Discursos João Paulo II 1980 - Segunda-feira, 10 de Novembro de 1980

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS JUÍZES DA CORTE EUROPEIA


PARA OS DIREITOS HUMANOS


10 de Novembro de 1980



Senhores Presidentes
Excelências Senhoras, Senhores

1. Considero toda a importância deste encontro com representantes do Movimento Internacional dos Jurista Católicos, aos quais se juntam altas personalidades da Organização das Nações Unidas, da UNESCO, da Corte Europeia dos Direitos Humanos, do Conselho Europeu e do Corpo Diplomático. É grande a minha alegria em vos acolher por ocasião do vosso Colóquio romano, organizado para comemorar o 30° aniversário da assinatura da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

Com efeito, este aniversário suscita no nosso coração um profundo e sincero reconhecimento para com os promotores deste importante documento e, ao mesmo tempo, estimula-nos a tomar consciência de tudo o que ele contém e sobretudo a verificar corajosa e sinceramente a aplicação efectiva que dele tem sido feita.

O Colóquio permitiu-vos reflectir sobre os fundamentos doutrinais da Convenção e sobre jurisprudência que se desenvolveu nestes últimos trinta anos, para defender a dignidade da pessoa e proteger os seus direitos invioláveis.

2. E agora, este encontro com o Papa e as Instituições europeias (cf. por exemplo, «I Papi e 1'Europa», Documenti, Torino, 1978) e de colaboração entre a Santa Sé e a Comunidade Económica Europeia, oferece-me a ocasião para recordar o interesse e o compromisso da Igreja em favor da consolidação da paz e da justiça entre os povos europeus

É necessário notar, antes de tudo, que a Igreja Católica, mediante os seus melhores homens e, sobretudo, através dos seus santos, ofereceu um contributo decisivo para o aparecimento e para a unidade da Europa. Recordei-o explicitamente a 8 de Outubro, na inauguração da capela húngara nas grutas vaticanas: «Da obra dos santos nasceu uma civilização europeia baseada no Evangelho de Cristo, e brotou o fermento para um autêntico humanismo, penetrado de valores perenes, e radicou-se também uma obra de promoção civil sob o signo e no respeito do primado do espiritual. A perspectiva então aberta, pela firmeza de tais testemunhas da fé, ainda é actual e constitui a estrada real para se construir uma Europa pacífica, solidária, verdadeiramente humana, e para vencer oposições e contrastes, em que há o risco de virem a perturbar a serenidade dos particulares e das nações» («L'Osservatore Romano» ed. port., 19 de Outubro de 1980, p. 18).

3. E fora de dúvida que na base da «Europa dos homens» está a imagem do homem que a revelação cristã nos deixou e que a Igreja Católica continua a anunciar e a servir. Trata-se do homem na sua verdade plena, em todas as suas dimensões, do homem concreto, histórico, de cada um dos homens envolvidos no mistério da Redenção, amados por Deus e destinados à graça, como expus longamente na encíclica Redemptor Hominis (n. 13). Esta imagem de homem marcou de maneira particular a cultura europeia e será sempre para nós o princípio fundamental de toda a dignidade humana. É sobre esta base que se constrói a Europa dos homens e dos povos e não somente a do progresso material e técnico.

A esta obra gigantesca e jamais terminada, é dado um contributo de qualidade pela Convenção Europeia dos Direitos Humanos que os Estados membros do Conselho da Europa assinaram, «animados pelo mesmo espírito e possuindo um património comum de ideal e de tradições políticas de respeito da liberdade e de preeminência do direito», para retomar as palavras do preâmbulo. Quis-se, mediante este acto solene assegurar a garantia colectiva do exercício dos direitos enunciados na Declaração Universal de 1948 e, ao mesmo tempo, todos os europeus se empenharam em trabalhar eficazmente para passar do egoísmo individual ou nacionalista a uma autêntica solidariedade entre as pessoas e entre as nações.

4. O caminho percorrido pela Europa no curso destes trinta anos, depois da desordem causada pela última guerra mundial, tem importância considerável e é seguramente positivo, se se pensa, por exemplo, no modo de perceber a hierarquia dos direitos, no cuidado em os garantir no plano legislativo e judiciário, de educar globalmente ao respeito do outro e ao reconhecimento dos direitos de modo recíproco. Mas, para assegurar a cada homem o direito de viver no pleno respeito da dignidade devida à sua existência e à sua liberdade, é necessário dar ainda mais ênfase à afirmação de cada um dos direitos enumerados na Convenção, entre os quais alguns deles têm uma importância sobremaneira particular, como o direito à vida em toda a sua extensão, e o direito à liberdade religiosa.

O defensor dos direitos do homem deve ser, pela sua mesma natureza, o Estado, todo o Estado, ao qual o direito natural confia precisamente como fim o «bem comum temporal». Contudo, como afirmava o meu predecessor João XXIII na sua encíclia Pacem in Terris, o bem comum não pode ser concebido senão tendo em conta o homem e todo o homem. O bem comum não e uma ideologia ou uma teoria, é sim um compromisso em criar condições de desenvolvimento pleno para todos aqueles que participam num determinado sistema social (cf. Constituição Gaudium et Spes GS 74). O reconhecimento dos direitos naturais do homem é uma condição para a existência do estado de direito: «O bem do homem — disse eu na Encíclica Redemptor Hominis — qual factor fundamental do bem comum, deve constituir o critério essencial de todos os programas, sistemas e regimes» (n. 17). Este princípio personalista encontra-se hoje explicitamente enunciado ou pelo menos implicitamente aceite nos textos constitucionais dos Estados livres e o seu valor foi proclamado na Declaração Universal dos Direitos Humanos; impõe ao Estado obrigações precisas para garantir os objectivos que se propõem as pessoas que o formam (cf. Redemptor Hominis RH 17). A partir disto podem ser determinados os conteúdos do bem comum, que é a finalidade do Estado e da comunidade dos Estados; e o cumprimento, por parte do Estado, das obrigações precisas (cf. Redemptor Hominis RH 17).

Em seguida, é necessário mencionar as instituições e os procedimentos internacionais, tais como a Comissão Europeia dos Direitos Humanos — à qual toda a pessoa física, toda a organização não governamental ou grupo de pessoas privadas podem recorrer, no caso de serem vítimas de violação dos direitos reconhecidos na Convenção — e a Corte Europeia dos Direitos Humanos. Ao seu trabalho, pode-se reconhecer «a actividade meritória e delicada que visa assegurar o respeito das garantias previstas pela Convenção, permitindo às pessoas que se queixam de ter sido vítimas de violação dos direitos do homem o acesso a instâncias supranacionais» (cf. a minha Mensagem de 29 de Outubro de 1979, por ocasião dos seus aniversários). Essas duas instituições estenderam a sua jurisdição a problemas fundamentais como, a protecção da vida privada, a protecção dos direitos dos menores, a liberdade de associação, o respeito dos direitos da família e a promoção dos valores positivos necessários para o desenvolvimento integral do homem e das comunidades humanas. Deste modo, a Comissão e a Corte instituíram-se defensoras dos direitos humanos e das liberdades fundamentais «que constituem as bases mesmas da justiça e da paz», na Europa e no mundo.

5. Gostaria de vos propor uma última reflexão. A Declaração dos Direitos Humanos e a Convenção Europeia referem-se não só aos direitos do homem, mas também aos direitos das sociedades, a começar pela «sociedade familiar».

O recente Sínodo dos Bispos, sabei-lo, estudou de modo preciso «as tarefas da família cristã no mundo contemporâneo». A Convenção Europeia oferece também ela, algumas indicações preciosas sobre este tema a começar pelo artigo 2°: «O direito de cada pessoa à vida é protegido pela lei. A morte não pode ser infligida a quem quer que seja intencionalmente, salvo em execução de uma sentença pronunciada por um tribunal, no caso de o delito ser punível, pela lei, com esta pena». E o artigo 8° acrescenta: «Toda a pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência», enquanto o artigo 12° precisa: «A partir da idade núbil, o homem e a mulher têm direito de se casar e de fundar uma família segundo as leis nacionais que regem o exercício deste direito». Estes três artigos exprimem uma atitude firme em favor da vida, assim como da autonomia e dos direitos da família, e asseguram rigorosa defesa jurídica destes direitos.

Contudo, na linha da afirmação da prioridade da família, parece-me importante sublinhar o que dispõe o artigo 2.° do «Protocolo Adicional» que se enuncia assim: «A ninguém pode ser recusado o direito à instrução. O Estado, no exercício das funções que assume no campo da educação e do ensino, respeitará o direito dos pais a assegurar esta educação e este ensinamento em conformidade com as suas convicções religiosas e filosóficas». Esta afirmação exclui toda a restrição de ordem jurídica ou económica, ou qualquer pressão ideológica que impedisse o direito sacrossanto dos pais a exercê-lo; e ao mesmo tempo, impele a família a assumir o seu papel educativo em si mesma e na comunidade civil, que lhe deve reconhecer explicitamente esta sua tarefa original, enquanto «sociedade no gozo de um direito próprio e primordial» (cf. Declaração Dignitatis Humanae DH 5).

A Igreja está convencida que a família se encontra inserida numa sociedade mais vasta para a qual está aberta e diante da qual é responsável. A Igreja, porém, reafirma e defende o direito que tem todo homem de fundar uma família e defender a sua vida privada, como também o direito dos esposos à procriação e à decisão a respeito do número dos filhos, sem constrição indevida da autoridade pública, e o direito a educá-los no seio da família. (cf. Cons. Gaudium et Spes ). A Igreja exorta todos os homens a cuidar que «se tenham em conta no governo do país, as necessidades das famílias, no que diz respeito à moradia, à educação dos filhos, às condições de trabalho, à segurança social e aos ónus fiscais, e que, na regulamentação das migrações, se ponha de todo a salvo a convivência doméstica» (Decreto Apostolicam Actuositatem AA 11). A promoção da família como célula primeira e vital da sociedade e, portanto, como instituição educativa de base, ou, ao contrário, a diminuição progressiva das suas competências e até das tarefas devidas aos pais, depende em grandíssima parte do tipo de projecto social influenciado pelas ideologias e concretizado em certas legislações modernas, que chegam a estar em contradição evidente com a letra dos direitos do homem reconhecidos pelos documentos internacionais solenes, como a Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

Por conseguinte, do ponto de vista dos direitos objectivos e invioláveis do homem, impõe-se necessariamente o dever de submeter as leis e os sistemas a uma contínua revisão.

Em suma, é necessário desejar que todo o programa, todo o plano de desenvolvimento social; económico, político e cultural da Europa coloque sempre em primeiro lugar o homem com a sua dignidade suprema e com os seus direitos imprescritíveis, fundamento indispensável do progresso autêntico.

É dentro deste espírito que me regozijo com os intercâmbios profundos que o vosso Colóquio terá permitido. E faço os melhores votos para que este encontro ajude os que nele tomaram parte a, daqui em diante, realizarem os objectivos que foram postos à luz, quer se trate do homem quer da família ou do Estado. Deus vos acompanhe nesta nobre tarefa. Da minha parte abençoo-vos de todo o coração.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS PEREGRINOS DA ASSOCIAÇÃO


DAS FAMÍLIAS FRANCESAS


Segunda-feira, 10 de Novembro de 1980



Queridas famílias católicas,
vindas sobretudo da França,
mas também do Ultramar

Com o apoio do Cardeal Arcebispo de Lião, que me apraz saudar em primeiro lugar e muito fraternalmente, preparastes de há muito esta bela peregrinação. Responsáveis e participantes, tendes todos direito às felicitações do Papa, tão satisfeito por vos acolher aqui, como vós próprios tão bem o recebestes na França.

1. A esta reunião romana empenhastes-vos em dar carácter familiar completo. Bravo! Vejo, com efeito, pais jovens e outros que chegam à época das bodas de prata, ao mesmo tempo que noto felizes avós. Admiro os filhos e em particular os 70 que terão a grande felicidade de fazer esta tarde a primeira comunhão; pedirei a fidelidade deles a Cristo. Vejo também adolescentes, que me lembram a inesquecível noite do Parc des Princes. Sei, por último, que primaram em acompanhar-vos personalidades do meio parlamentar, que estão igualmente presentes delegados das Associações Familiares Católicas dos longínquos territórios franceses e alguns membros de famílias refugiadas ou que trabalham temporariamente na França. A todos e a cada um expresso os meus sentimentos de afecto e confiança. Cristo e a Sua Mãe santíssima que é também Mãe da Igreja — nos acompanhem a todos na reflexão que vamos fazer juntos sobre alguns aspectos importantes da vocação conjugal e familiar.

Bendigamos primeiro o Senhor pelo Sínodo recém-terminado. Deu frutos abundantes. Pelo trabalho intenso dos Bispos e dos leigos, foi de algum modo a Igreja inteira que terminou de aprofundar a sua fidelidade ao desígnio de Deus sobre a família, e de aplicar o olhar atento e misericordioso às situações familiares concretas, tão diversas e por vezes bem dolorosas. A síntese aparecerá a seu tempo, rica de luz e portadora de esperança.

2. Hoje, mesmo a composição do vosso grande ajuntamento inspira uma reflexão particular. Quando a sociedade moderna passa por um fenómeno de concentração demográfica e, paradoxalmente, de múltiplas separações por meios ou por sectores de Actividade — mundo do trabalho, do ensino e mesmo dos tempos livres, a vossa assembleia familiar, alargada e diversificada, é em si mesma simbólica e, diria mesmo, educativa. Afigura-se-me uma apologia da família na totalidade, comunidade de pessoas.

Gostaria de vos animar a todos, pais e filhos, a que percorrais este caminho difícil; mas prometedor, tanto mais que a civilização contemporânea, mal orientada, se arrisca por um lado a nivelar e banalizar a pessoa humana, vezes demais desenraizada, manipulada por correntes ideológicas, enfartada de objectos se não de curiosidades, e por outro lado arrisca-se a desenvolver a agressividade e a violência. Em vez de gemer, é preciso aceitar o desafio! Neste trabalho imenso, as famílias cristãs — com humildade e tenacidade — devem ser mais que nunca lugar de encontro interpessoal e personalizante, onde cada um não é ele próprio senão para o outro e pelo outro. Mistério da família humana, a única que pode fazer que nasçam as pessoas e lhes imprima orientação de crescimento que as marcará para a vida. Mistério também de cada pessoa, que é muito mais que um rosto, muito mais que um corpo. É um espírito, uma liberdade e uma história única com passado, meio social e futuro por vezes difícil de discernir. Bem o sabeis, a qualidade das relações entre os pais é determinante para o desenvolvimento harmonioso dos filhos. Uma carência neste campo pode pesar sobre toda a vida de um ser humano. As relações dos filhos com o pai e a mãe, dos irmãos e das irmãs entre si, terão também repercussões quanto na camaradagem escolar e de toda a existência. Mesmo as relações com Deus são facilitadas ou contrariadas ou, por desgraça, aniquiladas pelo estilo das relações dos pais. A este propósito, ouvistes sem dúvida citar a reflexão de Santa Teresa de Lisieux, ainda criança: "Quanto Nosso Senhor deve amar-me, visto o meu papá amar-me tanto!". Numa época em que se exigem estudos e diplomas para tudo, é lastimoso verificar que realidades tão "fundamentais não sejam mais consideradas, na teoria e na prática. A informação sexual, por exemplo, está longe de bastar, não sendo completada por uma pedagogia concreta e perseverante do desenvolvimento harmonioso de toda a pessoa, e da arte de ser ao mesmo tempo sujeito e objecto do amor. Este amor requer — vale a pena insistir nisto diante de vós que já vos encontrais tão convencidos? — requer a estabilidade e a indissolubilidade do lar. As estatísticas actuais das uniões desfeitas, muitas vezes bem depressa, são prova do beco sem saída em que se encontram nações de sobra, por motivo da desestabilização da família e das consequências terríveis que se seguem, tendo as leis muitas vezes ratificado e consagrado os costumes em vez de formular as exigências que deveriam apresentar-se.

3. Para vós, caros pais, mas de igual modo para os jovens que apreciam as coisas concretas, abro agora o Evangelho. Os encontros de Cristo são, com efeito, muito esclarecedores. Umas vezes, é Ele que toma a iniciativa das relações: pensai no chamamento dos discípulos. Outras vezes, deixa com toda a simplicidade que se encontrem com Ele: é o caso de Zaqueu, o publicano. Mas sempre são os encontros de Jesus relações interpessoais, tempos de comunhão profunda com outrem, em que se compromete Cristo inteiramente com o Seu rosto humano, a sua actividade e toda a Sua consciência de homem e de Filho de Deus. Pensai nos doentes que toca e cura, na morte de Lázaro que tão profundamente O comove e Lhe arranca lágrimas, na Sua longa conversa com a Samaritana, no acolhimento reservado à adúltera, no diálogo com o jovem rico, na caminhada que faz com os discípulos de Emaús, etc. As relações de Cristo fundam-se no sentido da pessoa acolhida tal como é, com os limites e as riquezas, no sentido do seu carácter único, da sua interioridade e da sua liberdade. Trata sempre a pessoa como sujeito e nunca como objecto. A atitude personalista de Jesus, impregnada de humildade, pobreza e confiança, leva a que tenha um conhecimento amoroso de cada um. Atrai a Si, pois acredita no homem e quer a promoção integral dele, como quer encaminhá-lo até que descubra ou reencontre a sua dignidade de filho de Deus. Cristo encarna perfeitamente a afirmação bem conhecida de Mounier: "Ser é amar". Todos sem excepção precisamos deveras de contemplar muitas vezes a Cristo. Ele, com certeza, o Verbo de Deus, a imagem por natureza, a perfeita testemunha do mistério trinitário, que pode revelar a todos, os que foram criados à imagem de Deus, o segredo de unia existência personalizada e personalizante. A pastoral dos Lares cristãos, deixando embora o lugar justo às ciências humanas, deve começar por ensinar aos esposos e a todos os membros da Igrejinha doméstica, a repararem como Deus ama.

4. É com este panorama no fundo que é possível meditar sobre a família, fonte de vida, de vida indefinidamente transmitida. A 12 de Outubro último, no enquadramento desse domingo especialmente consagrado a orar pelo Sínodo, foram dados testemunhos muito comovedores por algumas famílias da América, da Holanda e da Itália. Esses pais manifestaram as alegrias profundas que os seus numerosos filhos lhes trazem. Muito superam elas os cuidados e os incómodos. Sim, se os esposos se amam, desejam tantos filhos quantos podem educar. Porque não se deve procriar senão para educar bem. Dito isto, as famílias cristãs podem legitimamente interrogar-se sobre o sentido que dão à paternidade e à maternidade responsáveis. Vivendo em sociedades que defendem a planificação dos nascimentos — infelizmente, por todos os meios —, não são contaminadas por uma concepção da responsabilidade em que entra em jogo parte importante, se não predominante, de busca de vida livre e confortável? Os esposos que se esforçam por estabelecer entre si relações de pessoa a pessoa e se mantêm em comunhão com Deus que os chamou a esta nobre vocação do amor conjugal e procriador, devem considerar tudo o que são e tudo o que têm como outros tantos dons recebidos do Senhor e lembrar-se da parábola dos talentos. Quem recebeu cinco talentos, tem obrigação de ganhar outros cinco. Quem recebeu um só, deve precaver-se de o enterrar e há-de pelo contrário fazer render esse talento. Numa palavra, se as famílias cristãs têm de situar-se com desafogo na época em que vivem, devem igualmente, sem farisaísmo, contestar as ideias e os costumes que levam à decadência e mesmo à morte do homem e da civilização. Devem contribuir para restituir ao mundo actual o gosto da vida.

5. As relações interpessoais dentro do santuário familiar devem também atingir um ressalto fora; senão o lar cristão arriscar-se-ia a ser refúgio, torre de marfim. Decidindo amar-se "segundo Cristo", todo o jovem casal cristão parte à conquista de um estilo de vida conjugal e familiar que há-de consistir em largamente se abrir aos filhos que vierem, à própria família, aos amigos, aos vizinhos e aos companheiros de trabalho. Entra no dinamismo de um amor que deseja ser universal cada vez mais. Muito certamente receberão pais e filhos, se levarem aos vários sectores da sociedade o que podem e devem oferecer-lhes, segundo justos compromissos. Dispõem e humanizam a imensa oficina da criação, que está sempre nas dores do parto.

Procedendo assim, a Igreja doméstica torna-se sinal visível de Deus no meio dos homens. Pais e jovens dão ao mundo não só a esperança mas a certeza de que, juntamente com Jesus Cristo, tudo nos foi dado. Observando como vivem os casais cristãos e seus filhos, os homens de hoje devem apalpar alguma coisa do amor universal de Deus.

6. Nestes dias romanos, durante conferências magistrais, celebrações litúrgicas fervorosas, conversas amigáveis e tempos pessoais de oração, respirastes um ar vivificante. O ar que tonifica o montanhês oxigenando-se a plenos pulmões à medida que sobe e descobre maravilhosos panoramas, sem nada esquecer contudo das realidades da existência quotidiana. Sentis-vos renovados. No deslumbramento do coração e do espírito, descobristes ainda quanto o sacramento do matrimónio é grande. Situa-vos, por mais frágeis e pecadores que sois e sereis sempre, na vizinhança de Deus, que digo?, no Seu mistério trinitário como no mistério do Verbo Encarnado.

Queridas famílias católicas da França, continuai a vossa missão esperançadas. Deus está convosco, especialmente na Páscoa de Jesus Cristo, sempre capaz de vos ajudar a assumir os sacrifícios quotidianos que são esta morte a vós mesmos, para urna vida nova com o outro e pelo outro.

7. Quanto às modalidades da vossa acção familiar, dentro das vossas Associações familiares e fora, elas são numerosas, embora não sejam todas realizáveis imediatamente e em toda a parte: Formação de casais educadores, centros de preparação para o casamento, colóquios com os pais, fins de semana espirituais, elaboração de um instituto da família, acção política, etc. Dai, pela vossa parte, prova de criatividade e audácia, de sabedoria e solidariedade. Fazei apelo a novos casais para alargar e renovar os vossos quadros. Não esqueçais também os outros movimentos que estão em relação com a família. A acção combinada é mais eficaz que a acção dispersa. Mantende-vos em diálogo leal e confiado com os vossos Bispos e os organismos de Pastoral familiar que eles estabeleceram. Aspecto importante do meu ministério pontifício é estimular o Povo de Deus à unidade na diversidade dos carismas e dos serviços.

8. Antes de vos abençoar, convido-vos a orar em conjunto. Vamos voltar-nos para Maria, nossa Mãe. Estou certo que os meninos aqui presentes lhe rezam muitas vezes. E vós, pais, tendes muito a peito formá-los para a oração, para os gestos religiosos e para a Boa Nova do Evangelho, desde a tenra idade. Melhor ainda, aprofundais a vossa fé com eles e rezais com eles. Peçamos a Maria vos conduza ao pleno conhecimento do seu Filho Jesus, para serdes seus discípulos e seus apóstolos.

Ave, Maria, cheia de graça, / o Senhor é convosco, bendita sois vós entre as mulheres / e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus. / Santa Maria, mãe de Deus, / rogai por nós, pecadores, / agora e na hora da nossa morte.

Amém.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS BISPOS CHINESES POR OCASIÃO


DA VISITA «AD LIMINA APOSTOLORUM»


Terça-feira, 11 de Novembro de 1980



Prezados e caros Irmãos em Cristo

1. Sinto-me feliz de ter este encontro convosco, Bispos de Formosa, no intuito de falarmos acerca do progresso que se realiza nas vossas dioceses, acerca dos problemas que, na qualidade de pastores, deveis enfrentar cada dia na evangelização do rebanho que fostes chamados a apascentar, e acerca das vossas ânsias presentes e das vossas esperança para o futuro. Como sabeis, faz isto parte da missão específica confiada por Jesus a Pedro e aos seus sucessores: o cuidado de todas as Igrejas: "Apascenta os meus cordeiros... Pastoreia as minhas ovelhas" (Jn 21,15-17) e o mister de confortar os seus irmãos (cf. Lc 22,32).

2. A visita ad limina Apostolorum é uma expressão do vínculo que liga os Bispos, individualmente e como corporação, ao Bispo de Roma, o qual, pela vontade de Cristo, é também o Pastor da Igreja universal.

De facto, o Concílio Vaticano II reafirma claramente a doutrina constante e imutável da Igreja Católica: "Sendo o Romano Pontífice o Sucessor de Pedro, é a fonte e o fundamento perpétuo e visível da unidade dos Bispos e da multidão dos fiéis. Cada Bispo em particular é, por sua vez, o principio e o fundamento visível da unidade na sua própria Igreja, moldada à guisa da Igreja universal. Em tais Igrejas particulares e a partir delas constitui-se a Igreja Católica una e única. Por isto, cada Bispo em particular representa a sua própria Igreja, ao passo que todas as Igrejas particulares no seu conjunto em união com o Papa representam a Igreja inteira, congregados no vínculo da paz, amor e unidade" (Lumen Gentium LG 23).

3. O povo chinês, distribuído pelo Continente, em Formosa, em Hong-Kong e em Macau, bem como na diáspora, é um grande povo, forjado por uma cultura que é antiga de milhares de anos, formado, pelos pensamentos de grandes e sábios filósofos de tempos idos, e por tradições familiares, quais as que dizem respeito ao culto dos antepassados. E bem conhecido de todos é o profundo senso de amabilidade e urbanidade que o distingue.

A Igreja, de acordo com as diversas maneiras de pensar de cada época, tem procurado respeitar essas tradições e valores culturais, no espírito do Evangelho, na linha do pensamento expresso por São Paulo, que exorta os Filipenses a prezar: "tudo que é verdadeiro, nobre, justo, puro, amável, honroso; tudo que possa haver de bom na virtude e no encómio humano" (Ph 4,8).

A mensagem cristã ilumina, pois, e enriquece os positivos valores espirituais e humanos que existem em toda e qualquer cultura e tradição: a Igreja procura alcançar um acordo harmonioso entre a cultura e as tradições de um povo, por um lado, e a fé em Cristo, por outro (cf. Gaudium et Spes GS 57-62). É este um contínuo desafio para a Igreja, que deve encontrar na cultura e nas tradições do povo a ser evangelizado, um ponto relevante e deveras essencial para equacionar o método de proclamação da mensagem evangélica, de acordo com as necessidades de cada momento. O exemplo dos grandes missionários e apóstolos da China — como, por exemplo, o do jesuíta Mateus Ricci — devem servir de guia e inspiração para todos.

O cristão não é tão somente uma pessoa de fé, mas alguém que é chamado a ser o fermento e o sal na sociedade civil e política, onde vive ele ou ela. Por isto, a Igreja inculca nos seus fiéis um profundo senso de amor e dever para com os próprios concidadãos e para com a própria pátria. Encoraja-os a viverem como cidadãos correctos e modelares, a trabalhar lealmente por tudo que signifique progresso da nação cujos membros se ufanam eles de ser.

4. Sei que vós, os Bispos de Formosa, estais profundamente envolvidos não só na tarefa de evangelização, senão também em obras de educação e bem-estar social. Isso patenteia, por um lado, o zelo pastoral que vos anima a vós e aos vossos colaboradores: o clero diocesano, os religiosos e as religiosas, e o laicato; e honra, por outro lado, a liberdade religiosa de que goza a Igreja no vosso território.

A Santa Sé aprecia essa atitude e encoraja todos os membros da Igreja em Formosa a fazerem bom uso da situação de liberdade e respeito que desfruta, de molde a consagrarem-se com fervor cada vez maior à evangelização do povo chinês e às demais obras que competem às Igrejas locais.

Da parte minha, espero um incremento cada vez maior de obreiros chineses, eclesiásticos e leigos, na vinha do Senhor, um incremento que será fruto, principalmente, de uma formação sadiamente cristã recebida na família e nas instituições de educação católica. Ao mesmo tempo exprimo o mais sentido desejo de que esses obreiros se proporcionem sólida e bem arraigada instrução nos sectores de conhecimento necessário ou útil ao seu futuro trabalho pastoral, e também na disciplina das virtudes cristãs, de sorte que venham a ser colaboradores eficientes do Espírito Santo na construção dessa selecta porção do Reino de Deus, que se situa na China.

5. Dentre as preocupações que me manifestastes, ocupa lugar especial a presente situação religiosa da Igreja Católica no Continente. Afianço-vos que essas preocupações são igualmente muito minhas. De diversas partes daquele imenso território recebo informação que atesta a perseverança de muitíssimos católicos na fé, na oração e na prática religiosa, como também demonstra a sua firme adesão à Sé de Pedro. Estas notícias muito me têm emocionado, e impelem-me a elevar uma prece, junto convosco, meus Irmãos no Episcopado, em prol dessa Igreja heróica. Derrame o Senhor sobre aqueles bravos irmãos e sobre o povo fiel, os dons de fortaleza e perseverança, mantendo neles a chama ardente da esperança que não ilude (cf. Rom Rm 5,5).

E finalmente, amados Irmãos, confio a evangelização da China à protecção maternal de Maria, Rainha da China. Rezo pela prosperidade e o progresso de todo o povo chinês, que afectuosamente recordo cada dia nas minhas preces e nos meus desvelos pastorais. Com imensa confiança no poder da morte e ressurreição do Senhor Jesus, repito com o Apóstolo Pedro: "Paz a todos vós que estais em Cristo" (1P 5,14).



A um grupo de Religiosos e Religiosas Chineses residentes em Roma

Constitui igualmente grande alegria para mim saudar, junto com os Bispos, os sacerdotes e religiosos chineses residentes em Roma. Em vós presto homenagem à fidelidade de todos os sacerdotes e religiosos chineses, que seguem o Senhor Jesus com generosidade e júbilo, partilhando diariamente o seu mistério pascal de morte e ressurreição.

A nossa unidade em Cristo e na sua Igreja Católica é deveras uma dádiva maravilhosa do Pai — dádiva que atinge a sua suprema expressão temporal na Eucaristia, e que nos apronta a "aguardar em jubilosa esperança a vinda do nosso Salvador Jesus Cristo".

Oxalá se concentrem hoje, caros irmãos e irmãs, os vossos pensamentos e propósitos na grande fidelidade a que sois chamados: fidelidade à unidade, fidelidade à Eucaristia, fidelidade à esperança. Essa fidelidade é essencial ao vosso apelo baptismal, à vossa vocação, à vossa consagração. Essa fidelidade abrange toda uma atitude, todo um programa de vida; é, ademais, base indispensável para qualquer apostolado ao serviço do Evangelho. Queira Maria, Virgo fidelis, sustentar-vos nessa fidelidade, conservando-vos cheios de fé em Jesus, para sempre.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS ALUNOS BOMBEIROS


Quarta-feira, 12 de Novembro de 1980



Caríssimos Irmãos!

Alegra-me muitíssimo este encontro, que me oferece a oportunidade de exprimir o meu cordial afecto a todos vós, Alunos das Escolas Centrais Anti-incêndio, que no estudo e na disciplina pretendeis oferecer à sociedade contemporânea o contributo do vosso dinamismo e da vossa juventude.

Desejo manifestar-vos, em primeiro lugar, o meu aplauso e apreço pelo empenho, de que dais prova ao preparar-vos com autêntica seriedade, para as futuras tarefas que vos serão confiadas. Procurai compreender e realizar a vossa vida numa visão, animada e orientada pela mensagem cristã, isto é não como manifestação de egoísmo e de individualismo ou como exclusiva procura de bem-estar material ou, pior, como opressão sita ou psicológica sobre os outros, mas como compreensão vigilante, dedicação generosa, disponibilidade activa para com todos, em particular para com aqueles que se encontram em necessidade ou em dificuldades.


Discursos João Paulo II 1980 - Segunda-feira, 10 de Novembro de 1980