Discursos João Paulo II 1979 - Istambul, 30 de Novembro de 1979


VIAGEM APOSTÓLICA DO SANTO PADRE À TURQUIA

DECLARAÇÃO COMUM DO PAPA JOÃO PAULO II

E DO PATRIARCA DIMÍTRIOS I




Nós, o Papa João Paulo II e o Patriarca Ecuménico Dimítrios I, damos graças a Deus que permitiu nos encontrássemos para celebrar juntos a festa do apóstolo André, o primeiro a ser chamado e o irmão de Pedro. Bendito seja Deus, Pai do Senhor nosso Jesus Cristo, que nos abençoou com toda a bênção espiritual nos céus, em Cristo (Ep 1 Ep 3).

Na busca da glória exclusiva de Deus mediante o cumprimento da sua vontade, nós afirmamos de novo o nosso firme propósito de fazer todo o possível para aproximar o dia em que a plena comunhão entre a Igreja católica e a Igreja ortodoxa seja restabelecida e nós possamos finalmente concelebrar a divina Eucaristia.

Estamos reconhecidos aos nossos predecessores, o Papa Paulo VI e o Patriarca Atenágoras I, por tudo o que fizeram para reconciliar as nossas Igrejas e levá-las a progredir na unidade.

Os progressos realizados na etapa preparatória permitem-nos anunciar o início do diálogo teológico e tornar pública a lista dos membros da comissão mista católico-ortodoxa que terá este encargo.

O diálogo teológico tem por objectivo não só o progresso no caminho do restabelecimento da plena comunhão entre as Igrejas irmãs, católica e ortodoxa, mas também contribuir para os diálogos múltiplos que se vão realizando no mundo cristão em busca da unidade das mesmas.

O diálogo da caridade (Cfr. Jo Jn 34 Ep 4,1-7), radicado numa fidelidade completa ao único Senhor Jesus Cristo e à sua vontade sobre a Igreja (Cfr. Jo Jn 17,21), abriu caminho para a compreensão melhor das posições teológicas recíprocas e, por conseguinte, para a facilitação do trabalho teológico e para nova atitude quanto ao passado, comum às nossas duas Igrejas. Esta purificação da memória colectiva das nossas Igrejas é fruto importante do diálogo da caridade e condição indispensável dos progressos futuros. Este diálogo da caridade deve continuar e intensificar-se na situação complexa que herdámos do passado e constitui a realidade em que deve realizar-se hoje todo o nosso esforço.

Nós desejamos que os progressos a caminho da unidade abram possibilidades novas de diálogo e colaboração com os crentes das outras religiões, e com todos os homens de boa vontade, para que o amor e a fraternidade superem o ódio e a oposição entre os homens. Esperamos assim contribuir para o advento de uma verdadeira paz no mundo. Imploramos este dom d'Aquele que foi, que é e que vem, o Cristo nosso único Senhor e nossa verdadeira paz.

Fanar, na festa de Santo André de 1979


Papa João Paulo II


Patriarca Dimítrios I





VIAGEM APOSTÓLICA DO SANTO PADRE À TURQUIA

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

NA CERIMÓNIA DE DESPEDIDA EM ESMIRNA


Aeroporto Militar de Esmirna, Turquia

Sexta-feira, 30 de Novembro de 1979



Senhor Ministro Excelências
Minhas Senhoras e meus Senhores

Não quero deixar o vosso País sem exprimir um cordial agradecimento ao povo turco e aos seus governantes. Graças a eles, pude efectuar em boas condições esta viagem, que realmente tinha muito a peito. Beneficiei de atenciosa hospitalidade, de um serviço de ordem bem organizado, e dos diferentes meios postos à minha disposição para esta viagem. Pude ainda encontrar-me agradável e frutuosamente com as Autoridades, e ficar-lhe-ei muito grato, Senhor Ministro, se assegurar, de novo, a Sua Excelência o Presidente da República e aos membros do Governo, que lhes ficarei dedicando boa lembrança e reconhecimento.

Do mesmo modo que o meu caro predecessor Paulo VI, vim até vós como mensageiro de paz e como amigo. A Sé Apostólica de Roma continua a manifestar a sua vontade de contribuir, segundo os meios que lhe são próprios, para a restauração de relações pacíficas e fraternas entre os povos, para o progresso humano e espiritual de todas as nações sem distinção, para a promoção e defesa dos direitos humanos dos indivíduos e das comunidades nacionais, étnicas e religiosas. Está ciente disso a República da Turquia, ela que, desde 1960, mantém relações diplomáticas com a Santa Sé.

Estou contente por esta ocasião que me é dada para manifestar a minha estima ao povo turco. Sabia-o já, e nestes dias experimentei que é uma nação pundonorosa não sem motivo e que procura resolver os seus problemas políticos, económicos e sociais com dignidade, na democracia e na independência. Tem a riqueza duma juventude numerosa e está decidida a utilizar todos os recursos do progresso moderno. Formulo votos cordiais quanto ao seu futuro.

Também não pude deixar de meditar no passado. Desde milénios a esta parte — podemos chegar pelo menos até aos Hititas —, este país tornou-se encruzilhada e cadinho de civilizações, no eixo entre a Ásia e a Europa. Quantas riquezas culturais escondidas, não apenas nos vestígios arqueológicos e nos veneráveis monumentos, mas também na alma, na memória mais ou menos consciente das populações! Quantas aventuras também — gloriosas umas, penosas outras — formaram o enredo da sua história!

A unidade da Turquia moderna baseia-se, hoje, na promoção do bem comum, pelo qual o Estado tem a missão de velar. A clara distinção entre a esfera civil e a religiosa, permite a cada um exercer as suas responsabilidades específicas, respeitando a natureza de cada poder e a liberdade das consciências.

O princípio desta liberdade de consciência, como também de religião, de culto e de ensino, está reconhecido na Constituição desta República. Desejo que todos os crentes e as suas comunidades disso beneficiem cada, vez mais. As consciências, quando bem formadas, extraem, além disso, das suas profundas convicções religiosas — digamos, da sua fidelidade a Deus — uma esperança, um ideal, qualidades morais de coragem, de lealdade, de justiça e de fraternidade, necessárias à felicidade, à paz e à alma de qualquer povo. Neste sentido, seja-me permitido exprimir a minha estima por todos os crentes deste país.

Vim até vós, primeiro que tudo, como chefe religioso, e vós compreendereis com facilidade como fiquei particularmente contente por encontrar, neste país, irmãos e filhos cristãos que esperavam a minha visita e estas permutas. espirituais, que de certo modo se tornaram necessárias.

As suas comunidades cristãs, reduzidas em número mas fervorosas e profundamente enraizadas na história e no amor da pátria, mantêm viva — dentro do respeito por todos — a chama da fé, da oração e da caridade de Cristo. Com elas evoquei igualmente, estas regiões e estas cidades honradas pela evangelização dos grandes Apóstolos de Cristo — Paulo, João e André —, pelas primeiras comunidades cristãs e pelos grandes concílios ecuménicos.

Sim, como sucessor do Apóstolo Pedro, o meu coração, como o de todos os cristãos do mundo, permanece ligado a estes lugares famosos, onde. os nossos peregrinos continuam a vir com emoção e reconhecimento. É honra para o vosso país compreendê-lo e facilitar esta hospitalidade.

Agradeço em particular a Vossa Excelência ter-me amavelmente acompanhado. Saúdo, de igual modo, os representantes das comunidades civis, religiosas e culturais, aqui presentes. Formulo os melhores votos por Vossa Excelência e por todos e cada um dos seus compatriotas. Gostaria que a minha visita fosse, para todos, mensagem de paz e de amor fraterno, sem os quais não existe nem verdadeira felicidade, nem progresso autêntico, nem, muito menos, fidelidade a Deus. Continuarei a pedir ao Altíssimo que inspire o povo turco e os seus governantes na busca da Sua vontade, que os acompanhe nas pesadas responsabilidades que têm e que os encha dos Seus dons de paz e de fraternidade.



VIAGEM APOSTÓLICA DO SANTO PADRE À TURQUIA

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

NA CHEGADA À ITÁLIA


Aeroporto de Fiumicino

Sexta-feira, 30 de Novembro de 1979



Com o coração ainda invadido por intensas emoções e trazendo na alma imagens inesquecíveis de lugares tornados queridos por venerandas tradições, piso novamente o solo da Itália.

Estou agradecido ao Senhor pela assistência que me concedeu também nesta peregrinação, realizada segundo duas peculiares "notas" da Igreja, a da apostolicidade e a da unidade. Estive, verdadeiramente a fazer uma visita a Sua Santidade o Patriarca Dimítrios I, a fim de prestar homenagem, juntamente com ele, ao irmão do apóstolo Pedro e para confirmar assim que a ascendência apostólica permanece indelevelmente inscrita sobre o rosto da Igreja como um dos traços salientes. Com esta viagem pretendi, além disso, testemunhar a minha firme vontade de prosseguir pelo caminho que leva à plena unidade de todos os cristãos e levar, ao mesmo tempo, um contributo para os homens se aproximarem entre si, no respeito daquilo que é essencial e profundamente humano.

Agora o meu pensamento dirige-se com viva gratidão às Autoridades turcas, que tanta gentileza quiseram demonstrar-me durante a minha estadia naquela Nação; ao querido Irmão, Sua Santidade Dimítrios I; aos Metropolitas, aos Bispos, ao Clero e aos Fiéis do Patriarcado ecuménico de Constantinopla, com quem tive a alegria de viver um momento significativo de comunhão na fé e na caridade: aos venerados Irmãos no Episcopado, aos Sacerdotes, ao Povo de Deus da Igreja católica que está na Turquia; e à inteira população turca que, entregando-se a espontâneas manifestações de simpatia me fez compreender o desejo de compreensão e fraternidade que existe no coração de cada homem.

Exprimo, agora, o meu reconhecimento, em primeiro lugar, ao Senhor Ministro do Interior, Dr. Virgílio Rognoni, pelas nobres palavras com que desejou expressar-me as boas vindas, em nome também do Governo e do povo italiano. Manifesto, em seguida, saudações e agradecimentos aos membros do Sacro Colégio, às Autoridades civis e eclesiásticas, como também ao Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé. Em tão gentis presenças entrevejo os sentimentos de simpatia com que foi seguida esta minha peregrinação. Uma palavra especial de estima e reconhecimento quero, par fim, dirigir aos directores, aos pilotos e ao pessoal da Companhia Aérea, a cuja dedicação, experimentada e atenciosa, se deve o perfeito bom êxito da viagem aérea.

Ao assegurar que todos recordei na oração à Santíssima Virgem, especialmente na cidade de Éfeso, quero mais uma vez confiar à sua materna intercessão todos aqueles que encontrei nestes dias do meu caminho e, ao invocar sobre todos a benevolência de Cristo Redentor, é-me grato conceder-vos, a vós aqui presentes, aos dilectíssimos filhos da Urbe e à humanidade inteira, a minha Bênção Apostólica, com os votos mais cordiais de prosperidade e de paz.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AO CONSELHO GENERALÍCIO


DOS REDENTORISTAS


Quinta-feira, 6 de Dezembro de 1979



Filhos caríssimos

1. O meu espírito abre-se para a mais cordial saudação ao receber-vos nesta Audiência especial, que solicitastes com gentil insistência e esta manhã tenho a alegria de poder finalmente conceder-vos, após alguns adiamentos impostos pelos compromissos pastorais destas semanas. É-me grato dirigir, antes de mais, as minhas sinceras felicitações ao Rev.mo Padre Josef Pfab, que a estima dos seus Irmãos de hábito, que participaram no recente Capitulo Geral, reconfirmou no cargo de Superior-Geral; e, em seguida, saúdo afectuosamente todos vós que, em qualidade de seus Conselheiros, fostes chamados a levar o vosso válido contributo ao governo da Congregação inteira.

Estou certo que fizestes bom trabalho, juntamente com os outros Padres capitulares, durante os intensos dias, de confronto e de reflexão, do mencionado Capitulo Geral, graças também aos dados fornecidos pela precedente consulta de cada Comunidade. As decisões que foram tomadas, depois de terdes pensado e rezado, não podem, por conseguinte, deixar de oferecer um contributo determinante para a consolidação dos resultados já obtidos, para o superamento das dificuldades actualmente advertidas, e para melhor orientação do compromisso comunitário no futuro.

2. Vi com agrado, a este propósito, que tivestes a peito interrogar-vos com lúcida franqueza sobre a finalidade do vosso Instituto, finalidade que Santo Afonso fixou no anúncio da Palavra de Deus "às almas mais abandonadas". Criteriosamente, de facto, o Concílio recordou que uma autêntica renovação da vida religiosa não se realiza sem um "regresso às fontes" e vós conheceis a norma que os Padres formularam nesta matéria: "deve conhecer-se e conservar-se fielmente o espírito e as intenções próprias dos Fundadores, assim como são as sãs tradições que constituem o património de cada um dos Institutos" (Decr. Perfectae caritatis PC 2).

Conscientes disto, vós procurastes esclarecer o significado exacto da evangelização no mundo de hoje, e perguntastes-vos quem são os que devem ser considerados "pobres" e "abandonados" no nosso contexto social. Assim quisestes estabelecer "prioridades de compromisso" a fim de orientardes, embora no respeito de um legítimo pluralismo, o esforço missionário da Congregação nesse sentido. Era necessário para evitar inúteis dispersões de energias, e manter a Congregação com a fisionomia que Santo Afonso lhe deu e que o povo cristão muito claramente demonstrou apreciar no decurso dos séculos.

A este respeito, quereria em particular chamar a vossa atenção para a oportunidade de dar novo impulso às missões tradicionais, que — segundo disse também no recente Documento sobre a catequese — se revelam, quando conduzidas segundo critérios conformes à mentalidade moderna, instrumento insubstituível para a renovação periódica e vigorosa da vida cristã (Cfr. Exort. Apost. Catechesi tradendae CTR 47). Santo Afonso, como bem sabeis, depunha nisto enorme confiança.

3. Desejo, ainda, salientar que a vossa acção pastoral ao serviço das "almas mais abandonadas", mediante a explícita proclamação da Palavra de Deus, alcançará eficazmente os seus fins se tiver o cuidado de se ater a dois critérios de fundo, fixados nas vossas Constituições: o da "comunitariedade" da programação e execução das iniciativas apostólicas (Cfr. Const. 2, 21, 45) e o da abertura, pronta e disponível, às sugestões e aos pedidos do Ordinário diocesano (Cfr. Const.18). A evangelização não foi confiada a um, mas à Igreja (Cfr. Mc Mc 16,15 par.) e, por conseguinte, é essencial que se realize em plena sintonia com as directrizes daqueles que receberam de Cristo a missão de "apascentar" o rebanho dos fiéis: sintonia quanto ao conteúdo da pregação e sintonia nas expressões concretas do compromisso apostólico. As dificuldades opostas pelo mundo hodierno ao fermento evangélico tornaram cada vez mais necessária uma programação orgânica da actividade pastoral, programação que, utilizando racionalmente todas as forças disponíveis no âmbito da Igreja local, lhe assegure oportuna coordenação e a máxima incisividade.

4. Continua, todavia, fora de dúvida que, ao tratar-se da conversão das almas, qualquer projecto programático, mesmo inteligente, qualquer emprego de forças, mesmo muito imponente, não têm valor algum, se não intervém a acção d'Aquele qui incrementum dat (1Co 3,7). Esta acção transformadora da graça, além disso, é habitualmente impetrada pela santidade da vida daquele que anuncia o Evangelho. Só quando o anunciador é também testemunha, atinge a sua palavra os corações. O vosso Fundador insistiu muitas vezes nisto nos seus escritos e demonstrou-o de modo inequivocável com o exemplo da vida.

Não é necessário, portanto, gastar palavras para acentuar a importância do compromisso ascético, que os antigos qualificavam, com expressão sugestiva, "studium deificum". Basta, quando muito, recordar o contributo fundamental que, ao progresso na virtude, traz a "vida comum", se aceita generosamente em todas as dimensões previstas pelas Constituições. Criar uma convivência verdadeiramente fraterna e responsável, baseada na fé e alimentada de continuo nas fontes da oração pessoal e comunitária, é um dever a que ninguém pode subtrair-se: prejudicaria o seu bem, o da Congregação e, afinal o próprio bem das almas.

5. Dilectos filhos — que do nome santíssimo do Redentor tirastes a qualificação que distingue o vosso Instituto —, ao terminar este encontro tão espontâneo e cordial, desejo deixar-vos uma palavra em particular, quase como recordação e palavra de ordem espiritual: dai espaço no vosso espírito a Cristo Redentor, de modo que Ele se torne cada vez mais o centro dos pensamentos, o pólo magnético dos afectos e a razão última de cada opção de vida. Acompanho este voto com uma especial Bênção Apostólica, que faço extensiva, com afecto paterno, a todos os vossos Irmãos de hábito distribuídos em cada região do mundo.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


ÀS PARTICIPANTES NO XIX CONGRESSO NACIONAL


DO CENTRO ITALIANO FEMININO


Sexta-feira, 7 de Dezembro de 1979



Dilectíssimas Filhas

Quero antes de tudo manifestar-vos a profunda alegria em poder-me encontrar hoje convosco, Responsáveis do Centro Feminino Italiano e qualificadas representantes das mulheres italianas. Saúdo-vos a todas muito cordialmente e agradeço-vos que tenhais querido este encontro; oferece-me a ocasião de vos conhecer melhor a vós e ao vosso movimento, que tanto trabalha na realidade concreta do querido povo italiano.

1. Sei que me dirijo a pessoas particularmente comprometidas, e exprimo-vos desde já a minha consideração e a minha estima sincera. Vós agis num contexto sócio-cultural, como é o do nosso tempo, simultaneamente difícil e prometedor, que se nos apresenta tão cheio de fermentos, sempre vivos mas nem sempre positivamente fecundos. Parece-me, de facto, que a sociedade hodierna, em que nos encontramos a viver e a agir, sofre uma crise de crescimento. Por um lado, oferece exemplos encorajadores de renovada tensão para metas de justiça, comunhão recíproca e mais elevado nível de vida; aumenta o sentido da solidariedade, da interdependência, acompanhado de uma sã exigência de respeito da própria identidade e dos próprios valores. E, apesar disso, por outro lado, não são raras as manifestações irracionais de egoísmo levado até à libertinagem e à violência, actuam com êxito forças tendentes à desagregação dos tecidos sociais conjuntivos, exaltam-se tais formas de chamada reapropriação da vida, que levam, pelo contrário, à destruição própria e do próximo.

Encontramo-nos diante da generosidade impugnada pelo orgulho, de formas de verdadeiro altruísmo coexistentes com individualismo desenfreado, de conclamados propósitos de defesa da vida e até da ecologia, postos em estridente associação com reais tentativas de a humilhar e sufocar.

Digo isto pensando no convite bíblico: Examinai tudo, e retende o que for bom (1Th 5,21); no mundo, de facto, devemos ser simples como as pombas, mas também prudentes como as serpentes (Mt 10,16).

2. Numa sociedade assim, a Igreja tem a sua função precisa, que recebeu para edificar e não para destruir (2Co 13,10), isto é para favorecer o crescimento ordenado e completo no sentido da sua plena maturidade. Neste processo delicado mas decisivo, a Igreja reconhece às mulheres um contributo essencial. Espera delas compromisso e testemunho não ambíguos em favor de tudo aquilo que funda e constitui a verdadeira dignidade do homem, o seu bom êxito a nível pessoal e comunitário, e por conseguinte a sua felicidade mais profunda. As mulheres, efectivamente, receberam de Deus um próprio carisma congénito, feito de sensibilidade aguda e de fina percepção da medida, de sentido do concreto e de providencial amor por aquilo que está no estado germinal e portanto necessita de atenciosos cuidados. São, todas, qualidades destinadas a favorecer o crescimento humano. Pois bem, eu peço-vos que transponhais o exercício destas preciosas qualidades, da esfera do particular para a esfera pública e social, e que o façais com sapiente responsabilidade: suprindo as deficiências do próximo, corrigindo desvios, encorajando e promovendo os factores de comum vantagem e utilidade.

3. Parece-me ver que o vosso compromisso pode desenvolver-se em dois campos diversos e complementares. Em primeiro lugar, é o próprio mundo feminino que tem necessidade de um modelo são e equilibrado de mulher integral. Trata-se de fazer valer justos direitos, de modo que cada mulher possa honestamente inserir-se na sociedade, quer humana quer profissionalmente, para além de todo o temor e discriminação. Mas é necessário também estar alerta para não permitir que reivindicações e propostas, justíssimas no início, cedam depois o lugar a degenerações de exacerbada polémica ou de arbitrária e inatural proclamação. Não é lícito introduzir elementos de ruptura onde o Criador previu e quis a harmonia humanamente mais alta.

Em segundo lugar, vós tendes também uma tarefa a desempenhar no quadro mais vasto da sociedade, no que diz respeito à posição a assumir perante o seu ordenamento geral, em particular sobre os problemas da família. A este propósito, congratulo-me convosco pela vossa solicitude e pela vossa atitude sobre a problemática da preparação para o matrimónio e a defesa da vida desde a concepção, quer nos costumes que tanta influência têm na formação sobretudo das novas gerações, quer na legislação, devendo ser a lei não mera denúncia do que acontece, mas modelo e estímulo para aquilo que deve ser realizado. A Igreja está profundamente convencida que a sabedoria de uma legislação se demonstra principalmente quando é assumida a defesa mais enérgica dos membros mais fracos e indefesos, a partir dos primeiros instantes de vida. Portanto, toda a cedência nesta matéria não pode não causar dano à própria dignidade humana. E além disso, embora no respeito e até no amor para com todos, é necessário defender-se de posições comprometedoras de aquiescência a forças ideológicas em contraste com a fé cristã.

Entre os membros mais débeis da sociedade contam-se também as crianças, os doentes, os anciãos, os desempregados, os que não têm cultura, e em geral todos aqueles que estão expostos a explorações e abusos vários. Todas as iniciativas que vós empreendeis e realizais nestes sectores, são certamente dignas de atenção e de apoio. Uma coisa é certa: existe uma coerência cristã também na vida pública; quem é cristão deve sê-lo sempre, a todos os níveis, sem hesitações, sem cedimentos; nos factos e não só no nome.

4. Pela minha parte, encorajo-vos e exorto-vos vivamente a prosseguirdes no vosso caminho, que é feito de actualizado e responsável serviço à sociedade italiana: tanto no plano de uma esclarecida sensibilização da opinião pública, quanto sobretudo no de uma concreta promoção humana a nível cultural, social e assistencial. Sede sempre portadores de dignidade, que não seja presunção; de amor, que não seja indiferença; de paz, que não seja resignação. E que o vosso compromisso parta sempre de convicções interiores solidamente radicadas e alegremente vividas. Sede vós mesmas, antes de tudo, quer em sentido individual quer associativo, exemplos vivos e modelos, de um projecto crível de mulher, que realize em si, ou pelo menos se esforce por realizar, o que de melhor a natureza humana e a revelação cristã têm a oferecer a este respeito.

A estes votos verdadeiramente cordiais, uno de bom grado . a minha Bênção Apostólica, em sinal da minha benevolência e prenúncio do conforto celeste para vós, para os membros do vosso Centro e para todas as mulheres italianas.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS JURISTAS CATÓLICOS


7 de Dezembro de 1979



Ilustres Senhores e Filhos caríssimos

1. Saúdo com deferência e afecto a vossa «União», que celebra nestes dias o seu XXX Congresso Nacional de estudo sobre um tema de grande actualidade: «A dimensão social na alternativa entre o público e o privado».

Desejo, antes de mais, exprimir a minha alegria pela agradável oportunidade, que esta vossa visita me oferece, de tomar contacto com a vossa benemérita Associação e de testemunhar o meu apreço pelo empenho que ela põe em favorecer o estudo e o aprofundamento dos problemas do mundo contemporâneo à luz dos princípios cristãos.

Uma associação profissional que ostenta o título de «católica» é, de facto e antes de mais, lugar privilegiado onde os leigos tomam consciência de ser parte viva da Igreja e disso tiram as inevitáveis consequência, assumindo responsavelmente o dever de animar de modo cristão o sector específico da sua profissão.

Isto supõe, como é óbvio, o exame prévio dos problemas que vão surgindo, a análise atenta dos seus elementos, a tentativa de uma síntese que abranja, tanto quanto possível, todos os aspectos de verdade neles implicados. De tal esforço, conduzido com rigor e honestidade intelectual, poderão surgir propostas sérias e ponderadas, capazes de oferecer uma solução equilibrada e harmoniosa às exigências humanas em jogo.

2. É isto que vós, de modo louvável, vos propondes fazer neste vosso Congresso no que diz respeito ao problema particularmente complexo das relações entre público e privado. Deve reconhecer-se que é oportuna a escolha do tema. Vendo bem as coisas, as relações entre público e privado constituem, de facto, um nódulo na experiência da humanidade hodierna que, enquanto em certos Países se encontra com ordenamentos jurídicos em que o público campeia quase a ponto de anular o privado, noutros, ao contrário, depara-se a agir dentro de sistemas jurídicos em que as exigências e os mais fundamentais interesses colectivos se subordinam ao privado e aos interesses individuais.

Infelizmente, tanto numa atitude como noutra ,o sacrificado é sempre o homem, quer na sua dimensão privada, quer na social, pelo uso do poder legislativo como instrumento de domínio — do indivíduo ou da colectividade — mais do que como instrumento de justiça.

É urgente, portanto, que se reaja a certas correntes de opinião unilaterais e deformadoras, e que, corajosamente, se ponha um dique por um lado ao fenómeno preocupante da expropriação pública do privado, por outro ao da prevaricação do privado açambarcando o público.

3. O critério de orientação em matéria tão complexa é, fundamentalmente, apenas um: o do respeito pela pessoa humana. Foi isto o que, solenemente, sublinhou o Concílio Vaticano II, afirmando, na esteira da precedente e constante tradição, que «a pessoa humana é e deve ser o princípio, o sujeito e o fim de todas as instituições sociais» (Const. Past. Gaudium et Spes GS 25).

A pessoa, de facto, «significat id quod esta perfectissimum in tota natura» (Summa Theologica, I, q. 29, a. 3), segundo a eficaz formulação de São Tomás, que a doutrina sucessiva não deixou de aprofundar. A inteligência de que é dotado coloca o homem acima de todas as criaturas do mundo visível, e fundamenta a sua peculiar dignidade, fazendo dele um ser «naturaliter liber et propter seipsum existens» (Summa Theol., II-II, q.64 ad 3). É precisamente desta dignidade superior que deriva a consequência segundo a qual o corpo social e a sua organização têm razão de ser em relação ao homem, como cuidadosamente o sublinhou o Doutor Angélico: «o homem não está todo ele ordenado à comunidade política, nem segundo todas as suas coisas» (Summa Theol., I-II, q. 21, a. 4 ad 3).

Isto não tira, todavia, que o homem, para a plena realização de si mesmo, tenha necessidade do contributo da comunidade, quer porque, apenas no encontro com os outros, pode revelar-se totalmente a si mesmo, quer porque fora de um adequado contexto social — o contexto que se costuma designar com o termo «bem comum» — lhe não seria possível desenvolver e amadurecer as virtualidades que traz dentro de si. Daí estar ele ordenado à comunidade «secundum quid» (Cfr. Summa Theol., II-II, q. 47, a. 10).

A pessoa, portanto, refere-se ao bem comum, pois a sociedade, por sua vez, ordena-se à pessoa e ao seu bem, estando ambas subordinadas ao fim supremo que é Deus. Só remontando a estes supremos princípios se pode encontrar a luz necessária para implantar correctamente as relações entre as esferas pública e privada, e para superar as eventuais oposições daí resultantes.

4. Se a comunidade humana está a atravessar uma crise profunda — tão profunda que se comprometem valores fundamentais sobre que, no passado, se procurou acuradamente construir uma convivência civil — isso deve-se a deslustrarem-se, nos costumes e na legislação, a dignidade da pessoa humana e as exigências irrenunciáveis que advêm, logicamente, de tal dignidade.

Assim, parece de suma importância que os católicos — e, entre eles, especialmente os que, como vós, desenvolvem a sua actividade no delicado sector do direito — sintam a profunda obrigação de oferecer o próprio contributo à afirmação e à tutela da dignidade da pessoa, considerada em toda a multiforme riqueza da sua existência espiritual e material. A norma orientadora da actividade, quer dos indivíduos quer do Estado, deve ser esta: servir o homem e não uma ideologia.

Estou certo que o vosso compromisso se orienta nesta direcção e, ao congratular-me convosco por tudo quanto tendes feito nos anos passados, exprimo o desejo de que os trabalhos do vosso actual Congresso saibam oferecer, na espinhosa matéria em causa, respostas inteligentes e esclarecedoras, de modo que satisfaçam as esperanças das pessoas honestas e preocupadas com o verdadeiro bem da Nação.

Ao invocar sobre vós e os vossos trabalhos a assistência do Omnipotente, confio a minha oração à intercessão d'Aquela que nos preparamos para celebrar no primordial candor da sua «Imaculada Conceição», pedindo-Lhe que vos oriente na reflexão comum destes dias, e vos ampare, depois, no cumprimento dos vossos respectivos deveres, em coerente adesão aos valores cristãos professados.

Com estes votos, concedo do coração, a vós aqui presentes e a todos aqueles que representais, a Bênção Apostólica, penhor da minha benevolência e auspício de copiosos favores celestes.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS PARTICIPANTES NO XII CONGRESSO


NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO ITALIANA


DOS PROFESSORES CATÓLICOS (AIMC)


Sexta-feira, 7 de Dezembro de 1979



Caríssimos irmãos da Associação Italiana dos Professores Católicos!

1. Ao receber-vos hoje em audiência especial e dar assim resposta positiva à amável carta do vosso Presidente, grande é a minha alegria e sincero o gosto vendo que me é proporcionado ficar a conhecer de perto outra florescente Associação profissional de inspiração cristã. Recebendo-vos, não posso deixar de recordar o encontro que tive. no início do mês passado, com os representantes da UCIIM, ou seja da Associação dos Professores das Escolas Médias por ocasião do seu Congresso Nacional. É-me fácil e quase natural estabelecer, digamos, uma ligação entre as duas Associações, não somente pela circunstância análoga de ver a vossa igualmente reunida em Congresso, mas sobretudo pelo facto de uma e outra serem compostas por pessoas que fizeram urna segura escolha de fé, e além disso, pela razão de uma e outra operarem na Escola e para a Escola.

2. Então, falei dos alunos (os chamados "teen-agers"), que são entregues para sua necessária formação àqueles professores num período de decisiva importância na vida. Que direi dos vossos alunos, dos meninos e meninas que vos são "entregues" pelos pais desde a mais tenra idade, no alvor da sua inocência, para serem gradualmente acompanhados e sapientemente guiados até chegarem à Escola Média? Se, no caso dos vossos Colegas, a responsabilidade é deveras grande, pela objectiva importância da idade que — como então disse — "medeia" entre a infância e a primeira maturidade, essa responsabilidade não é menor no vosso caso, porque a idade dos vossos alunos é e continua a ser fundamental na vida: não sem razão; o sector em que trabalhais é denominado escola de base. Daí resulta uma específica responsabilidade, que vos empenha diante dos pais e da sociedade civil, e antes ainda, diria, diante da vossa consciência e, portanto, de Deus que sonda o coração e a mente (Jr 11,20 cfr. Act Ac 1,24 Rm 8,27 Ap 2,23).

Olhai: nós devemos atender muito aos termos que usamos. Já ao começar o discurso falei de "confiar", de "entrega", de "guia" e de "acompanhamento", para chegar ao conceito sintético e eminentemente moral de responsabilidade. O trabalho pedagógico — quero dizer — qualifica-se imediatamente, originariamente pela sua função intrínseca de "conduzir as crianças", de "tomar pela mão" os menores, com o fim de lhes ensinar a caminhar pela senda da vida. Desta função e do modo como a exerceis, tendes de responder: eis porque o vosso trabalho, caros amigos e irmãos que me ouvis, é propriamente uma missão, que toca por natureza a esfera ético-religiosa. Vós sois homens que ajudais as crianças ainda pequeninas a tornarem-se homens: é um contacto que se dá directamente entre pessoas. É evidente, portanto, como isto exige de vós delicadeza, isso mesmo, alto sentido de responsabilidade.

3. Vós estais celebrando o Congresso Nacional para aprofundar um tema, por vós amplamente debatido , nas numerosas assembleias de secção e nos congressos provinciais, antes da eleição dos delegados. A este propósito, desejo congratular-me pela vossa escolha, porque, tendo em vista os não poucos problemas nascidos quer das inovações legislativas, quer do movimento incessante das transformações sócio-culturais, quisestes dar relevo e concentrar a reflexão sobre a profissionalidade do professor na escola de base. Que é que tudo isto significa? Que — antes dos elementos propriamente técnicos, que estão contidos no conceito de profissionalidade, antes da análise-verificação da relação entre o tipo de trabalho e a competência — vós reafirmastes uma exigência, inevitável e objectiva, que é também de ordem moral: a necessária preparação. A missão educativa apoia-se, deve apoiar-se, numa sólida preparação, e esta não se improvisa, nem se obtém com um estudo superficial, nem pode dizer-se adquirida "semel pro semper". Pelo contrário, deve ser um facto permanente e traduzir-se em esforço quotidiano e perseverante. Não falamos, acaso, de uma escola de educação permanente para todos os alunos da escola, ou seja, duma acção continuada no tempo,. sem interrupções nem abandonos? A tal esforço há-de corresponder paralelamente o dever da preparação permanente por parte dos professores: é necessário, em resumo, formar-se para formar; é necessário manter-se em dia para poder ensinar eficazmente; é necessário alcançar um adequado nível intelectual e moral para elevar igualmente a mente e o coração das crianças.

É por este motivo que, ao entrever tais elementos no centro da temática congressual sobre a profissionalidade, disso me congratulo publicamente convosco, enquanto desejo que a melhoria qualitativa a que tendeis na vossa actividade de mestres, determine um simultâneo, feliz e integral desenvolvimento dos vossos alunos. Podereis contribuir, assim, para que se vençam não leves dificuldades, que, partindo da sociedade circundante, se reflectem, corno é sabido, no interior da Escola.

4. Está para terminar o "Ano Internacional da Criança", que suscitou, em todas as partes do mundo, não pequeno interesse pelas exigências, as expectativas e os direitos da infância, favorecendo o início de não poucas iniciativas culturais, educativas, assistenciais e legislativas. Perguntarei, então, que pode e deve fazer o Mestre Católico em ordem, não tanto a essa circunstância da celebração, quanto à vasta problemática que veio repropor? Tendo em conta o valor do adjectivo qualificativo que está ao lado do vosso nome, parece-me que a resposta deva ser esta: o mestre católico, com um renovado esforço de boa vontade, deve empenhar-se em fazer crescer, nos alunos da sua escola, aquelas sementes evangélicas — rapidamente as enumero: a fé em Deus criador, a admiração pelas coisas criadas por ele, o amor para com os irmãos, as virtudes da simplicidade, da humildade, da mansidão, da obediência, etc. — que, do mesmo modo que dão forma ao ideal educativo cristão, assim também se integram e harmonizam, sem violência, com as diversas disciplinas de estudo e com o próprio ideal de uma educação autenticamente humana.

5. Houve, na vida de cada um de nós, um período de infância: período alegre e sereno, que ao nosso espírito tantas vezes se apresenta unido às recordações mais queridas. E quantas vezes, junto à imagem dos pais, nós evocamos a do nosso mestre ou da nossa mestra da escola primária? Há uma razão profundamente psicológica neste evocar de memórias em associação. O professor primário foi para nós não só aquele que nos transmitiu tantos conhecimentos úteis, e nos ensinou a ler e a escrever: foi ele para nós, ao lado de outras pessoas, uma presença típica que encarnou, diante dos nossos olhos sonhadores, a imagem do homem, do amigo e do benfeitor. Foi para nós como um irmão mais velho!

É necessário ter presente esse dado de origem interior e pessoal para avivar, caros irmãos, a nobilíssima função que vos é entregue. Se esta consciência estiver sempre desperta, então, não vos faltará a coragem necessária para superar os obstáculos destes anos difíceis e para corresponder àquele "retrato" que vós mesmos, por experiência de quando éreis crianças, trazeis nos vossos corações. Sou professor: portanto, tenho de dar exemplo — aos meus alunos pequenos. Sou professor católico: portanto, o dever do exemplo torna-se ainda mais exigente e transforma-se no compromisso mais alto de dar testemunho de Cristo Mestre, da Sua verdade e da Sua graça (Cfr. Jo Jn 1,14 Jn 14,6 Mt 23,8).


Discursos João Paulo II 1979 - Istambul, 30 de Novembro de 1979