AUDIÊNCIAS 1980 - AUDIÊNCIA GERAL


JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA GERAL

Quarta-feira, 8 de Outubro de 1980




Interpretação psicológica e teológica do conceito de concupiscência

1. Desejo levar hoje a termo a análise das palavras pronunciadas por Cristo, no Sermão da Montanha, sobre o «adultério» e a «concupiscência», e em particular do último elemento do enunciado, em que se define especificamente a «concupiscência do olhar» como «adultério cometido no coração».

Já precedentemente verificámos qu e estas palavras são ordinariamente entendidas como desejo da mulher do próximo (isto é, segundo o espírito do nono mandamento do Decálogo). Parece contudo que esta interpretação — mais restritiva — pode e deve alargar-se à luz do contexto global. Parece que a apreciação moral da concupiscência (do «olhar para desejar»), a que Cristo chama «adultério cometido no coração», depende sobretudo da mesma dignidade pessoal do homem e da mulher; isto vale tanto para aqueles que não se encontram unidos em matrimónio, como — e talvez mais — para aqueles que são marido e mulher.

2. A análise, que até agora fizemos do enunciado de Mt.5, 27-28 «Ouvistes que foi dito: Não cometerás adultério. Eu porém digo-vos que todo aquele que olhar para uma mulher, desejando-a, já cometeu adultério com ela no seu coração», indica a necessidade de ampliar e sobretudo aprofundar a interpretação anteriormente apresentada, a respeito do sentido ético que tal enunciado encerra. Detemo-nos na situação descrita pelo Mestre, situação em que quem «comete adultério no coração», mediante um acto interior de concupiscência (expresso pelo olhar), é o homem. Significativo é Cristo, falando do objecto de tal acto, não sublinhar que é «a mulher do próximo», ou a mulher que não é a própria esposa, mas diz genericamente: a mulher. O adultério cometido «no coração» não está circunscrito nos limites da relação interpessoal, os quais consentem verificar o adultério cometido «no corpo». Não são tais limites que decidem exclusiva e essencialmente do adultério cometido «no coração», mas a natureza mesma da concupiscência, expressa neste caso pelo olhar, isto é, pelo facto de aquele homem — de quem, a título de exemplo, fala Cristo — «olhar para desejar». O adultério «no coração» é cometido não só porque o homem «olha» de tal modo a mulher que não é sua esposa, mas mesmo porque olha assim para uma mulher. Também se olhasse deste modo para a mulher que é sua esposa cometeria o mesmo adultério «no coração».

3. Este interpretar parece considerar, de modo mais amplo, o que no conjunto das presentes análises foi dito sobre a concupiscência, e em primeiro lugar sobre a concupiscência da carne, como elemento permanente da pecaminosidade do homem (status naturae lapsae). A concupiscência que, como acto interior, nasce desta base (como procurámos indicar na precedente análise) muda a intencionalidade mesma do existir da mulher «para» o homem, reduzindo a riqueza da perene chamada à comunhão das pessoas, a riqueza do profundo atractivo da masculinidade e da feminilidade, unicamente à satisfação da «necessidade» sexual do corpo (a que parece ligar-se mais de perto o conceito de «instinto»). Tal redução faz que a pessoa (neste caso, a mulher) se torne para a outra pessoa (para o homem) sobretudo o objecto da satisfação potencial da própria «necessidade» sexual. Deforma-se deste modo aquele recíproco «para», que perde o seu carácter de comunhão das pessoas em favor da função utilitarista. O homem que «olha» de tal modo, como escreve Mt. 5, 27-28, «serve-se» da mulher, da sua feminilidade, para satisfazer o próprio «instinto». Embora não o faça com acto exterior, já no seu íntimo tomou essa atitude, interiormente decidindo assim a respeito de uma determinada mulher. Nisto consiste precisamente o adultério «cometido no coração». Tal adultério «no coração» pode cometê-lo o homem mesmo a respeito da própria mulher, se a trata apenas como objecto de satisfação do instinto.

4. Não é possível chegarmos à segunda interpretação das palavras de Mt. 5, 27-28, se nos limitamos à interpretação puramente psicológica da concupiscência, sem ter em conta aquilo que forma o seu específico carácter teológico, isto é, a relação orgânica entre a concupiscência (como acto) e a concupiscência da carne, como, por assim dizer, disposição permanente que deriva da pecaminosidade do homem. Parece que a interpretação puramente psicológica (ou «sexuológica») da «concupiscência» não constitui base suficiente para compreender o referido texto do Sermão da Montanha. Se, pelo contrário, nos atemos à interpretação teológica, — sem deixar de ter em conta o que na primeira interpretação (a psicológica) permanece imutável — ela, isto é, a segunda interpretação (a teológica) aparece-nos como mais completa. Graças a ela, de facto, torna-se mais claro ainda o significado ético do enunciado-chave do Sermão da Montanha, a que devemos a adequada dimensão do ethos do Evangelho.

5. Ao delinear esta dimensão, Cristo permanece fiel à Lei: «Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas: Não vim revogar, mas completar» (Mt 5,17). Por conseguinte, mostra quanto é necessário descer em profundidade, quanto é necessário desvelar a fundo as trevas do coração humano, para este coração poder tornar-se lugar de «cumprimento» para a Lei. O enunciado de Mt. 5, 27-28, que torna manifesta a perspectiva interior do adultério cometido «no coração» — e nesta perspectiva aponta os caminhos justos para se cumprir o mandamento «não cometerás adultério» — é disso argumento singular. Este enunciado (Mt 5,27-28) refere-se, de facto, à esfera em que se trata de modo particular da «pureza do coração» (cf. Mt Mt 5,8) (expressão que na Bíblia — como é sabido — tem sentido lato). Também noutra passagem teremos ocasião de considerar de que modo o mandamento «não cometerás adultério» — que, quanto ao modo em que vem expresso e ao conteúdo, é proibição unívoca e severa (como o mandamento «não cobiçarás a mulher do teu próximo», Ex 20,17) — se cumpre exactamente mediante a «pureza do coração». Da severidade e força da proibição dão testemunho indirectamente as sucessivas palavras do texto do sermão da Montanha, em que fala Cristo figurativamente de «arrancar o olho» e de «cortar a mão», quando estes membros fossem causa de pecado (cf. Mt Mt 5,29-30). Verificámos precedentemente que a legislação do Antigo Testamento, abundando embora em castigos caracterizados pela severidade, não contribuía contudo «para dar cumprimento à Lei», porque a sua casuística estava assinalada por múltiplos compromissos com a concupiscência da carne. Cristo, pelo contrário, ensina que o mandamento se cumpre através da «pureza do coração», que não é participada ao homem senão à custa de firmeza relativamente a tudo o que tem origem na concupiscência da carne. Adquire a «pureza de coração» quem sabe exigir coerentemente do seu «coração»: do seu «coração» e do seu «corpo».

6. O mandamento «não cometerás adultério» encontra a sua justa motivação na indissolubilidade do matrimónio, em que o homem e a mulher, em virtude do original desígnio do Criador, se unem de modo que «os dois sejam uma só carne» (cf. Gén Gn 2,24). O adultério, por sua essência, contrasta com tal unidade, no sentido em que esta unidade corresponde à dignidade das pessoas. Cristo não só confirma este essencial significado ético do mandamento, mas tende a considerá-lo na profundidade mesma da pessoa humana. A nova dimensão do ethos está ligada sempre com a revelação daquele profundo, que é chamado «coração», e com ficar ele liberto da «concupiscência», de modo que naquele coração possa resplandecer mais plenamente o homem: varão e mulher, em toda a verdade interior do recíproco «para». Liberto do constrangimento e da diminuição de espírito que a concupiscência da carne traz consigo, o ser humano — varão e mulher — encontra-se reciprocamente na liberdade do dom que é condição de toda a convivência na verdade, e, em particular, na liberdade do recíproco dar-se, pois ambos, como marido e mulher, devem formar a unidade sacramental querida, como diz Génesis, 2, 24, pelo Criador mesmo.

7. Como é evidente, a exigência, que no Sermão da Montanha Cristo impõe a todos os seus ouvintes actuais e potenciais, pertence ao espaço interior em que o homem — precisamente aquele que O ouve — deve discernir de novo a plenitude perdida da sua humanidade e querer readquiri-la. Esta plenitude na relação recíproca das pessoas — do homem e da mulher — o Mestre reivindica-a em Mt. 5, 27-28, tendo diante dos olhos sobretudo a indissolubilidade do matrimónio, mas também toda a outra forma de convivência dos homens e das mulheres, daquela convivência que forma a pura e simples trama da existência. A vida humana, por sua natureza, é «coeducativa», e a sua dignidade e o seu equilíbrio dependem, em todo o momento da história e em todo o ponto de longitude e de latitude geográfica, de «quem» será ela para ele e ele para ela.

As palavras pronunciadas por Cristo no Sermão da Montanha têm indubitavelmente este alcance universal e ao mesmo tempo profundo. Só assim podem entender-se na boca d'Aquele, que até ao âmago «conhecia o interior de cada um» (Jn 2,25), e, ao mesmo tempo, levava em si o mistério da «redenção do corpo» como se exprimirá São Paulo. Devemos temer a severidade destas palavras ou antes ter confiança no seu conteúdo salvífico, no seu poder?

Seja como for, a análise feita das palavras pronunciadas por Cristo no Sermão da Montanha abre caminho para novas reflexões indispensáveis para se ter pleno conhecimento do homem «histórico», e sobretudo do homem contemporâneo: da sua consciência e do seu «coração».

Saudações

Aos membros da "Association Saint-Benoît, Patron de 1'Europe"

A "Association Saint-Benoît, Patron de L'Europe", que acaba de ter o seu Congresso anual em Núrsia, dirijo de todo o coração algumas palavras de encorajamento. Recebestes a graça de uma sensibilidade particular pela obra realizada há quinze séculos por São Bento e pelos seus filhos. Oxalá este dom do Senhor vos leve a servir cada vez mais a Igreja e a sociedade actual com o ardor e o realismo dos melhores discípulos do Patriarca dos monges do Ocidente! Aumentai em vós e despertai à vossa volta o amor da contemplação, a paixão dos valores espirituais! Reuni humilde e corajosamente os meios a evangelizar! Eles são tão diversos e tão numerosos! Em tudo isto tende a preocupação constante de agir individual e colectivamente, em união estreita com os Pastores que Deus vos deu, e que são os primeiros responsáveis da evangelização. A convergência das forças apostólicas é um imperativo de sempre e especialmente dos nossos dias. São Bento vos cumule de graças eleitas! Eu próprio de bom grado vos abençoo.

A um grupo de jornalistas suíços

Saúdo muito particularmente os jornalistas suíços que vieram tomar contacto nestes dias com o Vaticano e a organização da Santa Sé, de modo especial com o Secretariado para a União dos Cristãos. Sede bem-vindos.

Agradeço-vos, queridos amigos, o interesse que tendes pela organização central da Igreja católica. Espero que esta visita vos faça compreender concretamente que a Cúria romana tem um único objectivo: o serviço das Igrejas locais, da sua unidade e da sua comunhão na fé e a fidelidade à missão da Igreja; numa palavra e vós encontrareis nela uma preocupação que vos é certamente querida —, o serviço da verdade, na fidelidade ao Senhor.

À peregrinação da "Aliance agricole chrétienne", da Bélgica

Dirijo também uma cordial saudação a todos os membros da peregrinação organizada pela Aliança agrícola cristã da Bélgica e aos seus numerosos colegas dos Países Baixos que se juntaram a eles. A todos vós, queridos amigos, desejo manifestar a minha alegria por este hodierno encontro convosco. De todo o coração vos prometo a minha oração, e dou-vos a Bênção Apostólica, a vós, aos membros das vossas famílias e a todos aqueles que representais.

A um grupo de doentes e deficientes assistidos pela "Across Trust"

Com particular afecto saúdo o grupo de doentes e de deficientes assistidos pela "Across Trust". Tende a certeza, queridos amigos, de que a vossa presença nesta audiência tem um significado especial para mim, da mesma maneira que toda a vossa vida tem um significado especial para a Igreja inteira. Faço votos por que aqui em Roma possais descobrir cada vez mais profundamente o amor de Cristo, e revelá-lo com eficácia cada vez maior a todos aqueles que estão em contacto convosco. E o Senhor abençoe todos aqueles que vos assistem, em seu nome.

Aos Estudantes do Colégio Inglês de Roma

Dou as minhas cordiais boas-vindas aos novos estudantes do Venerável Colégio Inglês. Seguindo uma longa e esplêndida tradição, viestes a Roma para vos preparardes para o sacerdócio de Jesus Cristo. Tereis aqui especiais oportunidades para estudar sagrada teologia, compreender a história da Igreja e tomar contacto vital com a sua catolicidade. Mas o vosso maior desafio será conhecer Cristo, crescer na sabedoria da Cruz, e permanecer unidos a ele como ramos unidos à videira. Cristo chama-vos para uma amizade profunda para com ele. E a generosidade da vossa resposta — se disserdes sim influenciará com eficácia todos os ministérios que vierdes a exercer na vossa vida. Recordai-vos que Jesus está a dizer realmente a cada um de vós: "Permanecei no meu amor" (Jn 15,9).

A diversos grupos de língua alemã

Saúdo cordialmente na audiência de hoje o grupo de sacerdotes da diocese de Aachen com o seu pastor, o Bispo D. Hemmerle. A vossa peregrinação aos antigos e sagrados lugares cristãos na Cidade Eterna, faz-vos voltar, queridos irmãos, às origens do mandato apostólico "Ide e ensinai todas as nações, ensinando-as a cumprir tudo quanto vos tenho mandado" (Mt 28,19). Os Apóstolos, cujos Túmulos jazem sob os nossos pés, transmitiram-nos estas palavras de Jesus. Como sacerdotes sois hoje chamados a continuar a levar a cabo nas vossas vidas, este mandato de Cristo. Permiti que a graça, que habita em vós pela imposição das mãos, cresça renovadamente e dê frutos na construção espiritual das vossas comunidades e do reino de Deus no mundo. Peço-vos isto com a minha especial Bênção Apostólica.

Saúdo de coração os membros e amigos dos diáconos do Pontifício Colégio Húngaro-Germânico aqui presentes, que em breve vão receber a Ordenação sacerdotal. Felicito as suas famílias por esta enorme graça que lhes foi outorgada, e de todo o coração as abençoo assim como aos seus filhos.

Finalmente, dirijo uma cordial saudação à grande peregrinação diocesana da Diocese de Münster. Aproveitando a vossa visita a Roma durante o Sínodo dos Bispos, recomendo ao vosso cuidado e às vossas orações de modo muito especial, o seu principal Mina de consulta, isto é, a família. A família é o primeiro lugar onde deveis viver a vossa vocação cristã e conservar-vos como autênticos cristãos. Procurai criar uma verdadeira imagem cristã das vossas famílias e conservá-la através das vossas responsabilidades civis e sociais. Para isso concedo a todos os peregrinos aqui presentes a Bênção Apostólica no amor de Cristo.

A um grupo de peregrinos de Pádua (Itália)

E agora vai uma saudação especial para o grupo dos dirigentes e dos sócios do "Club Ignoranti", vindos da Diocese de Pádua, por ocasião do 90° aniversário de fundação.

Caríssimos paduanos, agradeço-vos esta visita e exprimo-vos o meu apreço pelas nobres actividades humanitárias e assistenciais que, no espírito do vosso moto "Charitas in Iaetitia", realizais sobretudo em favor dos anciãos e dos jovens marginalizados pela sociedade. Sirva-vos de encorajamento a minha particular Bênção, que de bom grado faço extensiva a todos os que vos são queridos.



JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA GERAL

Quarta-feira, 15 de Outubro de 1980




Valores evangélicos e deveres do coração humano

1. Durante os nossos numerosos encontros das quartas-feiras, fizemos particularizada análise das palavras do Sermão da Montanha, em que Cristo se refere ao «coração» humano. Como agora sabemos, as Suas palavras são vinculantes. Cristo diz: «Ouvistes que foi dito: Não cometerás adultério. Eu porém digo-vos que todo aquele que olhar para uma mulher, desejando-a, já cometeu adultério com ela no seu coração» (Mt 5,27-28). Esta alusão ao coração faz ressaltar a dimensão da interioridade humana, a dimensão do homem interior, própria da ética, e ainda mais da teologia do corpo. O desejo, que surge no âmbito da concupiscência da carne, é ao mesmo tempo realidade interior e teológica,a qual, em certo modo, é experimentada por todo o homem «histórico». E é exactamente este homem — mesmo se não conhece as palavras de Cristo — que faz continuamente a si mesmo a pergunta acerca do próprio «coração». As palavras de Cristo fazem que tal pergunta seja particularmente explícita: o coração é acusado ou é chamado ao bem? E esta pergunta desejamos agora tomá-la em consideração, perto do fim das nossas reflexões e análises, relacionadas com a frase tão concisa e ao mesmo tempo categórica do Evangelho, tão cheia de conteúdo teológico, antropológico e ético.

A par e passo, eis uma segunda pergunta, mais «prática»: como «pode» e «deve» proceder o homem, que aceita as palavras de Cristo no Sermão da Montanha, o homem que aceita o ethos do Evangelho, e, em particular, o aceita neste campo?

2. Este homem encontra, nas considerações até agora feitas, a resposta, pelo menos indirecta, às duas perguntas: como «pode» actuar, isto é, sobre que pode contar no seu «íntimo», na fonte dos seus actos «interiores» ou exteriores»? E além disso: como «deveria» actuar, isto é, em que modo os valores conhecidos segundo a «escala» revelada no Sermão da Montanha constituem um dever da sua vontade e do seu «coração», dos seus desejos e das suas opções? De que modo, se «obrigam» na acção, no comportamento, se, acolhidas mediante o conhecimento, o «obrigam» já no pensar e, em certa maneira, no «sentir»? Estas perguntas são significativas para a «prática» humana, e indicam um laço orgânico da «prática» mesma com o ethos.A moral viva é sempre ethos da prática humana.

3. Às sobreditas perguntas pode-se responder de vários modos. De facto, quer no passado quer hoje, são dadas respostas diversas. Isto é confirmado por abundante literatura. Além das respostas que encontra-mos nela, é preciso tomar em consideração o infinito número de respostas que o homem concreto dá a estas perguntas por si mesmo, aquelas que, na vida de cada um, dá repetidamente a sua consciência, a sua ciência e a sua sensibilidade moral. Precisamente neste âmbito existe continuamente uma compenetração do ethos e da prática. Aqui a própria vida (não exclusivamente «teórica») vive cada princípio, isto é, as normas da moral com as suas motivações, elaboradas e divulgadas por moralistas, mas também aquelas que elabora — seguramente não sem um laço com o trabalho dos moralistas e dos cientistas — cada homem, como autor e sujeito directo da moral real, como co-autor da sua história, de quem depende ainda o nível da moral mesma, o seu progresso ou a sua decadência. Em tudo isto se torna a confirmar, em toda a parte e sempre, aquele «homem histórico», a quem uma vez Cristo falou, anunciando a boa nova evangélica, com o Sermão da Montanha, no qual em particular disse a frase que lemos em Mateus 5, 27-28: «Ouvistes que foi dito: Não cometerás adultério. Eu porém digo-vos que todo aquele que olhar para uma mulher, desejando-a, já cometeu adultério com ela no seu coração».

4. O enunciado de Mateus apresenta-se estupendamente conciso relativamente a tudo quanto sobre este tema foi escrito na literatura mundial. E talvez precisamente nisto consista a sua força na história do ethos. E necessário ao mesmo tempo darmo-nos conta de que a história do ethos decorre num leito uniforme, em que se aproximam ou afastam mutuamente as várias correntes. O homem «histórico» valoriza sempre, a seu modo, o próprio «coração», assim como julga também o próprio «corpo»: e assim passa do pólo do pessimismo ao pólo do optimismo, da severidade puritana ao permissivismo contemporâneo. É necessário darmo-nos conta, para o ethos do Sermão da Montanha poder sempre ter a devida transparência quanto às acções e aos comportamentos do homem. Para tal fim é preciso fazer ainda algumas análises.

5. As nossas reflexões sobre o significado das palavras de Cristo segundo Mateus 5, 27-28 não seriam completas, se não nos detivéssemos — pelo menos brevemente — naquilo que se pode chamar a ressonância destas palavras na história do pensamento humano e da valorização do ethos. A ressonância é sempre transformação da voz e das palavras que a voz exprime. Sabemos pela experiência que essa transformação está por vezes cheia de misterioso encanto. No caso que tratamos, aconteceu antes alguma coisa contrária. De facto, às palavras de Cristo foi antes tirada a sua simplicidade e profundidade e foi conferido um significado que está longe do nelas expresso, significado, no fim de contas, contrário mesmo a elas. Temos aqui na mente tudo o que apareceu à margem do cristianismo sob o nome de Maniqueísmo (1), que procurou mesmo entrar no terreno do cristianismo no que diz respeito exactamente à teologia e ao ethos do corpo. E sabido que, na forma original, o maniqueísmo, nascido no Oriente fora do ambiente bíblico e originado pelo dualismo mazdeísta, indicava a fonte do mal na matéria, no corpo, proclamava portanto a condenação de tudo o que no homem é corpórea E como no homem a corporeidade se manifesta sobretudo através dl sexo, a condenação era estendida ao matrimónio e à convivência conjugal, para além das outras esferas do ser e do actuar, em que se exprime corporeidade.

6. A um ouvido não habituado, a evidente severidade deste sistema podia parecer em sintonia com as severas palavras de Mateus 5, 29-30 em que fala Cristo de «arrancar o olho» ou de «cortar a mão», se este; membros fossem a causa do escândalo. Através da interpretação pura mente «material» destas locuções, era também possível obter uma óptica maniqueia do enunciado de Cristo, em que se fala do homem que «cometeu adultério no coração... olhando para a mulher desejando-a» Também neste caso a interpretação maniqueia tende para a condenação do corpo, como real fonte do mal, dado que nele, segundo o maniqueísmo, se esconde e ao mesmo tempo se manifesta o princípio «ontológico» do mal. Procurava-se portanto descobrir e às vezes percebia-se tal condenação no Evangelho, encontrando-a onde foi pelo contrário expressa exclusivamente uma exigência particular dirigida ao espírito humano.

Note-se que a condenação podia — e pode sempre ser — uma escapatória para a pessoa se subtrair às exigências colocadas no Evangelho por Aquele que «conhecia o interior de cada um» (Jn 2,25). Não faltam provas disso na história. Já tivemos ocasião (e certamente tê-la-emos ainda) para demonstrar em que medida tal exigência pode surgir unicamente de uma afirmação — e não de uma negação e de uma condenação —, se deve levar a uma afirmação ainda mais madura e aprofundada, objectiva e subjectivamente. E a tal afirmação da feminilidade e masculinidade do ser humano, como dimensão pessoal do «ser corpo», devem conduzir as palavras de Cristo segundo Mateus 5, 27-28. Tal é o justo significado ético destas palavras. Imprimem, nas páginas do Evangelho, uma peculiar dimensão do ethos com o fim de a ir imprimindo na vida humana.

Procuraremos retomar este tema nas nossas reflexões seguintes.

Notas

1. O Maniqueismo contem e leva a maturação os elementos característicos de toda a «gnose», quer dizer, o dualismo de dois princípios coeternos e radicalmente opostos, e o conceito de salvação que só se consegue através do conhecimento (gnose) ou da autocompreensão da pessoa. Em todo o meio maniqueu há um só herói e uma só situação que sempre se repete. a alma decaída está aprisionada na matéria e é libertada pelo conhecimento.

A actual situação é negativa para o homem, porque é mistura provisória e anormal de espírito e de matéria, de bem e de mal, que supõe um estado antecedente, original, em que as duas substâncias estavam separadas e independentes. Há por isso três «Tempos»: o «initium», ou seja a separação primordial; o «medium», ou a actual mistura; e o «finis» que está no regresso à divisão original, na salvação, que implica total rotura entre Espírito e Matéria.

A matéria é, no fundo, concupiscência, desregrado apetite do prazer, instinto de morte, comparável, se não idêntico, ao desejo sexual, à «libido». É força que tenta assaltar a Luz; é movimento desordenado, desejo animalesco, brutal e semiconsciente.

Adão e Eva foram gerados por dois demónios; a nossa espécie nasceu de uma série de actos repugnantes de canibalismo e de sexualidade, e conserva os sinais desta origem diabólica, que são o corpo, forma animal dos «Arcontes do inferno», e a «libido», que impele o homem a cruzar-se e a reproduzir-se, isto é, a manter a alma luminosa sempre na prisão.

Se quer ser salvo, o homem deve procurar libertar o seu «eu vivente» (noús) da carne e do corpo. Como a Matéria tem na concupiscência a sua expressão suprema, o pecado capital está na união sexual (fornicação), que é brutalidade e bestialidade, e faz dos homens os instrumentos e os cúmplices do Mal pela procriação.

Os eleitos constituem o grupo dos perfeitos, cuja virtude tem características ascéticas, realizando a abstinência comandada pelos três «selos»: o «selo da boca» proíbe toda a blasfémia e manda a abstenção da carne, do sangue, do vinho, de toda a bebida alcoólica, e também o jejum; o «selo das mãos» manda o respeito da vida (da «Luz») encerrada nos corpos, nas sementes, nas árvores, e proíbe recolher os frutos, arrancar as plantas, tirar a vida aos homens e aos animais; e o «selo do regaço» prescreve total abstinência (cf. H. Ch. Puech: Le Manichéisme; son fondateur, sa doctrine, Paris, 1949 (Musée Guimet t. LV I, (PP 73-88 H. Ch. Puech, Le Manichéisme, em «Histoire des Religions» (Encyclopédie de la Pléiade) II, (Gallimard) 1972, pp. 522-645;J. Ries, Manichéisme, em «Catholicisme hier, aujourd' hui, demain», 34, Lille 1977 (Letouzey-Ané), pp. 314-320).

Saudações

A tripulação do iate real inglês "Britânia"

Uma especial palavra de saudação aos oficiais e à tripulação do Yacht Real Britânia e da Fragata Apolo, que se encontram aqui por ocasião da visita de Sua Majestade a Rainha Isabel II. Faço votos por que a vossa visita vos seja agradável e dela obtenhais inspiração espiritual. Deus vos abençoe e às vossas famílias que estão no vosso país.

A uma peregrinação interdiocesana do Quénia

Recordando a minha maravilhosa visita ao Quénia, saúdo todos os membros do grupo interdiocesano daquela nação. Oxalá a vossa peregrinação à Terra Santa e a Roma vos ajude a confirmar-vos na fé apostólica e no amor a Jesus Cristo, Filho de Deus e Salvador do mundo. Quando regressardes ao vosso país, peço-vos que saudeis da minha parte todos os que vos são queridos e o Quénia inteiro.

A vários grupos de língua alemã

Saúdo de modo especial a numerosa peregrinação da Associação Católica das Mulheres da diocese de Essen, acompanhada do seu Bispo D. Franz Hengsbach; e dirijo também a minha saudação de boas-vindas aos membros do "Círculo da nobreza católica da região da Renânia e Vestefália. Alegra-me a vossa visita à cidade eterna e encomendo às vossas orações junto dos túmulos dos Apóstolos, todas as importantes intenções do presente Sínodo dos Bispos. A família cristã tem necessidade, hoje mais do que nunca, da nossa solidariedade total e da nossa orarão.

Dou também as minhas cordiais felicitações aos novos sacerdotes do Pontifício Colégio Germânico-Húngaro e às suas famílias, por esse grande dia de graça para todos vós. Peço a Cristo, eterno e sumo Sacerdote, que vos conceda uma vida e uma acção que vos satisfaçam pessoalmente, e, sacerdotalmente, sejam ricas de bênçãos. Permanecei fiéis ao vosso "Sim" pronunciado diante do altar, onde Cristo vos constituiu, de modo particular, seus próprios amigos.

Dirijo também as boas-vindas ao "Grupo Coral Schubert" de Bonn, aqui presente por ocasião do 25° aniversário de fundação, e aos numerosos peregrinos da "Associação Santa Cecília", provenientes da Arquidiocese de Paderborn. Sede mensageiros de alegria na veneração de Deus e na edificação espiritual da humanidade, não só mediante os vossos cantos mas também mediante as vossas vidas. Uno a estes votos os meus agradecimentos cordiais pelas vossas harmoniosas canções durante esta Audiência geral.

Por fim. saúdo sinceramente também os membros da "Associação dos empresários cristãos da Áustria" na sua primeira peregrinação a Roma. No encontro com os lugares santos, desejo-vos um maior aprofundamento da vossa fé e graças abundantes, a fim de que leveis a cabo a vossa missão na sociedade, missão cheia de responsabilidade. A vós e a todos os peregrinos aqui presentes, concedo, de coração, a Bênção Apostólica pedindo a Deus a sua assistência e a sua especial protecção.

Aos membros do movimento neocatecumenal dos países da América Latina

Está presente nesta Audiência um grupo de sacerdotes, casais e catequistas pertencentes aos movimentos neocatecumenais de vários Países da América Central.

Saúdo-vos com afecto, queridos irmãos e irmãs que vos dedicais a uma tarefa à qual a Igreja atribui grande importância: a edificação na fé da comunidade eclesial através de uma catequese sistemática, sólida e progressiva. Dedicai-vos com generosidade a esse trabalho tão necessário; sede fiéis à vivência pessoal da mensagem cristã e à transmissão aos outros. Abençoo o vosso propósito de comunhão íntima com os vossos Pastores, o vosso trabalho, as vossas pessoas, famílias e comunidades eclesiais.

Aos membros da Marinha Militar da Venezuela

Uma cordial saudação à peregrinação dos membros da Marinha Venezuelana, acompanhada, nesta Audiência, pelo Director Nacional dos Capelães das Forças Armadas, D. Marcial Augusto Ramirez Ponce, Bispo Auxiliar de Caracas.

Alegro-me com a vossa presença, por meio da qual quisestes dar testemunho dos vossos sentimentos de fé e de gratidão ao Senhor. Oxalá vejais sempre no vosso serviço diário à Pátria uma chamada a serdes mensageiros conscientes e incansáveis de paz e fermento de vida cristã entre os vossos companheiros e nas vossas famílias.

Aos participantes no I Congresso Nacional dos Médicos italianos dos Transportes

Uma saudação particularmente cordial vai também para os participantes no Primeiro Congresso Nacional, organizado pelo Colégio dos Médicos Italianos dos Transportes. Ao mesmo tempo que vos agradeço este vosso gesto de estima e dedicação, exprimo-vos o meu vivo apreço pela obra científica e social que realizais neste sector, e faço votos por que aperfeiçoeis cada vez mais este vosso empenho relativo à problemática sanitária nos vários géneros de transporte: ferroviário, estradal, marítimo, aéreo e fluvial. A caridade cristã seja sempre o ideal que vos acompanha nas vossas actividades. A bênção, que de boa vontade vos concedo, a vós e às vossas famílias, vos ajude.



JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA GERAL

Quarta-feira, 22 de Outubro de 1980




Realização do valor do corpo segundo o plano do Criador

1. No centro das nossas reflexões nos encontros das quartas-feiras, está há muito o seguinte enunciado de Cristo no Sermão da Montanha: «Ouvistes que foi dito: Não cometerás adultério. Eu porém digo-vos que todo aquele que olhar para uma mulher, desejando-a, já cometeu adultério com ela no seu coração» (Mt 5,27-28). Estas palavras têm significado essencial para toda a teologia do corpo, encerrada no ensinamento de Cristo. Portanto, com razão atribuímos grande importância à correcta compreensão e interpretação delas. Já na nossa precedente reflexão verificámos que a doutrina maniqueia, nas suas expressões quer primitivas quer posteriores, está em contraste com estas palavras.

Não é, de facto, possível descobrir, na frase do sermão da Montanha aqui analisada, «condenação» ou acusação do corpo. Quando muito, poder-se-ia entrevei nela condenação do coração humano. Todavia, as nossas reflexões até agora feitas menifestam que, se as palavras de Mateus 5, 27-28 contêm uma acusação, o objecto desta é sobretudo o homem da concupiscência. Com estas palavras o coração é não tanto acusado quanto submetido a um juízo ou, melhor, chamado a um exame crítico, antes, autocrítico: se sucumbe ou não à concupiscência da carne. Penetrando o significado profundo da enunciação de Mateus 5, 27-28, devemos todavia reparar que o juízo lá encerrado acerca do «desejo», como acto de concupiscência da carne, contém em si não a negação, mas antes a afirmação do corpo, como elemento que juntamente com o espírito determina a subjectividade ontológica do homem e participa na sua dignidade de pessoa. Assim portanto, o juízo sobre a concupiscência da carne tem significado essencialmente diverso daquele que pode pressupor a ontologia maniqueia do corpo e necessariamente dela brota.

2. O corpo, na sua masculinidade e feminilidade, é «desde o princípio» chamado a tornar-se a manifestação do espírito. Torna-se tal coisa mediante também a união conjugal do homem e da mulher, quando se unem de modo que formem «uma só carne». Noutra passagem (cf. Mt Mt 19,5-6) Cristo defende os direitos invioláveis desta unidade, mediante a qual o corpo, na sua masculinidade e feminilidade, assume o valor de sinal — sinal em certo sentido sacramental; e além disso, prevenindo contra a concupiscência da carne, exprime a mesma verdade acerca da dimensão ontológica do corpo e confirma-lhe o significado ético, coerente com o conjunto do seu ensinamento. Este significado ético nada tem em comum com a condenação maniqueia, mas está profundamente compenetrado pelo mistério da «redenção do corpo», sobre o qual escreverá São Paulo na carta aos romanos (cf. Rom Rm 8,23). A «redenção do corpo» não indica, todavia, o mal ontológico como atributo constitutivo do corpo humano, mas aponta só para a pecaminosidade do homem, em virtude da qual este perdeu, entre outras coisas, o sentido límpido do significado esponsal do corpo, em que se exprime o domínio interior e a liberdade do espírito. Trata-se aqui — como já fizemos notar precedentemente — de uma perda «parcial», potencial, em que o sentido do significado esponsal do corpo se confunde, em certo sentido, com a concupiscência e permite facilmente ser por ela absorvido.

3. A interpretação apropriada das palavras de Cristo segundo Mateus 5, 27-28, como também a «prática» em que se actuará sucessivamente o autêntico «ethos» do sermão da Montanha, devem ser completamente libertadas de elementos maniqueus no pensamento e na atitude. A atitude maniqueia levaria a uma «aniquilação», se não real ao menos intencional, do corpo, a uma negação do valor do sexo humano, da masculinidade e feminilidade da pessoa humana ou pelo menos só à sua «tolerância» nos limites da «necessidade», delimitada pela necessidade da procriação. Pelo contrário, com base nas palavras de Cristo no sermão da Montanha, o «ethos» cristão é caracterizado por uma transformação da consciência e das atitudes da pessoa humana, quer do homem quer da mulher, tal que manifeste e realize o valor do corpo e do sexo, segundo o desígnio original do Criador, colocados ao serviço da «comunhão das pessoas» que é o substrato mais profundo da ética e da cultura humana. Enquanto para a mentalidade maniqueia o corpo e a sexualidade constituem, por assim dizer, um «antivalor», para o cristianismo, ao contrário, permanecem sempre um «valor não suficientemente apreciado», como melhor explicarei mais adiante. A segunda atitude indica qual deve ser a forma do «ethos», em que o mistério da «redenção do corpo».se radica, por assim dizer, no solo «histórico« da pecaminosidade do homem. Isso é expresso pela fórmula teológica, que define o «estado» do homem «histórico» como status naturae lapsae simul ac redemptae.

4. É necessário interpretar as palavras de Cristo no sermão da Montanha (Mt 5,27-28) à luz desta complexa verdade sobre o homem. Se elas encerram certa «acusação» do coração humano, mais lhe dirigem um apelo. A acusação do mal moral, que o «desejo» nascido da concupiscência carnal não dominada esconde em si, é ao mesmo tempo chamada para que se vença este mal. E se a vitória sobre o mal deve consistir no desapego dele (daqui as severas palavras no contexto de Mt 5,27-28), trata-se todavia unicamente de desapegar-se do mal do acto (no caso em questão, do acto interior da «concupiscência»), e nunca de transferir o negativismo de tal acto para o sujeito dele. Semelhante transferência significaria certa aceitação — talvez não plenamente consciente — do «antivalor» maniqueu. Não constituiria verdadeira e profunda vitória sobre o mal do acto, que é mal por essência moral, portanto mal de natureza espiritual; melhor, nele se esconderia o grande perigo de justificar o acto à custa do objecto (aquilo em que está propriamente o erro essencial do «ethos» maniqueu). É evidente exigir Cristo, em Mateus 5, 25-28, um desapego do mal da «concupiscência» (ou do olhar com desejo desordenado), mas o seu enunciado não deixa de nenhum modo supor que seja um mal o objecto daquele desejo, isto é, a mulher para que «se olha desejando-a». (Esta precisação parece às vezes faltar nalguns textos «sapienciais»).

5. Devemos, portanto, precisar a diferença entre a «acusação» e o «apelo». Como a acusação dirigida ao mal da concupiscência é ao mesmo tempo apelo para o vencer, esta vitória deve por consequência unir-se a um esforço para descobrir o autêntico valor do objecto, para que no homem, na sua consciência e na sua vontade, não se desenvolva o «antivalor» maniqueu. De facto, o mal da «concupiscência», isto é, do acto de que fala Cristo em Mateus 5, 27-28, faz que o objecto, ao qual ele se dirige, constitua para o sujeito humano um «valor não suficientemente apreciado». Se nas palavras analisadas do Sermão da Montanha (Mt 5,27-28) o coração humano é «acusado» de concupiscência (ou se é posto em guarda contra aquela concupiscência), simultaneamente mediante as mesmas palavras é ele chamado a descobrir o sentido pleno daquilo que no acto de concupiscência constitui para ele um «valor não suficientemente apreciado». Como sabemos, Cristo disse: «Todo aquele que olhar para uma mulher, desejando-a, já cometeu adultério com ela no seu coração». O «adultério cometido no coração» pode e deve entender-se como «desvalorização», ou como depauperamento de um valor autêntico, como intencional privação daquela dignidade, a que na pessoa em questão corresponde o valor integral da sua feminilidade. As palavras de Mateus 5, 27-28 contêm um apelo a que se descubra esse valor e essa dignidade, e a que se reafirmem. Parece que, só entendendo assim as citadas palavras de Mateus, se lhes respeita o alcance semântico.

Para concluir estas concisas considerações, é preciso uma vez mais verificar que o modo maniqueu de entender e valorizar o corpo e a sexualidade do homem é essencialmente estranho ao Evangelho, não conforme ao significado exacto das palavras do Sermão da Montanha, pronunciado por Cristo. O apelo a que se domine a concupiscência da carne brota precisamente da afirmação da dignidade pessoal do corpo e do sexo, e unicamente serve tal dignidade. Cometeria erro essencial quem desejasse tirar destas palavras uma perspectiva maniqueia.

Saudações


AUDIÊNCIAS 1980 - AUDIÊNCIA GERAL