AUDIÊNCIAS 1980 - AUDIÊNCIA GERAL


PAPA JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA GERAL

Quarta-feira, 13 de Agosto de 1980


O conteúdo do mandamento "Não cometer adultério"

1. A análise da afirmação de Cristo durante o Sermão da Montanha, afirmação que se refere ao «adultério», e ao «desejo» a que Ele chama «adultério cometido no coração», é necessário desenvolvê-la partindo das primeiras palavras. Cristo diz: «Ouvistes que foi dito: não cometerás adultério...» (Mt 5,27). Tem na mente o mandamento de Deus, aquele que no Decálogo se encontra no sexto lugar, e faz parte da chamada segunda Tábua da Lei, que Moisés obtivera de Deus-Javé.

Coloquemo-nos primeiro no ponto de vista dos ouvintes directos do Sermão da Montanha, daqueles que ouviram as palavras de Cristo. São filhos e filhas do povo eleito — povo que do próprio Deus-Javé tinha recebido a «Lei», tinha recebido também os «Profetas» que repetidamente, através dos séculos, tinham censurado exactamente a relação mantida com aquela Lei, as múltiplas transgressões dela. Também Cristo fala de semelhante transgressões. Mas fala ainda mais de uma tal interpretação humana da Lei, em que se apaga e desaparece o justo significado do bem e do mal, especificamente querido pelo Divino Legislador. A lei, de facto, é sobretudo meio — meio indispensável — para que «superabunde a justiça» (palavras de Mt 5, 20, na antiga tradição). Cristo quer que essa justiça «supere a dos escribas e dos fariseus». Não aceita a interpretação que através dos séculos foram dando ao conteúdo autêntico da Lei, pois submeteram em certa medida tal conteúdo, ou seja o desígnio e a vontade do Legislador, às variadas fraquezas e aos limites da vontade humana, derivados precisamente da tríplice concupiscência. Era esta uma interpretação casuística, que se tinha sobreposto à original visão do bem e do mal, ligada com a Lei do Decálogo. Se Cristo tende à transformação do «ethos», fá-lo sobretudo para recuperar a clareza fundamental da interpretação: «Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vim revogá-la mas completá-la» (Mt 5,17). Condição do completamento é a justa compreensão. E isto aplica-se, além do mais, ao mandamento «não cometer adultério».

2. Quem segue nas páginas do Antigo Testamento a história do povo eleito desde os tempos de Abraão, encontrará abundantes factos que atestam como este mandamento era posto em prática e como, em seguida a tal prática, era elaborada a interpretação casuística da lei. Primeiro que tudo, é sabido que a história do Antigo Testamento é teatro da sistemática defecção perante a monogamia: o que, para se compreender a proibição «não cometer adultério», devia ter significado fundamental. O abandono da monogamia, especialmente no tempo dos Patriarcas, tinha sido ditado pelo desejo da prole, de numerosa prole. Este desejo era tão profundo, e a procriação, como fim essencial do matrimónio, tão evidente, que as esposas, que amavam os maridos, quando não estavam em condições de lhes dar prole, pediam de sua iniciativa aos maridos, pelos quais eram amadas, que tomassem «sobre os próprios joelhos», ou seja, acolhessem a prole dada à vida por outra mulher, por exemplo, pela serva, isto é, pela escrava. Assim foi no caso de Sarai a respeito de Abraão (Cf. Gén Gn 16,2), ou no de Raquel a respeito de Jacob (Cf. Gén Gn 30,3). Estas duas narrações reflectem o clima moral em que era praticado o Decálogo. Explicam o modo em que o «ethos» israelita estava preparado para acolher o mandamento «não cometer adultério», e que aplicação encontrava tal mandamento na mais antiga tradição deste povo. A autoridade dos patriarcas era, de facto, a mais alta em Israel e possuía carácter religioso. Estava estreitamente ligada à Aliança e à Promessa.

3. O mandamento «não cometer adultério» não mudou esta tradição. Tudo indica que o seu posterior desenvolvimento não se limitava aos motivos (sobretudo excepcionais) que tinham guiado o comportamento de Abraão e Sarai, ou de Jacob e Raquel. Se tomamos como exemplo os representantes mais ilustres de Israel depois de Moisés — os reis de Israel David e Salomão — a descrição da vida deles mostra que se estabelece a poligamia efectiva, isto indubiamente por motivos de concupiscência:

Na história de David, que também tinha duas mulheres, deve chamar a atenção não só o facto de ter tomado a mulher de um súbdito seu, mas também a clara consciência de ter cometido adultério. Este facto, assim como a penitência do rei, são descritos de modo pormenorizado e sugestivo (Cf. 2S 11,2-27). Por adultério entende-se só a posse das mulheres de outrem, ao passo que não o é a posse de outras mulheres como esposas, ao lado da primeira. Toda a tradição da Antiga Aliança indica que a consciência das gerações que se foram seguindo no povo eleito, ao «ethos» delas, não se juntou nunca a exigência efectiva da monogamia, como consequência essencial e indispensável do mandamento «não cometer adultério».

4. Nesta perspectiva é preciso também entender todos os esforços que tendem a introduzir o conteúdo específico do mandamento «não cometer adultério» no quadro da legislação promulgada. Confirmam-no os Livros da Bíblia, em que se encontra amplamente registado o conjunto de tal legislação antigo-testamentária. Se se toma em consideração a letra de tal legislação, resulta que esta se empenha em lutar com o adultério, de modo decidido e sem contemplações, usando meios radicais, incluindo a pena de morte (Cf. Lv Lv 20,10 Dr Lv 22,22). Fá-lo porém sustentando a poligamia efectiva, até mesmo legalizando-a plenamente, ao menos de modo indirecto. Assim portanto o adultério é combatido só nos limites estabelecidos e no âmbito das premissas definidas, que determinam a forma essencial do «ethos» antigo-testamentário. Por adultério entende-se aí sobretudo (e talvez exclusivamente) a infracção do direito de propriedade do homem quanto a qualquer mulher que seja a própria mulher legal (ordinariamente: uma entre muitas); não se entende porém o adultério como aparece do ponto de vista da monogamia estabelecida pelo Criador. Reparemos agora ter feito Cristo referência ao «princípio» precisamente a respeito deste argumento (cfr. Mt Mt 19,8).

5. Muito significativa é, além disso, a circunstância em que toma Cristo a parte da mulher surpreendida em adultério e a defende da lapidação. Diz aos acusadores: «Quem de vós estiver sem pecado seja o primeiro a lançar-lhe uma pedra» (Jn 8,7). Quando eles deixam cair no chão as pedras e se afastam, diz à mulher: «Vai e doravante não tornes a pecar» (Jn 8,11). Cristo identifica portanto claramente o adultério com o pecado. Quando, pelo contrário, se dirige àqueles que desejavam lapidar a mulher adúltera, não apela para as prescrições da lei israelita, mas exclusivamente para a consciência. O discernimento do bem e do mal inscrito nas consciências humanas pode mostrar-se mais profundo e mais correcto do que o conteúdo de uma norma.

Como vimos, a história do Povo de Deus na Antiga Aliança (que procurámos explicar só por meio de alguns exemplos) decorria, em notável medida, fora do conteúdo do mandamento «não cometer adultério»; passava, por assim dizer, ao lado dele. Cristo deseja corrigir estes erros. Eis a razão das palavras por Ele pronunciadas no Sermão da Montanha.

Pesar do Papa pelas vítimas do ciclone "Allen"

Desejo exprimir, neste momento, toda a minha solicitude e solidariedade aos Países da zona das Caraíbas, que foram gravemente provados nos dias passados, pela fúria devastadora do ciclone "Allen". Como sabeis, provocou numerosas vítimas e feridos entre as populações, causando danos incalculáveis às cidades e às culturas. São desastres naturais que fazem reflectir na fragilidade do homem, tão impotente e indefeso diante das forças desencadeadas da natureza; mas devem também levar ao comum sentido de responsabilidade em partilhar; espiritual e materialmente, dos sofrimentos dos irmãos: é exactamente em tais calamidades que se demonstra a realidade do amor que se compadece, se aproxima de quem passa necessidade, e provê, segundo seja possível, " às necessidades do próximo.

Posso assegurar que várias instituições caritativas internacionais católicas vão ao encontro dos mais instantes apelos de auxílio, que chegam das Nações mais provadas. Enquanto elevo fervorosos sufrágios por aqueles que perderam a vida nesta triste circunstância, estou perto de quantos sofreram danos físicos ou materiais; e convido todos vós a unirdes as vossas orações e as vossas solicitudes às minhas, pois é belo que nestes encontros de tantos fiéis com o Papa — nos quais se sente mais viva a magnífica realidade de comunhão que é a Igreja os nossos irmãos e as nossas irmãs no mundo não se sintam esquecidos, mas saibam que a Igreja inteira os tem no seu coração.

Saudações

Aos Jovens

Saúdo-vos, agora, a vós jovens, entre os quais se encontram 350 Voluntários e Voluntárias do Movimento dos Focolares provenientes de várias Nações dos cinco Continentes, reunidos no "Centro Mariopoli" de Rocca di Papa, para o anual curso de estudo e de espiritualidade.

Caríssimos, ao mesmo tempo que vos agradeço de coração a vossa presença, chamo a vossa atenção para a iminente festividade da Assunção de Nossa Senhora ao Céu. Sabemos que Maria Imaculada, Esposa do Espírito Santo, Mãe de Cristo e da Igreja, primícias dos remidos, no término da sua vida terrena foi elevada, em alma e corpo, à gloria celeste. Este admirável acontecimento ensina que o destino do homem não se exaure no tempo, mas projecta-se e completa-se no Céu, junto de Deus.

A mensagem de fé e de esperança cristã, que deriva da próxima celebração mariana, ressoe sempre no vosso coração.

Aos Doentes

Dá-me muito prazer dirigir também a vós, queridos Doentes, o meu afectuoso e reconhecido pensamento.

Como diz o Apóstolo Paulo: "Nós, porém, somos cidadãos do Céu e de 1á esperamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo. Ele transformará o nosso corpo miserável tornando-o conforme ao Seu corpo glorioso" (Ph 3,20-21).

Maria Santíssima já chegou à pátria, e depois do exílio terreno realizou-se imediatamente a Sua entrada na glória! Por isso, para Ela sejam dirigidos os vossos sofrimentos, as vossas preocupações, as vossas esperanças, na certeza de que não faltará o seu auxílio para nos unirmos a Ela depois deste exílio terreno.

Com estes votos abençoo-vos a todos de coração.

Aos jovens Casais

Ao dirigir, a seguir, a minha cordial saudação aos jovens Casais, quero dizer-lhes uma palavra de exortação e de bons votos. Ao receberdes o Sacramento do Matrimónio, iniciastes um novo caminho na vossa vida. Faço votos por que ele seja sempre semelhante ao que a Virgem Santíssima realizou durante a sua existência na terra e que se concluiu depois com a gloriosa assunção ao Céu.

Confirmo estes votos com uma particular Bênção, que torno extensiva a todas as pessoas que vos são queridas.

A um grupo de peregrinos eslovacos

Com alegria dou as boas-vindas ao grupo de jovens peregrinos eslovacos que vieram de todas as partes do mundo.

Desejo que a vossa visita ao Sucessor de Pedro revigore a vossa fé, que os Santos Cirilo e Metódio levaram aos vossos antepassados e que o vosso povo conservou fielmente até aos nossos dias.

Queridos peregrinos eslovacos! Sede fiéis a Cristo e à sua Mãe celeste, Maria! Conservai a herança dos vossos santos apóstolos Cirilo e Metódio, onde quer que vos encontreis no grande mundo.

Saúdo e abençoo-vos e às vossas queridas famílias, abençoo o vosso querido país, para mim tão querido, e os vossas cidades de proveniência.



JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA GERAL

Quarta-feira, 20 de Agosto de 1980




O adultério segundo a lei e na linguagem dos Profetas

1. Quando Cristo, no Sermão da Montanha, diz: «Ouvistes qúe foi dito: Não cometerás adultério» (Mt 5,27), refere-se ao que sabia perfeitamente cada um dos seus ouvintes e àquilo a que se sentia obrigado em virtude do mandamento de Deus-Javé. Todavia, a história do Antigo Testamento faz ver que não só a vida do povo, unido a Deus-Javé por uma particular aliança, mas também a vida de cada homem se aparta muitas vezes deste mandamento. Mostra-o também um olhar sumário lançado sobre a legislação, de que há rico material nos Livros do Antigo Testamento.

As prescrições da lei antigo-testamentária eram severíssimas. Eram também muito particularizadas e penetravam nos mais minuciosos pormenores concretos da vida (1). E presumível que quanto mais a legalização da poligamia efectiva se tornava evidente nesta lei, tanto mais crescia a exigência de manter as suas dimensões jurídicas e de premunir os seus limites legais. Daqui o grande número de prescrições e também a severidade das penas previstas pelo legislador por causa da infracção de tais normas. Sobre a base das análises, que desenvolvemos precedentemente acerca da referência que faz Cristo ao «princípio», no seu discurso sobre a dissolubilidade do matrimónio e sobre o «acto de repúdio», é evidente que Ele vê com clareza a contradição fundamental que o direito matrimonial do Antigo Testamento escondia em si, acolhendo a poligamia efectiva, isto é, a instituição das concubinas ao lado das esposas legais, ou o direito da convivência com a escrava (2). Pode dizer-se que tal direito, enquanto combatia o pecado, ao mesmo tempo continha em si, e até protegia as «estruturas sociais do pecado», constituindo a legalização dele. Nestas circunstâncias impunha-se a necessidade de o sentido ético essencial do mandamento «não cometerás adultério» se sujeitar a uma valorização fundamental. No Sermão da Montanha Cristo desvela novamente aquele sentido, isto é ultrapassando-lhe as estreitezas tradicionais e legais.

2. Vale talvez a pena acrescentar que, na interpretação antigo-testamentária, quanto a proibição do adultério é assinalada — poder-se-ia dizer — pelo compromisso com a concupiscência do corpo, tanto é claramente determinada a posição a respeito dos desvios sexuais. O que é confirmado pelas relativas prescrições, que prevêem a pena capital para a homossexualidade e para a bestialidade. Quanto ao comportamento de Onán, filho de Judá (de quem toma origem a denominação «onanismo») a Sagrada Escritura diz que «...desagradou ao Senhor, que também lhe deu a morte» (Gn 38,10).

O direito matrimonial do Antigo Testamento, na sua mais ampla generalidade, coloca em primeiro lugar a finalidade procriativa do matrimónio, e nalguns casos procura demonstrar um tratamento jurídico paritário da mulher e do homem — por exemplo, a respeito da pena pelo adultério, é explicitamente dito: «Se um homem cometer adultério com a mulher doutro homem, com a mulher do seu próximo, o homem e a mulher adúltera serão punidos com a mórte» (Lv 20,10) — mas no conjunto julga antecipadamente a mulher tratando-a com maior severidade.

3. Seria necessário talvez pôr em relevo a linguagem desta legislação, que, como sempre em tal caso, é linguagem objectivamente da sexologia daquele tempo. É também linguagem importante para o conjunto das reflexões sobre a teologia do corpo. Encontramos nela a específica confirmação do carácter de pudor que circunda o que, no homem, pertence ao sexo. Mais, o que é sexual é em certo sentido considerado como «impuro» especialmente quando se trata das manifestações fisiológicas da sexualidade humana. O «descobrir a nudez» (cf. por ex. Lv. 20, 11, 17-21) é estigmatizado como o equivalente de um ilícito acto sexual realizado; já a mesma expressão parece aqui bastante eloquente. Não há dúvida que o legislador procurou servir-se da terminologia correspondente à consciência e aos costumes da sociedade contemporânea. Assim, pois, a linguagem da legislação antigotestamentária deve confirmar-nos na convicção de que não só são conhecidas ao legislador e à sociedade a fisiologia do sexo e as manifestações somáticas da vida sexual, mas também que estas são avaliadas de modo determinado. Difícil é escapar-se à impressão de que tal avaliação tinha carácter negativo. Isto não anula certamente a verdade de que temos conhecimento pelo Livro do Génesis, nem se pode inculpar o Antigo Testamento — e, entre outros, também os Livros legislativos — de ser como precursor do maniqueísmo. O juízo lá expresso a respeito do corpo e do sexo não é tão «negativo» nem tão severo, mas antes marcado por um objectivismo motivado pelo intento de pôr ordem nesta esfera da vida humana. Não se trata directamente da ordem do «coração», mas da ordem de toda a vida social, em cuja base estão, desde sempre, o matrimónio e a família.

4. Se se toma em consideração a problemática «sexual» no conjunto, convém talvez ainda dirigir brevemente a atenção para .outro aspecto, isto é, para o laço existente entre a moralidade, a lei e. a medicina, posto em evidência nos respectivos Livros do Antigo Testamento. Estes contêm não poucas prescrições práticas quanto ao âmbito da higiene, ou antes o da medicina, marcado mais pela experiência que pela ciência, segundo o nível então atingido (3). E, por outro lado, o laço experiência-ciência é notoriamente ainda actual. Nesta vasta esfera de problemas, a medicina acompanha sempre de perto a ética; e a ética, como também a teologia, procura a colaboração dela.

5. Quando Cristo no sermão da montanha pronuncia as palavras «Ouvistes que foi dito: Não cometereis adultério», e imediatamente acrescenta: «Mas eu digo-vos...», é claro que deseja reconstruir na consciência dos seus ouvintes o significado ético próprio deste mandamento, apartando-se da interpretação dos «doutores», especialistas oficiais da lei. Mas, além da interpretação proveniente da tradição, o Antigo Testa-mento oferece-nos ainda outra tradição para compreender o manda-mento «não cometereis adultério». E é a tradição dos Profetas. Estes, fazendo referência ao «adultério», queriam recordar «a Israel e a Judá» que o seu pecado maior era o abandono do único e verdadeiro Deus em favor do culto a vários ídolos, que o povo eleito, em contacto com os outros povos, tinha feito próprios facilmente e de modo inconsiderado. Assim portanto, é característica própria da linguagem dos Profetas mais a analogia com o adultério que o adultério mesmo; todavia tal analogia serve para compreender também o mandamento «não cometerás adultério »e a interpretação dele, cuja carência se nota nos documentos legislativos. Nos oráculos dos Profetas — particularmente de Isaías, Oseias e Ezequiel — o Deus da Aliança-Javé apresenta-se muitas vezes como Esposo, e o amor com que Ele se uniu a Israel pode e deve identificar-se com o amor esponsal dos cônjuges. E eis que Israel, por causa da sua idolatria e do abandono do Deus-Esposo, comete diante d'Ele uma traição que se pode comparar à da mulher quanto ao marido: comete, precisamente, «adultério».

6. Os Profetas, com palavras eloquentes e muitas vezes mediante imagens e semelhanças extraordinariamente plásticas, apresentam quer o amor de Javé-Esposo quer a traição de Israel-Esposo que se abandona ao adultério. É tema, este, que deverá ser ainda retomado nas nossas reflexões, isto é quando submetermos a análise o problema do «Sacramento»; mas urge até agora tocá-lo ao de leve, enquanto é necessário para compreender as palavras de Cristo, segundo Mt. 5, 27-28, e compreender aquela renovação do «ethos», que estas palavras encerram: «Mas eu digo-vos...». Se, por um lado, Isaías (4) nos seus textos se apresenta no acto de pôr em ressalto sobretudo o amor de Javé-Esposo, que, em todas as circunstâncias, vai ao encontro da Esposa, passando além de todas as suas infidelidades, por outro lado Oseias e Ezequiel abundam em comparações, que esclarecem sobretudo a fealdade e o mal moral do adultério cometido pela Esposa-Israel.

Na próxima meditação procuraremos penetrar mais profundamente ainda nos textos dos Profetas, para esclarecer ulteriormente o conteúdo que, na consciência dos ouvintes do sermão da montanha, correspondia ao mandamento: «não cometerás adultério».

Notas

1. Cf. por exemplo Dt. 21, 10-13; Nm. 30, 7-16; Dt. 24. 1-4; Dt.22, 13-21; Lv. 20, 10-21 e outros.

2. Apesar de o Livro do Génesis apresentar o matrimónio monogâmico de Adão, de Set e de Noé como modelo para ser imitado, e de parecer condenar a bigamia, que surge unicamente nos descendentes de Caim (cf. Gén Gn 4,19), contudo a vida dos Patriarcas fornece outros exemplos contrários. Abraão observa as prescrições da lei de Hammurabi, que permitia desposar segunda mulher no caso de esterilidade da primeira; e Jacob tinha duas mulheres e duas concubinas (cf. Gén Gn 30,1-19).

O Livro do Deuteronómio admite a existência legal da bigamia (cf, Dt 21,15-17) e até da poligamia, advertindo o rei que não tenha mulheres de mais (cf. Dt Dt 17,17); confirma também a instituição das concubinas — prisioneiras de guerra (cf. Dr. 21, 10-14) ou escravas (cf. Ex. Ex 21,7-11), (cf. R. De Vaux, Ancient Israel. Its Life and Institutions, London 1976, Darton, Longman, Todd; PP 24-25). Não há neste livro do A. T. qualquer explícita menção sobre o dever da monogamia, se bem que a imagem apresentada pelos livros posteriores mostre que ela prevalecia na prática social (cf. por ex. os Livros sapienciais, excepto Si 37,11).

3. Cf. por exemplo Lv. 12, 1-6; 15. 1-28; Dt. 21, 12-13.

4. Cf. por exemplo Is. 54; 62, 1-5.

Oração do Papa pela Igreja da Polónia e pela Pátria

Agora, queridos compatriotas, face às notícias que chegam da Polónia, quero reler aqui perante vós, ou melhor, recitar duas orações que a Igreja polonesa costuma rezar: a primeira, na solenidade de Maria Santíssima Rainha da Polónia, a 3 de Maio; e a segunda na solenidade de Nossa Senhora de Czestochowa, a 26 de Agosto. Primeiro, a de 3 de Maio.

"Ó Deus, que na Santíssima Virgem Maria destes à nação polonesa uma admirável ajuda e escudo, concedei bondosamente que por intercessão da nossa Mãe e Rainha, a religião goze sempre da liberdade, e a pátria da segurança".

E agora a segunda, a de 26 de Agosto:

"Ajudai, ó Senhor, ó povo que Vós reforçais com o Vosso Corpo e Sangue, e por intercessão da Vossa Mate Santíssima libertai-o de todo o mal e de todo o perigo, e circundai com a Vossa protecção todas as suas boas obras".

Digam estas orações, por si mesmas, quanto nós aqui presentes em Roma estamos unidos aos nossos compatriotas na Pátria, à Igreja na Polónia; quanto todas as suas vicissitudes nos estão próximo e são caras; e quanto, por todas estas coisas, rogamos a Deus.

Saudações

A um grupo de jovens do Líbano

Dirijo também uma saudação particular aos jovens do grupo "Liban — Esperance" que aqui, fiéis às orientações do seu Patriarca, Sua Beatitude Antoine-Pierre Khoraiche vêm rezar em Roma, em Assis e em Lourdes, por um Líbano pacífico, unificado e reconciliado. A vossa peregrinação, queridos amigos, é a afirmação de uma esperança fundada no amor de Deus, na reconciliação no perdão e na fraternidade, na rejeição do ódio e dos massacres. Todos aqui, estou certo, terão a peito rezar convosco e comigo pela pacificação do Líbano. A vossa esperança é também a minha, e por isso dou-vos uma particular Bênção Apostólica, para vós, para as vossas famílias e todo o vosso queridos país.

A uma peregrinação inglesa

Entre os grupos aqui presentes encontram-se as participantes no Capítulo Geral do Instituto do Sagrado Coração de Maria. A minha oração por vós hoje, queridas Irmãs, é por que o vosso Capítulo ajude todos os membros da vossa Congregação a viverem cada vez mais plenamente o mistério da consagração eclesial a Jesus Cristo, o Filho de Deus e Salvador do mundo. Oxalá todas as vossas discussões, a vossa comparticipação e as estruturas da vossa vida religiosa vos levem a uma renovada oferta de vós mesmas a Jesus vosso Esposo, nesta total generosidade que é a única que pode assegurar a realização e a fecundidade das vossas vidas. E o Sagrado Coração de Maria, sob o qual foi formado o mistério da Redenção, seja a inspiração do vosso zelo em envolver todos os membros de Cristo Jesus em puro amor e generoso serviço.

A uma peregrinação de Eisenstadt, na Áustria

Com especial alegria saúdo hoje o numeroso grupo de peregrinos da Diocese de Eisenstadt, na Austria. Encontrais-vos em Roma acompanhados do vosso Bispo, D. Lázló, para celebrar com alegre gratidão os 20 anos da erecção da vossa Diocese. Ao mesmo tempo quereis com a vossa presença renovar a vossa fidelidade a Cristo e à sua Igreja, e a vossa disposição a colaborar nas tarefas da Igreja ao longo do terceiro decénio da vossa Diocese.

Com gosto vos animo e vos convido a propagar perante o mundo de hoje a mensagem de Cristo em comunhão com os esforços do vosso Bispo, dos sacerdotes, dos religiosos e dos outros leigos, cheios de confiança e da força de Deus. Com isso colaborareis para a salvação dos homens, a salvação que Cristo mostrou à Igreja como sua tarefa e caminho.

Para tanto, de coração vos concedo a todos a minha Bênção Apostólica.

A um grupo de Religiosas espanholas

Uma saudação especial para as Religiosas Escravas da Imaculada Menina. Amadíssimas Irmãs, celebrastes recentemente o Capítulo Geral, que é tempo dedicado à reflexão, ao exame e sobretudo à oração. Quero insistir hoje neste último aspecto: cultivai com empenho assíduo a vida de oração. Todas as vossas actividades de apostolado, a vossa presença no mundo, sirvam para fomentar em todas as ocasiões "a vida escondida com Cristo em Deus, de onde dimana o amor do próximo para a salvação do mundo e a edificação da Igreja" (cf. Perfectae Caritatis PC 6).

Com a minha Bênção Apostólica.

A duas peregrinaçãos de Jovens espanhóis

Saúdo também cordialmente a "Asociación Juvenil de San Luis Gonzaga", de Barcelona.

Queridíssimos jovens: oxalá a recordação deste encontro vos estimule cada dia mais a viverdes com alegria a fé cristã e a serdes mensageiros de paz e amor entre os homens.

A vós e às vossas famílias, uma Bênção especial.

Saúdo também cordialmente o Grupo Juvenil de Teatro do Casal Claret, de Barcelona, e os familiares que os acompanham.

Amadíssimas: alegro-me muito em saber que, com as vossas representações artísticas e outras actividades religiosas, quereis dar vida em vós a uma fé cristã autêntica e difundir entre os outros a mensagem de alegria e de paz do Evangelho.

Abençoo-vos a todos de coração.

Aos Jovens

E agora uma cordial saudação a todos os jovens que, à imitação dos seus coetâneos presentes nas outras Audiências, vieram para dizer ao Papa o seu afecto e receber dele palavras de orientação e de encorajamento. Um particular pensamento dirijo-o ao numeroso grupo de jovens da "Associazione Mariana d'Italia", acompanhada pelos Padres Lazaristas, por ocasião do 150° aniversário das aparições da Santíssima Virgem a Santa Catarina Labouré.

Conhecendo a vossa generosa disponibilidade, desejo chamar a vossa atenção para o dever de um autêntico comportamento cristão na vida. Não considereis, caríssimos filhos, uma riqueza os valores humanos, embora dignos de estima e de serem possuídos; há algo mais. Amor sincero a Deus e a virtude teologal da esperança vos orientem na aquisição dos bens sobrenaturais e eternos; consagrai a estes ideais todas as vossas energias, rejeitando como reprovável para a vossa dignidade baptismal o que não lhe diga respeito. Nisto vos acompanhe a minha Bênção Apostólica que faço extensiva a todos os vossos entes queridos.

Aos Doentes

Também vós, dilectíssimos doentes, que sois parte eleita da Igreja, acolhei a saudação do Sucessor de Pedro. O Senhor olha-vos com especial ternura e atenção e aprecia sobretudo a oferta dos vossos actos de bondade, da vossa fervorosa paciência: Deus escuta de maneira mais evidente as vossas invocações. Eis pois a exortação do Papa: oferecei à inteira Comunidade Eclesial os vossos sofrimentos e as vossas orações, pelas tantas vítimas da desordem, da tensão e do ódio em todo o mundo; a misericórdia de Deus faça com que os homens não se aventem mais uns contra os outros, mas todos se sintam irmãos na construção de uma sociedade empenhada em obras de paz. Para tal obra sublime vós dais a vossa colaboração; e seja-vos de conforto a minha bênção Apostólica.

A jovens Casais

A vós, jovens Casais, que com tanto desvelo programastes na vossa viagem de núpcias também o encontro com o Papa, o meu pensamento de bons votos. Seja o vosso amor imitação do amor de Deus, sem cálculos e sem medidas. Aquilo que a Imitação de Cristo diz do amor divino, pode-se, de facto, aplicar também ao vosso amor, tão profundo e tão santo pela graça sacramental que o aviva: "O amor não sente peso, não conhece fadiga, clama até mais não poder, não se desculpa com a impossibilidade... Ele pode tudo, e realiza e aperfeiçoa muitas coisas, nas quais quem não ama falha e sucumbe" (L. III c. V.).

Amai-vos sempre assim. Com a minha Bênção Apostólica, extensiva aos vossos familiares e parentes.



JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA GERAL

Quarta-feira, 27 de Agosto de 1980




O adultério segundo Cristo
falsificação do sinal e ruptura da aliança pessoal

1. No Sermão da Montanha disse Cristo: «Não penseis que vim revogar mas completar» (Mt 5,17). Para esclarecer em que consiste este «completar», passa em seguida a cada um dos mandamentos, referindo-se também àquele que diz: «Não cometerás adultério». A nossa precedente meditação pretendia mostrar em que modo o conteúdo adequado deste mandamento, querido por Deus, ficou ofuscado por numerosos compromissos na particular legislação de Israel. Os Profetas, que no seu ensinamento denunciam muitas vezes o abandono do verdadeiro Deus-Javé por parte do povo, comparando-o ao «adultério», põem em realce, do modo mais autêntico, este conteúdo.

Oseias não só com as palavras, mas (quanto parece) também com o procedimento, preocupa-se com revelar-nos que a traição do povo é semelhante à conjugal, melhor, mais ainda, ao adultério praticado como prostituição: «Vai, toma por mulher uma prostituta, e gera filhos de prostituição, porque a nação não cessa de se prostituir, afastando-se do Senhor» (Os 1,2). O Profeta adverte em si esta ordem e aceita-a como proveniente de Deus-Javé: «O Senhor disse-me: 'Vai de novo e ama uma mulher que é amante e assim adultera'» (Os 3,1). De facto, apesar de Israel ser tão infiel quanto ao seu Deus, como a esposa que «seguia os seus amantes sem pensar sequer em Mim» (Os 2,15), todavia Javé não cessa de procurar a Sua esposa, não se cansa de esperar a conversão e o regresso dela, confirmando esta atitude com as palavras e com as acções do Profeta: «Naquele dia — diz o Senhor — ela Me chamará: 'Meu marido' e já não: 'Meu senhor'... Então te desposarei para sempre; desposar-te-ei conforme a justiça e o direito, com misericórdia e amor. Desposar-te-ei com fidelidade, e tu conhecerás o Senhor» (Os 2,18 Os 2,21-22). Este apelo instante à conversão da infiel esposa-cônjuge decorre a par e passo com a seguinte ameaça: «Afaste ela da sua face as suas fornicações e os adultérios dentre os seus seios, não suceda que eu a despoje, deixando-a nua, e a ponha como no dia em que nasceu» (Os 2,4-5).

2. Tal imagem da humilhante nudez do nascimento foi recordada, a Israel-esposa infiel, pelo profeta Ezequiel, e em medida ainda mais avantajada: «...Com desprezo por ti foste exposta no meio do campo, no dia do teu nascimento. Passei junto de ti e vi revolver-te em teu sangue. E disse-te: Vive! Fiz-te crescer como a erva dos campos. Desenvolveste-te e tornaste-te núbil, os teus seios tomaram configuração, alongaram-se os teus cabelos. Porém, tu estavas nua. E passando junto de ti, vi que era a tua idade, a idade das paixões. Estendi sobre ti a aba da minha capa e cobri a tua nudez; depois fiz contigo um acordo, ligando-te a mim por juramento — oráculo do Senhor Deus — e tu me pertenceste... Pus um anel no teu nariz, brincos nas orelhas e uma magnífica coroa na tua cabeça. Os teus adornos eram de ouro, de prata; foste vestida de linho fino, de seda e de tecidos bordados a cores... A fama da tua beleza correu através das nações, pois era perfeita esta beleza, graças à magnificência com que te preparei... Mas confiaste em tua beleza, serviste-te da tua reputação para te prostituíres e ofereceste as tuas devassidões a todo aquele que passava... Oh! como o teu coração é devasso! — oráculo do Senhor Deus — para teres procedido como uma atrevida mulher de mau porte, por haveres construído uma colina em cada encruzilhada e um alto lugar à entrada de todas as ruas sem que, ao menos, procurasses um salário como qualquer meretriz! Foste a mulher adúltera que recebe os estranhos em vez do seu marido. (Ez 16,5-8 Ez 16,12-15 Ez 16,30-32).

3. A citação é um pouco longa, mas o texto é tão importante que era necessário recordá-lo. A analogia entre o adultério e a idolatria é nele expressa de modo especialmente enérgico e exaustivo. O momento similar entre os dois elementos da analogia consiste na aliança acompanhada pelo amor. Deus-Javé conclui pelo amor a aliança com Israel — sem seu mérito; torna-se para ele como o esposo e cônjuge mais afectuoso, mais solícito e mais generoso para com a própria esposa. Por este amor, que desde os alvores da história acompanha o povo eleito, Javé-Esposo recebe em troca numerosas traições: «Os altos lugares» — eis os locais do culto idolátrico, em que é cometido «o adultério» de Israel-esposa. Na análise que estamos aqui desenvolvendo, o essencial é o conceito de adultério, de que Ezequiel se serve. Pode-se dizer todavia que o conjunto da situação, em que este conceito foi inserido (no âmbito da analogia), não é típico. Trata-se aqui não tanto de uma escolha mútua, feita pelos esposos, que nasce do amor recíproco, mas da escolha da esposa (isto já desde o momento do seu nascimento), escolha proveniente do amor do esposo, amor que, por parte do esposo mesmo, é acto de pura misericórdia. Em tal sentido se desenha esta escolha: corresponde àquela parte da analogia pela qual é qualificada a aliança de Javé com Israel; todavia, corresponde menos à segunda parte dela, pela qual é qualificada a natureza do matrimónio. Certamente, a mentalidade daquele tempo não era muito sensível a esta realidade — segundo os Israelitas o matrimónio era mais o resultado de. uma escolha unilateral, muitas vezes feita pelos pais —, todavia tal situação dificilmente entra no âmbito das nossas concepções.


AUDIÊNCIAS 1980 - AUDIÊNCIA GERAL