AUDIÊNCIAS 1980 - AUDIÊNCIA GERAL

A pureza é exigência do amor. É a dimensão da sua verdade interior no «coração» do homem.

Saudações

Aos Irmãos de São Gabriel

Saúdo de modo muito especial os Irmãos de São Gabriel que seguiram as pegadas de São Luís Maria Grignion de Monfort para uma renovação espiritual.

Representais aqui, queridos Irmãos, uma Congregação que se dedica à educação cristã da juventude com zelo e competência. O Espírito Santo vos dê a sua luz e a sua força para esta tarefa tão querida à Igreja! A Virgem Maria vos guie, a fim de que vos torneis vós mesmos guias competentes de todos estes jovens que buscam não só saber e formação profissional, mas também sentido cristão da vida. Abençoo-vos de todo o coração.

A um grupo de peregrinos do Japão

Apresento a minha cordial saudação á "Cultural Exchange Mission" da cidade de Kurume, no Japão, presente nesta audiência. Oxalá a vossa visita contribua para a compreensão e a paz internacionais, e enriqueça cada vez mais a vida cultural da vossa cidade, que foi uma das primeiras do vosso país a receber a mensagem cristã. Deus vos abençoe a todos.

A um grupo de Irmãos Cristãos

As minhas especiais boas-vindas ao grupo de Irmãos Cristãos que hoje se encontram aqui. A Igreja está-vos profundamente grata pelos vossos trabalhos em favor do Evangelho e por tudo o que fazeis para tornar Jesus, o Mestre, presente no mundo de hoje. Recordai-vos sempre de que a medida da vossa eficiência depende da totalidade com que vos "situais em Cristo", da totalidade com que aceitais a sua palavra nos vossos corações, da totalidade com que permaneceis no seu amor. O Espírito Santo, mediante a sua acção purificadora, vos leve a que vivais sempre para Jesus e para os vossos irmãos de hábito.

Aos representantes das Confrarias de Sevilha (Espanha)

Saúdo agora cordialmente os membros da peregrinação espanhola do Conselho Geral de Confrarias de Sevilha. Recebo-vos com muito gosto, queridos irmãos e irmãs, que representais tantos outros fiéis, confrades da grande arquidiocese hispânica. Desejo encorajar-vos a um esforço generoso, para que a vossa actividade se dirija a plasmar — antes de tudo na vossa vida pessoal, familiar e social — os verdadeiros valores cristãos, a fim de os alargar até aos outros, sob a direcção dos vossos Pastores e em união com todos quantos partilham dos vossos ideais.

Com estes votos concedo-vos, a vós e aos membros das vossas confrarias, a Bênção Apostólica.

Aos membros do Conselho Geral da Sociedade do Apostolado Católico

Dirijo uma cordial saudação de bons votos ao Padre-Geral e ao Conselho Geral da Sociedade do Apostolado Católico, que se reúnem aos secretários provinciais e regionais para as missões do seu Instituto, juntos nestes dias em congresso. O incremento espiritual, pastoral e material das missões, objecto do vosso estudo, é obra grande e altamente meritória, sobre a qual se pousa o olhar de benevolência e de apreço do divino Redentor. A minha Bênção Apostólica vos acompanhe no vosso trabalho.

Aos jovens da Polidesportiva da paróquia romana de "Santa Maria della Salute"

Saúdo com afecto o grupo de fiéis, entre os quais os jovens, os dirigentes da Polisportiva, e também alguns membros da Associação católica dos trabalhadores católicos da Paróquia romana de "Santa Maria della Salute", acompanhados pelo Pároco. Estou muito contente, caríssimos filhos, por benzer a Imagem de Nossa Senhora, que trouxestes convosco e que é destinada ao pequeno templo erigido em sua honra no centro paroquial de Primavalle. Faço votos por que o vosso populoso bairro se considere "súbdito e devoto" da Virgem Santa com fidelidade cada vez maior ao empenho de testemunho e de operosidade cristã.

Com a minha Bênção Apostólica.



JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA GERAL

Quarta-feira, 10 de Dezembro de 1980



Tradição vétero-testamentária e novo significado de "pureza"

1. Indispensável complemento das palavras pronunciadas por Cristo no Sermão da Montanha sobre as quais centrámos o ciclo das nossas presentes reflexões, deverá ser a análise da pureza. Quando Cristo, explicando o verdadeiro significado do mandamento «Não cometerás adultério», apelou para o homem interior, e especificou ao mesmo tempo a dimensão fundamental da pureza, referindo-se deste modo a elementos característicos das relações recíprocas entre o homem e a mulher no matrimónio e fora do matrimónio. As palavras: «Eu porém digo-vos que todo aquele que olhar para uma mulher, desejando-a, já cometeu adultério com ela no seu coração» (Mt 5,28) exprimem o que está em contraste com a pureza. Ao mesmo tempo, estas palavras exigem a pureza, que no Sermão da Montanha está compreendida no enunciado das bem-aventuranças: «Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus» (Mt 5,8). Desse modo dirige Cristo ao coração humano um apelo: convida-o, não o acusa, como já precedentemente esclarecemos.

2. Cristo vê no coração, no íntimo no homem, a fonte da pureza — e também da impureza moral — no significado fundamental e mais genérico da palavra. Isso é confirmado, por exemplo, pela resposta dada aos fariseus escandalizados com os seus discípulos que «transgridem a tradição dos antigos, pois não lavam as mãos antes das refeições» (Mt 15,2). Jesus disse então aos presentes: «Não é aquilo que entra pela boca que torna o homem impuro, mas o que sai da boca é que torna o homem impuro» (Mt 15,11). Aos seus discípulos, depois, respondendo à pergunta de Pedro, assim explicou estas palavras: «...tudo quanto sai da boca provém do coração. E isso que torna o homem impuro. Do coração procedem os maus pensamentos, os assassínios, os adultérios, as prostituições, os roubos, os falsos testemunhos e as blasfémias. Eis o que torna o homem impuro. Mas comer com as mãos por lavar não torna o homem impuro» (cf. Mt Mt 15,18-20 também Mc 7,20-23).

Quando dizemos «pureza», «puro», no significado primeiro destes termos, indicamos o que contrasta com o sujo. «Sujar» significa «tornar impuro», «inquinar». Isso refere-se aos diversos ambientes do mundo físico. Fala-se, por exemplo, de um «caminho imundo», fala-se também do «ar inquinado». E assim, também o homem pode ser «impuro», quando o seu corpo não está limpo. Para tirar a imundície do corpo, é preciso lavá-lo. Na tradição do Antigo Testamento atribuía-se grande importância às abluções rituais, por exemplo, ao lavar as mãos antes de comer de que fala o texto citado. Numerosas e particularizadas prescrições diziam respeito às abluções do corpo com relação à impureza sexual, entendida em sentido exclusivamente fisiológico, a que aludimos precedentemente (cf. Lev Lv 15). Segundo o estado da ciência médica do tempo, as várias abluções podiam corresponder a prescrições higiénicas. Quando eram impostas em nome de Deus e contidas nos Livros Sagrados da legislação vetero-testamentária, a observância destas adquiria, indirectamente, significado religioso; eram abluções rituais e, na vida do homem da Antiga Aliança, serviam para a «pureza» ritual.

3. Em relação com a sobredita tradição jurídico-religiosa da Antiga Aliança, formou-se um modo erróneo de entender a pureza moral (1). Esta era muitas vezes entendida de modo exclusivamente exterior e «material». O que é certo é que se difundiu uma tendência explícita para tal interpretação. Cristo opõe-se a ela de modo radical: nada torna o homem impuro, daquilo que vem do «exterior», nenhuma imundície «material» torna o homem impuro no sentido moral, ou seja interior. Nenhuma ablução, nem mesmo ritual, é capaz de originar a pureza moral. Esta tem a sua fonte exclusiva no interior do homem: provém do coração. E provável que, a este propósito, as prescrições do Antigo Testamento (aquelas, por exemplo, que se encontram no Lv 15,16-24 Lv 18,1 ss., ou também Lv 12,1-5) servissem, não só para fins higiénicos, mas também para atribuir certa dimensão de interioridade àquilo que na pessoa humana é corpóreo e sexual. É também certo ter Cristo fugido a ligar a pureza em sentido moral (ético) com a fisiologia e com os processos orgânicos correspondentes. A luz das palavras de Mateus 15, 18-20, supracitadas, nenhum dos aspectos da «imundície» sexual, no sentido estritamente somático, biofisiológico, entra de per si na definição da pureza ou da impureza em sentido moral (ético).

4. O sobredito enunciado (Mt 15,18-20) é sobretudo importante por motivos semânticos. Falando da pureza em sentido moral, isto é da virtude da pureza, servimo-nos de uma analogia, segundo a qual o mal moral é comparado precisamente com a impureza. Certamente tal analogia começou a fazer parte, desde os tempos mais remotos, do âmbito dos conceitos éticos. Cristo retoma-a e confirma-a em toda a sua extensão: «O que sai da boca provém do coração. Isto torna o homem impuro». Aqui fala Cristo de todo o mal moral, de todo o pecado, isto é de transgressões dos vários mandamentos, e enumera «os maus pensamentos, os assassínios, os roubos, os falsos testemunhos e as blasfémias», sem limitar-se a um especial género de pecado. Daí deriva ser o conceito de «pureza», e de «impureza», em sentido moral, primeiramente um conceito geral, não específico: para ele todo o bem moral é manifestação de pureza e todo o mal moral é manifestação de impureza. O enunciado de Mateus 15, 18-20 não restringe a pureza a um único sector da moral, ou seja ao relacionado com o mandamento «Não cometerás adultério» e «Não desejarás a mulher do teu próximo», isto é com aquilo que diz respeito às relações recíprocas entre o homem e a mulher, ligadas ao corpo e à relativa concupiscência. Analogamente, podemos também entender a bem-aventurança do Sermão da Montanha, bem-aventurança dirigida aos homens «puros de coração» quer em sentido genérico, quer no mais específico. Só os possíveis contextos permitirão delimitar e precisar esse significado.

5. O significado mais amplo e geral da pureza está presente também nas cartas de São Paulo, em que pouco a pouco reconheceremos os contextos que, de modo explícito, restringem o significado da pureza ao âmbito «somático» e «sexual», isto é àquele significado que podemos deduzir das palavras pronunciadas por Cristo no Sermão da Montanha sobre a concupiscência, que já se exprime no «olhar para a mulher», e é equiparada a um «adultério cometido no coração» (cf. Mt Mt 5,27-28).

Não é São Paulo o autor das palavras sobre a tríplice concupiscência. Estas, como sabemos, encontram-se na primeira carta de João. Pode-se, todavia, dizer que analogamente ao que para João (1Jn 2,16-17) é contraposição, no interior do homem, entre Deus e o mundo (entre o que vem «do Pai» e o que vem «do mundo») — contraposição essa que nasce no coração e penetra nas acções do homem como «concupiscência dos olhos, concupiscência da carne e soberba da vida» — para São Paulo é no cristão outra contradição: a oposição e ao mesmo tempo a tensão entre a «carne» e o «Espírito» (escrito com maiúscula, isto é Espírito Santo): «Digo-vos pois: Andai segundo o Espírito e não satisfareis os apetites da carne. Porque os desejos da carne são opostos aos do Espírito e estes aos da carne, pois são contrários uns aos outros. E por isso que não fazeis o que quereríeis» (Ga 5,16-17). Daí se segue que a vida «segundo a carne» está em oposição com a vida «segundo o Espírito». «De facto, os que vivem segundo a carne desejam as coisas da carne; e os que vivem segundo o Espírito, as coisas do espírito» (Rm 8,5).

Em sucessivas análises procuraremos mostrar que a pureza — a pureza do coração, de que falou Cristo no Sermão da Montanha — se realiza propriamente na vida «segundo o Espírito».

Nota

1. Ao lado de um sistema complexo de prescrições que dizem respeito à pureza ritual, em base à qual se desenvolveu a casuística legal, existia todavia no Antigo Testamento o conceito de uma pureza moral, que era transmitido mediante duas correntes.

Os Profetas exigiam um comportamento conforme à vontade de Deus, o que supõe a conversão do coração, a obediência interior e a rectidão total perante ele (cf. por exemplo, Is 1,10-20 Jr 4,14 Jr 24,7 Ez 36,25 ss. ). Tal comportamento é recomendado também pelo Salmista: «Quem será digno de subir ao monte do Senhor...? / O que tem as mãos limpas e o coração puro...1 / Este receberá as bênçãos do Senhor» (Sl. 24/23, 3-5).

Segundo a tradição sacerdotal, o homem que é consciente da sua profunda pecaminosidade, não sendo capaz de alcançar a purificação com as próprias forças, suplica a Deus que realize aquela transformação do coração, que só pode ser obra de um seu acto criador: «Ó Deus, criai em mim um coração puro... / aspergi-me com o hissopo e ficarei... mais branco do que a neve... / um coração arrependido e humilhado, Deus, não o desprezareis» (Sl. 51/50, 12.9.19).

Ambas as correntes do Antigo Testamento se encontram na bem-aventurança dos «puros de coração» (Mt 5,8), não obstante a sua formulação verbal pareça aproximar-se mais do Salmo 24. (Cf. J. Dupont, Les béatitudes, vol. III: Les Evangelistes, Paris 1973, Gabalda, PP 603-604).

Saudações

Aos jovens Oficiais da Escola Carcerária da República Argentina

Saúdo agora os novos Oficiais da Escola Carcerária da República Argentina, acompanhados pelos seus Superiores e Professores, e pelo Capelão-Mor, juntamente com um grupo de estudantes de outros países latino-americanos.

Caríssimos filhos: estais para regressar à vossa pátria, onde vos esperam tarefas delicadas ao serviço do bem comum. A vossa consciência de filhos da Igreja vos faça ver, nos presos confiados aos vossos cuidados; verdadeiros irmãos na fé, merecedores de um tratamento humano e cristão.

Com o desejo de vos encorajar, e confirmar nos vossos bons propósitos, abençoo-vos de coração.

A peregrinos da Guatemala

Saúdo também com afecto o grupo de peregrinos provenientes da Guatemala.

Desejo, queridos filhos e filhas, que a vossa profissão de fé junto do túmulo de Pedro frutifique cm obras de caridade e de concórdia na sociedade guatemalteca. Com a minha Bênção Apostólica.

A um grupo de Missionárias do Sagrado Coração de Jesus

Dirijo uma particular saudação às Missionárias do Sagrado Coração de Jesus, que, acompanhadas pela Superiora-Geral, se reuniram em Roma por ocasião do centenário do Instituto, fundado por Santa Francisca Xavier Cabrini. Ao mesmo tempo que vos agradeço, queridas filhas, a vossa visita, formulo votos por que a vossa Congregação tão benemérita pela assistência moral e material aos emigrantes e pela educação da juventude possa crescer em espírito de total dedicação a Cristo e à Igreja, para o bem de tantos irmãos necessitados de auxílio. Com a minha Bênção Apostólica.

Aos antigos Dirigentes e Atletas do Centro Nacional Desportivo "Libertas"

Saúdo também o grupo de antigos Dirigentes e Atletas do Centro Nacional Desportivo "Libertas", premiados com o "Alloro d'oro Libertas". Faço votos por que saibais conservar sempre a juventude interior de espírito, relacionada também com o desporto, e do mesmo modo a saibais infundir nos outros.

A um numeroso grupo de peregrinos provenientes da Polónia

Desejo acrescentar tuna particular saudação a todos vós aqui presentes, e também a todos os meus compatriotas, por ocasião das próximas festividades natalícias; e uma particular expressão de solidariedade pela situação que a nossa pátria está vivendo neste momento. Quero dizer-vos que a oração pela pátria que o Episcopado da Polónia propôs nestes últimos dias, anunciando a sua recitação em todas as igrejas da Polónia, é também a minha oração, a minha oração quotidiana, visto que as vicissitudes da nossa pátria comum, e os relativos problemas da ordem e da paz do mundo, me estão muito a peito, como a todos nós. Desejo-vos pois Boas Festas e paz, aquela paz de que fala o Natal: "Paz aos homens de boa vontade". Sejamos homens de boa vontade. Mereçamos a paz.



JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA GERAL

Quarta-feira, 17 de Dezembro de 1980




Vida segundo a carne e justificação em Cristo

1. «A carne... tem desejos opostos ao Espírito e o Espírito tem desejos contrários à carne». Queremos hoje aprofundar estas palavras de São Paulo na Carta aos Gálatas (5, 17), com as quais, na semana passada, terminámos as nossas reflexões sobre o tema do justo significado da pureza. Paulo tem na mente a tensão que existe no infiro do homem precisamente no seu «coração». Não se trata aqui só do corpo (a matéria) e do espírito (a alma), como de duas componentes antropológicas essencialmente diversas, que desde o «princípio» constituem a essência mesma do homem. Mas é pressuposta aquela disposição de forças formada no homem com o pecado original e em que participa todo o homem «histórico». Em tal disposição, formada no íntimo do homem, o corpo contrapõe-se ao espírito e facilmente toma o domínio sobre ele (1). A terminologia paulina, todavia, significa alguma coisa mais: aqui o predomínio da «carne» parece quase coincidir com o que, segundo a terminologia joanina, é a tríplice concupiscência que «vem do mundo». A «carne», na linguagem das cartas de São Paulo (2), indica não só o homem «exterior», mas também o homem «interiormente sujeito ao «mundo» (3), em certo sentido encerrado no âmbito daqueles valores que pertencem só ao mundo e daqueles fins que ele é capaz de impor ao homem: valores, portanto, aos quais o homem, enquanto «carne», é precisamente sensível. Assim a linguagem de Paulo parece ligar-se aos conteúdos essenciais de João, e a linguagem de ambos denota o que é definido por vários termos da ética e da antropologia contemporâneas, como por exemplo: «autarquia humanista», «secularismo» ou também, com significado geral, «sensualismo». O homem, que vive «segundo a carne», é o homem disposto somente àquilo que vem «do mundo»:é o homem dos «sentidos», o homem da tríplice concupiscência. Confirmam-no as suas acções, como diremos dentro em pouco.

2. Tal homem vive quase no pólo oposto em relação àquilo que «o Espírito quer». O Espírito de Deus quer uma realidade diversa da querida pela carne, ambiciona uma realidade diversa daquela que a carne ambiciona, isto no interior do homem, já na fonte interior das aspirações e das acções do mundo — «de maneira que vós não fazeis aquilo que quisestes» (Ga 5,17).

Paulo exprime isto de modo ainda mais explícito falando noutra passagem sobre o mal que faz, embora não o querendo, e da impossibilidade — ou antes da possibilidade limitada — de realizar o bem que «quer» (cf. Rom Rm 7,19). Sem entrar nos problemas de uma exegese particularizada deste texto, poder-se-ia dizer que a tensão entre a «carne» e o «espírito» é primeira, imanente, embora se não reduza a este nível. Manifesta-se no seu coração como «combate» entre o bem e o mal. Aquele desejo, de que fala Cristo no Sermão da Montanha .(cf. Mt Mt 5,27-28), se bem que seja acto «interior», permanece certamente — segundo a linguagem paulina — como manifestação da vida «segundo a carne». Ao mesmo tempo, aquele desejo consente-nos verificar como, no interior do homem a vida «segundo a carne» se opõe à vida «segundo o Espírito», e como esta última, no estado actual do homem, dada a sua pecaminosidade hereditária, está constantemente exposta à fraqueza e insuficiência da primeira, à qual muitas vezes cede, se não é interiormente reforçada para fazer exactamente aquilo «que quer o Espírito». Podemos deduzir daqui que as palavras de Paulo, que tratam da vida «segundo a carne» e «segundo o Espírito», são ao mesmo tempo síntese e programa; e é necessário entendê-las como tais.

3. Encontramos a mesma contraposição da vida «segundo a carne »à vida «segundo o Espírito» na Carta aos Romanos. Também aqui (como aliás na Carta aos Gálatas) ela é colocada no contexto da doutrina paulina acerca da justificação mediante a fé, isto é mediante o poder de Cristo mesmo, a operar no íntimo do homem por meio do Espírito Santo. Em tal contexto, Paulo leva essa contraposição às suas consequências extremas, ao escrever: «Os que vivem segundo a carne, desejam as coisas da carne; e os que vivem segundo o Espírito, as coisas do Espírito. Porque o desejo da carne é morte, ao passo que o desejo do Espírito é vida e paz. De facto, o desejo da carne é inimizade para com Deus, porque não se sujeita à lei de Deus pois não o pode fazer. E os que vivem segundo a carne não podem agradar a Deus. Vós, porém, não viveis segundo a carne, mas segundo o Espírito, uma vez que o Espírito de Deus habita em vós. Mas, se alguém não possui o Espírito de Cristo, não lhe pertence. Se Cristo, porém, habita em vós, embora o corpo esteja morto devido ao pecado, o espírito é vida por causa da justiça» (Rm 8,5-10).

4. Vêem-se com clareza os horizontes que Paulo desenha neste texto: e ele remonta ao «princípio» — isto é, neste caso, ao primeiro pecado de que teve origem a vida «segundo a carne», o qual criou no homem a herança de uma predisposição a viver unicamente tal vida, juntamente com a herança da morte. Ao mesmo tempo Paulo tem em vista a vitória final sobre o pecado e sobre a morte, de que é sinal e anúncio a ressurreição de Cristo: «Aquele que ressuscitou Jesus Cristo dos mortos há-de dar igualmente a vida aos vossos corpos mortais por meio do seu Espírito que habita em vós» (Rm 8,11). E nesta perspectiva escatológica, São Paulo põe em relevo a «justificação em Cristo, destinada já ao homem 'histórico'», a cada homem de «ontem, hoje e amanhã» da história do mundo e também da história da salvação: justificação que é essencial para o homem interior, e se destina exactamente àquele «Coração» para o qual apelou Cristo, falando da «pureza» e da «impureza» em sentido moral. Esta «justificação» pela fé não constitui simplesmente dimensão do plano divino da salvação e da santificação do homem, mas é, segundo São Paulo, autêntica força que opera no homem e se revela e afirma nas suas acções.

5. Eis, de novo, as palavras da Carta aos Gálatas: «Aliás as obras da carne são bem conhecidas: fornicação, impureza, libertinagem, idolatria, feitiçaria, inimizades, discórdias, ciúme, dissenções, divisões, facções, invejas, embriaguezes, orgias e coisas semelhantes...» (5, 19-21). «Mas o fruto do Espírito é amor, alegria, paz, paciência, benevolência, bondade, fidelidade, mansidão e domínio de si...» (5, 22-23). Na doutrina paulina, a vida «segundo a carne» opõe-se à vida «segundo o Espírito» não só no interior do homem, no seu «coração», mas, como se vê, encontra amplo e diferenciado campo para traduzir-se em obras. Paulo fala, por um lado, das «obras» que nascem da «carne» — poder-se-ia dizer das obras em que se manifesta o homem que vive «segundo a carne» — e, por outro lado, fala do (fruto do Espírito», isto é das acções (4), dos modos de comportamento, das virtudes, em que se manifesta o homem que vive «segundo o Espírito». Ao passo que no primeiro caso nos encontramos com o homem abandonado à tríplice concupiscência, da qual João diz que vem «do mundo», no segundo caso estamos diante daquilo que já antes chamámos o «ethos» da Redenção. Só agora estamos habilitados a esclarecer plenamente a natureza e a estrutura daquele «ethos». Exprime-se e afirma-se através daquilo que no homem, em todo o seu «operar», nas acções e no comportamento, é fruto do domínio sobre a tríplice concupiscência: da carne, dos olhos e da soberba da vida (de tudo aquilo de que pode ser justamente «acusado» o coração humano e de que podem ser continuamente «suspeitados» o homem e a sua interioridade).

6. Se o poder na esfera do «ethos» se manifesta e realiza como «amor, alegria, paz, paciência, benevolência, bondade, fidelidade, mansidão e domínio de si» — como lemos na Carta aos Gálatas — então dentro de cada uma destas realizações, destes comportamentos e destas virtudes morais, está uma opção específica, isto é um esforço da vontade, fruto do espírito humano penetrado pelo Espírito de Deus, que se manifesta em escolher o bem. Falando com linguagem de Paulo: «O Espírito tem desejos contrários à carne» (Ga 5,17) e nestes seus desejos mostra-se mais forte que a «carne» e que os desejos gerais da tríplice concupiscência. Nesta luta entre o bem e o mal, o homem mostra-se mais forte graças ao poder do Espírito Santo que, operando dentro do espírito humano, faz que os desejos deste frutifiquem para bem. Estes são portanto não somente — e não tanto — «obras» do homem, quanto «fruto» isto é efeito da acção do «Espírito»no homem. E por isso Paulo fala do «fruto» do Espírito», entendendo esta palavra escrita com maiúscula.

Sem penetrar nas estruturas da interioridade humana mediante as subtis diferenciações que nos são fornecidas pela teologia sistemática (especialmente a partir de Tomás de Aquino) limitamo-nos à exposição sintética da doutrina bíblica que nos permite compreender, de modo essencial e suficiente a distinção e a contraposição da «carne» e do «Espírito».

Observamos que, entre os frutos do Espírito, o Apóstolo coloca também o «domínio de si». E necessário, não o esquecer, porque nas nossas novas reflexões retomaremos este tema para o tratar de modo mais particularizado.

Notas

1. «Paul never, like Greeks, identified 'sinful flesh' with the physical body...

Flesh, then, in Paul is not to be identified with sex or with the physical body. It is closer to the Hebrew thought of the physical personality the self including physical and psychicai elements as vehicle of the outward life and the lower leveis of experience.

It is man in his humanness with ali the limitations, moral weakness, vulnerability, creatureliness and mortality, which being human implies...

Man is vulnerable both to evil and to God; he is a vehicle, a channel, a dwelling-place, a battlefield (Paul uses each metaphor) for good and evil.

Which shall possess, indwell, master him - whether sin, evil, the spirit that now worketh in the children of disobedience, or Christ, the Holy Spirit, faith, grace - it is for each man to choose.

That he can so choose, brings to view the other side of Paul's conception of human nature, man's conscience and the human spirit» (R. E. O. White, Biblical Ethics, Exeter 1979, Paternoster Press, PP 135-138).

2. A interpretação da palavra grega sarx «carne», nas Cartas de Paulo, depende do contexto de cada uma. Na Carta aos Gálatas, por exemplo, podem-se especificar pelo menos dois significados distintos de sarx.

Escrevendo aos Gálatas, Paulo combatia dois perigos, que ameaçavam a jovem comunidade cristã.

Por um lado, os convertidos do judaísmo tentavam convencer os convertidos do paganismo a que aceitassem a circuncisão, que era obrigatória no judaísmo. Paulo repreende-os «de se vangloriarem da carne», isto é de colocarem a esperança na circuncisão da carne. «Carne» neste contexto (Ga 3, 1-5, 12;6, 12-18) significa portanto «circuncisão»,como símbolo de uma nova submissão às leis do judaísmo.

O segundo perigo, na jovem Igreja gálata, provinha do influxo dos «Pneumáticos» que entendiam a obra do Espírito Santo mais como divinização do homem do que como poder operante em sentido ético. Isto leva-os a menosprezar os princípios morais. Escrevendo-lhes, Paulo chama «carne» a tudo o que aproxima o homem do objecto da sua concupiscência e o alicia com a promessa sedutora de uma vida aparentemente mais plena (cf. Gál Ga 5,13 Ga 6,10).

A sarx, portanto, «vangloria-se» tanto da «Lei» como da infracção dela, e em ambos os casos promete aquilo que não pode manter.

Paulo distingue explicitamente entre o objecto da acção e a sarx. O centro da decisão não está na «carne»: «Andai segundo o Espírito e não sereis levados a satisfazer os desejos da carne» (Gd/. 5, 16).

O homem cai na escravidão da carne quando se confia à «carne» e naquilo que ela promete (no sentido da «Lei» ou da infracção da lei).

(Cf. F. Mussner, Der Galaterbrief, Herders Theolog. Kommentar zum NT, IX, Freiburg 1974, Herder, p. 367; R. Jewett, Paul's Anthropological Terms, A Study of Their Use in Conflict Settings, Arbeiten zur Geschichte des antiken Judentums und des Urchristentums, X, Leiden 1971 / Brill /, p. 95-106).

3. Paulo sublinha nas suas Cartas o carácter dramático daquilo que se realiza no mundo.Como os homens, por sua culpa, se esqueceram de Deus, «por isso Deus os abandonou à impureza segundo os desejos do seu coração (Rm 1,24), da qual provém ainda toda a desordem moral, que deforma tanto a vida sexual (ib. 1, 24-27) como o funcionamento da vida social e económica (ib. 1, 29-32) e até cultural; de facto, esses, «conquanto conheçam bem o decreto de Deus -- de que são dignos de morte os que tais coisas praticam -- não só as cometem, como também aprovam os que as praticam» (ib. 1, 32).

Uma vez que, por causa de um só homem o pecado entrou no mundo (ib. 5, 12), «o deus deste mundo cegou as inteligências incrédulas, para que não vejam o esplendor do glorioso evangelho de Cristo» (2Co 4,4): e por isso também «a ira de Deus se manifesta, do alto do céu, contra toda a impiedade e injustiça dos homens que retêm a verdade cativa na injustiça« (Rm 1,18).

Por isso «a criação mesma espera com impaciência a revelação dos filhos de Deus... e alimenta a esperança de ser também ela liberta da escravidão de corrupção, para entrar na liberdade da glória dos filhos de Deus» (ib. 19, 21), aquela liberdade para a qual «Cristo nos libertou» (Ga 5,1).

O conceito de «mundo» em São João tem diversos. significados: na sua primeira Carta, o mundo é o lugar em que se manifesta a tríplice concupiscência (1Jn 2,15-16) e em que os falsos profetas e os adversários de Cristo procuram seduzir os fiéis; mas os cristãos vencem o mundo graças à sua fé (ib. 5, 4): o mundo, de facto, desaparece juntamente com as suas concupiscências e quem realiza a vontade de Deus vive eternamente (cf. ib. 2, 17).

(Cf. P. Grelot, «Monde», in: Dictionnaire de Spiritualité, Ascétique et mestique, doctrine et histoire, / fascicules 68-69), Beauchesne, p. 1628 ss. E ainda: J. Mateos, J. Barreto, Vocabulario teologico del Evangelio de Juan, Madrid 1980, Edic. Cristiandad, p. 211-215).

4. Os exegetas levam a observar que embora, por vezes, para Paulo o conceito de «fruto» se aplique também às «obras da carne» (por exemplo, Rm 6,21 Rm 7,5), todavia «o fruto do Espírito» não é nunca chamado «obra».

De facto para Paulo «as obras» são os actos próprios do homem (ou aquilo em que Israel depõe, sem razão, a esperança, de que ele responderá diante de Deus).

Paulo evita também o termo », areté; encontra-se uma só vez, em sentido muito geral, em Flp.4, 8. No mundo grego esta palavra tinha um significado demasiado antropocêntrico; particular-mente os estóicos punham em relevo a auto-suficiência ou autarquia da virtude.

Pelo contrário, o termo «fruto do Espírito» sublinha a acção de Deus no homem. Este «fruto» cresce nele como o dom de uma vida, cujo único autor é Deus; o homem pode, quando muito, favorecer as condições aptas, para que o fruto possa crescer e chegar à maturidade.

O fruto do Espírito, na forma singular, corresponde de algum modo à «justiça» do Antigo Testamento, que abraça o conjunto da vida conforme a vontade de Deus; corresponde também, em certo sentido, à «virtude» dos estóicos, que era indivisível. Vemo-lo por exemplo em Ef. 5, 9, 11.

«O fruto da luz consiste em toda a bondade, justiça e verdade... não participeis das obras infrutuosas das trevas...».

Todavia, «o fruto do Espírito» é diferente quer da «justiça» quer da «virtude», porque ele (em todas as suas manifestações e diferenciações que se vêem nos catálogos das virtudes) contém o efeito da acção do Espírito, que na Igreja é fundamento e prática da vida do cristão.

(Cf. H. Schlier, Der Brief an die Galater, Meyer's Kommentar Gottingen 1971 Vandenhoeck-Ruprecht, PP 225-264 O. Bauernfeind, areté in: Theological Dictionarv qf the New Testament, ed. G. Kittel G. Bromley, vol. 1, Grand Rapids 1978, Eerdmans, p. 640; W. Tatarkiewiez, Historia Filozofii, t, 1, Warszawa 1970, PWN PP 121 E. Kamlah, Die Form der katalogischen Paranese im Neuen Testament, Wissenschaftliche Untersuchungen zum Neuen Testament, 7, Tübingen 1964, Mhr, p. 14).

Saudações

A grupos de Sacerdotes e Religiosos

Dirijo agora uma saudação especialmente afectuosa a dois grupos particulares: aos Sacerdotes comprometidos a viver o espírito de unidade do Movimento dos Focolares no Centro Mariapoli de Rocca di Papa, e aos Religiosos de vários Institutos, que trabalham nos territórios de Missão.


AUDIÊNCIAS 1980 - AUDIÊNCIA GERAL