AUDIÊNCIAS 1980 - AUDIÊNCIA GERAL


JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA GERAL

Quarta-feira, 9 de Abril de 1980




«Fica connosco pois a noite vai caindo»

1. «Este é o dia que o Senhor fez; por ele, regozijemo-nos e exultemos» (Ps 11 [118], 24).

Com estas palavras, a Igreja exprime a sua alegria pascal durante toda a oitava da Páscoa. Em todos os dias, no decorrer desta oitava, perdura aquele único Dia feito pelo Senhor; dia que é obra do poder de Deus, manifestada na Ressurreição de Cristo. A Ressurreição é o início da nova Vida e da nova Época; é o início do novo Homem e do novo Mundo.

Outrora, Deus-Criador criou o mundo do nada, inseriu nele a vida e deu início ao tempo. Criou também o Homem, homem e mulher os criou, para dominarem o mundo visível (cfr. Gén Gn 1,27).

Este mundo, por obra do homem, foi atingido pela corrupção do pecado; ficou sujeito à morte; o tempo tornou-se o metro da vida, que mede horas, dias e anos desde a concepção do homem até à sua morte.

A Ressurreição insere neste mundo, sujeito ao pecado e à morte, o Dia Novo; o dia feito pelo Senhor. Este Dia é o fermento da Nova Vida, que deve crescer no homem ultrapassando nele o limite da morte, para a eternidade em Deus mesmo. Este Dia é o início do futuro definido (escatológico) do homem e do mundo, que a Igreja professa e para o qual conduz o homem mediante a fé, «a comunhão dos santos, a remissão dos pecados, a ressurreição da carne e a vida eterna».

O fundamento desta fé é Cristo, que «padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado e ressuscitou ao terceiro dia».

E precisamente este terceiro dia — terceiro dia entre os do Tríduo Sagrado — tornou-se o «Dia que o Senhor fez»: o dia que a Igreja exalta durante toda a oitava e que, dia após dia, nesta oitava ela descreve e medita com gratidão.

2. Nesta quarta-feira pascal, desejo dirigir-me a vós caros participantes neste encontro que, visitando neste período como Peregrinos a Igreja de Roma, meditastes — no limiar apostólico, junto dos túmulos de S. Pedro e de S. Paulo e de tantos Mártires — a Paixão, a Morte e a Ressurreição de Cristo.

Como Bispo de Roma agradeço-vos cordialmente a vossa presença, a vossa participação na oração, na liturgia do Domingo de Ramos, da Quinta-feira Santa, da Sexta-feira Santa, da Vigília Pascal, do Domingo da Ressurreição e da Oitava.

Quão preciosa é esta meditação! Somos descendentes e herdeiros daqueles que foram os primeiros a participar nos acontecimentos da Páscoa de Cristo. Como, por exemplo, aqueles dois discípulos, que — como hoje lemos no Evangelho da Santa Missa — se encontraram com Cristo, no caminho de Emaús, e não O reconheceram, enquanto conversaram «sobre tudo o que acontecera» (Lc 24,14).

Nós fizemos a mesma experiência. Durante este dia meditámos tudo o que diz respeito a Jesus de Nazaré, que foi um profeta poderoso em obras e palavras, diante de Deus e de todo o povo; como os príncipes dos sacerdotes e os nossos chefes O entregaram para ser condenado à morte e depois O crucificaram. E como, «com tudo isto, já lá vai o terceiro dia desde que se deram estas coisas... Verdade é que algumas mulheres do nosso grupo nos deixaram perturbados, porque foram ao sepulcro, de madrugada, e não Lhe achando o corpo, vieram dizer que lhes apareceram uns anjos que afirmavam que Ele vivia. Então uns dos nossos foram ao sepulcro e encontraram tudo como as mulheres haviam dito. Mas a Ele, não o viram» (Lc 24,19-24).

Nós seguimos do mesmo modo, durante estes dias, cada pormenor daqueles acontecimentos, que nos transmitiram as testemunhas oculares com toda a surpreendente simplicidade e autenticidade da narrativa evangélica.

E agora, quando devemos voltar daqui para as nossas casas, como aqueles peregrinos que voltavam de Jerusalém a Emaús, desejamos mais uma vez meditar sobre todos os pormenores, sobre todos os textos da sagrada Liturgia, examinando se os nossos corações se tornaram mais prontos para «acreditar na palavra dos profetas»! «Não tinha o Messias de sofrer essas coisas para entrar na Sua glória?» (Lc 24,25-26).

A ressurreição é a entrada de Cristo na glória. Isso diz a cada um de nós que fomos chamados à Sua glória (Cfr. 1Th 2,12).

3. Como se alegra a Igreja de Roma, antiga Sede de S. Pedro, com a vossa presença assim tão numerosa durante estes dias!

A Semana Santa e a Oitava da Páscoa unem aqui, ao lado daqueles que sempre pertencem a esta Igreja, os peregrinos de tantas nações, países, línguas e continentes. A Igreja de Roma alegra-se com a presença de todos, porque vê neles a universalidade e a unidade do Corpo de Cristo, onde todos somos reciprocamente membros e irmãos sem distinção de nacionalidade e de raça, de língua ou de cultura. A Sede de S. Pedro palpita com a quase plenitude de todo o Corpo e de toda a comunidade do Povo de Deus, a quem constantemente oferece o seu serviço.

Por isso, uma vez que hoje me é possível, caros Irmãos e Irmãs, falar-vos ainda mais uma vez, permiti que eu exprima sobretudo um fervoroso voto para todos vós e para cada um em particular.

Este voto encerra também em si um desejo ardente e cordial, que adquire conteúdo do acontecimento da liturgia de hoje. Desejo-vos que, mediante a vossa estadia em Roma, se repita perfeitamente em cada um de vós o que sucedeu ao longo do caminho de Emaús. Cada um convide Cristo como aqueles discípulos, que caminhavam com Ele por aquele caminho, não sabendo com quem caminhavam: «Fica connosco, pois a noite vai caindo e o dia já está no ocaso» Lc 24, 29).

Jesus fica, toma o pão, pronuncia as palavras da benção, parte-o e distribui-o. E abrem-se então os olhos de cada um deles, quando O reconheceram «ao partir o pão» (Lc 24,30).

De todo o coração desejo que regresseis daqui para as vossas casas com um novo conhecimento de Jesus Cristo, Redentor do homem. Faço votos que leveis convosco este «Dia que o Senhor fez»; que anuncieis aonde chegardes, que «realmente o Senhor ressuscitou e apareceu a Simão» (Lc 24,34). Sede verdadeiramente no mundo de hoje testemunhas da ressurreição de Cristo com a vossa sólida fé e com o vosso compromisso generoso em viver autenticamente o cristianismo.

A todos levai, a minha saudação e o meu voto de felicidade; às vossas Famílias, às vossas Paróquias, às vossas Pátrias, aos vossos Bispos e Sacerdotes. O mistério pascal accione os vossos corações e a vossa mente. E seja bendito Deus por este dia, que fez para nós!

Que vos acompanhe e proteja a minha Bênção.

Anúncio da Viagem à França

Desejo agora anunciar-vos que, se Deus quiser, desde a tarde de sexta-feira, 30 de Maio, até a noite de segunda-feira, 2 de Junho, estarei na França para uma breve visita pastoral, detendo-me sobretudo em Paris.

Corresponderei, assim, ao convite feito pelo Presidente da Conferência Episcopal daquela Nação e pelo Cardeal Arcebispo de Paris, como também, ao igual convite feito pelo Senhor Presidente da República Francesa e pelo Director-Geral da UNESCO, onde estarei na segunda-feira, 2 de Junho, para dirigir a minha palavra.

Será uma viagem rápida, durante a qual terei no coração e no anelo do meu espírito as aspirações de todos os habitantes da querida e nobre nação francesa, como também as altas finalidades empreendidas pela UNESCO no campo da educação, da ciência e da cultura.

Caríssimos fiéis, presentes nesta Audiência, peço-vos por que me acompanheis com a vossa oração, a fim de que esta viagem que, como todas as outras, quer ser exclusivamente apostólica, isto é religiosa e pastoral, seja rica nos esperados frutos.

Saudações

Aos grupos de peregrinos holandeses

Tenho o prazer de saudar na própria língua os grupos vindos da Holanda e da Flandres. A vossa visita a Roma e ao Papa põe-vos em contacto com a vitalidade da Igreja Universal. Esta experiência vos ajude a seguirdes sempre Cristo Ressuscitado, a terdes pleno conhecimento da Sua verdade, a serdes testemunhas do Seu amor para todos. Colocai a vossa vida sob a lei do Evangelho, que é a lei do amor. A vossa vida terá então pleno sentido para vós pr6prios e dará riqueza ao vosso próximo para a maior glória de Deus.

De todo o coração concedo a minha Bênção Apostólica a todos vós e a todos aqueles que vos são queridos.

A vários grupos de língua francesa

São tão numerosos hoje os grupos de língua francesa nesta audiência, que não os posso saudar a todos como quereria. Notei, no entanto, a presença de numerosos jovens estudantes de liceu e de escolas, particularmente de Estrasburgo; de estudantes provenientes de Madagáscar; de desportistas e dos seus professores da Federação internacional católica de educação física e desportiva; de militares belgas. A todos estes jovens digo: considerai-vos felizes por serdes membros da Igreja, cujo carácter universal avaliais melhor aqui. Cristo veio para que tenhais a vida, a vida em abundância, não apenas uma vida humana desabrochada com todos os dons de Deus e a amizade dos outros, mas a Sua própria vida, a, sua vida divina. Não edifiqueis a vossa vida sem Cristo; acolhei-O sem medo; e com Ele voltai-vos para todos aqueles que tem necessidade da vossa alegria, do vosso auxílio, a fim de os servirdes.

Saúdo também as pessoas da terceira idade das dioceses de Cambraia e de Lila: seja a fidelidade a Cristo a vossa força e a vossa paz!

E ainda os participantes no Congresso da Sociedade internacional de língua francesa de Uro-Dinâmica: procurais fazer progredir a ciência médica e a sua aplicação precisamente na urologia que é a vossa especialidade: que Deus abençoe os vossos trabalhos e o vosso serviço para com os homens!

Aos vários grupos de língua inglesa

Dirijo cordiais boas-vindas aos participantes no encontro que o Movimento dos Focolares organizou para os Cristãos das várias partes da Grã-Bretanha e da Irlanda. Espero que a vossa estadia em Roma torne todos os vossos corações centros de irradiação do amor de Cristo. Que, o calor do seu amor nos una cada vez mais n'Ele, com Ele ,e para Ele.

Deus vos abençoe a todos através de Cristo.

A um grupo de Seminaristas

Tenho agora a alegria de dirigir uma afectuosa saudação ao numeroso grupo de Seminaristas reunidos nestes dias no centro do Movimento "Focolares" de Rocca di Papa.

Quero assegurar-vos, caríssimos filhos, que estou espiritualmente muito junto de vós na vossa ansiedade de intensa preparação para o sacerdócio, isto é, empenhando-vos na edificação do Povo de Deus. Seja, portanto, Cristo Eterno Sacerdote e luz das vossas inteligências, o objectivo principal do vosso estudo, o guia das vossas acções, a orientação dos vossos programas de ministério sagrado. A minha Bênção Apostólica que concedo a vós e às vossas famílias vos acompanhe nos vossos generosos propósitos.

Aos Jovens

Hoje merecem uma particular saudação os numerosos grupos de jovens e de crianças aqui presentes. A vós, queridos filhos; que estais na flor dos anos, desejo cordialmente que percorreis todo o caminho da vida com a mesma sorte dos viandantes de Emaús. E exorto-vos a serdes testemunhas da alegria pascal e da ressurreição de Cristo nos caminhos do mundo, nas vossas famílias, nas vossas cidades, nos vossos ambientes de estudo e de jogos. Abençoo-vos a todos de todo o coração.

Aos Doentes

Também aos Doentes que participam nesta Audiência gostaria de oferecer o conforto de uma palavra preciosa, a do Apóstolo Paulo. Depois de uma longa experiência de tribulações de todo o género, escrevendo à comunidade cristã de Roma, ele confia-lhe esta sua convicção: "Tenho como coisa certa que os sofrimentos do tempo presente nada são em comparação com a glória que há-de revelar-se em nós» (Rm 8,18). Coragem, queridos filhos: recordo-vos na oração, a fim de que Cristo, morto e ressuscitado, seja para vós fonte de serenidade e de esperança, de luz e de fortaleza, de mérito e de santificação. Como penhor disso dou-vos a minha especial Bênção.

Aos jovens Casais

Por fim, uma saudação para vós, jovens Casais. Agradeço-vos a vossa presença e alegro-me com a vossa vinda; esta vossa visita proporciona ao Papa ocasião para invocar sobre vós e sobre a vossa família nascente a abundância dos dons divinos, para um futuro sereno, corajoso, impregnado de autêntico espírito cristão e de sincera bondade evangélica.

A todos a minha cordialíssima Bênção.

Aos membros da Associação "Police et Humanisme"

Tenho o prazer de saudar um grupo cristão muito particular: a polícia francesa, agrupada com o nome de "Police et Humanisme". Eles não só organizaram esta peregrinação, mas reúnem-se regularmente para se ajudarem uns aos outros na sua vida humana e cristã, e rezarem juntos.

Felicito-vos, queridos Amigos, pela vossa iniciativa. Faço votos, em primeiro lugar, por que tenhais a consolação de ver que o vosso serviço é reconhecido como útil e necessário, de ser acolhidos com simpatia — e porque não dizer com amor —, antes de tudo na sociedade que tanta necessidade tem de vós para lhe garantirdes o bem comum da segurança, numa liberdade justa, e também na Igreja: a fé cristã pode e deve ser vivida na vossa profissão, do mesmo modo como na do centurião do Evangelho ou dos soldados que vinham encontrar-se com João Baptista. Faço também votos por que deis mutuamente, com os vossos sacerdotes e o vosso diácono permanente, a ajuda fraterna e o estímulo cristão que vos permitem superar o isolamento, os desalentos, as tentações de endurecimento ou outras que vos perseguem, porque é difícil assegurar como convém a ordem pública e muitas vezes viver no meio dos conflitos sociais, nas fronteiras da violência, da delinquência, das misérias ou enfermidades da nossa sociedade, com as quais vos enfrentais mais do que qualquer outra pessoa. Considerar a vossa missão como um serviço, cumpri-la o mais justamente possível, assegurar custe o que custar o respeito da dignidade dos outros, e por conseguinte de vós mesmos, procurar viver as exigências do Evangelho nas vossas funções de guardiães da paz ou de membros da polícia judiciária, testemunhar francamente a vossa fé no vosso meio, eis uma obra de evangelização que a Igreja tem a peito e que ela gostaria de ver alargada. Peço ao Senhor que vos ajude e eu abençoo de boa vontade as vossas pessoas e as vossas famílias.



JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA GERAL

Quarta-feira, 16 de Abril de 1980




Cristo apela para o «coração» do homem

1. Como tema das nossas futuras reflexões — no âmbito dos encontros de quarta-feira — desejo desenvolver a seguinte afirmação de Cristo, que faz parte do Sermão da Montanha: «Ouviste que foi dito: Não cometerás adultério. Eu porém, digo-vos que todo aquele que olhar para uma mulher, desejando-a, já cometeu adultério com ela no seu coração» (Mt 5,27-28). Parece que esta passagem tem para a teologia do corpo um significado-chave, como aquela em que Cristo faz referência ao «princípio», e que nos serviu de base para as precedentes análises. Pudemos, nessa altura, dar-nos conta de quão amplo foi o contexto de uma frase, melhor, de uma palavra pronunciada por Cristo. Tratou-se não apenas do contexto imediato, evidenciado durante o colóquio com os fariseus, mas do contexto global, que não podemos entender por inteiro sem fazer referência aos primeiros capítulos do Livro do Génesis (deixando de parte quanto aí se refere aos outros livros do Antigo Testamento). As precedentes análises demonstraram quão extenso é o conteúdo que encerra a referência de Cristo ao «princípio».

O enunciado a que agora nos referimos, isto é, Mt. 5, 27-28, introduzir-nos-á com segurança — além de no contexto imediato em que aparece — também no seu contexto mais amplo, no contexto global, através do qual se nos revelará gradualmente o significado-chave da teologia do corpo. Este enunciado constitui uma das passagens do Sermão da Montanha, em que Jesus Cristo faz uma revisão fundamental do modo de compreender e cumprir a lei moral da Antiga Aliança. Isto refere-se, por ordem, aos seguintes mandamentos do Decálogo: ao quinto — «não matarás» (cfr. Mt Mt 5,21-26), ao sexto — «não cometerás adultério» (cfr. Mt 5,27-32) — é significativo que no final desta passagem apareça também a questão do «acto de repúdio» (cfr. Mt Mt 5,31-32), mencionada já no capítulo precedente —, e ao oitavo mandamento segundo o texto do livro do Êxodo (cfr. Ex Ex 20,7): «Não perjurarás, mas cumprirás os teus juramentos ao Senhor» (cfr. Mt Mt 5,33-37).

Significativas são sobretudo as palavras que precedem estas frases — e as seguintes — do Sermão da Montanha, palavras com que Jesus declara: «Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas: não vim revogá-la, mas completá-la» (Mt 5,17). Nas frases seguintes, Jesus explica o sentido de tal contraposição e a necessidade do «cumprimento» da Lei a fim de realizar o reino de Deus: «Quem... praticar (estes preceitos) e os ensinar aos homens, será considerado grande no reino dos céus» (Mt 5,19). «Reino dos Céus» significa reino de Deus ia dimensão escatológica. O cumprimento da Lei condiciona, de modo fundamental, este reino na dimensão temporal da existência humana. Trata-se, todavia, de um cumprimento que corresponde plenamente ao sentido da Lei, do Decálogo, dos mandamentos um por um. Só este cumprimento constrói a justiça querida por Deus-Legislador. Cristo-Mestre adverte que não se dá uma tal interpretação humana de toda a Lei e de cada um dos mandamentos nela contidos, desde que ela não construa a justiça querida por Deus-Legislador: «Se a vossa justiça não superar a dos escribas e fariseus, não entrareis no reino dos céus» (Mt 5,20).

2. É neste contexto que nos surge o enunciado de Cristo segundo Mt. 5, 27-28, que pretendemos tomar como base para as presentes análises, considerando-o, com o outro enunciado segundo Mt.19, 3-9 (e Mc 10), como chave da teologia do corpo. Este, tal como o outro, tem carácter explicitamente normativo. Confirma o princípio da moral humana contida no mandamento «não cometerás adultério» e, ao mesmo tempo, determina uma apropriada e plena compreensão deste princípio, isto é, uma compreensão do fundamento e, igualmente, da condição para um seu adequado «cumprimento»; este, de facto, deve ser considerado à luz das palavras de Mt.5, 17-20, já antes referidas, sobre as quais ainda há pouco chamámos a atenção. Trata-se aqui, por um lado, de aderir ao significado que Deus-Legislador encerrou no mandamento «tão cometerás adultério», e, por outro, de realizar aquela «justiça» por parte do homem, a qual deve «superabundar» no próprio homem, isto é, deve atingir nele a sua plenitude específica. São estes, por assim dizer, os dois aspectos do «cumprimento» no sentido evangélico.

3. Encontramo-nos assim no centro do ethos, ou seja naquilo que pode ser definido como a forma interior, quase a alma da moral humana. Os pensadores contemporâneos (por exemplo Scheler) vêem ao Sermão da Montanha uma grande reviravolta precisamente no campo do ethos (1). Uma moral viva, no sentido existencial, não é formada apenas pelas normas que revestem a forma dos mandamentos, dos preceitos e das proibições, como no caso do «não cometerás adultério». A moral em que se realiza o próprio sentido do ser homem — que é, ao mesmo tempo, cumprimento da Lei mediante o «superabundar» da justiça através da vitalidade subjectiva — forma-se na percepção interior dos valores, de que nasce o dever como expressão da consciência e como resposta do próprio «eu» pessoal. O «ethos» faz-nos entrar, contemporaneamente, na profundidade da mesma norma e descer ao interior do homem sujeito da moral. O valor moral tem ligação com o processo dinâmico la intimidade do homem. Para o atingir, não basta deter-se «à superfície» das acções humanas, é preciso entrar precisamente no interior.

4. Além do mandamento «não cometerás adultério», o decálogo diz também «não cobiçarás a mulher do teu... próximo» (Cfr. Ex Ex 20,17 Dt 5,21). Vo enunciado do Sermão da Montanha, Cristo liga-os, de certo modo, um com o outro: «quem olhar para uma mulher, desejando-a, já cometeu adultério com ela no seu coração». Todavia, não se trata tanto de distinguir o alcance daqueles dois mandamentos do decálogo, quanto de salientar a dimensão da acção interior, à qual se referem também as palavras: «não cometerás adultério». Essa acção encontra a sua expressão visível no «acto do corpo», acto em que participam o homem e a mulher contra a lei da exclusividade matrimonial. A casuística dos livros do Antigo Testamento, compreendida no sentido de investigar aquilo que, segundo critérios exteriores, constituía tal «acto do corpo» e, ao mesmo tempo, orientada para combater o adultério, abria-lhe vários «subterfúgios» legais (2). Deste modo, baseado nos múltiplos compromissos «pela dureza do... coração» (Mt 19,8), o sentido do mandamento, querido pelo Legislador, sofria uma deformação. Olhava-se apenas à observância legal da fórmula que não «superabundava» na justiça interior dos corações. Cristo transpõe a essência do problema para outra dimensão, quando diz: «Quem olhar para uma mulher, desejando-a, já cometeu adultério com ela no seu coração». (Segundo antigas traduções «...já cometeu adultério com ela no seu coração», fórmula que parece ser mais exacta) (3).

Assim, portanto, Cristo apela para o homem interior. Fá-lo mais que uma vez e em diversas circunstâncias. Neste caso isto torna-se particularmente explícito e eloquente, não só no que diz respeito à configuração do ethos evangélico, mas também no que se refere ao modo de ver o homem. Não é, pois, só a razão ética, mas também a antropológica a aconselhar que nos detenhamos mais demoradamente sobre o texto de Mt. 5, 27-28, que contém as palavras pronunciadas por Cristo no Sermão da Montanha.

Notas

1. Ich kenne kein grandioseres Zeugnis für eine solche Neuerschliessung eines ganzen Wertbereic•hes, die das altere Ethos relativiert, ais die Bergpredigt, die auch in ihrer Form ais Zeugnis solcher Neuerschliessung und Relativierung der alteren «Gesetzes» -- werte sich überall kundgibt: «lch aber sage euch» (Max Scheler, Der Formalismus in der Ethik und die materiale Wertethik, Halle a.d.S., Verlag M. Niemeyer, 1921, p. 316 n. 1).

2. A este propósito, cfr. a continuação das presentes meditações.

3. O texto da Vulgata oferece uma tradução fiel do original: iam moechatus est eam in corde suo. De facto, o verbo grego moicheúo é transitivo. Pelo contrário, nas modernas línguas europeias «cometer adultério» é um verbo intransitivo; daí a versão «cometeu adultério com ela». E assim: Em português: «...já cometeu adultério com ela no seu coração» (Matos Soares, São Paulo, 1933).

Saudações

Aos peregrinos provenientes de várias dioceses da França

Tenho o prazer de saudar algumas importantes peregrinações da França, cujos respectivos Bispos tiveram a gentileza de as acompanhar. Reconheço, na primeira fila, o querido Cardeal Renard. Trata-se das dioceses de Lyon e de Saint-Etienne, de Bayonne, de Aire e Dax: oxalá esta peregrinação comunitária ao túmulo dos Apóstolos Pedro e Paulo, testemunhas de Cristo ressuscitado, fortaleça a vossa fé neste tempo pascal e o vosso apego à Igreja. Sim, amai a Igreja como a Mãe que vos iniciou no Evangelho, a Mãe que, como Maria, vos reintroduz constantemente nos caminhos de Cristo, que gerou santos e santas cuja fé e caridade nos atraem, e elevam as nossas vidas acima da banalidade ou da mediocridade.

Dirijo um encorajamento afectuoso aos numerosos jovens de Périgueux e de Sarlat, assim como aos outros jovens: fortes de todas as capacidades que Deus depositou em vós, ambicionai pô-las ao serviço de uma grande causa, a da fé, a do serviço aos vossos irmãos.

Saúdo, por fins, com emoção os peregrinos do Centro hospitalar de Saint-Brieuc, e especialmente os doentes de todas as idades. Obrigado por esta visita tão meritória, que há muito tempo preparais. O Papa conta com a vossa oração, com a oferta da vossa cruz pela saúde dos vossos irmãos. Ele deseja-vos que encontreis, com a dedicação fraterna das pessoas que vos tratam ou que vos acompanham, a coragem de viver, a serenidade, a paz e a esperança, que são dons de Deus.

A todos, a minha afectuosa Bênção Apostólica.

Aos Seminaristas do Colégio Norte-Americano de Roma

Estou satisfeito por ter aqui hoje um grupo de estudantes do Colégio Norte-Americano que amanhã vão ser ordenados Diáconos. Sereis admitidos num ministério de serviço àqueles que têm necessidade, e a maior necessidade é ouvir a palavra de Deus: como disse o profeta Amós, "não fome de pão, nem de sede de água, mas de ouvir a palavra do Senhor" (Am 8,11). Deus vos assista no cumprimento do vosso ministério. E vos abençoe, assim como a todos os membros das vossas famílias.

A uma peregrinação de Osnabruck (Alemanha)

Uma saudação muito cordial de boas-vindas dirijo agora à peregrinação jubilar de Osnabruck, no 1.200° aniversário da erecção da sua Diocese, peregrinação que vem acompanhada do seu Bispo e do seu Auxiliar, respectivamente D. Helmut Wittier e D. Karl-August Siegel. Um jubileu tão memorável é, com efeito, uma boa ocasião para a reflexão, a acção de graças e o louvor a Deus, que é aquilo que vós quereis manifestar abertamente com esta peregrinação aos túmulos dos primeiros Apóstolos na Cidade eterna. O padroeiro da vossa igreja episcopal, São Pedro, une de modo especial a vossa Diocese com o centro da cristandade. A fé cristã, que os primeiros arautos do evangelho pregaram no vosso país e todas as gerações posteriores vos transmitiram com fidelidade até hoje, é a mesma fé que Pedro confessou e selou aqui em Roma com a oferta da sua vida: "Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo" (Mt 16,16). Este testemunho de fé é-vos confiado agora. É da vossa valentia na fé e do vosso zelo missionário que, também hoje, depende, queridos irmãos e irmãs, a permanência viva desta mesma fé cristã e faz com que ela, como fermento, penetre e mude no espírito de Cristo a vossa vida, a sociedade e o mundo do nosso tempo. Da vossa fidelidade na fé depende que esta mesma fé continue incólume nos vosso descendentes e nas gerações sucessivas. Oxalá esta peregrinação a Roma, unida à celebração do aniversário da vossa Diocese, vos faça mais fortes na fé e vos impulsione a dar um testemunho de vida cristã cada vez mais decidido! Com estes votos peço para vós, por intercessão do vosso padroeiro diocesano, São José, a graça protectora e singular de Cristo, e concedo-vos de coração — a vós e a toda a Diocese — a Bênção Apostólica.

Aos peregrinos da paróquia de Komen (Jugoslávia)

Saúdo cordialmente o grupo de peregrinos da paróquia de Komen, no Carso, que se encontram aqui presentes. Caríssimos, faço votos por que este encontro hodierno revigore em vós o espírito de fé, esperança e amor como testemunho cristão entre os vossos compatriotas eslavos.

A minha Bênção vos acompanhe assim como a todos os que vos são queridos.

À peregrinação da Arquidiocese de Reggio Calabria
e da Diocese de Bova (Itália)

Dirijo uma saudação particularmente afectuosa à peregrinação da Arquidiocese de Reggio Calabria e da Diocese de Bova, acompanhada pelo Arcebispo co-mum, D. Aurélio Sorrentino.

Caríssimos, sei que realizastes juntos a vossa viagem em espírito de fé e de devoção, para visitar os túmulos dos Apóstolos Pedro e Paulo e prestar homenagem a quem de Pedro é o actual Sucessor na Sé episcopal romana. Agradeço-vo-lo e alegram-me estas vossas intenções genuinamente cristãs. Da minha parte, faço-vos votos por que conserveis e façais crescer cada vez mais uma comunhão sólida e fecunda como Senhor e que se reflicta oportunamente na vossa vida quotidiana. Recomendo-vos a Ele de todo o coração, ao mesmo tempo que vos concedo a propiciadora Bênção Apostólica, pedindo-vos que a leveis também a todos os que vos são queridos, como sinal da minha benevolência.

A uma peregrinação de Subiaco (Itália)

Esta também presente uma peregrinação da Cidade de Subiaco, acompanhada do Abade Estanislau Andreotti: Esta peregrinação é constituída por alguns Grupos Corais, de proveniência também internacional, participantes no "Primeiro concurso de coros no quadro das celebrações do XV centenário de São Bento", e também pelo pessoal do laboratório-escola "São Bento", e pelas crianças do Jardim de Infância "Maria Imaculada".

Caríssimos, a todos saúdo e agradeço a vossa presença particularmente significativa neste ano beneditino. Aprendeste a lição fundamental do grande Santo de Nórcia, que também ligou o seu nome a Subiaco: isto é, a lição de trabalhar e de rezar; e vós rezai cantando ao Senhor. Oxalá possais fazer de toda a vossa vida uma verdadeira harmonia entre estas duas componentes.

Regozijo-me, pois, com a iniciativa de erigir em Subiaco uma digna estátua a São Bento; e abençoo-vos, a todos, de coração.

Aos Jovens

Uma saudação, cheia de afecto, dirijo a todos os jovens presentes nesta Audiência, entre os quais prevalecem os estudantes. A vós, que trazeis no coração as vossas esperanças e as do mundo inteiro, desejo dirigir, neste clima pascal, as palavras de São Paulo: "Se, pois, ressuscitastes com Cristo, buscai as coisas lá do alto, onde Cristo está sentado à direita de Deus" (Col 3,1). Para vós, jovens, que coisa significa e simboliza "buscar as coisas lá do alto"? Não significa certamente que deveis tornar-vos estranhos às "coisas cá de baixo", isto é, aos problemas que dizem respeito à vida concreta, quotidiana do homem; pelo contrário, quer dizer dar uma perspectiva, um sentido "cristão" a toda a realidade humana na qual estais envolvidos: ao vosso estudo, ao vosso trabalho, à vossa vida associativa, à vossa vida sentimental, e também à vossa divagação, de modo que possais sempre difundir a alegria pascal que transborda do vosso coração.

Aos Doentes

Não posso esquecer, nesta circunstância, os caríssimos irmãos doentes, a quem, fazendo-me intérprete dos sentimentos de todos os participantes neste encontro, quero dizer uma palavra de encorajamento e de certeza cristã.

A vós, que trazeis no coração e no corpo os sinais da Paixão, lembro, neste momento, as palavras que Jesus dirigiu aos discípulos que iam a Emaús, desanimados e abatidos pelo trágico fim do seu Mestre: "Não tinha o Messias de sofrer essas coisas para entrar na Sua glória?" (Lc 24,26). Esta afirmação ilumina fortemente não só a vicissitude humana de Jesus, mas também a vida de todos vós, que sois assinalados pelos estigmas da enfermidade. Uni os vossos sofrimentos aos de Jesus; oferecei-os como sacrifício puro à Santíssima Trindade para bem da Igreja e da humanidade. Ao mesmo tempo que todos nós nos confiamos às vossas orações, dizemo-vos também o nosso comovido "obrigado" pelo vosso contínuo testemunho de fé e de esperança.

Aos jovens Casais

E a vós, jovens Casais, alegres pela vossa total e definitiva doação mútua realizada no sacramento do Matrimónio, dirijo os votos férvidos de todo o Povo de Deus: mantende por toda a vida o vigor e o entusiasmo destes dias, recordando-vos sempre que, na terra, sois o sinal concreto e visível daquele misterioso e imenso amor que une Cristo à Sua Esposa, a Igreja (cfr. Ef Ep 5,22-23). O Senhor vos dará a Sua graça, a Sua força e a Sua alegria, a fim de que possais construir a vossa família "cristã" no temor de Deus, no amor recíproco e na abertura com os outros.
A todos a minha Bênção Apostólica.



JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA GERAL

Quarta-feira, 23 de Abril de 1980




O conteúdo ético e antropológico do mandamento «Não cometerás adultério»

1. Recordemos as palavras do Sermão da Montanha, a que fazemos referência no presente ciclo das nossas reflexões de quarta-feira «Ouvistes — diz o Senhor — o que foi dito: Não cometerás adultério. E porém, digo-vos que todo aquele que olhar para uma mulher, desejando-a, já cometeu adultério com ela no seu coração» (Mt 5,27-28).

O homem, a quem Jesus se refere aqui, é precisamente o homem «histórico», aquele de quem encontramos o «princípio» e a «pré-história teológica» na precedente série de análises. Directamente, é aquele que escuta, com os próprios ouvidos, o Sermão da Montanha. Mas, com ele está também cada um dos outros homens, colocado frente àquele momento da história, quer no imenso espaço do passado, quer no igualmente vasto, do futuro. A este «futuro», frente ao Sermão da Montanha, pertence também o nosso presente, a nossa contemporaneidade. Este homem é, em certo sentido, «cada» homem, «cada um» de nós. Tanto o homem do passado como o homem do futuro pode ser aquele que conhece o mandamento positivo «não cometerás adultério» como «conteúdo da Lei» (cfr. Rom Rm 2,22-23), mas pode ser igualmente aquele que, segundo a Carta aos Romanos, tem este mandamento apenas «escrito no (seu) coração» (Rm 2,15) (1). A luz das reflexões precedentemente desenvolvidas, é o homem que, desde o seu «princípio» adquiriu um sentido preciso do significado do corpo, já antes de transpor «o limiar» das suas experiências históricas, no próprio mistério da criação, dado ter sido criado «como homem e mulher» (Gn 1,27). É o homem histórico que, no «princípio» do seu destino terreno, se encontrou «dentro» do conhecimento do bem e do mal, desfazendo a Aliança com o seu Criador. É o homem-varão que «conheceu (a mulher) sua esposa» e a «conheceu» diversas vezes, e ela «concebeu e deu à luz» (cfr. Gén Gn 4,12) em conformidade com o desígnio do Criador, que remontava ao estado da inocência original (cfr. Gén Gn 1,28 Gn 2,24).

2. No seu Sermão da Montanha Cristo dirige-se, de modo particular com as palavras de Mt. 5, 27-28, precisamente àquele homem. Dirige-se ao homem de um determinado momento da história e, ao mesmo tempo, a todos os homens, pertencentes à mesma história humana. Dirige-se, como já verificámos, ao homem «interior». As palavras de Cristo têm um explícito conteúdo antropológico; referem-se àqueles significados perenes, através dos quais é constituída a antropologia «adequada». Estas palavras, mediante o seu conteúdo ético, constituem, simultaneamente uma tal antropologia e exigem por assim dizer, que o homem entre na sua plena imagem. O homem que é «carne» e que, como varão, permanece em relação, através do seu corpo e sexo, com a mulher (é isto, de facto, o que indica também a expressão «não cometerás adultério»), deve, à luz destas palavras de Cristo, reencontrar-se no seu íntimo, no seu «coração» (2). O «coração» é esta dimensão da humanidade, com que está ligado directamente o sentido do significado do corpo humano, e a ordem deste sentido. Trata-se aqui, quer daquele significado que, nas precedentes análises, chamámos «esponsal», quer daquele que denominámos «gerador». E de que ordem se trata?

3. Esta parte das nossas considerações deve dar uma resposta precisamente a tal pergunta — uma resposta que chegue não só às razões éticas, mas também às antropológicas; estas, de facto, permanecem em relação recíproca. Por agora, preliminarmente, é necessário estabelecer o significado do texto de Mt.5, 27-28, o significado das expressões nele usadas e a sua relação recíproca. O adultério, ao qual se refere directamente o citado mandamento, significa a infracção da unidade, mediante a qual o homem e a mulher, apenas como cônjuges, podem unir-se tão intimamente de modo a serem «uma só carne» (Gn 2,24). Comete adultério o homem, que se une deste modo com uma mulher que não é sua esposa. Comete adultério também a mulher, que deste modo se une com um homem que não é seu marido. É necessário deduzir disto que «o adultério no coração», cometido pelo homem quando «olha para uma mulher, desejando-a», significa um acto interior bem definido. Trata-se de um desejo que, neste caso, é dirigido pelo homem para uma mulher que não é sua esposa, com a intenção de se unir com ela como se o fosse, isto é — usando mais uma vez as palavras do Gén.2, 24 — como se «os dois fossem uma só carne». Este desejo, como acto interior, exprime-se mediante o sentido da vista, isto é, com o olhar, como no caso de David e Betsabea, para nos servirmos de um exemplo tirado da Bíblia (cfr. 2S 11,2) (3). A relação do desejo com o sentido da vista foi particularmente salientada nas palavras de Cristo.

4. Estas palavras não explicam claramente se a mulher — objecto do desejo — é esposa de outro ou se, simplesmente, não é esposa do homem que olha para ela desse modo. Pode ser esposa de outro, ou também não estar ligada pelo matrimónio. É necessário antes intuí-lo, baseando-se, de modo especial, na expressão que, precisamente, define como adultério aquilo que o homem cometeu «no seu coração» com o olhar. É preciso deduzir correctamente daí que um tal olhar de desejo dirigido para a própria esposa não é adultério «no coração», justamente porque o relativo acto interior do homem se refere à mulher que é sua esposa, em relação à qual o adultério não pode verificar-se. Se o acto conjugal como acto exterior — em que «os dois se unem de tal modo que se tornam uma só carne», é lícito na relação do homem em questão, com a mulher que é sua esposa, de modo análogo é conforme com a ética também o acto interior na mesma relação.

5. Contudo aquele desejo, indicado pela expressão sobre «todo aquele que olhar para uma mulher, desejando-a», tem uma própria dimensão bíblica e teológica, que não podemos deixar de esclarecer aqui. Mesmo que tal dimensão se não manifeste directamente nesta única e concreta expressão de Mt. 5, 27-28, todavia está profundamente radicada no contexto global, que se refere à revelação do corpo. Devemos remontar a este contexto, para que a chamada de atenção de Cristo «para o coração», para o homem interior, ressoe em toda a plenitude da sua verdade. O citado texto do Sermão da Montanha (Mt 5,27-28) tem fundamentalmente um carácter indicativo. O facto de Cristo se dirigir directamente ao homem como àquele que «olha para uma mulher, desejando-a», não quer dizer que as suas palavras, no próprio sentido ético, não se dirijam também à mulher. Cristo exprime-se deste modo, para explicar com um exemplo concreto que é necessário compreender «o cumprimento da Lei», segundo o significado que lhe deu Deus-Legislador, e, além disso, que é necessário entender aquele «superabundar da justiça» no homem, que observa o sexto mandamento do Decálogo. Falando deste modo, Cristo quer que não nos detenhamos sobre o exemplo em si mesmo, mas que penetremos também no pleno sentido ético e antropológico do texto. Se ele tem carácter indicativo, significa que, seguindo as suas pegadas, podemos chegar a compreender a verdade geral sobre o homem «histórico», válida também para a teologia do corpo. As ulteriores etapas das nossas reflexões terão a finalidade de se aproximarem da compreensão desta verdade.



Notas


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