Discursos João Paulo II 1980 - Domingo, 13 de Abril de 2008

Sob o olhar materno de Nossa Senhora, queremos hoje reflectir juntos sobre a dignidade altíssima que a vida religiosa assume no âmbito do Povo de Deus, pela sua particular manifestação de seguimento total e beatificante de Cristo (cfr. Mt 8,22 Mt 16,24 Mt 19,21 Mc 8,34 Lc 18,22) mediante a prática dos conselhos evangélicos da castidade, da pobreza e da obediência.

Já com o Baptismo o cristão está morto para o pecado e consagrado a Deus, enquanto "unido" a Jesus. Neste sacramento — ensina-nos São Paulo — nós somos sepultados juntamente com Cristo na morte, e juntamente com Ele, ressuscitado, podemos caminhar numa vida nova. "Porque se nós (pelo baptismo) nos tornamos uma, mesma planta com ele, à semelhança da sua morte, sê-lo-emos também à semelhança da sua ressurreição" (Rm 6,5). Esta fundamental dimensão pascal do Baptismo adquire o seu fruto maduro e o seu maravilhoso florescimento na consagração religiosa, que de modo totalmente particular une o fiel, indissolúvel e perenemente, à morte e à ressurreição de Cristo e fá-lo viver aquela "vida nova" (cfr. Rm 6,4), fruto da Redenção. "Por meio dos votos ou de outros vínculos sagrados, por sua natureza equiparados aos votos — afirma o Concílio Vaticano II — o cristão obriga-se à prática dos... conselhos evangélicos. Entrega-se totalmente a Deus amado acima de tudo, ficando assim destinado, por título especial e novo, ao serviço e à glória de Deus" (Const. dogmática Lumen Gentium, LG 44).

Esta consagração total e definitiva a Deus floresce no amor a Cristo e à Sua Esposa, a Igreja, numa participação intensa na Sua vida e numa adesão filial ao Seu ensinamento; frutifica na caridade generosa para com os irmãos, em particular para com os que têm necessidade do nosso afecto e da nossa compreensão; fortifica-se na oração litúrgica, comunitária ou pessoal, como diálogo amoroso com o Pai celeste; exprime-se no compromisso, segundo as forças e o género da própria vocação, em fundar e em radicar nos espíritos o Reino de Deus, e em o dilatar em todas as partes da terra; estimula a viver integralmente as exigências evangélicas do "Sermão da Montanha" e das "Bem-aventuranças", que representam continuamente um autêntico desafio à mentalidade corrente do mundo, e são para ela um "sinal" da vida eterna, que já irrompeu entre nós. Por isso — com o Bispo de Cartago, São Cipriano — vos digo: "guardai, ó virgens, guardai aquilo que sois. Guardai o que sereis. Espera-vos uma coroa magnífica. Já começastes a ser o que nós seremos. Tendes já neste mundo a glória da ressurreição!" (De habitu Virginum, 22: CSEL. 3/1, PP 202 s.).

Precisamente em consequência desta dimensão pascal da consagração religiosa, a vossa vida, caríssimas Irmãs, tem em si um valor social especial, porque ela é e deve ser o sinal e o testemunho da luta do bem contra o mal, da luz contra as trevas: uma luta que tem como vasto campo o mundo inteiro e a história inteira, e que nesta grande metrópole assume por vezes formas dramáticas.

O ensinamento do Concílio põe bem em evidência a grandeza da doação, decidida livremente por vós mesmas, à imagem daquela outra feita por Cristo à Sua Igreja e, como ela, total e irreversível. "Exactamente em vista do Reino dos Céus — escrevia o meu Predecessor Paulo VI na Exortação Apostólica sobre a Renovação da Vida Religiosa — vós haveis votado a Cristo, com generosidade e sem reservas, estas forças de amor, esta necessidade de possuir e esta liberdade de orientar a própria vida, as quais são para o homem tão preciosas. Tal é a vossa consagração, que se realiza na Igreja" (Evangelica Testificatio, 7).

O coração que se doa totalmente a Deus abre-se, ao mesmo tempo, para uma dimensão universal de amor desinteressado por todos os irmãos em Cristo. Só o Senhor poderá avaliar e medir a misteriosa fecundidade da oração e dos sacrifícios, que as Irmãs contemplativas, recolhidas na sua clausura, oferecem cada dia, em união com o seu Esposo celeste, pela salvação espiritual dos homens. E devo recordar hoje, nesta cidade, os autênticos prodígios realizados, principalmente nestes dois últimos séculos, por tantas Religiosas, que foram serenas e alegres educadoras na fé para milhares de crianças, de jovens que, especialmente nos oratórios, aprenderam a dar sentido e orientação cristã à sua juventude e à sua vida. Nem posso esquecer os milhares de Religiosas que, com vigor intrépido, enfrentaram e em parte resolveram, com modernas obras sociais, os problemas dramáticos de tantos jovens, que nesta grande metrópole industrial procuravam e procuram trabalho, colocação, compreensão e afecto. E penso também naquelas Religiosas que, entrevendo no irmão necessitado a imagem de Cristo, se debruçam, com dedicação materna comovente, sobre todas as chagas sangrentas dos que sofrem, dos enfermos e dos pobres, para lhes darem auxílio, serenidade e conforto, nos lares, nos hospitais e nas casas de saúde, e em particular naquele milagre permanente da Providência, que é o "Cottolengo"!

É esta, caras Irmãs, a fecundidade admirável da vossa consagração a, Deus! A Igreja e a sociedade têm extrema necessidade da vossa presença orante e adorante, do vosso testemunho evangélico, da vossa fé límpida e humilde, que opera mediante a caridade (cfr. Ga 5,6).

A vossa é, portanto, uma demonstração concreta e um sinal tangível do radicalismo evangélico, necessário para anunciar de maneira profética a humanidade nova segundo o Cristo, totalmente disponíveis para Deus e totalmente disponíveis para os outros homens. "Cada Religiosa — dizia à União Internacional das Superioras-Gerais — deve dar testemunho da primazia de Deus na sua vida, consagrando todos os dias um tempo suficientemente longo a estar na Sua presença, para confessar-Lhe o seu amor e, sobretudo, para deixar-se amar por Ele. Cada Religiosa deve, cada dia, através do seu estilo de vida, dar a conhecer que ela escolheu a simplicidade e os meios pobres em tudo o que diz respeito à sua vida pessoal e comunitária. Cada Religiosa deve, cada dia, viver a vontade de Deus e não a sua, para mostrar que os projectos humanos, tanto os seus como os da sociedade, não são os únicos da história, mas que existe um plano de Deus a exigir o sacrifício da própria liberdade..." (L'Oss. Rom ed. 26 11 78, 6).

Precisamente este lugar sagrado, onde estamos hoje reunidos, traz-nos à memória a figura de uma filha desta Região forte e generosa, isto é, Santa Maria Domenica Mazzarello, fundadora, juntamente com D. Bosco, das Filhas de Maria Auxiliadora. Desde muito jovem, ela quis viver a vida religiosa no mundo, instituindo ao mesmo tempo uma pequena casa para ensinar costura às jovens, as proteger e guiar nos caminhos do bem. Dizem-nos os seus biógrafos que então quase não sabia escrever e pouco sabia ler, mas falava das coisas referentes à virtude de maneira tão clara e persuasiva que parecia inspirada pelo Espírito Santo. Viveu na humildade, na mortificação e na serenidade a sua doação a Deus, realizando a sua "maternidade de amor" para com milhares de jovens e terminando a sua intensa vida terrena com apenas 44 anos de idade. As suas filhas espirituais são hoje cerca de dezoito mil, distribuídas por todo o mundo.

Na adesão solicita e fiel ao carisma dos vossos Fundadores e Fundadoras, continuai, caras Irmãs, a viver, na Igreja e no mundo de hoje, segundo as ricas tradições da índole específica dos vossos Institutos; cultivai, com empenho interior, a vossa vocação, mas cultivai também "as vocações", com a oração assídua, e com a vossa própria vida, que deve ser, especialmente perante as jovens, um sinal de plena alegria por terdes escolhido a "melhor parte" (cfr. Lc 10,42). Face às calúnias, aos malentendidos e ao desinteresse que por vezes existe quanto ao significado e ao valor da vossa presença de Religiosas na sociedade contemporânea, encaminhada para o secularismo e o tecnicismo, esteja a vossa resposta do amor. "Caritas Christi urget nos!" (2Co 5,14), deveis poder dizer ao mundo, sempre, dia após dia, com os vossos lábios, com a vossa serenidade, mas de modo especial com toda a vossa vida, completamente consagrada a Cristo e aos irmãos!

E seja a Virgem Maria o modelo admirável da vossa vida de almas consagradas. Eis como Santo Ambrósio nos apresenta, com delicadeza extraordinária e realista, o retrato de Nossa Senhora: "Ela era virgem não só no corpo, mas também na alma; completamente isenta de qualquer artifício que mancha a sinceridade da alma; humilde de coração; sensata no falar; prudente no pensamento; de poucas palavras; ... Ela depunha a sua esperança, não na incerteza das riquezas, mas na oração do pobre. Reservada nas conversas, estava sempre activa, habituada a procurar Deus... como juiz da sua consciência. Não ofendia ninguém; queria bem a todos; .., fugia à ostentação, seguia a razão; amava a virtude... É esta a imagem da virgindade. Maria foi tão perfeita que só a sua vida é regra para todos" (De Virginibus, II, 2, 6-7: PL 16, 208-210).

E, ao deixar-vos esta recordação mariana sob o olhar de Nossa Senhora Auxiliadora, reitero-vos a minha palavra de encorajamento para o vosso meritório apostolado e também os meus votos de alegria pascal, desejando que a graça da vossa vocação religiosa produza abundantes frutos de vida espiritual na Igreja universal e na Igreja particular, aqui em Turim, onde prestais, dia após dia, o vosso precioso testemunho de amor a Deus e aos Irmãos.

A minha Bênção Apostólica vos acompanhe agora e sempre. Ámen.



VISITA PASTORAL DO SANTO PADRE A TURIM

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

AOS JOVENS NA PRAÇA DE SANTA MARIA AUXILIADORA


Domingo, 13 de Abril de 1980



Poderia faltar, caríssimos jovens da Cidade e da Arquidiocese de Turim, um encontro especial convosco por ocasião desta minha visita? Podia faltar ou não?

(Multidão: Não!)

Sendo assim, encontramo-nos sobre um ponto comum. E devemos agradecer aos organizadores que previram um tal encontro e um tal programa.

Encontrando-me na vossa terra constatei, mais que a conveniência, a necessidade de vos dirigir a minha palavra de exortação e de incitamento, até para confortar a esperança de quantos, nos anos difíceis que estamos a viver, a vós se dirigem com renovada confiança.

1. Turim é uma cidade que, no sector religioso-educativo, tem tradições insignes e literalmente exemplares: Apresenta-nos figuras eleitas de homens e de jovens que, embora tendo vivido numa época diferente da nossa, demonstram uma surpreendente actualidade e podem dar lições validíssimas ao mundo moderno. De entre os muitos nomes que poderia referir, escolherei apenas dois.

O primeiro é o de São João Bosco que foi um grande educador dos jovens, a tal ponto que a sua obra em favor destes teve uma vasta irradiação não apenas aqui e nas regiões vizinhas, mas também na Itália e no mundo. Que direi da minha Cracóvia, da minha Polónia? Há ali tantos salesianos! Eu estive numa paróquia salesiana por diversos anos. Sendo assim, não posso deixar de falar de São João Bosco.

E eis aqui o que eu queria perguntar: que quer dizer ser um grande educador? Quer dizer, antes de mais, ser um homem que sabe "compreender" os jovens. Com efeito, nós sabemos que Don Bosco possuía uma particular intuição da alma juvenil:. estava sempre pronto e atento para ouvir e compreender os jovens que, em grande número, se lhe dirigiam no oratório de Valdocco e no Santuário de Maria Auxiliadora. Mas é necessário acrescentar desde já que a razão desta peculiar profundidade em "compreender" os jovens estava em que ele os "amava" com igual profundidade. Compreender e amar: eis a sempre actual fórmula pedagógica de Don Bosco que — como penso — se hoje se encontrasse no meio de vós, com a sua experiência madura de educador e com o seu bom senso de autêntico piemontês, saberia individuar em vós e distinguir eficazmente o eco, nunca extinto, da palavra que Cristo dirige a quem quer ser seu discípulo: "Vem e segue-me" (Mt 19,21 Lc 18,22). Segue-me com fidelidade e constância; segue-me a partir de agora; segue-me através dos vários e possíveis caminhos da tua vida! Toda a acção de São João Bosco — parece-me e mim — se resume e define neste bem sucedido e magistral "encaminhamento" dos jovens para Cristo.

O segundo nome é o de Pier Giorgio Frassati, que é figura mais próxima do nosso tempo (morreu, de facto, em 1925) e que nos mostra ao vivo o que significa verdadeiramente para um jovem leigo dar uma resposta concreta ao "Vem e segue-me". Basta passar os olhos, mesmo que rapidamente, pela sua vida gasta no espaço de apenas vinte e quatro, anos, para compreender qual foi a resposta que Pier Giorgio soube dar a Jesus Cristo: a resposta de um jovem "moderno", aberto aos problemas da cultura, do desporto (um valente alpinista), às questões sociais, aos verdadeiros valores da vida e, ao mesmo tempo, de um homem profundamente crente, nutrido pela mensagem evangélica, de carácter solidíssimo, apaixonado em servir os irmãos e ardendo num fogo de caridade que o levava a aproximar, segundo uma ordem de precedência absoluta, os pobres e os doentes.

2. Porquê, falando-vos agora, quis tomar por exemplo estas duas figuras? Porque elas servem para demonstrar, num certo sentido sob dois lados diferentes, aquilo que é essencial para a visão cristã do homem. Um e outro — Don Bosco como verdadeiro educador cristão e Pier Giorgio como verdadeiro jovem cristão — nos indicam que o que mais conta nessa visão é a pessoa e a sua vocação tal como foi estabeleci da por Deus. Vós já sabeis bem que, da minha parte, é frequente esta chamada de atenção para a pessoa, porque se trata verdadeiramente de um dado fundamental de que nunca se poderá prescindir; e, ao dizer pessoa, não pretendo fazer um discurso de um humanismo autónomo e circunscrito à realidade desta terra. O homem — é bom recordá-lo — tem em si mesmo um valor imenso, mas não o tem por si mesmo porque o recebeu de Deus, por quem foi criado "à sua imagem e semelhança" (Gn 1,26-27). E não existe, além desta, mais nenhuma adequada definição de homem! Este valor é como um "talento" e, segundo o ensino da conhecida parábola (Mt 25,14-30), deve ser bem administrado, isto é, este valor de ser homem, de ser pessoa, deve ser administrado de modo que frutifique em abundância. É esta, ó jovens, a visão cristã do homem, a qual, partindo de Deus criador e pai, faz descobrir a pessoa naquilo que é e naquilo que deve ser.

3. Falei de frutificação, e ainda aqui me ajuda o Evangelho quando — em leitura que encontrámos há pouco na sagrada liturgia — propõe a comparação da figueira estéril que é ameaçada de ser cortada (Lc 13,6-9). O homem deve frutificar no tempo, isto é, durante a vida terrena, e não somente para si, mas também para os outros, para a sociedade de que é parte integrante. Todavia este seu agir no tempo, precisamente porque não é "contido" no tempo, não deve fazer-lhe esquecer nem descurar a sua outra dimensão essencial — a de um ser orientado para a eternidade: portanto, o homem deve, simultaneamente, frutificar também para a eternidade. E se tirarmos ao homem esta perspectiva, ele continuará a ser uma figueira estéril.

Por um lado, ele deve "encher de si" o tempo de modo criador, porque a dimensão ultraterrena não o dispensa, por certo, do dever de agir responsável e originalmente, participando com eficácia, e em colaboração com todos os outros homens, para a edificação da sociedade, segundo as concretas exigências do momento histórico em que lhe é dado viver. É este o sentido cristão da "historicidade" do homem. Por outro lado, este compromisso de fé mergulha o jovem numa contemporaneidade que, em certo sentido, traz consigo uma visão contrária ao cristianismo. Esta antivisão apresenta as seguintes características que recordo, embora de modo sumário. Ao homem de hoje falta, com frequência, o sentido do transcendente, das realidades sobrenaturais, de qualquer coisa que o supera. O homem não pode viver sem alguma coisa que vá mais além, que o supere. O homem realiza-se a si mesmo se está consciente disto, se se supera sempre a si mesmo, se se transcende a si mesmo. Esta transcendência está profundamente inscrita na constituição humana da pessoa. Eis que, como disse, na antivisão contemporânea, o significado da existência do homem chega, por isso, a ser "determinado" no âmbito de uma concepção materialista em ordem aos vários problemas, como são, por exemplo, os da justiça, do trabalho, etc: daqui nascem os choques multiformes entre as categorias sociais ou entre as entidades nacionais, em que se manifestam os vários egoísmos colectivos. E necessário, pelo contrário, superar esta concepção fechada e, no fundo, alienante, contrapondo-lhe esse mais vasto horizonte que a razão em si e, ainda melhor, a fé cristã nos fazem antever. Nela, de facto, os problemas encontram uma solução mais plena; a justiça assume uma actuação mais completa em todos os seus aspectos; as relações humanas, excluída toda e qualquer forma de egoísmo, acabam por corresponder à dignidade do homem, como pessoa em que resplandece o rosto de Deus.

4. De tudo isto ressalta a importância da escolha que vós, jovens, deveis fazer! Fazei-a com Cristo, seguindo-o com ousadia e aderindo ao seu ensino, conscientes do eterno amor que encontrou nele a sua expressão suprema e o seu testemunho definitivo. Não posso, ao dizer-vos isto, ignorar, de certo, os obstáculos e os perigos, infelizmente não pequenos nem raros, que se vos apresentam nos diversos meios do hodierno contexto social. Mas não deveis deixar-vos desviar; nunca deveis ceder à tentação, subtil e por isso mesmo insidiosa, de pensar que urna escolha tal possa contradizer a formação da vossa personalidade. Eu não hesito em afirmar que esta opinião é de todo falsa: defender que a vida humana, no seu processo de crescimento e de amadurecimento, possa ser "diminuída" pela influência da fé em Cristo, é uma ideia que se deve rejeitar. Verdadeiro é exactamente o contrário: tal como a civilização seria empobrecida e truncada sem a presença da componente religiosa, da componente cristã, assim a vida do indivíduo e, designadamente, a do jovem seria incompleta e carecida sem uma forte experiência de fé, alcançada no contacto directo com Cristo Crucificado e Ressuscitado. O cristianismo, a fé, acreditai-me, jovens, completa e coroa a vossa personalidade: centrado como está na figura de Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem e, como tal, Redentor do homem, o cristianismo abre-vos o caminho à consideração, à compreensão e ao gosto por tudo quanto de grande, de belo e de nobre existe no mundo e no homem. A adesão a Cristo não comprime, mas dilata e exalta os "impulsos" que a sabedoria de Deus Criador colocou nas vossas almas. A adesão a Cristo não mortifica, mas robustece o sentido do dever moral, dando-vos o desejo e a satisfação de vos empenhardes por "qualquer coisa que vale verdadeiramente", dando-vos, repito, o desejo e a satisfação de vos empenhardes assim e, prevenindo o espírito contra as tendências, hoje não raramente florescentes no ânimo juvenil, contra o "deixar correr" ou na direcção de uma irresponsável e indolente abdicação, ou pelo caminho da violência cega e homicida. A adesão a Cristo — recordai-o sempre — será sobretudo fonte de uma alegria autêntica, de uma alegria íntima. Repito-vos, a adesão à Cristo é fonte de uma alegria que o mundo não pode dar e que — como ele próprio o garantiu aos seus discípulos — ninguém vos poderá tirar (cfr. Jn 16,22), mesmo permanecendo no mundo.

Esta alegria, como fruto de uma fé pascal e — como disse esta manhã — ponto "de um contacto" com Cristo, como dom inefável do seu Espírito, quer ser o ponto de chegada deste meu colóquio de hoje convosco. Quero chegar a esta palavra "alegria". Quero chegar a esta palavra porque vivemos a semana pascal. O cristianismo é alegria, e quem o professa e o faz transparecer na própria vida tem o dever de a testemunhar, comunicar e difundir à sua volta. Eis porque citei estas duas figuras. Don Bosco: ainda agora fui visitar o seu túmulo, e parece-me sempre alegre, sempre sorridente. E Pier Giorgio: era um jovem de uma alegria comunicativa, uma alegria que superava também as muitas dificuldades da sua vida, porque o período juvenil é sempre um período de provação das forças.

Como jovens, vós preparais-vos para construir não só o vosso futuro, mas também o das gerações vindouras: que coisa lhe transmitireis? Deveis pôr-vos está pergunta. Apenas bens materiais, com o acréscimo talvez de uma cultura mais rica, de uma ciência mais adiantada e de uma tecnologia mais avançada? Ou, além disto, aliás, ainda antes disto, não querereis porventura transmitir aquela perspectiva superior, a que acenei, aqueles bens de ordem espiritual que se chamam amor e liberdade? Digo-vos verdadeiro amor e verdadeira liberdade, porque podem facilmente ser manipuladas estas grandes palavras: amor e liberdade. Podem ser facilmente manipuladas. No nosso tempo, somos testemunhas de uma terrível manipulação destas palavras: amor e liberdade. É necessário encontrar o verdadeiro sentido das palavras: amor e liberdade. Digo-vos: deveis tornar ao Evangelho. Deveis tornar à escola de Cristo. Transmitireis, depois, estes bens de ordem espiritual: sentido da justiça em todas as relações humanas, e promoção e defesa da paz. De novo vos digo: são palavras desfrutadas, muitas, muitas vezes desfrutadas. Tem de se voltar sempre à escola de Cristo para reencontrar o verdadeiro, pleno e profundo significado destas palavras. O suporte necessário para estes valores não se encontra senão na posse de uma fé segura e sincera, de uma fé que abranja Deus e o homem, o homem e Deus. Onde está Deus e onde está Jesus Cristo, seu Filho, tal fundamento é constante, é profundo, é profundíssimo. Não há dimensão mais adequada nem mais profunda a dar a esta palavra "homem", a esta palavra "amor", a esta palavra "liberdade", a estas palavras "paz" e "justiça": não há outra, a não ser Cristo. Assim, tornando sempre a esta escola, eis ai a busca desses dons preciosos que vós, jovens, deveis transmitir às gerações futuras, ao mundo de amanhã; com Ele será mais fácil e não poderá deixar de dar resultado.

Chegado ao momento de me despedir de vós, desejo incitar-vos a esta visão de transcendente beleza, com a qual a vossa vida cristã adquira solidez, cresça "de virtude em virtude" (Ps 83,8) e floresça — porque sois jovens e deveis florescer — , e floreça em obras que, mesmo para a sociedade terrena, sejam premissa e promessa de um futuro mais humano e, por isso, mais sereno.

É o imperativo maior desta nossa época que se torna triste, e era ainda mais triste e mais trágica, se não vir aquela perspectiva que só vós; jovens, podeis dar-lhe a ela, ao nosso século, à nossa geração, à nossa Itália, ao nosso mundo!

E agora pedimos que se aproximem os Cardeais e os Bispos. Demos a bênção a estes jovens. Digamos uma oração, o Pai Nosso e depois, depois daremos a bênção a todos vós aqui presentes, os Bispos com o Bispo de Roma, hoje peregrino em Turim.

Seja louvado Nosso Senhor Jesus

Cristo. Até à vista.



VISITA PASTORAL DO SANTO PADRE A TURIM

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

AOS CIDADÃOS DE TURIM NO ENCERRAMENTO


DA SUA PEREGRINAÇÃO APOSTÓLICA


Praça Vittorio

Domingo, 13 de Abril de 1980



Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!

1. Com estas palavras para mim tão queridas, e também para vós familiares, saúdo Turim, neste encontro com a cidade inteira e com o mundo do trabalho, que leva ao vértice a alegria e a riqueza espirituais de todos os outros encontros, e conclui a minha visita hodierna entre vós. Com estas palavras saúdo todos vós e todos levo no coração!

Saúdo as Autoridades da Província, da Cidade, e as militares; saúdo o Cardeal Arcebispo de Turim, os Bispos do Piemonte, todo o clero aqui presente e as Religiosas; saúdo as representações do mundo do trabalho, parte importante e insubstituível da economia da cidade e da Itália; saúdo os homens da cultura e da política, nesta cidade intelectualmente vigorosa, profunda e rica de ideias; saúdo os homens dos "mass-media", do espectáculo e do desporto, saúdo todos vós, irmãos e irmãs aqui presentes, tecido conectivo da vida social quotidiana da metrópole; saúdo os jovens, minha alegria e minha coroa (Ph 4,1)! E toda Turim, na sua riqueza humana e na sua configuração geográfica, que tenho diante dos olhos; num quadro que , certamente nunca mais esquecerei.

É como se me viesse ao encontro a história da vossa amada cidade, desde o primeiro núcleo romano de "Augusta Taurinorum", até aos seus sucessivos desenvolvimentos, quando o anúncio do Cristianismo se radicou e se enleou com as vicissitudes da "civitas" terrena, favorecida no seu afirmar-se pelas condições ambientais e pela inata nobreza e laboriosidade dos seus filhos. Presto homenagem à rica e severa tradição cultural e civil da cidade: com a irradiação da sua Universidade, fundada já em 1404, e de renome europeu; com a fama das suas instituições culturais, dos seus Museus e das suas Academias; com o prestígio das suas indústrias em todos os campos, testemunho da laboriosidade e inventiva dos antepassados; com aquela indiscutível autoridade que bem mereceu à cidade o privilégio, seja embora temporâneo, de se tornar a capital da Itália. É esta Turim que saúdo; a Turim de ontem e de hoje, com a sua herança passada e com os seus presentes recursos de inteligência, de cultura e de actividade em todos os sectores.

2. É sobretudo a alma de Turim, que me vem ao encontro e que sinto pulsar e fundir-se em uníssono, aqui, diante da Grande Mãe. É uma alma humaníssima; isto é, com dimensões espirituais à medida do homem; é a alma de uma população que se formou nas fadigas, nas provações, não raro nas dificuldades de uma, vida simples, familiar; uma alma empreendedora, inspirada por amplos e estimulantes interesses culturais e espirituais; uma alma criativa e também prática, activa e também calma, que encontrou expressão na extraordinária expansão industrial da cidade; uma alma aberta, sensível aos valores do belo, do bem e do verdadeiro.

E, deixai-me dizer, vem-me ao encontro a alma cristã, católica de Turim, de que são testemunho a difusão da mensagem evangélica na cidade e nos vales circundantes, o extraordinário florescimento das Abadias medievais e a tradição de uma ordenada vida paroquial, que foi como que a estrutura da pastoral arquidiocesana. Esta alma cristã de Turim manifestou-se na fundamental fidelidade à Igreja, e na coerência entre a vida e a fé: recordamos os nomes de leigos, que souberam fazer honra ao nome cristão no compromisso profissional e político, como Sílvio Péllico, Cesar Balbo e a Marquesa Júlia de Barolo. Esta alma cristã de Turim sentiu a presença da Igreja nas transformações e nos desbaratamentos da civilização industrial do século passado, esteve junto desta sua Igreja, que deu ao mundo figuras como as de Cottolengo, de Cafasso, de Don Bosco e de Maria Mazzarello. Com esta alma cristã, Turim viu com simpatia e admiração — inclusive desde posições opostas — as obras incrivelmente vastas e humanamente inexplicáveis, às quais essas pessoas de Igreja deram vida, com o auxílio de Deus, sustentando-as com generosidade, e considerando-as como próprias; demonstrou ter uma riqueza interior, invisível, que denota uma nascente escondida de fé e de caridade, como a fonte secreta que brota dos vossos montes e vem depois formar o grande rio Pó, sobre o qual assenta, real, a cidade.

3. Vem-me, contemporaneamente, ao encontro a Turim de hoje, surgida das transformações do final do século passado até estes últimos decénios. É a realidade da grande cidade industrial, com o extraordinário potencial humano e profissional dos homens — cérebros e braços — que lhe dão vida, mas também com as ambiguidades, as antinomias, e as contradições que o trabalho e o mundo operário trazem consigo, especialmente quando se ofusca a consciência social, e os valores do Evangelho parecem às vezes sufocados pela figura amorfa da metrópole, que mesmo não querendo, se torna tentacular e desumanizada, fria e insensível aos problemas do homem, do vizinho e do "próximo". É o rosto, hoje comum a tantas cidades do mundo, da descristianização em acto, que agrava as inevitáveis tensões no âmbito do próprio trabalho, com todas as suas asperezas e conflitos permanentes. A vida social, embora com as inegáveis conquistas e melhoramentos obtidos, apresenta desequilíbrios desagregadores do contexto tradicional da cidade.

Se é verdade que estes são os problemas de todas as metrópoles industriais, Turim viveu-os e vive-os de modo peculiar, até pelo fenómeno verdadeiramente impressionante da imigração, que criou para a comunidade civil e eclesial problemas graves, de que já fui informado, e que de resto bem imagino. A presente crise económica alimenta, além disso, receios não infundados sobre a estabilidade do amanhã, e contribui para criar na convivência, nas empresas e nas famílias um clima de desencorajamento e falta de empenho. Desenvolveram-se aquelas fórmulas exasperadas de luta, que agridem às cegas para aumentar o sentido da falta de confiança, da instabilidade social e política, da confusão ideológica, para substituir não se sabe o quê, e até mesmo um princípio de violência que não pode deixar de provocar sempre nova violência. Também aqui o fenómeno é particularmente doloroso e preocupante.

Por conseguinte, é um quadro muito complexo o que, no seu conjunto, me é apresentado hoje: trata-se, no fundo, de três correntes características de toda a existência quer da sociedade hodierna — que tem Turim como uma sua expressão simbólica — quer da Igreja que vive e actua na sociedade. São correntes coexistentes uma com a outra, mas ao mesmo tempo em tensão, em aberto contraste entre si.

Vejo sobretudo o estrato profundo e esplêndido do Cristianismo, a corrente espiritual e cristã, que também teve o seu apogeu "contemporâneo" sempre vivo e presente, como já disse. Mas neste conjunto apareceram as outras, bem, conhecidas correntes de uma poderosa eloquência e eficácia negativa: por um lado há toda a herança racionalista, iluminista e cientista do chamado "liberalismo" laicista das Nações do Ocidente, que trouxe consigo a negação radical do Cristianismo; por outro, há a ideologia e a prática do "marxismo" ateu, que chegou, pode dizer-se, às extremas consequências dos seus postulados materialistas nas várias denominações hodiernas.

4. Neste "crisol ardente" do mundo contemporâneo, Cristo quer estar de novo presente, e com toda a eloquência do seu Mistério pascal. A sua Páscoa, que celebrámos, é a única que pode elevar o homem e a sua actividade à perfeição: como disse o Concílio Vaticano II, Cristo, com a sua ressurreição, "opera já pela virtude do Seu Espírito nos corações dos homens, não só despertando o desejo da vida futura, mas também alentando, purificando e robustecendo a família humana a tornar mais humana a sua própria vida e a submeter a este fim a terra inteira" (Gaudium et Spes GS 38).

O Papa veio entre vós para recordar ao mundo da cidade e do trabalho moderno esta presença decisiva e insubstituível, forte e suave, que põe interrogativos urgentes ao nosso viver tranquilo, mas fora da qual é vão procurar soluções eficazes e duradouras para as crises que afligem aquele mundo. No meio de vós, o Papa é o portador da mensagem libertadora de Cristo; e ao mesmo tempo que se sente inábil para a tremenda tarefa, e por isso vem ao vosso encontro com a humildade indefesa da sua missão unicamente espiritual, é também consciente do valor do seu testemunho, que deseja adequar-se às vossas expectativas deste momento. Este testemunho é como a espada da Palavra de Deus, que "penetra até dividir a alma..., e discerne os pensamentos e intenções do coração" (He 4,12); mas é também como o azeite que o bom Samaritano deita nas chagas do homem ferido (cfr. Lc 10,34).

A ambiguidade de fundo de uma sociedade, que encontre apenas no trabalho a própria razão de ser, sem se abrir às exigências de ordem humana, espiritual e sobrenatural, afastando-se do seu estrato mais profundo, deve fazer reflectir. Talvez cada um de vós se pergunte preocupado: a que chegará Turim? O Papa pergunta-o convosco. A uma espiral interminável de imanência, de terrenalidade, de desconfiança e de violência? Ou para um amanhã sereno, construtivo, operoso e fraterno "à medida do homem", porque está aberto a toda a realidade humana, porque aberto à Páscoa de Cristo?

Desejai-lo de todo o coração, e eu convosco. Estou junto de vós e compreendo as vossas ansiedades, as vossas solicitudes e devo dizei-vos que vim aqui para testemunhar que compreendo e que desejo ser solidário convosco. Tendo vindo entre vós no nome de Cristo, o Papa que vos fala, já prestes a deixar a cidade que se lhe ofereceu em toda a sua realidade espiritual e humana, religiosa e civil, deixa-vos as suas palavras de reflexão e bons votos, a fim de que o que fez Turim, grande e admirada no mundo, possa continuar a alimentar a vida e a actividade da vossa Comunidade turinesa.

5. O trabalho humano — que, aqui em Turim, se manifesta do modo mais eloquente e mais dramático — é uma realidade que exalta e realça as capacidades criativas do homem. É a sua herança, desde o princípio. O livro do Génesis apresenta o homem como encarregado directamente por Deus de fazer crescer a terra, e dominar sobre todas as criaturas inferiores (cfr. Gn 1,28). Como disse aos trabalhadores, meus compatriotas, da Polónia, "O trabalho é também a dimensão fundamental da existência do homem sobre a terra. Para o homem o trabalho não tem apenas um significado técnico, mas também ético. Pode dizer-se que o homem "submete" a terra a si quando ele próprio, com o seu comportamento, se torna senhor dela, não escravo, e também senhor e não escravo do trabalho. O trabalho deve ajudar o homem a tornar-se melhor, espiritualmente mais maduro, mais responsável, de modo a que possa realizar a sua vocação sobre a terra" (6 de Junho de 1979; L'Oss. Rom. ed. de 8 7 79, 5). O trabalho deve ajudar o homem a ser mais homem. O trabalho, embora nas suas componentes de fadiga, de monotonia e de obrigatoriedade — nas quais se advertem as consequências do pecado original — foi dado ao homem por Deus, antes do pecado, precisamente como instrumento de elevação e de aperfeiçoamento do cosmos, como completamento da personalidade, como colaboração na obra criadora de Deus. A fadiga, que lhe é inerente, associa o homem ao valor da Cruz redentora de Cristo; e, na visual totalizante do Evangelho, torna-se instrumento para a sociabilidade entre irmãos, para a colaboração mútua, para o aperfeiçoamento recíproco, já no plano da vida terrestre: numa palavra, torna-se expressão de caridade, no único amor de Cristo, que deve constranger-nos a procurar, cada um, o bem dos outros, a levar os fardos uns dos outros (cfr. 2Co 5,14 Ga 6,2). A realidade positiva do trabalho e do mundo operário está aqui, grande. E bela. Se a exprimo com uma linguagem evangélica — é claro que vos falo como apóstolo de Cristo — estou porém convencido que sobre a grandeza, sobre a dignidade do trabalho humano, podemos encontrar-nos nesta linguagem, com cada homem que procura efectivamente todas as dimensões da realidade humana e procura com toda a humildade a verdadeira dignidade do homem; podemos encontrar-nos com todos.

Por conseguinte, não seja nunca o trabalho em prejuízo do homem! Em muitas partes já se reconhece que o progresso técnico não é acompanhado de um adequado respeito do homem. A técnica, embora admirável nas suas continuas conquistas, não raro empobreceu o homem na sua humanidade, privando-o da sua dimensão interior, espiritual, e sufocando nele o sentido dos verdadeiros valores, dos valores superiores. É necessário recordar o primado espiritual! A Igreja convida a conservar a justa jerarquia dos valores. O célebre binómio beneditino "Ora et labora" seja para vós, homens e mulheres de Turim, meus irmãos e irmãs, fonte inseparável de verdadeira sabedoria, de seguro equilíbrio e de perfeição humana: a oração anime o trabalho, purifique as intenções, defenda-o dos perigos da incompreensão e do desleixo; e faça o trabalho descobrir de novo, depois da fadiga, a força tonificadora do encontro com Deus, em que o homem encontra toda a sua verdadeira e grande estatura. "Ora et labora". Sim, também tu, Turim, reza e trabalha!

6. O trabalho não desagregue a família! O pensamento não pode deixar de se dirigir para aquela Sagrada Família de Nazaré, na qual o Verbo, Filho de Deus e de Maria, se exercitou no trabalho humano, sob a guia vigilante e afectuosa daquele que lhe fazia de pai, São José — padroeiro dos trabalhadores! — sob os olhos da Mãe, Virgem Imaculada, também ela ocupada nas humílimas tarefas que as atrasadas condições do tempo reservavam às mulheres. O Cristo menino foi acariciado por rudes mãos de carpinteiro! E também ele foi operário, num mistério de humilhação que enche a alma de surpresa infinita. Se nos perguntarmos que fez o Filho de Deus sobre a terra, na sua vida, durante a maior parte da sua vida, nos trinta anos da sua vida, temos que dizer que fez o trabalho de um operário, de um carpinteiro, de um de nós.

Como se pode deixar de olhar para aquela Família, na qual a Igreja e a sua Liturgia vêem a protectora de todas as famílias do mundo, especialmente das mais humildes, das mais anónimas, das que ganham o pão de cada dia com suor e fadiga incalculáveis? Seja ela, Turineses, a manter intactos os grandes valores da vossa dedicação, do vosso amor e da vossa estima à família. Esta é não só a "célula primeira e vital da sociedade" (Apostolicam Actuositatem AA 11), mas sobretudo "santuário familiar da Igreja"(ibid. AA 11), até mesmo "Igreja doméstica" (Lumen Gentium LG 11); assim a definiu o Concílio; e assim seja para vós, forja de virtudes, escola de sabedoria e de paciência, primeiro santuário onde se aprende a amar a Deus e a conhecer o Cristo, forte defesa contra o hedonismo e o individualismo ardente e amorosa abertura aos outros. Não seja, pelo contrário, um deserto de almas, um casual encontro de caminhos divergentes, um albergue ou — queira Deus que não — um refúgio para tomar as refeições ou descansar, e depois afastar-se cada um para seguir o próprio destino. Não! Eu confio cada uma das vossas famílias a Jesus, a Maria e a José, para que, com o seu amparo, possais conservar sempre aqueles valores que, nascidos e mantidos precisamente nas vossas famílias tornaram estável, ou melhor invejável o florescimento civil da vossa cidade! E de novo repito: falei da família, falei numa linguagem cristã, teológica; mas pergunto-me, pergunto ainda a todos se os valores essenciais de que se discute, de que se trata, com que nos preocupamos, não são os que nos unem a todos. Quem poderá não requerer da família humana que seja uma verdadeira família, uma verdadeira comunidade, onde o homem é amado, onde cada um é amado pelo simples facto de que é um homem, único e irrepetível, que é uma pessoa? Estamos todos unidos na defesa destes valores e na busca da sua promoção. Estamos todos unidos. São os factores humanos que nos unem a todos, e se eu falo destes valores com a minha linguagem apostólica, estou convencido que todos me compreendem. Que todos compreendem o verdadeiro significado humano desta preocupação, deste desejo, destes votos que pretendo deixar a todos, a Turim inteira, a cada família de Turim e a toda a vossa comunidade. Obrigado, obrigado a todos por este conforto que me dais, por este incitamento a viver ainda. Obrigado!

7. E ainda: o trabalho não deve degradar a juventude, nem defraudá-la dos seus tesouros mais autênticos: do entusiasmo, do fervor, do compromisso por um amanhã mais justo e mais respeitoso do homem. A entrada dos jovens na fábrica, corresponde às vezes a um processo, insidiosamente facilitado pela mentalidade permissiva predominante, de perversão ideológica, quando não moral, e de comportamento. São devastações cujas feridas nunca mais se fecharão, tanto em cada indivíduo como na sociedade, senão com fadiga ou com o contributo das pessoas e das instituições mais dedicadas.

Turim esteve na vanguarda da formação profissional da juventude, que andou a par e passo com a formação religiosa e moral: o pensamento de todos corre instintivamente para Don Bosco e para as suas obras, às quais vós, cidadãos, continuais a confiar os vossos filhos. Mas não quereria esquecer São Leonardo Murialdo e os seus aprendizes, nem a presença benemérita de todas as outras iniciativas religiosas que, com largo emprego de homens e de meios, asseguraram às vossas famílias um forte e seguro suporte para a insubstituível obra educadora dos vossos filhos. É-me grato recordar os animadores, masculinos e femininos, das paróquias; as várias associações e em particular, a Acção Católica, que realizaram aqui uma obra muitíssimo louvável, continuando uma tradição que apresentou figuras radiosas de jovens.

Prossiga Turim por este caminho! Resta sempre e ainda muito a fazer! Nas grandes cidades, multidões de crianças e de jovens ficam frequentemente sem assistência, devido às condições de trabalho dos pais, à escassez de estruturas sociais e, talvez, à falta de adequado interesse. Quantos deles saberão resistir às fáceis tentações da droga, às fortes seduções da amoralidade e imoralidade mostrada descaradamente, aos tentáculos terríveis da violência e do terrorismo? Jovens, jovens — dirijo-me a vós —: não vos deixeis subjugar! Sede generosos e bons! A sociedade e a Igreja, a Pátria, têm necessidade de vós: "quid hic statis tota die otiosi? Porque ficais aqui todo o dia sem trabalhar?", repito-vo-lo com as palavras do Evangelho (Mt 20,6). As obras sociais e de animação juvenil, missionária, cultural e desportiva esperam também o vosso contributo! A Igreja espera! A sociedade espera! Cristo espera! Não desiludais esta nossa comum esperança! Não desiludais a minha esperança!

8. Além disso, não faça o trabalho esquecer os pobres, os que sofrem. A caridade de Cottolengo criou aqui em Turim a pequena casa da caridade: e também vos louvo pelo suporte que sabeis dar àquela instituição.

É um bom sinal, este! Indica que, embora no agravamento dos contrastes sociais, no cruzamento das tensões de vário género, o grande coração de Turim não esquece quem sofre.

Mas o sofrimento está no meio de nós, ao nosso lado, nos próprios prédios onde moramos, talvez escondido por um véu de discrição que se envergonha de pedir. É necessário que a fadiga quotidiana, não só não torne obtusos os olhos da alma para descobrir os sofrimentos e as privações alheias, mas também estimule, aumente a sensibilidade e suscite a "simpatia", isto é o "sofrer-com-outro". Sei que em Turim foram e são florescentes as Conferências de São Vicente de Paulo, nas quais, operários e estudantes universitários, homens e mulheres de diversas classes sociais, deram vida a belissimas iniciativas de caridade, que fazem um bem imenso. Continue Turim, ou volte a ser a cidade da caridade! Continue e volte a ser: continue na sua posição social hodierna, na sua composição social, plena, diversificada, continue a ser a cidade da caridade. Não podemos encontrar palavra mais exacta que exprima melhor a solidariedade humana, o humanismo, do que a palavra: caridade.

9. Por fim, o Papa deseja-vos que o trabalho não adormeça as faculdades humanas, não as desfigure no ódio que destrói sem nada construir.

É preciso fazer barreira ao terrorismo que não dorme, e que fez desta cidade um dos seus pontos nevrálgicos. Talvez as desigualdades sociais e as outras motivações tenham podido dar motivo para uma mentalidade critica, que tende a eliminar tudo, na expectativa de um futuro chamado melhor. Mas que futuro, que futuro melhor pode construir-se sobre o ódio que ferozmente recrudesce contra os próprios irmãos, que amanhã poderia surgir de um último mar de ruínas e de morte?

Convido, e também peço firmemente a todas as Autoridades responsáveis, e com elas aos homens de Igreja, a envidarem todos os esforços para eliminar tudo aquilo que é incentivo de injustiças, de desigualdade, de privilégios iníquos: a Igreja não nos exime, certamente, de abrir os olhos sobre as injustiças sociais e sobre os graves problemas quotidianos dos nossos irmãos, aliás denuncia-os com a força dos antigos profetas, com a palavra arrebatadora do Evangelho, mas além disso procura dedicar-se a mudar e melhorar a vida humana, esforçando-se por melhorar o próprio homem.

Mas, como na Irlanda, eu proclamo igualmente com firmeza, "com a convicção da minha fé em Cristo e com a consciência plena da minha missão, com a consciência da minha humanidade que a violência é um mal, que a violência é inaceitável como solução dos problemas, que a violência não é digna do homem... Peço juntamente convosco para ninguém se atrever a chamar a um homicídio outra coisa que não seja homicídio" (Homilia em Drogheda, L'Oss. Rom ed. 7 10 79, 5).

Estamos todos comprometidos nesta obra de persuasão, de esclarecimento, de melhoramento: ela exige, certamente, uma "conversão" das mentalidades; e a conversão deve passar à acção concreta. Mas mal de nós se não soubermos pensar e dizer claramente que não existe melhoramento social fundado sobre o ódio, sobre a destruição. O ódio gera a morte. Somos, pelo contrário, portadores do bem, os apóstolos da caridade, os defensores da vida! E neste ponto devemos estar todos firmemente unidos. Não nos pode dividir aspecto algum, ideologia alguma, nem concepção pessoal alguma da vida, do destino humano, porque o problema é claro em si mesmo e devemos estar unidos profundamente na maior solidariedade para vencer o mal com o bem.

10. Dirijo-me a ti, Turim, cuja alma, antiga e nova, gentil e activa, humana, cristã e católica, senti hoje vir-me ao encontro e vibrar em uníssono comigo.

Continua no teu caminho secular de progresso e de paz! A Igreja está contigo! Esteve sempre com os seus santos, Cafasso, Don Bosco, Don Murialdo, Cottolengo, nos seus sacerdotes simples e bons que viveram o Evangelho à letra, nas suas Irmãs dedicadas ao serviço dos irmãos, nos seus leigos melhores; nas suas instituições seculares. Não olheis para ela com desconfiança, para esta Santa Igreja que te ama porque ama a Cristo seu Salvador, crucificado e ressuscitado, Primogénito entre os irmãos (cfr. Rm 8,29 Col 1,15); e amando a Cristo não pode deixar de amar cada um de vós, não pode deixar de amar o homem, porque o homem representa Cristo. E ele a fonte inesgotável da sua caridade, do seu zelo, do seu heroísmo. A Igreja está junto de ti, como está junto de cada homem, Ela é "perita em humanidade", como disse o grande Paulo VI, meu Predecessor. Ela oferece a sua 'colaboração em todos os campos: para a elevação do mundo do trabalho, para as iniciativas da cultura, para as necessidades da vida social, para as obras de beneficência: onde quer que esteja um homem que espera, ali quer estar a Igreja ao seu lado, porque ela descobre nele o vestígio profundo e imortal do Criador, que o fez à sua imagem e semelhança, e o remiu em Cristo.

Ressuscita, Turim, na sua Páscoa que transforma o mundo! Conserva a tua alma cristã, a tua alma católica, a tua alma italiana, a tua alma humana. Sê a cidade fiel e segura, que Deus protege, como disse o teu grande Bispo, São Máximo: "Tunc ergo civitas munita est quando eam magis Deus ipse custodit: uma cidade está bem defendida quando sobretudo é o próprio Deus que a protege; mas Deus protege-a precisamente quando, como está escrito (cfr. Ps 126,1), todos os seus habitantes são sensatos e coerentes. De facto, Deus não deixará de conservar uma cidade assim, onde vê que todos os seus preceitos são observados" (S. Maximi Taurin, Serm. 86, 1; ed. Mutzenbecher, C. Ch. Ser. Lat. 23, Turnholti 1962, p. 352). E estes preceitos podem não ser observados se quisermos viver uma vida mesmo simplesmente humana?

Deus te conserve, Turim!

E tu observa sempre a sua. Lei! Deus te recompense, Turim, por esta hospitalidade que hoje deste a este Papa João Paulo II que veio a ti como peregrino!

São estes os meus votos que confio à Grande Mãe de Deus, à intercessão dos vossos Santos e à vossa boa vontade!

E abençoo todos vós, no nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo!




Discursos João Paulo II 1980 - Domingo, 13 de Abril de 2008