Discursos João Paulo II 1980 - DE SÃO JOÃO BOSCO

Brasília, 30 de Junho de 1980



Estou para cumprir agora um gesto de extrema simplicidade, mas também de profunda significação: a bênção desta estátua de São João Bosco, Dom Bosco, como o chamamos carinhosamente, mesmo muitos anos depois de sua canonização.

Brasília está para sempre ligada a Dom Bosco através daquele misterioso sonho, no qual, à distância de 75 anos, ele parece ter entrevisto o nascimento da cidade, em meio ao cerrado escaldante, sobre o planalto até então deserto.

Ao abençoar esta imagem, rendo um sentido preito de veneração ao querido santo dos jovens, pai de intrépidos e infatigáveis missionários do vizinho Mato Grosso e de Goiás, escolhido padroeiro celeste desta Capital. Faço-o como se o fizesse em sua graciosa ermida, marco dos inícios de Brasília, para onde será levada e onde será cultuada esta imagem, ou em seu magnífico santuário na cidade.

Meus votos e minhas preces são para que Brasília traduza cada vez mais na realidade o sonho de um grande santo. Que os jovens, prediletos de Dom Bosco, aqui cresçam com possibilidade de conhecer e viver o Evangelho. Que as famílias realizem o ideai da Sagrada Família de Nazaré. Que Brasília seja sempre uma cidade para as pessoas humanas: acolhedora, fraterna, serena. Que floresçam aqui belas comunidades cristãs. Que surjam, nestas famílias e nestas Comunidades, belas e promissoras vocações sacerdotais e religiosas.

Com estes sentimentos e votos, benzo com fervor esta imagem.



VIAGEM APOSTÓLICA DO SANTO PADRE AO BRASIL

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

NO ENCONTRO COM


AOS SACERDOTES BRASILEIROS


Brasília, 30 de Junho de 1980

1. Justamente convosco, amados Irmãos no Episcopado e queridos Padres, tenho o meu primeiro encontro com um grupo particular em terras brasileiras: não escondo que isto é para mim motivo de alegria e de conforto. A vós posso aplicar, com total sinceridade e sem retórica, as palavras do Apóstolo: “Sois minha alegria e minha coroa”(cf. Ph 4,1).

Sei que muitos entre vós vieram de longe e com certo sacrifício; eu venho de Roma... Mas na Igreja de Deus não há distâncias e aqui estamos reunidos, em nome do Senhor. Irmanados no mesmo ideai, Jesus de Nazaré. E impulsionados pela mesma missão: anunciar Jesus Cristo e seu Evangelho, “poder de Deus para a salvação de todos os que crêem” (Rm 1,16), servir a causa do Reino de Deus, pelo qual estamos prontos a der tudo - até a vide, se preciso for. Neste espírito de unidade viestes a Brasília, para manifestar estima para com o Papa, para testemunhar por seu intermédio a vossa adesão à missão de Pedro. Muito obrigado pela delicadeza de vosso gesto e pelo apoio que com ele dais a esta minha visita pastoral. Que Deus vos recompense!

2. Disse logo à minha chegada que vinha para der alento e oferecer estímulo à Igreja. Este o mandato que recebi do Senhor. Neste sentido acolhei a palavra fraterna e amiga que agora quero deixar-vos como recordação deste rápido encontro. Sois os pastores de um povo bondoso e simples, que revela uma grande fome de Deus. Vivei, pois, com entusiasmo, a missão evangelizadora da Igreja. Para realizá-la, assumi com coragem a tarefa de saciar esta fome levando este povo ao encontro de Deus. Assim estareis contribuindo também para torná-lo mais inumano. Com espírito de Mãe e sempre fiel ao seu Senhor, no respeito pelas legítimas instituições que devem servir a causa do homem, a Igreja deve prestar a colaboração específica de sua própria missão, em vista do bem comum, na construção da civilização do amor.

3. Dificuldades, certamente, surgirão sempre. Mas tende coragem: Cristo, morto e ressuscitado, oferece sempre pelo Seu Espírito, luz e forças para correspondermos à nossa sublime vocação (cf. Lumen Gentium LG 10).

Sede portadores também de uma palavra de ânimo para aqueles que constituem as vossas comunidades; de modo todo especial aos mais pequeninos e aos que mais precisam de conforto, porque sofrem no corpo ou na alma. Dizei a todos, sem exceção, que, enquanto Pastor universal da Igreja, à semelhança do Apóstolo João, “não tenho maior alegria do que ouvir dizer que os meus filhos caminham na verdade”(cf. 3Jn 1,4). E esta verdade é Jesus Cristo que se proclamou, Ele mesmo, “caminho, verdade e vide”(Jn 14,6). Levai a todos a certeza de meu afeto e de minha oração, com a Bênção Apostólica.

Muito obrigado, felicidades e que Deus vos abençoe!



                                                 Julho de 1980

VIAGEM APOSTÓLICA DO SANTO PADRE AO BRASIL

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

AOS PRESIDIÁRIOS DO CÁRCERE DA PAPUDA


Brasília, 1° de Julho de 1980



Irmãos e filhos multo caros em Nosso Senhor Jesus Cristo!

1. Ouvi, com a maior atenção, vossas palavras, na voz do vosso representante. Muito obrigado!

A visita que hoje vos faço, embora breve, significa multo para mim. E a visita de um Pastor que quisera imitar o bom Pastor (cf. Jn 10,1ss) no seu gesto de procurar com mais desvelo a ovelha que por qualquer motivo se extraviou (cf. Lc 15,4), alegre por encontrá-la.

É a visita de um amigo. Como amigo gostaria de trazer-vos ao menos uma dose de serenidade e de esperança, onde encontrar uma vontade de ser melhores e coragem para isso.

É a visita do Vigário de Cristo. Sabeis, pela leitura do Evangelho, que Ele, Cristo, sendo sem pecado, detestava o pecado mas amava os pecadores, e os visitava para proporcionar-lhes o perdão. Gostaria de trazer-vos o apelo e o conforto do Redentor do Homem.

2. Em vós encontro pessoas humanas e sei que toda pessoa inumana corresponde a um “pensamento” de Deus. Neste sentido, todo ser inumano é fundamentalmente bom e feito para a felicidade.

Houve na vida de quase todos vós aquele momento em que vos distanciastes do Desígnio de Deus. O mal feito deve vos der pena, mas não ser encarado come uma fatalidade. Podeis voltar a refletir o pensamento de Deus. Podeis ser felizes de novo.

Encontro em vós homens remidos pelo sangue precioso de Jesus Cristo. Este sangue vos fala do infinito amor do Pai e de Seu Filho Jesus por vós, como por todos os homens. Ele vos oferece a maior alegria do mundo, que é a de saber amar e sentir-se amados. Ele infunde em vós a força do alto, necessária para mudar de vida.

Encontro em vós verdadeiros irmãos e quero dizer-vos que, nos momento de solidão e de tristeza, podeis estar certos, podeis ter a certeza de que este Pai comum está perto de vós e de que nele podeis ter um encontro com todos os vossos irmãos, que são os cristãos e católicos do mundo inteiro.

3. Desejo que o período passado aqui seja, apesar de tudo, para vós, como foi para inúmeros outros nas mesmas condições, um tempo de graça, de regeneração, de descoberta de Deus em Jesus Cristo. Sua Palavra seja a vossa leitura. Sua presença invisível vosso conforto.

Gostaria de entrar, para uma visita como essa, em todas as prisões do Brasil. Que esta seja um símbolo e que cada prisioneiro se sinta visitado pelo Papa.

Uma saudação fraterna aos que trabalham nesta casa e em todas as congêneres no Brasil. O Senhor abençoe vosso trabalho árduo, delicado, mas de tamanha importância. Exercei-o com amor a serviço de homens vossos irmãos.

Possa esta prisão como todas as outras do Brasil e do mundo dizer em sua linguagem muda: não ao desamor, à violência, ao mal; sim ao amor porque só o amor salva e constrói!

Com a minha Bênção Apostólica.



VIAGEM APOSTÓLICA DO SANTO PADRE AO BRASIL

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

NO ENCONTRO COM EMINENTES


PERSONALIDADES DO MUNDO DA CULTURA


Rio de Janeiro, 1° de Julho de 1980



1. Sinto-me feliz por poder encontrar-me convosco, eminentes personalidades da cultura da Nação Brasileira. A cada um de vós desejo saudar cordialmente, manifestar o meu sincero apreço e o meu profundo respeito. Vós bem sabeis quanto e por que razões a Igreja estima e promove, naquilo que lhe compete, toda autêntica forma de cultura e busca manter comunhão e diálogo com ela.

O lugar de encontro entre a Igreja e a cultura é o mundo, e nesse o homem, que é um “ser-no-mundo”, sujeito de desenvolvimento, para uma e para outra, mediante a palavra e a graça de Deus por parte da Igreja, e mediante o próprio homem, com todos os seus recursos espirituais e materiais, por parte de cultura.

A verdadeira cultura é humanização, enquanto que a não-cultura e as falsas culturas são desumanizantes. Por isso mesmo na escolha da cultura o homem empenha o seu destino.

A humanização, ou seja o desenvolvimento do homem, efetua-se em todos os campos da realidade na qual o homem está situado e se situa: na sua espiritualidade e corporalidade, no universo, na sociedade inumana e divina. Trata-se de um desenvolvimento harmónico, no qual todos os setores dos quais faz parte o ser homem ligam se uns com os outros: a cultura não diz respeito nem unicamente ao espírito nem unicamente ao corpo, como nem unicamente à individualidade ou à sociabilidade ou à universidade. A redução ad unum dá sempre lugar a culturas desumanizantes, nas quais o homem é espiritualizado ou é materializado, é dissociado ou é despersonalizado. A cultura deve cultivar o homem e cada homem na extensão de um humanismo integral e pleno, no qual todo o homem e todos os homens são promovidos na plenitude de cada dimensão inumana. A cultura tem o fim essencial de promover o ser do homem e de proporcionar-lhe os bens necessários ao desenvolvimento de seu ser individual e social.

2. Todas as várias formas da promoção cultural radicam-se na cultura animi, – segundo a expressão de Cícero – a cultura do pensar e do amar, pela qual o homem se eleva à sua suprema dignidade, que é a do pensamento, e se exterioriza na sua mais sublime doação, que é a do amor.

A autêntica cultura animi é cultura da liberdade, que emana das profundezas do espírito, da lucidez do pensamento e do generoso desinteresse do amor. Fora da liberdade não pode haver cultura. A Verdadeira cultura de um povo, a sua plena humanização, não se podem desenvolver em um regime de coerção: “A cultura – diz a Constituição conciliar Gaudium et Spes, (GS 59) – emanando da natureza racional e social do homem, tem uma incessante necessidade da justa liberdade para se desenvolver e deve-se-lhe reconhecer a legítima possibilidade de exercício autônomo segundo os próprios princípios”.

A cultura não deve sofrer nenhuma coerção por parte do poder, quer político quer econômico, mas ser ajudada por um e por outro em todas as formas de iniciativa pública e privada conformes com o verdadeiro humanismo, com a tradição e com o espírito autêntico de cada povo.

A cultura que nasce livre deve ademais difundir-se em um regime de liberdade. O homem culto tem o dever de propor sua cultura, mas não a pode impor A imposição contradiz a cultura, porque contradiz aquele processo de livre assimilação pessoal por parte do pensamento e do amor, que é peculiar à cultura do espírito. Uma cultura imposta não somente contrasta com a liberdade do homem, mas põe obstáculo ao processo formativo da própria cultura, que na sua complexidade, desde a ciência até a forma de vestir-se, nasce da colaboração de todos os homens.

A Igreja reivindica em favor da cultura, e portento em favor do homem, tanto no processo do desenvolvimento cultural quanto no ato de sua propagação, uma liberdade análoga àquela que na Declaração conciliar Dignitatis Humanae reclama para a liberdade religiosa, fundada essencialmente sobre a dignidade da pessoa inumana, e conhecida seja por meio da palavra de Dieus seja através da razão (cf. Dignitatis Humanae DH 2).

Ao mesmo tempo em que respeita a liberdade, a cultura deve promovê-la, isto é deve buscar aparelhá-la com as virtudes e hábitos que contribuem para formar o que Santo Agostinho chamava a libertas maior, isto é, a liberdade no seu pleno desenvolvimento, a liberdade em um estado moralmente adulto, capaz de opções autônomas diante das tentações provenientes de qualquer forma de amor desordenado de si mesmo. A cultura plena compreende a formação moral, a educação para as virtudes da vide individual, social e religiosa. “Não há dúvida – dizia em meu recente discurso à UNESCO – que o fato cultural primário e fundamental é homem espiritualmente maduro, isto é o homem plenamente educado, o homem capaz de educar-se a si mesmo e de educar os outros. Não há dúvida tampouco de que a dimensão primeira e fundamental da cultura é a sadia moralidade: a cultura moral” (João Paulo II, Discurso à Unesco, 2 de junho de 1980).

3. A cultura, cultivo do homem em todas suas faculdades e expressões, não é somente promoção do pensar e do agir, mas é também formação da consciência. Por causa da educação imperfeita ou nula da consciência, o puro conhecimento pode der origem a um humanismo orgulhoso puramente terrestre, a ação e o prazer podem originar pseudo-culturas de um produtivismo incontrolado, em benefício do poderio nacional ou do consumismo privado, tendo como consequência infaustos perigos de guerra e gravíssimas crises econômicas.

A promoção do conhecimento é indispensável, mas é insuficiente quando não é acompanhada pela cultura moral.

A cultura animi deve promover juntamente a instrução e a educação, deve instruir o homem no conhecimento da realidade, mas ao mesmo tempo educá-lo para ser homem na totalidade do seu ser e de suas relações. Ora o homem não pode ser plenamente o que é, não pode realizar totalmente sua humanidade, se não vive a transcendência de seu próprio ser sobre o mundo e sua relação com Deus. A elevação do homem pertence não somente a promoção de sua humanidade, mas também a abertura de sua humanidade a Deus.

Fazer cultura é der ao homem, a cada homem e à comunidade dos homens, dimensão inumana e divina, é oferecer e comunicar ao homem aquela humanidade e aquela divindade que emanam do Homem perfeito, do Redentor do homem, Jesus Cristo.

Na obra da cultura Deus fez aliança com o homem, tornou-se ele mesmo operador cultural para o desenvolvimento do homem. “Dei agricultura estis”, exclama São Paulo: “Vós sois cultura de Deus” (1Co 3,9).

Não tenhais medo, Senhores, abri as portas do vosso espírito, da vossa sociedade, das vossas instituições culturais, à ação de Deus, que é amigo do homem e opera no homem e pelo homem, para que este cresça na sua humanidade e na sua divindade, no seu ser e na sua realeza sobre o mundo.

Na aliança que, através da cultura inumana, se estabeleceu entre Deus e o homem, este deve imitar a Deus no seu infinito amor.

A obra cultural é obra de amor, obra que procede daquele amor social, cuja necessidade apontei em minha primeira encíclica “Redemptor Hominis” (cf. RH 16). Há carência de amor social quando, por falsa de estima para com os outros, não se respeita a pluralidade das culturas legítimas, mas se quer impor a própria cultura, que não é nem única nem exclusiva, a populações economicamente e politicamente mais débeis. Recordemos o que diz o Concílio: “Numerosos países economicamente pobres, mas ricos de sabedoria, poderão prestar ajuda aos outros quanto a este ponto”(Gaudium et Spes GS 15).

4. A unidade cultural de um País geograficamente vasto como o vosso, e no qual se amalgamaram numerosas tradições e vários processos históricos, não nasce de uma uniformação da cultura, mas de uma pluralidade unificada pelo respeito mútuo, pelo reconhecimento das peculiaridades culturais, pelo diálogo que enriquece, a uns com os valores e as experiências dos outros.

5. Penso cumprir um elementar dever de justiça, se evoco neste ponto a obra cultural despretenciosa, mas exemplar, que foi a da Igreja neste País.

Nesta obra encontramos todos os aspectos da cultura que até aqui relembramos. Com efeito, desde os primeiros anos, através de seus missionários, a Igreja começou a transmitir aos aborígenes, junto com a revelação do Evangelho, o conhecimento das coisas. Este consistia na istrução e na alfabetização, sem dúvida, mas não menos prezava o esforço por aprimorar, sem deformar nem adulterar, elementos básicos da cultura indígena. Ao longo dos séculos, através das missões entre índios e sertanejos, através de escolas e Universidades, através de hospitais e asilos, através dos seus meios de comunicação social, a Igreja continua a der uma contribuição válida à obra cultural. Neste domínio julgo importante sublinhar que a mensagem da Igreja não esteve alheia tampouco à harmonia e ao equilíbrio com que se processou o caldeamento das mais diversas raças.

Tomando a cultura no seu sentido mais amplo devemos dizer do Brasil o que o Documento de Puebla diz da América Latina: a Igreja se encontrou historicamente na raiz da cultura deste País.

6. Uma obra que respeita a cultura originária de um povo, permitindo seu desenvolvimento e difusão e facilitando o diálogo com outras culturas, é a alfabetização.

Lemos na “Populorum Progressio”: “Um analfabeto é um espírito subalimentado. Saber ler e escrever, adquirir uma formação profissional é retomar confiança em si mesmo e descobrir que se pode progredir juntamente com os outros”(Paulo VI, Populorum Progressio PP 35).

Ao lado desta e de outras formas de subalimentação do espírito é necessário considerar o grave estado de depressão em que se encontram inteiras populações por causa de suas condições econômicas. Os povos economicamente mais ricos e industrialmente mais desenvolvidos geraram o consumismo, que se encontra na origem de desequilíbrios cada vez mais acentuados entre povos ricos e povos pobres, entre populações de um mesmo estado. A isto me referi na minha encíclica “Redemptor Hominis” (n. RH 16).

A estas situações deve levar remédio o amor social vivificado pela caridade. Construí juntos, Senhores, uma civilização da verdade e do amor, criai uma cultura que promova sempre mais o homem e facilite sua evangelização, ajude-o a crescer em sua dimensão: inumana e divina,: a reconhecer o valor do próprio ser, o sentido de sua existência, a conhecer e a amar Cristo no qual Deus se revelou plenamente a cada homem e a cada povo.



VIAGEM APOSTÓLICA DO SANTO PADRE AO BRASIL

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

AOS MORADORES DA FAVELA DO VIDIGAL


NO RIO DE JANEIRO


Rio de Janeiro, 2 de Julho de 1980



1. Quando Jesus subiu ao monte e começou a proclamar às multidões que O circundavam o seu ensinamento que costumamos chamar de Sermão da Montanha, brotaram de seus lábios antes de tudo as Bem-aventuranças. Oito bem-aventuranças, a primeira das quais declara: “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus” (Mt 5,3).

Existe uma só montanha na Galiléia sobre a qual Jesus pronunciou as suas bem-aventuranças. Contudo, são tantos os lugares de toda a terra, onde estas mesmas afirmações são anunciadas e escutadas. E são tantos os corações que não cessam de refletir sobre o significado daquelas palavras pronunciadas de uma vez por todas. Não cessam de meditá-las. E seu único desejo é, com todo coração, pô-las em prática. Buscam viver a verdade das oito bem-aventuranças. Certamente existem em terras brasileiras muitos lugares assim. E também aqui existiram e existem muitíssimos destes corações.

Quando pensei de que maneira deveria apresentar-me diante dos habitantes desta terra que visito pela primeira vez, senti o dever de apresentar-me antes de tudo com o ensinamento das oito bem-aventuranças. E veio-me o desejo de falar destas coisas a vocês, moradores do Vidigal. Através de vocês gostaria de falar também a todos os que no Brasil vivem em condições parecidas com as de vocês. Bem-aventurados os pobres em espírito.

2 . Entre vocês são muitos os pobres. E a Igreja em terra brasileira quer ser a Igreja dos pobres. Ela deseja que neste grande país se realize esta primeira bem-aventurança do Sermão da Montanha.

Os pobres em espírito são aqueles que são mais abertos a Deus e às “maravilhas de Deus” (Ac 2,11). Pobres porque prontos a aceitar sempre aquele dom do alto, que provém do próprio Deus. Pobres em espírito – aqueles que vivem na consciência de ter recebido tudo das mãos de Deus como um dom gratuito, e que dão valor a cada bem recebido. Constantemente agradecidos, repetem sem cessar: “Tudo é graça!”, “demos graças ao Senhor nosso Deus”. Deles Jesus diz, ao mesmo tempo, que são “puros de coração”, “mansos”; são eles os que “têm fome e sede de justiça”, os que são frequentemente “afligidos”; os que são “operadores de paz” e “perseguidos por causa da justiça”. São eles, enfim, os “misericordiosos”(cf. Mt 5,3-10).

De fato, os pobres, os pobres em espírito são mais misericordiosos.Os corações abertos para Deus são, por isso mesmo, mais abertos para os homens. Estão prontos para ajudar prestativamente. Prontos a partilhar o que têm. Prontos a acolher em casa uma viúva ou um órfão abandonados. Encontram sempre ainda um lugar a mais no meio das estreitezas em que vivem. E assim mesmo encontram sempre um bocado de alimento, um pedaço de pão em sua pobre mesa.

Pobres, mas generosos. Pobres, mas magnânimos. Sei que existem muitos destes aqui entre vocês a quem agora faro, mas também em diversos outros lugares do Brasil.

3. As palavras de Cristo sobre os pobres em espírito fazem, porventura, esquecer as injustiças? Permitem elas que deixemos sem solução os diversos problemas que se levantam no conjunto do assim chamado problema social? Estes problemas que permanecem na história da humanidade assumem aspectos diversos nas diversas épocas da história e têm sua intensidade de acordo com a dimensão de cada sociedade em particular, assumindo ao mesmo tempo a proporção de inteiros continentes e enfim de todo o mundo. É natural que estes problemas assumam também uma dimensão própria desta terra, uma dimensão brasileira.

As palavras de Cristo declarando felizes “os pobres em espírito” não visam suprimir todos estes problemas. Ao contrário: elas os colocam em evidência, focalizando-os neste ponto mais essencial que é o homem, que é o coração inumano, que é cada homem sem excepção. O homem diante de Deus e, ao mesmo tempo, diante dos outros homens.

Pobre em espírito não significa exatamente “o homem aberto aos outros”, isto é, a Deus e ao próximo?

Não é verdade que esta bem-aventurança dos “pobres em espírito”, contém ao mesmo tempo uma advertência e uma acusação? Não é certo que ela diz aos que não são “pobres em espírito” que eles se encontram fora do Reino de Deus, que o Reino de Deus não é e não será participado por eles? Pensando em tais homens que são “ricos”, fechados a Deus e aos homens, sem misericórdia... não dirá Cristo em outra passagem: “ai de vós?”. “Mas ai de vós, os ricos, porque recebestes a vossa consolação. Ai de vós, os que estais agora fartos, porque haveis de ter fome. Ai de vós, os que agora rides, porque gemereis e chorareis. Ai de vós, quando todos os homens disserem bem de vós. Era precisamente assim que os pais deles tratavam os falsos profetas” (Lc 6,24-26).

“Ai de vós” – esta palavra soa severa e ameaçadoramente, sobretudo na boca deste Cristo que costumava falar com bondade e mansidão e costumava repetir: “Bem-aventurados”. E contudo dirá também: “Ai de vós”.

4. A Igreja em todo o mundo quer ser a Igreja dos pobres. A Igreja em terras brasileiras quer também ser a Igreja dos pobres – isto é, quer extrair toda a verdade contida nas bem-aventuranças de Cristo e sobretudo nesta primeira – “bem-aventurados os pobres em espírito...”. Quer ensinar esta verdade e quer pô-la em prática, assim como Jesus veio fazer e ensinar.

A Igreja deseja, pois, extrair do ensinamento das oito bem-aventuranças tudo aquilo que nelas se refere a cada homem: àquele que é pobre, que vive na miséria, àquele que vive em abundância e bem-estar e, enfim, àquele que possui excessivamente e que tem de sobra. A mesma verdade da primeira bem-aventurança refere-se a cada um de modo diverso.

Aos pobres – àqueles que vivem na miséria – ela diz que estão particularmente próximos de Deus e de Seu reino. Mas, ao mesmo tempo, diz que não lhes é permitido – como não é permitido a ninguém – reduzirem-se arbitrariamente à miséria a si próprios e às suas famílias: é necessário fazer tudo aquilo que é lícito para assegurar a si e aos seus tudo aquilo que é necessário à vida e à manutenção. Na pobreza é necessário conservar sobretudo a dignidade humana, e também aquela magnanimidade, aquela abertura do coração para com os outros, a disponibilidade pela qual se distinguem exatamente os pobres – os pobres em espírito.

Àqueles que vivem na abundância ou ao menos em um relativo bem-estar, para a qual têm o necessário (ainda que talvez não lhes sobre grande coisa!), a Igreja, que quer ser a Igreja dos pobres, diz: Usufruí os frutos do vosso trabalho e de uma lícita industriosidade, mas, em nome das palavras de Cristo, em nome da fraternidade inumana e da solidariedade social, não vos fecheis em vós mesmos! Pensai nos mais pobres! Pensai naqueles que não têm o suficiente, que vivem na miséria crônica, que sofrem fome! E partilhai com eles! Partilhai de modo programático e sistemático. A abundância material não vos prive dos frutos espirituais do Sermão da Montanha, não vos separe das bem-aventuranças dos pobres em espírito.

E a Igreja dos pobres diz o mesmo, com maior força, àqueles que têm de sobra, que vivem na abundância, que vivem no luxo. Diz-lhes: Olhai um pouco ao redor! Não vos dói o coração? Não sentis remorso na consciência por causa de vossa riqueza e abundância? Se não – se quereis somente “ter” sempre mais, se o vosso ídolo são o lucro e prazer – recordai que o valor do homem não é medido segundo aquilo que ele “têm”, mas segundo aquilo que ele “é”.Portanto, aquele que acumulou multo e acha que tudo se resume nisto, lembre-se de que pode valer (no seu íntimo e aos olhos de Deus) muito menos do que algum daqueles pobres e desconhecidos – que talvez possa “ser muito menos homem” do que ele.

A medida das riquezas, do dinheiro e do luxo não é equivalente à medica da verdadeira dignidade do homem.

Portanto, àqueles que têm em superabundância evitem o fechar-se em si mesmos, o apego à própria riqueza, a cegueira espiritual. Evitem tudo isto com todas as forças. Não cesse de acompanhá-los toda a verdade do Evangelho e sobretudo a verdade contida nestas palavras:

“Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus...”(Mt 5,3).

Que esta verdade os inquiete.

Seja para eles uma admoestação contínua e um desafio.

Não lhes permita nem ao menos por um minuto tornarem-se cegos pelo egoísmo e pela satisfação dos próprios desejos.

Se tens muito, se tens tanto, recorda-te que deves dar muito, que há tanto que dar. E deves pensar como der, como organizar toda a vida sócio-econômica e cada um dos seus setores, a fim de que esta vida tenda à igualdade entre os homens e não a um ateísmo entre eles.

Se conheces muito e estás colocado no alto da hierarquia social, não te deves esquecer, nem sequer por um segundo, de que, quanto mais alto alguém está, mais deve servir! Servir aos outros. De outra forma encontrar-te-ás em perigo de afastar a ti e tua vida do campo das bem-aventuranças e em particular da primeira delas: “Bem-aventurados os pobres em espírito”. São “pobres em espírito” também os “ricos” que, à medica da própria riqueza, não cessam de “der-se a si mesmos” e de “servir aos outros”.

5. Assim, pois, a Igreja dos pobres fala primeiro e acima de tudo ao homem. A cada homem e por isto a todos os homens. É a Igreja universal. A Igreja do Mistério da Incarnação. Não é a Igreja de uma classe ou de uma só casta. E fala em nome da própria verdade. Esta verdade é realista. Tenhamos em conta cada realidade inumana, cada injustiça, cada tensão, cada luta. A Igreja dos pobres não quer servir àquilo que causa as tensões e fez explodir a luta entre os homens. A única luta, a única batalha a que a Igreja quer servir é a nobre luta pela verdade e pela justiça e a batalha pelo bem verdadeiro, a batalha na qual a Igreja é solidária com cada homem. Nesta estrada, a Igreja luta com a “espada da palavra”, não poupando os encorajamentos, mas também as admoestações, às vezes multo severas (tal como Cristo o fez). Muitas vezes até ameaçando e demonstrando as consequências da falsidade e do mal. Nesta sua luta evangélica, a Igreja dos pobres não quer servir a fins imediatos políticos, às lutas pelo poder, e ao mesmo tempo procura com grande diligência que suas palavras e ações não sejam usadas para tal fim, que sejam “instrumentalizadas”.

A Igreja dos pobres fala, pois, ao “homem”: a cada homem e a todos. Ao mesmo tempo fala às sociedades, às sociedades na sua globalidade e às diversas camadas sociais, aos grupos e profissões diversas. Fala igualmente aos sistemas e às estruturas sociais, sócio-econômicas e sócio-políticas. Fala a língua do Evangelho, explicando-o também à luz do progresso da ciência inumana, mas sem introduzir elementos estranhos, heterodoxos, contrários ao seu espírito. Fala a todos em nome de Cristo, e fala também em nome do homem (particularmente àqueles aos quais o nome de Cristo não diz tudo, não exprime toda a verdade sobre o homem que este nome contém).

A Igreja dos pobres fala, pois, assim: Fazei tudo, Vós, particularmente, que tendes poder de decisão, Vós dos quais depende a situação do mundo, fazei tudo para que a vida de cada homem, na vossa terra, se torne “mais humana”, mais digna do homem!

Fazei tudo a fim de que desapareça, ao menos gradativamente, aquele abismo que separa os “excessivamente ricos”, pouco numerosos, das grandes multidões dos pobres, daqueles que vivem na miséria. Fazei tudo para que este abismo não aumente mas diminua, para que se tenda à igualdade social. A fim de que a distribuição injusta dos bens ceda o lugar a uma distribuição mais justa...

Fazei-o por consideração a cada homem que é o vosso próximo e vosso concidadão. Fazei-o por consideração ao bem comum de todos. E fazei-o por consideração a vós mesmos. Só tem razão de ser a sociedade socialmente justa, que se esforça por ser sempre mais justa. Somente tal sociedade tem diante de si o futuro. A sociedade que não é socialmente justa e não ambiciona tornar-se tal, põe em perigo o seu futuro. Pensai, pois, no passado e olhai para o dia de hoje, e projetai o futuro melhor da vossa inteira sociedade!

Tudo isto se inclui no que disse Cristo no Sermão da Montanha. No conteúdo desta única frase: “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus”.

Queridos irmãos e irmãs:

Com esta mensagem, renovo meus sentimentos de profundo afeto, e em penhor de abundantes graças de Deus para vocês e suas famílias, deixo-lhe a minha Bênção Apostólica.

Desejei visitar em vocês do Vidigal, todos os favelados onde quer que se encontrem, no dileto Brasil, que agora percorro em peregrinação apostólica. Ao vir aqui, interessai-me, como Pai e Pastor, preocupado pela sorte de filhos multo amados, e perguntei sobre todos e sobre tudo aqui nesta favela.

Falaram-me de vocês e como no meio de carências, lutas e agruras, há solidariedade e ajuda mútua entre todos, graças a Deus. Falaram-me também do “mutirão”, graças ao qual ficou pronta a capela que daqui a pouco vou benzer. É sempre lindo e importante que as pessoas todas se unam, se dêem as mãos, somem esforços e, juntas, consigam o que sozinhas não podem alcançar.

Regozijo-me com quantos, direta ou indiretamente, na área desta favela, conseguiram resolver, de modo justo e pacífico, questões que, arrumadas, não deixarão de contribuir para fazer a vida de todos mais inumana e para tornar esta cidade maravilhosa sempre mais cidade de irmãos.

Vim aqui, não por curiosidade, mas porque amo vocês e lhes quero bem e desejaria dizer, com São Paulo: “Pela afeição que sentíamos por vós, desejávamos compartilhar convosco, não só o Evangelho, mas a própria vida” (cf. 1Th 2,8). Junto com vocês, com um “coração puro” de maus sentimentos, quereria dizer sempre não á indiferença, ao desinteresse, e a todas as formas de desamor; e sim à solidariedade, à fraternidade e ao amor porque “Deus é amor” (1Jn 4,16).

E assim, saúdo vocês, as suas famílias, em especial os jovens e crianças, e a todos aqui do Vidigal, dizendo que penso e rezo por vocês, para a divina Providência ser secundada pelas providências humanas, para que vocês melhorem sua vida.

E agora, vou abençoar a todos.



Discursos João Paulo II 1980 - DE SÃO JOÃO BOSCO