoas e das famílias. Muitos dentre vós estão aqui ao serviço dos seus países, delegados por eles para missões de diplomatas ou de peritos. Muitos vêm preparar-se para melhor os servir, para melhor servir a África, depois de uma formação teológica ou pastoral completada em institutos romanos de educação católica. Que posso ambicionar para todos e cada um dos vossos países, para o conjunto do continente africano? Os meus votos resumem-se numa frase: que os vossos povos saibam assumir as mutações muitas vezes aceleradas, que lhes são necessárias ou impostas pelas circunstâncias, com o máximo de sabedoria e de humanidade, salvaguardando o desenvolvimento, mesmo purificando talvez, os valores autênticos da alma africana.

4. Para todo o continente africano, trata-se agora de uma passagem que é ao mesmo tempo repleta de esperança e cheia de ciladas. Os vossos países abrem-se, por própria escolha, às possibilidades do desenvolvimento da ciência, da técnica e da instrução, e a muitas influências externas. Mas o progresso, que de tudo isso pode e deve resultar, multiplicando os bens materiais e o saber, fica muito desigual, segundo as possibilidades dos países e a ajuda mútua de que dispõem; e é acompanhado de certo número de fenómenos que se torna difícil dominar para os constituir verdadeiramente humanos: transformação da economia rural, industrialização com carácter mais mecânico do trabalho, urbanização em massa com o desenraizamento e o anonimato que afectam os subúrbios das grandes metrópoles, bom número de jovens instruídos que se tornam mais alérgicos ao trabalho manual e se vêem sem empregos correspondentes às suas habilitações... Há risco de materialismo (Cfr. Encíclica Populorum progressio PP 41), de individualismo, de desagregação da família, de enfraquecimento dos valores morais e espirituais, que se opõem à visão espiritual e ao sentido da solidariedade, tão enraizados na alma africana. O próprio Ocidente, por exemplo, bem preciso é reconhecê-lo, nem sempre soube nem sabe agora viver de maneira satisfatória esta mutação fatal. Desejo de todo o coração que a África o consiga, com o seu génio próprio.

5. A tarefa é mais delicada porque certo número de países africanos tem dificuldades especiais. As lutas ideológicas, muitas vezes importadas, penetraram certos sectores. A discriminação racial desenvolveu-se sem limites em certas regiões, atraiu os olhares e a condenação da opinião pública internacional, e motivou reacções corajosas dos Bispos e mesmo da Santa Sé. Se recordo essas coisas, é para sublinhar a urgência do trabalho que devem realizar os próprios Africanos, com o sentido cívico conveniente, o sentido do serviço nacional. Mas realizações actuais de acordos, de "modus vivendi" equitativos, de sistemas políticos e sociais autenticamente democráticos, mostram que é possível, apesar dos pesos mortos e das dificuldades encontradas, unir as forças vivas para construir nações sólidas, que se distingam pela humanidade da própria civilização.

6. Estas esperanças mais fundadas são por a alma africana ter recursos que importa salvaguardar, desenvolver, direi mesmo, libertar. O meu predecessor Paulo VI disto se fez eco na mensagem ao episcopado e a todos os povos da Africa, a 29 de Outubro de 1967, e várias outras vezes durante o seu pontificado, em especial por ocasião da viagem ao Uganda. Bastante espontaneamente, liga o Africano a sua vida ao mundo do invisível, reconhece a omnipresença de Deus, fonte da vida, e facilmente se dirige a Ele. Tem o sentido da dignidade do homem e o respeito da vida humana. O filho é para ele uma bênção. Sob a autoridade dos pais, a família desempenha grande papel, não só de protecção, mas também de iniciação nas coisas da vida e na solidariedade vivida. E a participação na vida comunitária, concebida como alargamento da família, é tendência natural. Não preciso de me alongar evocando estes valores tradicionais que vos são familiares. O desenvolvimento de tais valores, religiosos e morais, concorreu em grande escala para o êxito das vossas civilizações, em feliz síntese do antigo e do novo.

7. Certamente, estas tendências atávicas precisam, como em todos os outros continentes — na Europa, na América e na Ásia — de ser libertadas dos limites que elas terão comportado na prática. É o que, de um ponto de vista cristão, chamamos evangelização das culturas. Para nós, o Evangelho de Jesus Cristo; a sua "Boa Nova", não vem substituir-se a essas tradições mas vem iluminá-las, fortificar o que elas têm de bom, purificá-las dos contravalores com que o pecado as embacia, vem enriquecer essas culturas ajudando-as a ultrapassar os lados deficientes ou mesmo desumanos que nelas existem e comunicando, aos seus valores legítimos, a plenitude de Cristo" (Exortação apostólica Catechesi tradendae CTR 53). É isto verdade do sentido de Deus, cuja paternidade Jesus nos revela num sentido inaudito. É verdade da família, que se trata de fortificar nos novos contextos sociais: em Nairobi, em 1978, a Assembleia dos Bispos africanos debruçou-se sobre este problema, e o próximo Sínodo dos Bispos dele se ocupará de maneira muito especial. É verdade ainda do sentido da solidariedade que deve conduzir a novo ajuste e a colaboração dilatada, dentro do respeito pelas pessoas e de uma liberdade bem compreendida.

Ajudar a salvar a alma africana é o que a Igreja desejaria preparar nos institutos de formação teológica e pastoral que frequentam os Africanos em Roma ou na África. É o que ela desejaria realizar lá mesmo, na África, pela catequese, a educação e o testemunho de múltiplas comunidades. Sabe que outras grandes religiões concorrem também, neste continente, para levar a que se vivam as realidades humanas numa perspectiva fraterna e espiritual. Quer dizer que ela compreende a urgência de um diálogo entre essas grandes religiões, mesmo de uma colaboração prática que respeite o carácter próprio da fé.

Nestas condições, os países africanos poderão trazer, para o concerto das nações, o seu contributo original, que será preciosissimo porque marcado pelos valores próprios de que falámos. A mesma Igreja universal muito conta enriquecer-se com o testemunho das comunidades cristãs africanas, e na mesma medida cantam os países que, ainda ontem, a estas levavam o Evangelho.

8. Reciprocamente, é normal e desejável, como o vosso intérprete sublinhou, que padres, religiosos e leigos missionários doutros continentes continuem a ajudar as forças vivas da África, ainda bem pouco numerosas em relação com as necessidades religiosas, e colaborem em especial, de maneira desinteressada, com o clero local que tomou a responsabilidade. A perspectiva aberta pelo meu venerável predecessor Pio XII na encíclica Fidei donum continua mais que nunca a valer e não deixarei de o recordar. A Igreja de hoje deve ser educada para esta partilha fraterna.

9. Aos estudantes das Faculdades eclesiásticas tive já ocasião de expressar os meus votos. Quanto aos leigos que estão actualmente em missão em Roma ou aqui exercem a profissão, apresento ainda votos fervorosos para animá-los a porem em prática, segundo as possibilidades, os ideais sem que o nosso mundo não conseguirá viver em paz: o desenvolvimento dos recursos, alimentares e outros, a distribuição deles, o estabelecimento de relações justas, a salvaguarda dos direitos do homem e a promoção da solidariedade necessária entre os povos.

Por fim, vós adivinhais o meu desejo de visitar pessoalmente a África, como comecei a fazer com a Europa e a América. O problema está em que o vosso continente encerra grande número de nações — representais aqui 31 —, nações que têm uma a uma os seus méritos e títulos especiais para atraírem a visita do Papa. Ver-me-ei obrigado, num primeiro tempo, a limitar a minha viagem a alguns países. Mas, por meio deles, é a Africa inteira que eu desejo honrar e animar, como hoje o faço. E posso desde já anunciar-vos que, neste mesmo ano, tenho em vista realizar essa viagem.

Agora, vou deixar-vos por hoje. Mas não sem pedir a Deus que vos inspire, vos acompanhe e vos encha das Suas bênçãos: a vós, às vossas famílias e aos vossos compatriotas, a todos os que vos são queridos. Deus guie sempre os Africanos pelo caminho da felicidade, da paz!



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AO TRIBUNAL DA SAGRADA ROTA ROMANA


4 de Fevereiro de 1980



O ver-vos à minha volta, dilectos filhos, reunidos para a inauguração do novo ano judicial, é para o meu espírito um motivo de alegria e de conforto, como o é, de igual modo, ter escutado do vosso digníssimo Decano, Monsenhor Heinrich Ewers, a confirmação dos vossos sentimentos de comum gratidão. Também eu vos agradeço do coração e vos confirmo os sentimentos de benevolência, que manifestei já a cada um de vós na visita a que se referiu o Monsenhor Decano

1. O dia oito de Dezembro passado, como sabeis, tornei pública a minha mensagem para a celebração do XIII Dia Mundial da Paz, cujo conteúdo se compendia nestas palavras: «A verdade, força da paz». Gostaria de me demorar convosco, nesta ocasião, desenvolvendo um aspecto particular do mesmo tema, que tem estreita relação com o vosso ministério.

A verdade não se torna força da paz senão através da justiça.A Sagrada escritura, falando dos tempos messiânicos, assevera por um lado que a justiça é fonte e companheira da paz: nos seus dias florirá a justiça e a abundância da paz (Ps 72,7), e por outro, sublinha repetidamente o vínculo que associa a verdade à justiça: Da terra brotará a verdade, do céu há-de olhar a justiça (Ps 85,12) e ainda: Governará a terra com justiça e os povos com a sua verdade (Ps 96,13). Inspirando-se nestes e noutros textos dos Livros sagrados, teólogos e canonistas, quer medievais quer modernos, chegam a afirmar que a justiça tem, frente à verdade, uma relação de dependência: «Veritas — afirma um famoso axioma canonista — est basis, fundamentum seu mater iustitiae» (A. Barbosa, De Axiomatibus Iuris usufrequentiorbus, Axioma 224, Veritas, in Tractatus varii, Lugduni 1678, p. 136.); e de igual modo se expressaram os teólogos, com São Tomás à frente (Summa Theologica, p. I 21,2, c.), cujo pensamento Pio XII sintetizou, afirmando com vigor que «a verdade é a lei da justiça», e comentando depois: «O mundo tem necessidade da verdade que é justiça, e da justiça que é verdade» (Alocução à Sagrada Rota Romana, 1 de Outubro de 1942, AAS 34, 1942, 342, n. 5).

2. Referindo-me ao vosso próprio campo, em todos os processos eclesiásticos a verdade deve ser sempre, do início até à sentença, fundamento, mãe e lei da justiça. E dado que o objecto prevalente da vossa actividade é «a nulidade do vínculo matrimonial» — como o afirmou há pouco Monsenhor Decano —, pareceu-me oportuno dedicar, neste nosso encontro, algumas reflexões aos processos de nulidade matrimonial.

O fim imediato destes processos é o de averiguar a existência ou não dos factos que, por lei natural, divina ou eclesiástica, invalidam o matrimónio, de tal modo que se possa chegar A. emanação de uma sentença verdadeira e justa acerca da asseverada não existência do vínculo conjugal.

O juiz canónico deve, por isso, estabelecer se o matrimónio celebrado foi um verdadeiro matrimónio. Ele é portanto, legado da verdade, a qual procura indagar com empenho, humildade e caridade.

Esta verdade «tornará livres» (Cfr. Jn 8,32) aqueles que se dirigem à Igreja, angustiados por situações dolorosas, e sobretudo pela dúvida acerca da existência ou não daquela realidade dinâmica e que envolve toda a personalidade de dois seres — o vínculo matrimonial.

Para limitar ao máximo as margens de erro no cumprimento de um serviço tão precioso e delicado, como é o que vós desenvolveis, a Igreja elaborou um processo que, na intenção de averiguar a verdade objectiva, assegure, por um lado, à pessoa as maiores garantias na defesa das próprias razões e, por outro, respeite coerentemente o mandamento divino: Quo Deus coniunxit, homo non separet — Não separe o homem o que Deus uniu (Mc 10,3).

3. Todos os actos do processo eclesiástico, desde o libelo até à escritura de defesa, podem e devem ser fonte de verdade; mas, de modo especial, devem sê-lo os «actos da causa», e, entre estes, os «actos da instrução», pois têm como fim específico o de recolher as provas sobre a verdade do facto em causa, a fim de que o Juiz possa, sobre tal fundamento, pronunciar uma sentença justa.

Para este fim, e citados pelo Juiz, comparecerão, para serem interrogadas, as partes, as testemunhas e, eventualmente os peritos. O juramento de dizerem a verdade, pedido a todas estas pessoas, está em perfeita coerência com a finalidade da instrução: não se trata de criar um acontecimento que nunca existiu, mas sim de pôr em evidência e fazer valer um facto verificado no passado e que talvez ainda perdure no presente. Cada uma destas pessoas dirá, com certeza, a «sua» verdade, que será, por norma, a verdade objectiva ou parte dela frequentemente considerada de diferentes pontos de vista, pintada com cores do próprio temperamento, talvez com alguma distorção ou mesmo misturada com erro; mas, em todo o caso, todos devem agir lealmente, sem traírem a verdade que crêem ser objectiva, nem a própria consciência.

4. Alexandre II- observava no século XII «Saepe contingit quod testes, corrupti praetio, facile inducantur ad falsum testimonium proferendum» (C. 10, X, De praesumptionibus, II, 23; ed. Richter-Friedberg, II, 335). Infelizmente, também hoje as testemunhas não estão imunes da possibilidade de prevaricar. Por isso Pio XII, na alocução de unidade de fim e de acção nas causas matrimoniais, exortava não apenas as testemunhas, mas também todos os que participam no processo, a não se afastarem da verdade: «Que nunca aconteça que nas causas matrimoniais, perante os tribunais eclesiásticos, se verifiquem enganos, perjuros, subornos ou fraudes de qualquer espécie!» (Alocução à Sagrada Rota Romana, 2 de Outubro de 1944, AAS 36, 1944, 22).

Se isto acontecesse, os actos da instrução não seriam, de certo, fontes límpidas de verdade, que poderiam levar os juízes, apesar da sua integridade moral .e do seu esforço para descobrir a verdade, a errar ao pronunciar a sentença.

5. Acabada a instrução, começa para cada um dos juízes, que deverão definir a causa, a fase mais empenhativa e delicada do processo. Cada um deve chegar, se possível, à certeza moral do facto, pois que esta certeza é requisito indispensável para que o Juiz possa pronunciar a sentença: primeiro, por assim dizer, no seu coração, depois dando o seu sufrágio na assembleia do colégio judicial.

O juiz deve alcançar tal certeza «ex actis et probatis». Antes de mais «ex actis», pois se deve presumir que os actos sejam fonte de verdade. Por isso o Juiz, seguindo as normas de Inocêncio III, adebet universa rimari» («Iudex... usque ad prolationem sententiae debet universa rimari», c. 10, X, De fide instrumentorum, II, 22; ed. Richter-Friedberg, II, 352) , isto é, deve indagar acuradamente os actos, sem que nada lhe fuja. depois «ex probatis», porque o juiz não pode limitar-se a dar crédito apenas às afirmações; pelo contrário, deve ter presente que, durante a instrução, a verdade objectiva pode ter sido ofuscada por sombras induzidas por causas diversas, como o esquecimento de alguns factos, a sua interpretação subjectiva, a negligência e, por vezes, o dolo e a fraude. E necessário que o juiz aja com sentido crítico. Tarefa árdua, porque os erros podem ser muitos enquanto que a verdade, ao contrário, é apenas uma. E preciso, portanto, procurar nos actos as provas dos factos asseverados, proceder, depois, A. crítica de cada uma de tais provas e confrontá-las com as outras, de modo que se cumpra, com seriedade, o conselho de São Gregório Magno: «ne temere indiscussa iudicentur» (Moralium L. 19, c. 25, n. 46, PL, vol. 76, Col 126).

Para ajudar este trabalho delicado e importante dos juízes estão ordenadas as «Memoriae» dos Advogados, as «Animadversiones» do defensor do Vínculo e o eventual voto do Promotor da Justiça. Também estes no desempenho do seu dever, os primeiros a favor das partes, o segundo em defesa do vínculo e o terceiro in iure inquirendo, devem servir a verdade, para que triunfe a justiça.

6. É necessário, porém ter presente que a finalidade desta investigação não é um qualquer conhecimento da verdade do facto, mas a obtenção da «certeza moral», isto é daquele conhecimento seguro que «se apoia na circunstância da lei e dos usos que governam a vida humana» (Pio XII, Alocução à Sagrada Rota Romana, 1 de Outubro de 1942, AAS 34, 1942, 339, n. 1). Esta certeza moral garante ao juiz ter encontrado a verdade do facto a julgar, ou seja a verdade que é fundamento, mãe e lei da justiça, e que dá, portanto, a segurança de estar, por este lado, em condições de pronunciar uma sentença justa. E é precisamente esta a razão por que a lei requer tal certeza do juiz, para lhe consentir pronunciar a sentença (Cân. CIS 1869, n. 1).

Servindo-se da doutrina e da jurisprudência desenvolvidas sobretudo nos tempos mais recentes, Pio XII declarou de modo autêntico o conceito canónico de certeza moral na alocução dirigida ao vosso tribunal do dia 1 de Outubro de 1942 (AAS 34, 1942, 339-343). Eis as palavras que servem para o nosso caso:

Entre a certeza absoluta e a quase-certeza ou probabilidade está, como entre entre dois extremos, a certeza moral de que ordinariamente se trata nas questões submetidas ao vosso foro... Essa, pelo lado positivo, caracteriza-se pelo facto de excluir toda a dúvida fundada e racional, e assim considerada, distingue-se essencialmente da mencionada quase-certeza; pelo lado negativo, deixa que subsista a possibilidade absoluta do contrário, e com isto se diferencia da certeza absoluta. A certeza de que agora falamos é necessária e suficiente para pronunciar uma sentença» (Ibid ., pp. PP 339-340).

Por consequência, a nenhum juiz é lícito pronunciar uma sentença a favor da nulidade de um matrimónio, se não adquiriu primeiro a certeza moral sobre a existência da mesma nulidade, para decidir uma causa. Valeria para cada cedência a este propósito quanto foi dito prudentemente das outras leis relativas ao matrimónio: cada relaxamento tem em si uma dinâmica impelente, «cui, si mos geratur, divortio, alio nomine tecto, in Ecclesia tolerando via sternitur» (Carta do cardeal Prefeito do Conselho para os Assuntos Públicos da Igreja ao Presidente da Conferência Episcopal dos Estados Unidos da América do Norte, de 20 de Junho de 1973).

7. A administração da justiça confiada ao juiz é um serviço à verdade e, ao mesmo tempo, é o exercício de uma incumbência pertencente à ordem pública. Pois ao juiz é confiada a lei «para a sua racional e normal aplicação» (Paulo VI, Alocução à Sagrada Rota Romana, 31 de Janeiro de 1974, AAS 66, 1974, 87).

Portanto, é necessário que o autor possa invocar em seu favor uma lei que reconheça no facto alegado um motivo suficiente, por direito natural ou divino, positivo ou canónico, para invalidar o matrimónio; far-se-á, através desta lei, a passagem., da verdade do facto à Justiça ou reconhecimento do que é devido.

Por isso, são graves e múltiplos os deveres do juiz em relação à lei. Aponto apenas o primeiro e mais importante que, aliás, traz consigo todos os outros: a fidelidade! Fidelidade à lei: à lei divina, natural e positiva, e à canónica, substancial e processual.

8. A objectividade típica da justiça e do processo que na «quaestio facti» se concretiza na aderência à verdade na «quaestio iuris» traduz-se na fidelidade; conceitos estes que, como é evidente, têm uma grande afinidade entre si. A fidelidade do juiz à lei deve levá-lo a identificar-se com ela, de tal modo que se possa dizer com razão e como escrevia M. T. Cícero, que o juiz é a própria lei que fala: «magistratum legem esse loquentem» (De legibus, L. 3, n. 1, 2; ed. da Association G. Budé, Paris 1959, p. 82). Será, depois, esta mesma fidelidade que há-de levar o juiz a adquirir aquele conjunto de qualidades de que tem necessidade para cumprir os seus deveres em relação à lei: sabedoria para a compreender, ciência para a ilustrar, zelo para a defender e prudência para a interpretar no seu espírito, além do «nudus cortex verborum», da ponderação e da equidade cristã para a aplicar.

É para mim motivo de conforto ter podido constatar quão grande tem sido a vossa fidelidade à lei da Igreja no meio das difíceis circunstâncias dos últimos anos, quando os valores da vida matrimonial, postos em justo e particular relevo pelo Concílio Vaticano II, e o progresso das ciências humanas, sobretudo da psicologia e da psiquiatria, fizeram confluir no vosso Tribunal novos casos e novas apresentações das causas matrimoniais, nem sempre correctas. Foi mérito vosso, depois de um sério e delicado aprofundamento da doutrina conciliar e das ciências referidas, o elaborar das «quaestiones iuris» nas quais realizastes egregiamente os vossos deveres para com a lei, separando o verdadeiro do falso, ou fazendo luz onde havia confusão, como, por exemplo, reconduzindo não poucos casos que eram apresentados como novos ao capítulo fundamental da falta de consenso. Reforçastes assim, «a contrario», o magistério brilhante do meu predecessor, o Papa Paulo VI de venerada memória, sobre o consenso como essência do matrimónio (Cfr. Alocução à Sagrada Rota Romana, 9 de Fevereiro de 1976, AAS 68, 1976, 204-208).

9. Esta fidelidade permitir-vos-á ainda a vós, Juízes, dardes às questões que vos são submetidas, uma resposta clara e respeitadora — como o exige o vosso serviço à verdade: se o matrimónio é nulo e tal é declarado, ambas as partes estão livres no sentido em que se reconhece que, de facto, nunca estiveram ligadas; se o matrimónio é válido e tal é declarado, constata-se que os cônjuges celebraram um matrimónio que os compromete para toda a vida e lhes conferiu a graça específica para realizarem na sua união, instaurada em plena responsabilidade e liberdade, o seu destino.

O matrimónio, uno e indissolúvel, como realidade humana, não é qualquer coisa de mecânico e de estático. O seu bom êxito depende da livre cooperação dos cônjuges com a graça de Deus, da resposta deles ao Seu desígnio de amor. Se, por causa da falta de cooperação nesta graça divina, a união ficasse privada dos seus frutos, os cônjuges podem e devem fazer voltar a graça de Deus que lhes é assegurada pelo Sacramento, renovar o seu compromisso para viver um amor que não é feito apenas de afectos e emoções, mas também e sobretudo de dedicação recíproca, livre, voluntária, total e irrevogável.

É este o contributo que vos é pedido a vós, Juízes, ao serviço daquela realidade humana e sobrenatural tão importante, e hoje tão atraiçoada, que é a família.

Peço por vós, para que Jesus Cristo, Sol de Verdade e de Justiça, esteja sempre convosco, para que as decisões do vosso Tribunal espelhem sempre a superior justiça e verdade que de vós emana. São estes os cordialíssimos votos que vos faço na abertura do novo ano judicial, acompanhando-os com a minha Bênção Apostólica.




Discursos João Paulo II 1980