Discursos João Paulo II 1980 - Sábado, 31 de Maio de 1980


VIAGEM APOSTÓLICA DO SANTO PADRE A PARIS E LISIEUX

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

AOS REPRESENTANTES


DOS MOVIMENTOS DE APOSTOLADO


Nunciatura Apostólica

Paris, 31 de Maio de 1980



Caros amigos

1. Sinto-me felicíssimo por encontrar-me esta tarde com os responsáveis nacionais dos movimentos de apostolado dos Leigos. Para além das vossas pessoas, saúdo cordialmente e animo todos os membros das vossas associações e os seus assistentes. Como a vossa simples apresentação manifesta, o apostolado dos leigos floresce na França em grandíssima variedade. Sei que não é somente o génio bem cartesiano, de distinguir os diversos aspectos das coisas, que leva os vossos compatriotas neste sentido; mas bem mais o cuidado de corresponder o melhor possível quer às tarefas diferenciadas da Igreja, quer às situações de vida e idade, quer ainda aos meios de vida, sociais e profissionais. Assim a revisão de vida pode ganhar em precisão; e a acção em eficácia profunda. Reconheço nisso o sinal de um dinamismo e de uma riqueza que me levam a felicitar-vos.

2. Embora cada movimento tenda para o seu objectivo, com os seus métodos próprios e no seu sector ou no seu meio, é contudo importante que tomeis consciência da vossa complementaridade e estabeleçais laços entre os movimentos: não só estima mútua e dialogo, mas certa harmonização e mesmo real colaboração. A isto sois convidados em nome da vossa fé comum, em nome de pertencerdes todos ao povo de Deus, e mais precisamente à mesma Igreja local, e em nome das mesmas perspectivas essenciais do apostolado, diante dos mesmos problemas que estão diante da Igreja e da sociedade. Sim, é frutuoso tomar consciência de que a especialização dos vossos movimentos permite geralmente catar em profundidade um aspecto das realidades, mas também que ela requer outras formas complementares de apostolado. E depois vós não podeis nunca esquecer que, além das vossas, associações, há o grande povo de baptizados, de confirmados e de fiéis "praticantes" que, mesmo sem se inscrever num movimento, exerce pessoalmente um apostolado real de cristão, um apostolado de Igreja, nas suas famílias, nas pequenas comunidades e especialmente nas paróquias, por meio do exemplo e aplicando-se a múltiplas tarefas apostólicas: como não mencionar aqui o belo serviço da catequese a que tantos leigos consagram na França parte do coração e do tempo, serviço que necessita aliás de uma formação contínua? Numa palavra, a acção do vosso movimento toma lugar num conjunto, e sei que muitos dentre vós têm aliás cuidado de organizar grupos de encontro com os outros movimentos ou com os outros cristãos aplicados ao apostolado, por exemplo, ao nível da paróquia; ao nível da diocese o Conselho pastoral deveria contribuir para isso—; e no plano nacional, não é uma das incumbências do Secretariado do Apostolado dos leigos? Seja como for, é-nos oferecida, esta tarde, ocasião maravilhosa de reunir nas vossas pessoas grande parte do laicado organizado, o que é símbolo da vossa vocação para trabalhar em conjunto, para viver em comunhão.

3. Não podendo infelizmente reservar uma palavra especial para cada movimento ou grupo de movimentos, vou-me contentar com insistir nalgumas perspectivas que fazem parte integrante dos fundamentos e orientações de cada associação de cristãos: a vossa vocação. de leigos, a vossa obra de evangelização, a vossa identidade católica, a vossa integração na Igreja, e a vossa oração.

E, antes de tudo, vale a pena repetir-vos até que ponto a Igreja — e o Papa em seu nome — conta com o vosso apostolado de leigos? O trabalho que vos toca como próprio na Igreja é essencial: ninguém vos substituirá nele, nem os sacerdotes nem as religiosas que eu não deixo, bem o sabeis, de animar na missão especifica que lhes pertence. Pregadores e educadores da fé, os sacerdotes estão prontos para vos ajudar a impregnar a vossa vida do espírito do Evangelho e para unir a oferta espiritual da vossa vida à de Cristo; o papel deles é indipensável e vós deveis ter muito a peito, vós também, as vocações sacerdotais. Do mesmo modo os religiosos e as religiosas estão prontos para dar testemunho das bem-aventuranças e do amor sem partilhas por Cristo. Peço-lhes que actuem como sacerdotes, como religiosos; e vós, vós deveis actuar como verdadeiros leigos, responsáveis dias inteiros por tarefas familiares, sociais e profissionais, em que vós encarnais a presença e o testemunho de Cristo, em que procurais fazer deste mundo e das suas estruturas um mundo mais digno dos filhos de Deus. Assim exercitais vós como cristãos todas as vossas capacidades de homens; e do mesmo modo as senhoras, que têm hoje de exercer um magnífico papel no apostolado, com todos os seus recursos de feminilidade, num mundo em que têm e tomam cada vez mais o seu lugar e suas responsabilidades. Em poucas palavras, participais todos na missão da Igreja, na sua missão profética, sacerdotal e régia, em virtude do vosso baptismo e da vossa confirmação.

Bendito o Concílio Vaticano II que pôs na devida luz a vossa "vocação de leigos", articulando-a com a vida do conjunto do povo de Deus! Não preciso já de vos citar a Constituição Lumen Gentium (nn. LG 30-38) nem o decreto Apostolicam actuositatem que devem manter-se como carta dos vossos direitos e deveres, na Igreja.

Em Cracóvia, trabalhámos juntos no sínodo, durante anos, com os leigos, para melhor ser assimilado e vivido o Concílio. Eu era também, por benevolência de Paulo VI, membro do Conselho pontifício para os leigos. E em Roma, procuro encontrar tempo para receber o mais possível, os grupos de leigos.

Permiti-me insistir no vosso esplêndido papel, no vosso papel indispensável embora já estejais bem persuadidos e embora provavelmente os vossos movimentos conheçam ainda uma vitalidade e frutos que dão ânimo. Mas, conheço também as dificuldades que hoje encontra o vosso apostolado. Provêm do mundo que ambicionais evangelizar: está muito marcado pela secularização, digamos mesmo pela incredulidade, e também pelo embotamento do sentido moral, sem contar os problemas agudos que apresentam certas condições de vida e as mutações sociais. Mas as dificuldades podem também afectar os vossos movimentos em si e os seus membros, devido por exemplo a uma hesitação maior em tomar compromissos actualmente, ou ainda porque certos movimentos experimentaram sufocação e desvios, talvez por terem descurado um dos elementos de que vou falar. Apesar de tudo isto, porém, o apostolado organizado, que vos está entregue, sem negar o lugar das outras formas de apostolado, continua a ser hoje um instrumento de que ninguém deve depreciar a importância para a evangelização.

4. A evangelização é bem realmente a finalidade comum de todos os vossos movimentos. É por definição o fio condutor dos vossos programas de acção católica ou de movimentos de espiritualidade; mas é também verdade para os movimentos cristãos de actividades culturais e para os movimentos sócio-caritativos, porque se trata afinal de fazer obra de educação cristã ou de testemunhar a ternura de Deus e formar os corações para a caridade.

Toda a exortação apostólica Evangelii nuntiandi do meu predecessor Paulo VI ilustra magnificamente o sentido e os caminhos da evangelização. Vós sois chamados a ser testemunhas da Boa Nova da salvação em Jesus Cristo, a contribuir para a conversão da consciência pessoal e colectiva dos homens. Assim permitis-lhes viver em Igreja — o que supõe testemunho de vida, anúncio explícito, catequese, vida sacramental e comunitária, educação para o compromisso cristão —, e, por outro lado, impregnais o mundo dos valores do Evangelho na perspectiva do Reino de Deus. O vosso apostolado anuncia portanto Jesus Cristo no coração da vida familiar, profissional, social e política; orienta os esforços que são feitos para criar as melhores condições de vida, mais conformes à justiça, à paz, à verdade e à fraternidade. Mas o testemunho dos vossos movimentos não se pode confundir com uma obra técnica, económica ou política. Visa com efeito a "tornar nova a humanidade mesma,... (e) não há humanidade nova se não há primeiramente homens novos com a novidade do baptismo e da vida segundo o Evangelho" (Evangelii nuntiandi EN 18), segundo a justiça, a paz e o amor de Cristo.

5. Esta missão exaltadora e exigente requer que os membros dos vossos movimentos fortifiquem sem cessar a sua identidade cristã e católica, sem a qual não poderiam ser as testemunhas de que falámos. Certamente o diálogo apostólico supõe o esforço de olhar e analisar atentamente as realidades vividas pelos nossos contemporâneos; mas ao mesmo tempo pede sempre um discernimento crítico para separar o bom grão do joio. O diálogo apostólico convida a reconhecer as pedras de espera e mesmo os sinais do Espírito Santo a trabalhar no coração das pessoas; mas isto supõe precisamente o olhar de uma fé aprofundada e o cuidado de uma purificação e de uma revelação em plenitude. Por isso, aprovo com ardor todos os esforços que fazem os vossos movimentos para favorecer o aprofundamento da fé, graças a uma reflexão doutrinal sobre Cristo, a Igreja e o homem resgatado por Cristo; e uma verdadeira investigação espiritual. Porque, afinal, o diálogo apostólico parte da fé e supõe uma identidade cristã firme. Isto é tanto mais necessário, disso tendes experiência, quanto mais a vossa actividade apostólica vos mergulha num mundo mais secularizado, quanto mais delicadas são as questões levantadas, quanto os que se oferecem hoje a militar nos vossos movimentos estão, apesar da grande generosidade, menos assegurados na sua fé, menos sustentados por estruturas cristãs e mais sensíveis às ideologias estranhas à fé.

6. Não podeis fortificar a vossa identidade católica sem fortificar a vossa adesão ao povo de Deus, nas suas consequências práticas. Significa isto ter consciência de que todo o vosso ser cristão vos vem pela Igreja — fé, vida divina, sacramentos e vida de oração —, de que a experiência da Igreja durante séculos nos alimenta e nos ajuda a andar por caminhos em parte novos; de que o Magistério é dada à Igreja para garantir a sua autenticidade, a sua unidade e o seu caminhar coerente e seguro. Mais ainda que isto; desejo eu que os vossos leigos aprendam a amar a Igreja como Mãe, e que se sintam felizes e briosos em ser seus filhos e seus membros activos. E, como vos dizia no princípio, o espírito da Igreja deve levar-vos a procurar o diálogo e a colaboração com as outras associações, com o conjunto do povo de Deus, de que não sois separáveis e ao serviço do qual vos encontrais. Por outro lado, convidei-vos a tomar a vossa responsabilidade de leigos: está esta necessariamente ligada à do sacerdote que deve manter o seu lugar, nas vossas equipas, como sacerdote, como sinal de Cristo Cabeça, participando da Sua mediação, e como sinal da Igreja que ultrapassa sempre a vida da equipa ou do movimento.

Do mesmo modo, colocados como responsáveis nacionais na cúpula dos vossos movimentos, vós sabereis conjugar a unidade de programa e de acção com a flexibilidade, permitindo uma acção adaptada e responsável a todos os níveis Sobretudo terão a peito os vossos movimentos entrar nas perspectivas da Igreja local, da Igreja universal, pelo vossa comunhão confiante com os vossos Bispos e com o Sucessor de Pedro. Sei e aprecio que, a nível nacional; este laço se manifeste especialmente com os Bispos das Comissões episcopais especializadas nos vossos problemas.

7. Termino animando-vos a ser homens e mulheres de oração. Porque é o Espírito de Deus que deve ser a alma do vosso apostolado, impregnar os vossos pensamentos, os vossos desejos e as vossas acções: purificá-las, elevá-las. Os leigos são chamados, como os padres e os religiosos, à santidade; a oração é o caminho privilegiado para ela: E depois tendes múltiplas ocasiões para dar graças e interceder por todos quantos encontrais nos vossos caminhos. Soube com grande prazer que há em França verdadeiro renovamento da oração, que se traduz, entre outras coisas, no florescimento de grupos de oração, mas que afecta ainda, assim espero, a vida dos vossos movimentos. Deus seja louvado! A Virgem acompanhe sempre o apostolado que vós exercitais em nome do seu Filho. E eu, exprimindo-vos a minha confiança e a minha alegria, abençoo-vos de todo o coração, assim como todos os membros dos vossos movimentos, e as vossas famílias.



                                                                    Junho de 1980



VIAGEM APOSTÓLICA DO SANTO PADRE A PARIS E LISIEUX

VISITA DO PAPA JOÃO PAULO II

AO INSTITUTO CATÓLICO DE PARIS


Paris, 1 de Junho de 1980



Monsenhor Reitor,

1. Agradeço sensibilizado as vossas palavras de boas-vindas, como agradeço do fundo do coração a todos os que me rodeiam nesta manhã por causa deste acolhimento que me impressiona profundamente. Por minha vez, dirijo-vos a saudação mais cordial, assim como às altas personalidades que houveram por bem corresponder ao vosso convite e honram esta reunião com a sua presença. E saúdo todos os membros da comunidade universitária com quem tenho o especial gosto de me encontrar neste lugar, herdeiro da mais prestigiosa tradição universitária. Neste ambiente tão evocador e tão carregado de história, permitir-me-eis estou certo — Excelência Reverendíssima, Senhoras e Senhores — que reencontre a minha alma de antigo professor e me dirija especialmente àqueles para quem o Instituto Católico existe: aos seus estudantes.

2. Caros amigos, a situação que é a vossa, aqui em Paris, convida a que se reflicta sobre as razões profundas da vossa presença neste Instituto. O mundo universitário parisiense, ilustre a tantos títulos, não é acaso rico de competências de todas as ordens, literárias e científicas? Em quantos centros não poderíeis vós encontrar, com o saber, o amor da verdade, fundamento desta liberdade intelectual sem a qual não pode haver, em parte alguma, nem espírito universitário nem Universidade digna deste nome?

Todavia, o magnífico progresso científico da época moderna sofre também as suas fraquezas, de que não é a menor a aplicação quase exclusiva às ciências da natureza e às suas aplicações técnicas. O humanismo mesmo não se reduz muitíssimas vezes a cultivar amorosamente os grandes testemunhos do passado sem lhes reencontrar as raízes? As ciências humanas, por fim, descobertas capitais da nossa época, encerram também em si mesmas, apesar dos horizontes que nos abrem, os limites inerentes aos seus modelos metodológicos e aos seus pressupostos.

Ao mesmo tempo, quantas pessoas andam à procura de uma verdade capaz de unificar-lhes a vida? Busca comovente, mesmo quando o apelo dos valores fundamentais inscritos no mais profundo do ser se encontra quase abafado pela influência do meio; busca muitas vezes ansiosa: é "às apalpadelas", como os atenienses a quem se dirigia São Paulo, que muitos procuram o Deus que nós anunciamos. Tanto mais que as convulsões da nossa época manifestam aos nossos olhos, sob muitos aspectos, o malogro cada vez mais patente de todas as formas daquilo a que se pôde chamar "humanismo ateu".

3. Não creio portanto enganar-me dizendo que os estudantes pedem, ao Instituto Católico de Paris, ao mesmo tempo que os diversos saberes que lhes são oferecidos — e, através deles, o acesso pessoal a outra ordem de verdade — uma verdade total sobre o homem, inseparável da verdade sobre Deus tal como Ele no-la revelou, porque ela não pode vir senão do Pai das luzes, do dom do Espírito Santo, Aquele de quem o Senhor nos assegurou que nos levaria à verdade completa.

Por isso, embora a vossa Casa se haja também ela distinguido no meio universitário pelos trabalhos de homens eminentes nos diversos ramos do saber, não é a ciência enquanto tal que justifica primeiramente pertencerdes ao Instituto Católico, mas a luz que ele ajuda a levar-vos sobre as vossas razões de viver. Neste campo, todo o homem precisa de certeza. Nós, cristãos, encontramo-la no mistério de Cristo que é, segundo as Suas próprias palavras, o nosso caminho, a nossa verdade e a nossa vida. É ele que, no princípio da nossa busca espiritual, é a alma dela e será o seu termo. Assim, conhecimento religioso e progresso espiritual vão a par e, desta diligência interior, própria daquele que procura a Deus, deixou-nos Santo Agostinho uma fórmula incomparável: "Fecisti nos ad Te, et inquietum est cor nostrum donec requiescat in Te".

4. Não tenho dúvida, caros amigos, caros universitários e universitárias, de encontrar aqui as vossas convicções íntimas evocando assim as razões da vossa presença, mas agrada-me fazer notar o papel específico insubstituível do vosso Instituto e, dirigindo-me a vós, penso também nas Universidades católicas da França, representadas pelos seus Reitores, e penso nos Institutos análogos. Têm como incumbência própria iniciar na investigação intelectual, correspondendo à vossa sede de certeza e verdade. Permitem-vos identificar existencialmente, no vosso trabalho intelectual, duas ordens de realidades que temos demasidadas vezes tendência a opor como se fossem antitéticas: a investigação da verdade e a certeza de conhecer já a fonte da verdade.

Este esboço excessivamente rápido bastará para sublinhar a importância que atribuo ao ensino católico em geral, nos seus diversos níveis, e em particular ao pensamento universitário católico hoje. O ambiente católico, que desejais se situe bem para lá de simples invólucro, inclui a vontade de cada um se habituar a um olhar cristão sobre o mundo, uma maneira de apreender o real e também de conceber os seus estudos, por mais diversos que sejam. Falo agora, vós o compreendeis bem, de uma perspectiva que ultrapassa os limites e os métodos das ciências particulares para chegar à compreensão que deveis ter de vós mesmos, do vosso papel na sociedade e do sentido da vossa vida.

5. No conjunto da comunidade universal, os estudos filosóficos e teológicos especializados têm o primeiro lugar. É normal que eles sejam o coração do Instituto. É normal, e necessário também, que estas secções se distingam pela seriedade de cada trabalho das investigações e publicações. Quanto me felicito por ver o ensino teológico dirigir-se igualmente a estudantes leigos cada vez mais numerosos, oferecendo-lhes a possibilidade de uma formação cristã proporcionada à cultura e às responsabilidades profissionais que têm! Pois, que procurais aqui, caros amigos, senão a verdade da fé? Ela é que inspira o amor da Igreja, a quem o Senhor a confiou; ela também é que requer, em virtude da sua existência interna, a adesão convicta e fiel ao Magistério, o único a quem está confiado o encargo de interpretar a Palavra de Deus escrita e transmitida (cfr. Dei Verbum, DV 10) e de definir a fé em conformidade com esta Revelação (cfr. Lumen gentium LG 25). Toda a obra teológica está ao serviço da fé. Sei que é um serviço especialmente exigente e meritório, quando é assim realizado: tem lugar capital na Igreja, e da sua qualidade depende a autenticidade cristã desses investigadores, dos estudantes e finalmente das gerações vindouras.

"A fé pense", segundo a expressão admirável de Santo Agostinho. Em Paris, há muito tempo, viveis vós nesta ebulição do pensamento, que pode ser tão criador como São Tomás o mostrou com brilho na vossa antiga Universidade, na qual foi modelo dos estudantes primeiro que se tornasse modelo dos mestres. Hoje como no seu tempo, é na mesma fidelidade que é preciso construir, com novo empenho, mas sempre tomando como base não só o Evangelho, inesgotável na sua eterna novidade, mas também a doutrina que a Igreja claramente formulou.

6. Tal é a responsabilidade pastoral do Instituto Católico. Penso em primeiro lugar nos leigos que lhe aproveitam o ensino. Tenho o gosto de os ver assim tão numerosos e tão diversos. Encontro entre vós um pouco da África, que me é ainda mais querida agora; a América Latina, tão abundantemente representada aqui, para a qual me dirigirei em breve. Não posso enumerar todos os vossos países, mas a todos vos manifesto a minha saudação afectuosa. Caros amigos, faço votos por que os vossos estudos no Instituto Católico vos permitam formar-vos uma consciência profundamente cristã e eclesial.

Alegro-me com saber que a vida de oração floresce aqui. Não é como o desenvolvimento espontâneo do conhecimento do Senhor? Vós não podeis contudo progredir nela sem que um dia se ponha a questão, no seu sentido mais lato: "Como viverei eu para Cristo?". Interrogação inseparável da tomada de consciência pessoal das exigências de uma vida cristã autêntica. Tal interrogação vai-se formulando lentamente e não desenvolve senão pouco a pouco a sua força vital. Ela contribui em grande medida para orientar, segundo as convicções cristãs reforçadas pela vossa passagem por aqui, a vossa vida familiar e profissional. Também peço eu por vós todos e todas, que me escutais, no momento capital em que orientais interiormente a vossa vida, para saberdes acolher esta interrogação se ela se tornar mais urgente, mais imediata: "Que devo eu fazer pelo Senhor?". Oxalá Ele mesmo consiga inspirar-vos a resposta.

Ao dizer-vos isto, já entrei na consideração das vossas responsabilidades. Primeiros beneficiários da formação que estai recebendo, não podeis ignorar aquilo a que ela vos com-promete. Monsenhor d'Hulst, fundador, faz agora mais de um século, do Instituto Católico, dizia que este fora estabelecido "para lançar, no mundo que pensa, um fermento cristão". Isto cria-vos obrigações, para hoje e para amanhã, nos vossos diversos países e mesmo mais longe.

7. Acabo de aludir ao apelo do Senhor. Volto-me agora para os sacerdotes, seminaristas, religiosos e religiosas que prosseguem aqui a própria formação. Sabei que tendes grande lugar no meu coração e na minha oração. Preparai-vos com ardor para a tarefa de evangelização que vos espera. Na França, a Igreja foi desde há muito Igreja missionária, antecipando assim as orientações do Concílio Vaticano II. Sem remontar mais alto, esta actividade missionária bastaria abundantemente para a glória do século passado, século magnífico em que o dinamismo da fé, longe de se deixar abater diante da magnitude da tarefa, se espalhou por uma multidão de famílias cristãs, de vocações sacerdotais e religiosas, de instituições de toda a espécie, que muito ultrapassaram as fronteiras da França. Durante os dias que passei nas Igrejas tão vivas da África, fui testemunha maravilhada das messes que desabrocham, fruto do trabalho obscuro e perseverante a que tantos missionários sacrificaram a vida. O Instituto Católico foi fundado nessa época. Segundo a sua vocação própria, tomou parte neste trabalho. Hoje mais que nunca, a messe é grandes Preparais-vos aqui para entrar no campo do Senhor da messe. Amanhã, na França como nos vossos respectivos países: sabeis quanto a Igreja conta convosco.

8. Disse eu que me dirigia especialmente aos estudantes. mas agora, quero voltar-me também para todos os que se dedicam aqui ao serviço deles, pois compreenderam a importância desta tarefa da Igreja e a ela consagraram a maior parte da própria vida: primeiramente o conjunto do corpo professoral, que é notavelmente numeroso e competente, para se ocupar das múltiplas especializações; os que se ocupam da parte administrativa do Instituto Católico e todos os que permitem que esta Casa viva. Tenho o prazer de lhes expressar viva gratidão.

9. Senhoras e Senhores, caros amigos, universitários e universitárias, digo-vos como conclusão desta demasiado breve visita: sede fiéis à herança recebida. Continuai a prestar atenção aos apelos que vos chegam. Não vos deixeis sufocar com o peso da secularização, rejeitai o fermento da dúvida, a desconfiança das ciências humanas e o materialismo prático avassalador... Neste local cheio de história, quero convidar-vos a que partilheis a minha esperança e quero manifestar-vos a minha confiança. Aqui, os discípulos de Santa Teresa e de São João da Cruz deixaram vos a memória e o exemplo de uma vida inteiramente consagrada à contemplação da única Verdade. Aqui, sacerdotes vindos já de horizontes bem diversos, entre os quais vários dos vossos predecessores da Universidade de então, deram testemunho da fidelidade total. Aqui, nova época se abriu, há pouco mais de um século, com a fundação do Instituto Católico.

O Espírito Santo, o Espirito do Pentecostes, vos ajude a clarificar o que é equivoco, a aquecer o que está morno, a iluminar o que é obscuro, a serdes diante do mundo testemunhas autênticas e generosas do amor de Cristo, porque "ninguém pode viver sem amor".

Formulo os votos mais ardentes pelo vosso ensino, pelos vossos estudos e pelo vosso futuro. De todo o coração peço ao Senhor vos dê a Sua luz e vos abençoe.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS REPRESENTANTES


DA COMUNIDADE HEBRAICA FRANCESA


Issy-les-Moulineaux, 1 de Junho de 1980



É uma alegria para mim receber os representantes da numerosa e expressiva comunidade hebraica da França. Esta comunidade, de facto, tem uma história longa e gloriosa. Não é necessário recordar aqui os teólogos, os exegetas, os filósofos e os homens públicos que a distinguiram no passado e a distinguem sempre. É também verdade, e devo mencioná-lo, que a vossa comunidade sofreu muito durante os anos tenebrosos da ocupação e da guerra. Presto homenagem a estas vítimas cujo sacrifício sabemos não foi infrutífero.

Foi precisamente daqui que se iniciou, graças à coragem e à decisão de alguns precursores, entre os quais Jules Isaac, o movimento que nos levou até ao diálogo e à colaboração presente, inspirados e incitados pela declaração Nostra Aetate do Concílio Vaticano II.

Este diálogo e esta colaboração são muito expressivos e activos aqui na França. Congratulo-me com isso. Entre o Judaísmo e a Igreja existe um relacionamento; como disse noutra ocasião aos representantes hebreus, um relacionamento "a nível mesmo das suas respectivas identidades religiosas". (Alocução de 12 de Março de 1979). Este relacionamento deve ser ainda aprofundado, enriquecido com o estudo, o conhecimento recíproco, o ensino religioso de uma parte e da outra, e o esforço por superar as dificuldades ainda existentes. Isto permitir-nos-á trabalhar em conjunto por uma sociedade livre de descriminações e preconceitos, na qual possam reinar o amor e não o ódio, a paz e não a guerra, a justiça e não a opressão.

É para este ideal bíblico que devemos olhar sempre, visto que ele nos une tão profundamente. Aproveito esta feliz ocasião para o reafirmar mais uma vez diante de vós, e para vos exprimir a minha esperança de o prosseguirmos juntos.



VIAGEM APOSTÓLICA DO SANTO PADRE A PARIS E LISIEUX

VISITA DO PAPA JOÃO PAULO II

AO EPISCOPADO FRANCÊS


Paris, 1 de Junho de 1980



1. Deus seja louvado porque nos deu tempo de nos encontrarmos com algum vagar na moldura desta breve visita! Atribuo grande importância a este encontro. Por motivos de "colegialidade". Sabemos que a colegialidade tem carácter duplo: é "efectiva", mas é também "afectiva". O que é profundamente conforme à sua origem, aquela que encontrou à volta de Cristo na comunhão dos "Doze".

Vivemos pois momento importante da nossa comunhão episcopal, os Bispos de França à roda do Bispo de Roma que, desta vez, é hóspede deles, sendo que os tem recebido outras vezes em diversas ocasiões, por exemplo durante visitas "ad limina", especialmente em 1977 quando Paulo VI convosco tomou as alturas sobre grande número de questões, de uma maneira que se mantém ainda muito oportuna hoje. Precisamos de dar graças a Deus de que o Vaticano II tenha tomado em consideração, confirmado e renovado a doutrina sobre a colegialidade do Episcopado, como a expressão viva e autêntica do colégio que, por instituição de Cristo, os Apóstolos constituíram como Pedro tendo-o como cabeça. E damos também graças a Deus pois podemos, seguindo este caminho, melhor cumprir a nossa missão: dar testemunho ao Evangelho, servir a Igreja e também o mundo contemporâneo, a que nós fomos enviados com toda a Igreja.

Agradeço-vos muito que me tenhais convidado, que tenhais organizado com grande solicitude os pormenores desta visita pastoral, que tenhais levado à execução tantos preparativos, que tenhais ilustrado o povo cristão sobre o sentido da minha vinda, e que tenhais mostrado diligência e abertura que são atitudes tão importantes para a nossa missão de pastores e doutores da fé. Presto especialmente homenagem ao Cardeal Marty que nos recebe no seminário da sua província; ao Cardeal Etchegaray, Presidente da Conferência Episcopal; ao Cardeal Renard, Primaz das Gálias; ao Cardeal Gouyon e ao Cardeal Guyot; mas seria necessário que eu nomeasse cada Bispo, o que não é possível. Tive a honra de encontrar certo número dentre vós e de colaborar com eles no passado: primeiro nas sessões do Concílio, claro, mas também nos diversos Sínodos, no Conselho das Conferências Episcopais da Europa, ou noutras ocasiões, do que guardo feliz recordação. Isto permite-nos trabalhar ao mesmo nível, juntos, embora eu venha agora com responsabilidade particular.

2. A missão da Igreja, que se realiza continuamente na perspectiva escatológica, é ao mesmo tempo plenamente histórica. Liga-se isto ao dever de ler os "sinais dos tempos", que foi tomado muito em conta pelo Vaticano II. Com grande perspicácia, o Concílio definiu igualmente qual a missão da Igreja na época actual da história. A nossa tarefa comum mantém-se portanto a aceitação e realização do Vaticano II, segundo o seu conteúdo autêntico. Fazendo isto, somos guiados pela fé: é a nossa razão de proceder, principal e fundamental. Nós acreditamos ter estado Cristo, pelo Espírito Santo, com os Padres conciliares, possuir o Concílio, no seu magistério, o que o Espírito "diz à Igreja" e acreditamos ainda que ele o diz, ao mesmo tempo, em, plena harmonia com a Tradição e segundo as exigências apresentadas pelos "sinais dos tempos". Esta fé funda-se na promessa de Cristo: "Estarei sempre convosco até ao fim do mundo" (Mt 28,20); nesta fé funda-se também a nossa convicção de precisarmos de "realizar o Concílio" tal como ele é, e não como alguns desejariam vê-lo e compreendê-lo.

Nada é de admirar que, neste período "pós-conciliar", se tenham desenvolvido, com bastante intensidade, certas interpretações do Vaticano II que não correspondem ao seu magistério autêntico. Trata-se nisto de duas tendências bem conhecidas: o "progressismo" e o "integrismo". Uns estão sempre impacientes por adaptar até mesmo o conteúdo da fé, a ética cristã, a liturgia e a organização eclesial às mudanças das mentalidades, às reclamações do "mundo", sem ter conta suficientemente, não só do sentido comum dos fiéis, que são desorientados, mas do essencial da fé já definida, das raízes da Igreja, da sua experiência de séculos, das normas necessárias à sua fidelidade, à sua unidade e à sua universalidade. Têm a obsessão de "avançar", mas para que "progresso" afinal? Os outros — reparando em tais abusos que nós bem evidentemente somos os primeiros a reprovar e a corrigir — endurecem-se fechando-se num período determinado da Igreja, num estádio determinado de formulação teológica ou de expressão litúrgica, de que fazem um absoluto, sem lhe penetrar suficientemente o sentido profundo, sem considerar a totalidade da história e o seu desenvolvimento legítimo, temendo as questões novas, sem admitir afinal que o Espírito de Deus está activo hoje na Igreja, com os Pastores dela, unidos ao Sucessor de Pedro.

Estes factos não são de admirar se pensamos em fenómenos análogos na história da Igreja. Mas tornam muito necessário concentrar todas as forças na interpretação justa, isto é, autêntica, do magistério conciliar, como fundamento indispensável da auto-realização ulterior da Igreja, para quem este magistério é a fonte das inspirações e das orientações justas. As duas tendências extremas, que apontava, mantêm não só oposição mas divisão desagradável e prejudicial; como se, elas se atiçassem mutuamente a ponto de criarem mal-estar para todos, mesmo escândalo, e a ponto de gastarem, nesta suspeita e nesta crítica recíprocas, tantas energias que tão úteis seriam para a verdadeira renovação. Devemos esperar que umas e outras, que não têm falta de generosidade nem de fé, aprendam humildemente, com os seus Pastores, a vencer esta oposição entre irmãos, para aceitarem a interpretação autêntica do Concílio pois nisto está a questão basilar e para proverem em harmonia à missão da Igreja, na diversidade das sensibilidades pastorais. Certamente a grande maioria dos cristãos do vosso país está pronta a manifestar a sua fidelidade e disponibilidade em seguir a Igreja; não partilha estas posições extremas e abusivas, mas certo número hesita entre as duas ou deixa-se perturbar; e o problema está também no risco de se criar indiferença ou apartamento da fé. A hora impõe-vos ser mais que nunca fomentadores da unidade, velando ao mesmo tempo pelas questões de fundo que estão em jogo e pelas dificuldades psicológicas que impedem a vida eclesial na verdade e na caridade.

3. Passo agora a outra questão fundamental: por que motivo; na época actual da missão da Igreja é necessária uma concentração especial sobre o homem? Desenvolvi este ponto na encíclica Redemptor hominis, procurando evidenciar que tal insistência antropológica tem raiz cristológica profunda e forte.

As causas disso são diversas. Há causas visíveis e perceptíveis, segundo as variações múltiplas que dependem por exemplo do meio, do país, da nação, da história e da cultura. Existe portanto certamente um conjunto específico de causas que são características da realidade "francesa" da Igreja no mundo desta época. Vós estais colocados, melhor que ninguém para os conhecer e os compreender. Se me permito entrar neste assunto, faço-o na convicção de o problema — dado o estado actual da civilização, por um lado, e dadas as ameaças que pesam sobre a humanidade, por outro — ter uma dimensão ao mesmo tempo fundamental e universal: Nesta dimensão universal e ao mesmo tempo local, a Igreja deve por consequência enfrentar a problemática comum do homem como parte integrante da sua missão evangélica.

Não só a mensagem evangélica é dirigida ao homem, mas é grande mensagem messiânica sobre o homem: é a revelação ao homem da verdade total sobre Si mesmo e sobre a sua vocação em Cristo (cfr. Gaudium et Spes).


Discursos João Paulo II 1980 - Sábado, 31 de Maio de 1980