Discursos João Paulo II 1980 - Nairobi , 6 de Maio de 1980


PEREGRINAÇÃO APOSTÓLICA DO SANTO PADRE À ÁFRICA

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

NA CATEDRAL DA SAGRADA FAMÍLIA


Nairobi , 6 de Maio de 1980



Eminentíssimo Senhor Cardeal,
Pastor zeloso desta amada Igreja de Nairobi,
Veneráveis Irmãos rio Episcopado, Filhos e Filhas do Quénia,
Meus Irmãos e Irmãs em Cristo

1. O meu primeiro desejo nesta Casa de Deus é exprimir o louvor da Igreja ao Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que nos reuniu no Seu Filho, enviando entre nós o Seu Santo Espírito. Nas palavras do Apóstolo Pedro: "Bendito seja o Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que, segundo a sua grande misericórdia, nos regenerou para uma esperança viva, pela ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos..." (1P 1,3).

2. Hoje, nesta Catedral dedicada à Sagrada Família — a Jesus, Maria e José — todos nós tomamos consciência que, juntos, formamos o Corpo de Cristo, que, juntos, somos a Igreja. Somos uma Igreja viva, uma casa espiritual construída de pedras vivas — cada um de nós que vive em Cristo. Somos um com todos os nossos irmãos e irmãs aqui no Quénia e em todo o mundo: somos um na Comunhão dos Santos, um com os vivos e com os mortos: as nossas famílias, os nossos antepassados, aqueles que nos trouxeram a Palavra de Deus e cuja memória está inscrita para sempre nos nossos corações.

Hoje, em particular, somos uma comunhão de fé e de amor, dando glória a Jesus Cristo como o Filho de Deus, Senhor da história, Redentor do homem e Salvador do mundo inteiro. Somos uma Comunidade unida, viva no mistério da Igreja, a vida do Cristo crucificado e ressuscitado. Somos um povo remido pelo sangue precioso de Jesus Cristo; e é por isto que o Seu louvor está nos nossos corações e nos nossos lábios e se exprime no nosso Aleluia Pascal. Somos, por assim dizer, uma Sagrada Família extensa, chamada a construir e a ampliar o edifício da justiça e da paz, e a civilização do amor.

3. Por isto somos desafiados a viver uma vida digna da nossa vocação, como membros do Corpo de Cristo e como irmãos e irmãs de Cristo, segundo a dignidade cristã e o dever de caminhar humilde e pacificamente juntos ao longo da estrada da vida. O próprio Jesus exorta-nos a sermos, com as nossas vidas, o sal da terra e a luz do mundo. Com Ele, eu digo-vos: "Assim brilhe a vossa luz diante dos homens, para que eles vejam as vossas boas obras e glorifiquem o vosso Pai, que está nos céus" (Mt 5,16).

4. Cada um de nós tem um lugar único na comunhão da Igreja universal presente na África e no mundo inteiro. Vós, o laicado, que procurais viver uma vocação de santidade e de amor, tendes uma responsabilidade especial pela consagração do mundo. Mediante vós, o Evangelho deve atingir todos os níveis da sociedade. A exemplo da Sagrada Família, vós, pais e filhos, deveis construir uma comunidade de amor e de compreensão, em que as alegrias, as esperanças e os sofrimentos da vida são compartilhados e oferecidos a Deus na oração. Vós, casais, deveis ser o sinal do amor fiel e indestrutível de Deus pelo seu povo, e do amor de Cristo à Sua Igreja. Sois vós que tendes a grande missão de oferecer Cristo um ao outro e aos vossos filhos; neste sentido, sois os primeiros catequistas dos vossos filhos. Saúdo também todos os catequistas que, com tanta dedicação, servem a Igreja de Deus. E vós, jovens, que estais a preparar-vos para o sacerdócio ou para a vida religiosa, sois chamados a crer no poder da graça de Cristo nas vossas vidas. O Senhor precisa de vós para prosseguir o trabalho da redenção entre os vossos irmãos e irmãs.

Vós religiosos, homens e mulheres, mediante a profissão dos conselhos evangélicos de castidade, pobreza e obediência, sois chamados a dar uni testemunho efectivo do Reino de Cristo, cuja plenitude só será revelada na vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo. Sois chamados, numa vida de consagração jubilosa e de empenho permanente, a ser sinal, da santidade da Igreja e, consequentemente, sinal de encorajamento e de esperança para todo o povo de Deus. Vós tendes ainda a possibilidade de dar um grande contributo para o apostolado da Igreja, mediante as vossas actividades e a vossa vida de oração. Ao cumprirdes esta missão, a medida da vossa eficácia estará na proporção em que permanecerdes unidos aos vossos Bispos e no trabalho em estreita união com eles. E vós, meus irmãos no sacerdócio, tendes a missão de proclamar a salvação, de construir a Igreja com o Sacrifício Eucarístico; tendes a vocação de um vínculo todo especial com Cristo, oferecendo as vossas vidas no celibato a fim de serdes como Jesus, o Bom Pastor, entre o vosso povo — o povo do Quénia.

E, por fim, meus caros irmãos Bispos, em união com todo o colégio episcopal unido, por sua vez, ao, Sucessor de Pedro, sois chamados a exercer o governo pastoral de todo o rebanho, em nome de Jesus Cristo, "o príncipe dos pastores" (1P 5,4); a vossa missão é portanto de um serviço especial. Vós fostes nomeados como guardiães da unidade que estamos a viver e a experimentar hoje, porque sois os guardiães da Palavra de Deus sobre a qual se fundamenta toda a unidade. E, de modo particular, caro Cardeal Otunga, pela sua eminente posição, Vossa Eminência é pessoalmente um laço visível com a Sé de Roma, e um sinal especial da unidade católica nesta Igreja local. Estou-lhe profundamente grato pela sua fidelidade e pela sua dedicada colaboração.

5. E assim, como um único povo remido, um só Corpo de Cristo, uma só Igreja, permaneçamos firmes na fé de Nosso Senhor Jesus Cristo, reconhecendo-O como "Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro". Com São Pedro, dizemos a Jesus: "Tu és o Cristo, Filho de Deus vivo" (Mt 16,16). E ainda: "Tu tens palavras de vida eterna" (Jn 6,68).

Quanto a mim, como Sucessor de Pedro, vim hoje até vós repetir as palavras de vida eterna de Cristo, proclamar a sua mensagem de salvação e de esperança, e oferecer a todos vós a Sua paz:

"Paz a todos vós que estais em Cristo" (1P 5,14).
Paz aos vivos.
Paz aos mortos, a todos os que nos precederam no sinal da fé.
Paz a todo o Quénia.
Paz para toda a África — a paz de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Amém.



PEREGRINAÇÃO APOSTÓLICA DO SANTO PADRE À ÁFRICA

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

AO CORPO DIPLOMÁTICO ACREDITADO EM NAIROBI


Nairobi (Quénia), 6 de Maio de 1980



Excelências,
Senhoras e Senhores

1. A vossa visita aqui esta noite proporciona-me muito prazer, pois oferece-me ocasião de encontrar tantos e tão distintos membros da Comunidade Diplomática. As minhas cordiais e respeitosas boas-vindas estendem-se também aos representantes das Organizações regionais e internacionais, cujas actividades enriquecem esta Cidade Capital. Agradeço-vos a todos a honra que me dais com a vossa amável presença. Estou particularmente grato ao Representante da Santa Sé por ter tido a iniciativa de vos oferecer a hospitalidade desta casa, que é também a minha casa, durante a minha estadia em Nairobi.

Estou certo de que conheceis bem este continente, quer em virtude do vosso trabalho, quer como resultado dos contactos quotidianos que tendes com os líderes e com o povo da África. Não vos surpreendereis, portanto, se eu dirijo as minhas considerações principalmente sobre a situação africana e sobre alguns problemas que se apresentam a este continente.

2. Desejo recordar esta noite as palavras proféticas que Paulo VI dirigiu ao Parlamento do Uganda, em que ele falou da África como já "emancipada do seu passado e madura para uma nova era". Ao encontrar-me aqui no Quénia, onze anos depois, ouso dizer: Esta nova era começou e a África já está pronta para o desafio! Durante estes anos, muitas coisas aconteceram, muitas mudanças se realizaram; muito progresso foi feito; e, ao mesmo tempo, surgiram muitos problemas novos. Por conseguinte, parece-me ser esta uma ocasião oportuna para falar da nova realidade da África.

Muitas situações e problemas africanos, que hoje exigem a nossa atenção, não são diferentes dos que afectam outras nações e continentes no mundo. Mas alguns são tipicamente africanos, no sentido que os elementos dos problemas e os recursos disponíveis para a sua solução — naturais e especialmente humanos — são exclusivos deste continente. Nisto há um factor supremo que se deve ter presente na mente. É a verdadeira identidade do africano, da pessoa africana, do homem e da mulher africanos.

3. O caminho, que cada comunidade humana deve percorrer ao procurar descobrir o significado profundo da própria existência, é o caminho da verdade sobre o homem na sua totalidade. Se quisermos compreender a situação na África, o seu passado e o seu futuro, devemos começar pela verdade da pessoa africana — a verdade de cada africano ou africana, no seu contexto histórico concreto Se esta verdade não for entendida, não poderá haver nenhuma compreensão nem mesmo entre os próprios povos africanos, nem justiça nem relações fraternas entre a África e o resto do mundo, pois a verdade sobre o homem é o primeiro requisito para toda a empresa humana.

A verdade sobre o indivíduo africano deve ser vista, principalmente e antes de tudo, na sua dignidade como pessoa humana. Existem na cultura deste continente muitos elementos que ajudam a entender esta verdade. Não é talvez confortante saber que o africano aceita, com todo o seu ser, o facto que existe uma relação fundamental entre ele e Deus Criador? Pelo que ele tende a considerar a realidade de si mesmo ou do mundo material que o rodeia no contexto deste relacionamento, exprimindo assim uma referência fundamental a Deus que "criou o homem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus, e criou-os varão e mulher" (Gn 1,27). A dignidade única, e a igualdade fundamental de cada pessoa humana devem, portanto, ser aceitas como o ponto de partida para uma verdadeira compreensão da identidade e da aspiração do povo deste continente.

A sociedade africana tem além disso — tecida na sua própria vida — uma série de valores morais, e estes lançam uma luz ulterior sobre a verdadeira identidade dos africanos. A história testemunha como o continente africano sempre conheceu um forte sentido comunitário nos diversos grupos que constituem a sua estrutura social; e isto é particularmente verdadeiro para a família onde há uma forte coesão e solidariedade. E que melhor perspectiva poderá ser encontrada na necessidade de uma solução pacífica de conflitos e dificuldades — um modo que está à altura da dignidade humana — do que a propensão inata ao diálogo, do que o desejo de explicar os diversos pontos de vista na conversação a que o africano se dirige tão facilmente e que leva à frente com tanta graça natural? Um sentido de celebração expresso na alegria espontânea, uma reverência pela vida, e urna aceitação generosa da vida nova — são estes alguns elementos ulteriores que fazem parte da herança do africano e ajudam a definir a sua identidade.

4. É neste contexto que a Igreja Católica, à luz das suas convicções que emanam da Mensagem de Cristo, vê a realidade da Africa hoje, e proclama a sua esperança neste continente.

Poucos dias antes de partir para esta visita pastoral, expressei a minha alegria pelo facto de poder visitar os povos da África nos seus próprios países, nos seus próprios estados soberanos, onde eles são "os verdadeiros senhores da sua própria terra e os timoneiros do seu próprio destino" ("Regina caeli", 27 de Abril de 1980). Na África, muitas nações conheceram no passado a administração colonial. Mesmo sem negar as várias realizações desta administração, o mundo regozija-se pelo facto que este período já está na sua fase final. Os povos da África, com poucas e penosas excepções, estão a assumir a plena responsabilidade política pelo seu próprio destino — e eu saúdo aqui particularmente a independência recente a que chegou o Zimbabwe. Mas não se pode ignorar o facto que outras formas de dependência são ainda uma realidade ou pelo menos uma ameaça.

A independência política e a soberania nacional exigem, como corolário necessário, que haja também independência económica e libertação do domínio ideológico. A situação de alguns países pode ser profundamente condicionada pelas decisões de outras potências, entre as quais estão as maiores potências do mundo. Pode também verificar-se uma ameaça subtil de interferência de natureza ideológica capaz de produzir, na área da dignidade humana, efeitos que são, por vezes, mais deletérios do que qualquer outra forma de sujeição. Existem ainda situações e sistemas, no âmbito de alguns países, e nas relações entre estados, que são "marcados pela injustiça e pela injúria social" (Discurso às Nações Unidas, 2 de Outubro de 1979, n. 17) e que condenam ainda muitos homens à fome, à doença, ao desemprego, à falta de educação e à estagnação no seu processo de desenvolvimento.

5. O Estado, cuja justificação é a soberania da sociedade e ao qual está confiada a salvaguarda da independência, não deve nunca perder de vista o seu principal objectivo, que é o bem comum de todos os cidadãos, sem nenhuma distinção, e não simplesmente o bem-estar de um grupo ou de uma categoria particular. O Estado deve rejeitar tudo aquilo que não for digno da liberdade e dos direitos humanos do seu povo, banindo quaisquer elementos, como o abuso de autoridade, a corrupção, o domínio do fraco, a negação ao povo do seu direito de participar na vida política e nas decisões, a tirania ou o uso da violência e do terrorismo. Aqui, de novo, eu não hesito em me referir à verdade sobre o homem. Sem a aceitação da verdade sobre o homem, da sua dignidade e do seu destino eterno, não pode existir entre as nações aquela confiança fundamental que é um dos elementos basilares de toda a empresa humana; e nem a função pública pode ser vista como aquilo que ela é realmente: um serviço ao povo que encontra a sua única justificação na solicitude pelo bem de todos.

6. Neste mesmo contexto do respeito do Estado pela dignidade dos seus cidadãos, desejo chamar a atenção para o problema da liberdade religiosa.

Precisamente porque a Igreja Católica crê que não pode haver liberdade, que não é possível amor fraterno sem referência a Deus, que "criou o homem à sua imagem" (Gn 1,27), ela não cessa nunca de defender, como direito fundamental de cada pessoa, a liberdade de religião e a liberdade de consciência. "A limitação de liberdade religiosa das pessoas e das comunidades não é apenas uma sua dolorosa experiência", disse na minha encíclica, "mas atinge antes de mais nada a própria dignidade do homem, independentemente da religião professada ou da concepção que elas tenham do mundo". E acrescentei que, como a incredulidade, a a-religiosidade e o ateísmo, se compreendem somente em relação à religião e à fé, é difícil aceitar "uma posição segundo a qual só o ateísmo tem direito de cidadania na vida pública e social, enquanto que os homens crentes, quase por princípio, são apenas tolerados, ou então tratados como cidadãos de segunda categoria, e até mesmo — o que já tem sucedido — são totalmente privados dos direitos de cidadania" (Redemptor hominis RH 17). Por esta razão, a Igreja crê, sem hesitação e sem dúvida, que uma ideologia ateia não pode ser a força motriz e guia para o progresso do bem-estar das pessoas ou para a promoção da justiça social, quando priva o homem da sua liberdade dada por Deus, da sua inspiração espiritual e do seu poder de amar o seu próximo adequadamente.

7. Outro problema sobre o qual a verdade sobre o homem, e em Particular sobre o homem africano, me leva a falar-vos, é o problema persistente da discriminação racial. A aspiração a uma dignidade igual por parte das pessoas e dos povos, juntamente com a sua realização concreta em todos os aspectos da vida social foi sempre fortemente alimentada e defendida pela Igreja. Por ocasião da sua visita a África, Paulo VI disse: "Deploramos que nalgumas partes do mundo persistam situações sociais baseadas na discriminação racial e por vezes determinadas e sustentadas por sistemas de pensamento: estas situações constituem uma afronta manifesta e inadmissível aos direitos fundamentais da pessoa humana" (Ao Parlamento do Uganda, 1 de Agosto de 1969). Há dois anos, na sua última mensagem ao Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé, ele salientou de novo que a Igreja "se preocupa com que se agravem rivalidades raciais e tribais, fomentando divisões e rancores", e denunciou "a tentativa de criar assembleias jurídicas e políticas violando princípios do sufrágio universal e da autodeterminação dos povos" (Ao Corpo Diplomático, 14 de Janeiro de 1978).

A verdade sobre o homem na África exige da minha parte, nesta ocasião, que eu confirme estas afirmações. E faço-o com profunda e forte convicção. Foram feitos progressos em relação a algumas situações, e por isso nós agradecemos a Deus. Mas existem ainda muitos exemplos de discriminação institucionalizada à base de diferenças raciais e isto não o posso deixar de assinalar diante da opinião mundial. Não esqueçamos a este propósito a necessidade de combater as reacções racistas que podem surgir a respeito da migração de povos do campo para os centros urbanos, ou de um país para o outro. A discriminação racial é um mal, independentemente de como, por quem e porque é praticada.

8. Ainda no contexto de todo o continente africano, eu gostaria de chamar a atenção para um problema de tal urgência que deve verdadeiramente mobilizar a necessária solidariedade e a compaixão para a sua solução: refiro-me ao problema dos refugiados em muitas regiões da África. Grande número de pessoas foi levado, por várias razões a deixar o País amado e o lugar em que tinha as suas raízes. Por vezes isto foi devido a motivos políticos, outras vezes para fugir à violência e à guerra, ou ainda pelas consequências de desastres naturais, ou pelo clima hostil. A comunidade africana e a comunidade mundial não podem cessar de se interessar pela condição dos refugiados e pelos terríveis sofrimentos a que muitos deles estão sujeitos, por tanto tempo. Estes refugiados têm verdadeiramente direito à liberdade e a viver uma vida conforme à sua dignidade humana. Eles não devem ser privados do gozo dos seus direitos, ainda menos quando factores independentes do seu controle, os obrigaram a tornarem-se estrangeiros sem uma pátria.

Por isto faço um apelo a todas as autoridades a que garantam que nas suas próprias nações seja sempre oferecida a justa liberdade a todos os cidadãos, para que ninguém seja obrigado a ir procurá-la alhures. Faço apelo às autoridades das nações, cujas fronteiras os refugiados são obrigados a atravessar, para que os acolham com cordial hospitalidade. Faço apelo à Comunidade internacional para que o peso não seja suportado apenas por aquelas nações em que os refugiados se estabelecem temporaneamente, mas que ponham as ajudas necessárias à disposição dos Governos interessados e das organizações internacionais especializadas.

9. A presença nesta cidade de Nairobi de tais organizações, como o United Nations Environment Programme e o United Nations Center for Human Settlements ou HABITAT chama a nossa atenção para uma outra área problemática: a do ambiente totalmente humano. O homem, na aspiração por satisfazer as suas necessidades e por atingir melhores condições de vida, criou um número crescente de problemas ambientais. A expansão urbana e industrial agrava estes problemas, especialmente quando as vítimas são os mais fracos, que vivem por vezes em "áreas de pobreza", desprovidos dos serviços elementares e das possibilidades normais de melhoramento. Louvo os esforços de todos aqueles que procuram incrementar a consciência da necessidade de uma programação racional e honesta para evitar ou sanar tais situações.

10. A Santa Sé acolhe com grande satisfação todo o esforço que foi feito para atingir uma melhor colaboração entre os países africanos em ordem a aumentar o seu desenvolvimento, a promover a sua dignidade e a mais plena independência, e a assegurar a sua recta participação no governo do mundo, consolidando ao mesmo tempo o compromisso a assumirem a sua parte de responsabilidade colectiva para com os pobres e os menos favorecidos do planeta.

A Organização para a Unidade Africana, juntamente com todas as outras organizações que trabalham pelo objectivo de uma maior colaboração entre as nações africanas, é digna de todo o encorajamento. A Santa Sé comprouve-se em ser convidada pela Comissão Económica das Nações Unidas para a África a estabelecer uma colaboração mais estreita através da participação de Observadores nos encontros da Comissão e dos seus Organismos subsidiários. E está pronta a estender a outras Organizações Africanas uma tal colaboração, segundo a sua natureza e a sua missão universal, motivada somente pelo estímulo da sua mensagem evangélica de paz, de justiça, de serviço a toda a humanidade e a cada ser humano.

11. É minha férvida esperança que as nações livres e independentes da África desejem sempre assumir o seu justo lugar na família das nações. Na busca da paz internacional, da justiça e da unidade, a África tem um papel importante a exercer. A África constitui tesouro concreto de muitos valores humanos autênticos. Ela é chamada a compartilhar estes valores com outros povos e nações, para enriquecer toda a família humana e todas as outras culturas. Mas para poder fazer isto, a África deve permanecer profundamente fiel a si mesma; dia após dia deve tornar-se também mais fiel à sua herança, não por oposição e antagonismo para com os outros, mas porque ela crê na verdade sobre si mesma. Esta mesma verdade sobre a África deve iluminar a inteira comunidade internacional de tal modo que cada nação e governo possam ver mais claramente os direitos e as necessidades deste continente e assumam uma vontade política mais determinada para habilitar as nações africanas não só a satisfazerem as necessidades básicas do seu povo, mas também a progredirem efectivamente na sua plena participação no bem-estar humano, sem terem que aceitar novas formas de dependência ligadas com as ajudas que recebem.

12. Será a glória deste continente e desta nação criar uma forma de progresso para todos os seus habitantes que esteja em harmonia com todo o ser humano. O verdadeiro modelo do progresso não é aquele que exalta apenas os valores materiais, mas o que reconhece a prioridade do espiritual. Mudanças grandes e rápidas estão a verificar-se no tecido social de muitas nações que trabalham para um futuro melhor dos seus cidadãos. Mas nenhuma mudança social será um enriquecimento verdadeiro e duradouro do povo se sacrificar ou perder os valores supremos do espírito. O desenvolvimento será unilateral e carente de humanidade se o materialismo, o motivo do lucro ou a busca egoísta da riqueza e do poder, tomarem o lugar dos valores que são tão altamente louvados na sociedade africana, valores como a solicitude recíproca, a solidariedade e o reconhecimento da presença de Deus em toda a vida. Um crescente sentido de fraternidade, de amor social, de justiça, a eliminação de qualquer forma de discriminação e de opressão, o crescimento da responsabilidade individual e colectiva, o respeito pela santidade da vida humana a partir do momento da sua concepção, a preservação de um forte espírito de família — serão estes o fundamento para um desenvolvimento bem sucedido e a força do povo que caminha para o terceiro milénio.

13. Senhoras e Senhores, na procura do bem-estar dos povos e das nações, devem-se constantemente fazer opções. Existem opções a serem feitas à base de princípios e prioridades politicas, à base de leis económicas ou à luz de necessidades práticas. Mas há uma opção que deverá sempre ser feita, independentemente do contexto ou do campo: é uma opção fundamental — a opção pró ou contra a humanidade. Independentemente da responsabilidade ou da autoridade de cada um, homem ou mulher, ninguém escapa a esta escolha: Trabalharemos nós pelo bem do homem ou contra ele? Será o bem integral da pessoa humana o critério último das nossas acções e dos nossos programas? Quererá o africano, na sua dignidade humana, ser o caminho para um futuro justo e pacífico deste continente?

A minha esperança é que ele o queira.

Longa vida a ti, África

PEREGRINAÇÃO APOSTÓLICA DO SANTO PADRE À ÁFRICA

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

DURANTE A VISITA ÀS RELIGIOSAS CLAUSTRAIS


Carmelo de Nairobi (Quénia), 7 de Maio de 1980



Caras Irmãs em Nosso Senhor Jesus Cristo

1. Sendo vosso vizinho nestes dois dias, não podia deixar de vir fazer-vos uma visita ao Carmelo. Muito me alegra saber que, ao lado da casa do representante do Papa, há uma casa de oração em que os louvores de Deus são constantemente cantados e o sacrifício da vossa vida claustral é oferecido com alegre generosidade ao Pai. E terem-se reunido convosco aqui no Quénia outras comunidades contemplativas, aumenta a minha alegria. Minhas caras Irmãs, trago-vos as saudações e o amor de toda a Igreja, e agradeço-vos o contributo para a evangelização e para a inspiração das vossas vidas. Sim, deve atribuir-se certamente à graça de Deus e ao poder da morte e ressurreição do Senhor que, há muitos anos, a vida religiosa contemplativa se tenha radicado no solo africano, dando abundantes frutos de justiça e de santidade de vida. Recebestes verdadeiramente um dom especial de Deus: a vocação contemplativa na Igreja. A introdução da vida contemplativa na Igreja local é importante sinal da implantação dinâmica do Evangelho no coração de um povo. É sinal que, juntamente com a actividade missionária, mostra a maturidade da Igreja local. Viver a santidade de Cristo e participar no ardente desejo do seu Coração — "Eu devo pregar a boa nova do reino de Deus também às outras cidades, pois para isso é que fui enviado" (Lc 4,43) são as características fundamentais da Igreja de Cristo.

2. Aqui no coração do Quénia sois chamadas a desempenhar a vossa importante missão no Corpo de Cristo: perpetuar a vida de Cristo, vida de oração e de imolação amorosa. A Igreja aprendeu do seu Fundador — e séculos de experiência confirmaram o seu profundo convencimento — que a união com Deus é de necessidade vital para a actividade frutuosa. Jesus disse-nos: "Eu sou a videira, vós os sarmentos... sem Mim nada podeis fazer" (Jn 15,5). A Igreja está profundamente consciente e sem hesitação forçosamente proclama que estão intimamente relacionadas a oração e a difusão do Reino de Jeus, a oração e a conversão dos corações, a oração e a frutuosa recepção da mensagem salvífica e elevante do Evangelho. Isto basta para vos assegurar, a vós e a todas as religiosas contemplativas distribuídas pelo mundo inteiro, quanto é importante o vosso papel e o vosso serviço para o povo, e quanto é importante o vosso contributo para a evangelização do Quénia e de toda a África.

3. Na vossa vida de oração, prolonga-se, além disso, o louvor de Cristo ao Seu Eterno Pai. A totalidade do Seu amor para com o Pai e da Sua obediência à vontade do Pai reflecte-se na vossa radical consagração de amor. A Sua desinteressada imolação pelo Seu Corpo, a Igreja, encontra expressão na oferta das vossas vidas em união com o Seu sacrifício. A renúncia, que anda unida à vossa vocação, mostra o primado do amor de Cristo na vossa vida. Em vós a Igreja dá testemunho da sua função fundamental, que é, como disse na minha encíclica "evidenciar a consciência e a experiência da humanidade inteira por meio do mistério de Deus..." (Redemptor hominis, RH 10).

4. A vossa vida e a vossa actividade ocupam lugar importante na Igreja inteira; estão na Igreja e são para a Igreja. Vós viveis exactamente no coração da Igreja como fez Santa Teresa do Menino Jesus e tantas outras contemplativas no decurso dos séculos. E ao seguirdes a vocação na fidelidade a Cristo que vos chamou, mantendes-vos espiritualmente muito próximas das famílias e das comunidades donde provindes. Ao viverdes a vossa vida totalmente por Jesus Cristo, vosso esposo, e por todos aqueles que foram chamados a viver n'Ele — a família cristã inteira —, vós podeis sentir-vos directamente próximas de todos os vossos irmãos e irmãs, que lutam pela salvação e plenitude da dignidade humana. Na vossa Vida de desapego material e no zeloso trabalho que realizais dia a dia, mostrai a vossa solidariedade com toda a comunidade laboriosa a cujo serviço sois chamadas. E através das vossas orações e do fruto das vossas actividades espirituais, vós sois capazes de contribuir efectivamente para a grande causa da justiça e da paz, e para o progresso humano de homens e mulheres sem número. Através das vossas vidas de claustrais são crianças levadas a Cristo, são confortados os doentes, assistidos os necessitados, corações humanos são reconciliados e os pobres recebem a pregação do Evangelho.

Em certas localidades da África, foram edificados mosteiros de religiosas contemplativas perto dos principais seminários. E portanto bem significativo que aqueles que vêem a necessidade de promover as vocações ao Sacerdócio, de modo que habilitem as jovens Igrejas a implantarem-se plenamente nos territórios nativos, professem ao mesmo tempo a própria convicção de que só a graça de Deus, humildemente procurada na oração constante, pode manter o fervor do sacerdócio. Rogo-vos portanto, como especial pedido neste momento, que incluais nas vossas orações, como primeira intenção, pedir ao Senhor da messe que mande operários para a Sua messe (cfr. Mt 9,38) e abençoe a Sua Igreja na África com muitos, bons, generosos e zelosos sacerdotes, que dêem exemplo de uma vida autenticamente pastoral como a melhor das garantias para a vida da Igreja e para a propagação da fé.

5. A vossa é portanto uma vida de fé em Cristo Jesus verdadeiramente importante. Segundo as palavras de São Pedro "Sem O terdes visto, vós O amais; sem O ver ainda, crescestes n'Ele e isto é para vós fonte de uma alegria inefável e gloriosa" (1P 1,8), e exactamente por isto, as vossas vidas tornam-se vidas de grande serviço para a Igreja. Com Maria sois vós chamadas a meditar sobre a palavra de Deus e a ajudar a manter a vida espiritual daqueles que crêem em Cristo. Para vós, portanto, o futuro é claro. Seguis pelo caminho justo — o caminho da total e alegre consagração a Jesus Cristo e do serviço amoroso a todos os vossos irmãos e irmãs na África e em toda a Igreja.

Caras irmãs: Em todos os vossos esforços para caminhar com Maria e para subir a montanha que é Cristo, amando mais profundamente e servindo mais generosamente, recordai-vos que "a vossa vida está escondida com Cristo em Deus" (Col 3,3) para a glória da Santíssima Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo. Amém.



PEREGRINAÇÃO APOSTÓLICA DO SANTO PADRE À ÁFRICA

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

AO SENHOR DANIEL ARAP MOI


PRESIDENTE DA REPÚBLICA DO QUÉNIA


Quarta-feira, 7 de Maio de 1980



Senhor Presidente

1. Desejo exprimir a minha gratidão a Vossa Excelência pelo convite que me fez para o Palácio Presidencial. Estou muito contente por me encontrar com Vossa Excelência, e por me ser dada a possibilidade de saudar tantas e tão distintas personalidades da sua Nação. As poucas horas que já passei no Quénia permitiram-me experimentar pessoalmente a tradicional hospitalidade africana, que é uma realidade cheia de calor e profundamente humana.

Ao dirigir-me a Vossa Excelência hoje e, na sua pessoa, a toda a Nação do Quénia, penso que é conveniente, em primeiro lugar, prestar homenagem à memória do Pai Fundador desta República, o saudoso Presidente Mzee Jomo Kenyatta, que concluiu a sua vida ao serviço deste povo não há dois anos ainda. No elogio fúnebre que Vossa Excelência pronunciou durante o funeral de Estado denominou-o "meu pai, meu mestre e meu guia". O significado do seu serviço foi sintetizado nestas palavras: "Mzee Kenyatta foi, durante a sua vida, um campeão de justiça e de equidade. Foi um defensor da dignidade humana e da preservação da nossa cultura: O seu interesse pelo bem-estar de todos os habitantes do Quénia foi profundo e empenhado. Todos lhe somos devedores...". Durante os primeiros anos desta nação, completou-lhe a unidade, criou um espírito de fraternidade e inculcou a determinação de perseverar na construção nacional através do esforço de todos. Ele deixou ao Quénia uma herança brilhante e um estimulante programa.

2. Respeito pela dignidade humana, pela dignidade de cada homem, de cada mulher e de cada criança, pela dignidade que cada ser humano possui, não porque lhe tenha sido dada pelos seus semelhantes, mas porque a receberam de Deus: é esta a atitude fundamental a adoptar se se quer dar vida a um autêntico progresso. E é precisamente nesta convicção e neste empenhamento pela dignidade de todo o ser humano que a Igreja e o Estado se encontram no mesmo caminho. Sei, Senhor Presidente, que, em muitas ocasiões, Vossa Excelência exprimiu publicamente o seu apreço pelo contributo dado pela Igreja Católica no seu País a favor do progresso do povo. Isto, aliado à existência de boas relações entre o seu País e a Santa Sé e à colaboração que existe no campo da educação, da saúde e de outros campos do desenvolvimento humano, é motivo de grande satisfação. É, além disso, uma boa esperança para o futuro.

3. Desejo repetir, nesta ocasião, que a Igreja está profundamente interessada por todas as necessidades do povo. E porque tem em grandíssima estima a dignidade de cada ser humano, ela continuará a exercer sempre a sua missão, de acordo com a sua própria natureza, em favor do autêntico bem do homem e da sociedade e para utilidade de toda a pessoa humana.

Neste espírito, a Igreja contribui para o desenvolvimento, para a unidade, para a fraternidade e para a paz entre o povo e entre as nações. Por tal motivo a Igreja elevará a sua voz e alertará os seus filhos e filhas todas as vezes que as condições de vida das pessoas e da comunidade não sejam verdadeiramente humanas, todas as vezes que elas não estejam de acordo com a dignidade humana. É esta, aliás, uma das razões por que empreendi a minha primeira viagem através do continente africano: para proclamar a dignidade e a igualdade fundamental dos seres humanos e o seu direito ao pleno desenvolvimento da sua personalidade nas esferas material e espiritual.


Discursos João Paulo II 1980 - Nairobi , 6 de Maio de 1980