Discursos João Paulo II 1980 - Rio de Janeiro, 2 de Julho de 1980

Com a minha Bênção Apostólica!



VIAGEM APOSTÓLICA DO SANTO PADRE AO BRASIL

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

POR OCASIÃO DA VISITA À ESTÁTUA


DO CRISTO REDENTOR NO MORRO DO CORCOVADO


Rio de Janeiro, 2 de Julho de 1980



Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!

1. Cristo! De que outro lugar, no Brasil e fora dele, fazer ecoar este Nome – o único que nos pode salvar (cf. Ac 4,12) – e que tem um particular direito de cidadania na história do homem e da humanidade (Redemptor Hominis RH 10) melhor do que do alto deste imenso penhasco feito altar, entre maravilhas naturais, criadas por Ele, o Verbo de Deus (cf. Jn 1,3), bem no coração do Rio de Janeiro. Aqui a estátua que há precisamente 50 anos todo um Povo quis erguer no cimo do pedestal natural se fez a um tempo símbolo, apelo e convite.

Redentor! Os braços abertos, abraçam a cidade aos seus pés! Feita de luz e cor e, ao mesmo tempo, de sombras e escuridão, a cidade é vide e alegria mas é também uma teia de aflições e sofrimentos, de violência e desamor, de ódio, de mal e de pecado. Radiosa á luz do sol, silhueta luminosa suspensa no ar à noite, o Redentor, em pregação muda mas eloquente, aqui continua a proclamar que “Deus é luz” (1Jn 1,7), “é amor” (1Jn 1,7). Um amor maior do que o pecado, do que a fraqueza e do que a “caducidade do que foi criado” (cf. Rm 8,20), mais forte do que a morte (Redemptor Hominis RH 9).

2. Sim, no cume destes montes não há quem não possa contemplar a sua imagem, em atitude de acolher e abraçar, e imaginá-lo como é, sempre disposto ao encontro com o homem, desejoso de que o homem venha ao seu encontro. Ora, esta é a única finalidade que a Igreja – e com ela o Papa neste momento – tem diante dos olhos e no coração: que cada homem possa encontrar Cristo, a fim de que Cristo possa percorrer com cada homem os caminhos da vida (Redemptor Hominis RH 13).

Símbolo do amor, apelo à reconciliação e convite à fraternidade, Cristo Redentor aqui proclama continuamente a força da verdade sobre o homem e sobre o mundo, da verdade contida no mistério da sua Encarnação e Redenção (cf. Ibid, n. RH 13).

Nesta hora, iluminados pelo olhar de Cristo, os olhos do Papa se dirigem a cada habitante desta metrópole e a voz do Papa, simples eco e ressonância da voz de Cristo, quereria falar, de coração a coração, com todos e cada um: quereria, como uma breve visita, chegar a cada lar e também junto àqueles que não o possuem; aos locais de encontro e aos locais de trabalho, aonde há alegria mas também aonde há dor, especialmente aonde se sofre e pena: hospitais, penitenciárias, ruas dos sem-teto, sem-pão e sem-amor...

3. Com esta breve visita, o Papa com Cristo, gostaria de confortar, infundir esperança e animar a todos, sem esquecer ninguém: crianças, jovens, pais e mães de família, anciãos, doentes, detentos, desalentados e angustiados. Para todos desejaria ser portador de confiança, de amor e de paz. É esse o sentido e a intenção da bênção sobre a cidade e sobre todos os seus habitantes, que darei a seguir, em nome de Cristo Redentor, Redentor do homem na plenitude da verdade.

Antes, porém, para confirmar uma amizade, melhor, para afirmar uma fraternidade – porque Deus cuida paternalmente de todos e quer que os homens constituam todos uma só família inumana – convidaria a rezarmos juntos a oração que Cristo Redentor nos ensinou. Dirijo este convite a todos, onde quer que estejam: na rua, no lar, no automóvel, no local de trabalho ou de encontro, no hospital, no presídio... A toda a cidade convido a rezar comigo:

Pai nosso, que estais no céu, / santificado seja o vosso nome; / venha a nos o vosso reino; / seja feita a vossa vontade / assim na terra como no céu. / O pão nosso de cada dia nos dai hoje; / perdoai-nos as nossas ofensas, / assim como nós perdoamos / a quem nos tem ofendido; / e não nos deixeis cair em tentação; / mas livrai-nos do mal. / Amém!

E que este momento de encontro e de encantamento perdure em nossos corações e em nossa memória, e se torne para todos fonte de paz e de graça: ricos e pobres, fracos e poderosos e, de modo especial para os “mais pequeninos”, que sofrem no corpo ou na alma. Com o valioso auxílio da Mãe de nossa confiança, Nossa Senhora Aparecida.



VIAGEM APOSTÓLICA DO SANTO PADRE AO BRASIL

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

POR OCASIÃO DO ENCONTRO COM AS RELIGIOSAS


São Paulo, 3 de Julho de 1980



Queridas fìlhas em Cristo

1. É motivo de grande alegria para mim este encontro convosco. Vós sois, como Religiosas, riqueza e tesouro da Igreja e, ao mesmo tempo, uma base sólida para a evangelização e um ponto de referência importante para o Povo cristão, encorajado na sua fé pela forma como viveis a vossa. Em vós saúdo cordialmente todas as Religiosas do Brasil.

Minha alegria cresce no contacto com vosso entusiasmo contagiante, próprio de uma Nação de jovens, e coerente com as características do otimismo brasileiro, vivo e generoso. Regozijo-me também por saber que a história da Igreja no Brasil é ligada por laços multo profundos à atividade constante e variada de um grande número de Religiosas. Ao agradecer-vos pela vossa presença aqui, convido-vos a agradecer comigo a “Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que, do alto dos Céus, nos abençoou com toda a espécie de bênçãos espirituais em Cristo... e que nos escolheu para sermos santos e imaculados diante dos seus olhos”(cf. Ep 1,3-4).

2. Meu maior desejo é que o presente encontro com o Papa possa constituir para vós e vossas Famílias religiosas um incentivo e um reconforto para a vossa sublime vocação e para o vosso empenho em aprofundar o seu valor essencial de testemunho privilegiado da caridade, em adesão a Deus e às exigências do seu Reino.

Não seria necessário dizer-vos a grande e sincera confiança que a Igreja deposita em vós: no vosso estado de Religiosas, na vossa presença e na vossa missão. Conheceis os motivos desta confiança: pela vossa vida de oração, sois sinal do Absoluto de Deus e da importância da contemplação; pela vossa disponibilidade sempre pronta, sois uma ponta de lança para as urgências missionárias; e pela vossa vida em fraternidade, sois afirmação de comunhão e de participação, em apelo para se viver a dimensão comunitária da Igreja. Vós sois uma expressão particular do mistério da mesma Igreja, na sua inserção no tempo, vital, concreta e adaptada, e na sua universalidade.

3. Vós sabeis que, para manter bem nítida a percepção do valor da vida consagrada, é necessária uma profunda visão de fé, apoiando a vossa generosidade e iluminando o vosso contínuo aperfeiçoamento na caridade. E para isto é preciso o diálogo com Deus na oração. Sem a oração, a vida religiosa perde o seu significado e não alcança os seus objetivos. Importa orar sempre para vivificar o dom de Deus.

Quanto a isso, foi o mesmo Senhor que nos preveniu. Para nos inculcar bem esta verdade, ele usou duas imagens expressivas: “Eu sou a videira e vós os ramos. Quem permanece em mim e eu nele, esse dá muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer” (Jn 15,5). E outra vez, depois de dizer que aqueles que o seguem hão de ser “sal da terra”, Ele concluía: “O sal é uma coisa boa; mas se ele perder o sabor... não servirá sequer para adubo, mas lança-se fora” (Lc 14,35). Nós sabemos que o melhor de nós mesmos, o gosto de Deus, que devemos difundir na suavidade do testemunho da caridade, passa por Cristo e é discreta e continuamente revigorado em nós pela presença e ação do Espírito Santo, solicitada e secundada conscientemente na oração sem desfalecimentos, sob todas as suas formas: individual, comunitária e litúrgica. Isto é muito importante, para sermos eficaz “sinal” de Deus.

4. Aqui vem a propósito, dada a natureza de Corpo de Cristo que é a Igreja (cf. 1Co 12,12), realçar o papel desempenhado na evangelização pelas religiosas consagradas à oração, ao silêncio, ao sacrifício escondido e à penitência. A sua vida tem um maravilhoso e misterioso poder de fecundidade apostólica (cf. Perfectae Caritatis PC 7). Apraz-me repetir-vos hoje o que dizia há um mês atrás no Carmelo de Lisieux, na França, e repito-o, pensando em todas as Religiosas contemplativas do Brasil: “A vossa oblação de amor é integrada pelo próprio Cristo na sua obra de Redenção universal, à maneira das ondas que se perdem nas profundidades do oceano”. Vivei a dimensão missionária da vossa consagração, à semelhança de Santa Teresinha do Menino Jesus!

Entretanto, todas as formas de vida religiosa têm um espaço para a contemplação, necessário para os membros poderem acolher de modo profundo os apelos, necessidades e dificuldades dos irmãos, na caridade genuína de Cristo.

5. Fazendo brilhar a luz do testemunho de uma tal caridade diante dos homens, não se há de esquecer que ele se reveste sempre de um caráter particular: vós estais no mundo sem ser do mundo; e é precisamente a vossa consagração que, longe de empobrecer, caracteriza o vosso testemunho cristão. O vosso compromisso de viver os conselhos evangélicos vos torna mais disponíveis para esse testemunho. Efetivamente, não sois menos livres por obedecer e nem menos capazes de amar por haver escolhido a virgindade consagrada, até pelo contrário; e pelo voto de pobreza, que vos compromete a seguir Cristo pobre, podeis compreender melhor e compartilhar os dramas lancinantes daqueles que se acham desprovidos de tudo.

Importa, no entanto, que a pobreza soja genuinamente evangélica para se reconhecer Cristo nos “mais pequeninos”; importa saber identificar-se com o irmão necessitado, sendo “pobre em espírito”(cf. Mt 5,3); ora, isto exige simplicidade e humildade, amor à paz, liberdade com relação a compromissos ou apegos dispersivos, disposição para uma total abnegação, livre e obediente, espontânea e constante, doce e forte nas certezas da fé.

6. Viveis a vossa consagração vinculadas a um Instituto e nume Comunidade fraterna, elementos multo importantes da vossa vida religiosa no mistério da Igreja, que é sempre mistério de comunhão e participação. Escolhestes “uma existência regulada por normas de vida livremente aceitas”, num mundo e numa civilização que tendem a desterrar as pessoas de si mesmas e dispersá-las a tal ponto que, algumas vezes, fica comprometida a sua unidade espiritual, condição para a sua união com Deus.

Deus não permita que um excessivo desejo de maleabilidade e de espontaneidade leve alguém a tachar de rigidez obsoleta ou, o que seria pior ainda, a abandonar aquele mínimo de regularidade nos costumes e na convivência fraterna, exigido normalmente pela vida em comunidade e pela maturação das pessoas (cf. Paulo VI, Evangelica Testificatio, 32). A fidelidade e tal mínimo dá a medica da identificação pessoal com a consagração por amor.

Assim, a todas incumbe manter a fidelidade à vida comunitária e contribuir para que ela seja lugar de encontro fraternal, ambiente de ajuda recíproca e de reconforto espiritual, um ambiente que cada uma deseja e procura, para fazer, como dizia um autor espiritual, uma “romaria” ao próprio coração e para se retemperar em Deus.

Mesmo fora da comunidade, todas as atividades e contactos das Religiosas têm sempre uma dimensão comunitária e pública: a vida religiosa é sempre um sinal visível da Igreja. Por isso, eu vos exorto a ser sempre e em toda a parte, pessoalmente, testemunhas visíveis da mesma Igreja e do seu Senhor, num mundo que, sob o pretexto de ser moderno, vai sempre mais adiante na “dessacralização”: que todas as pessoas possam ver no vosso comportamento, apresentação e modo de vestir, um sinal com que Deus as interpela.

7. Na hora atual, neste belo País, como noutros também, muitas são as solicitações para as Religiosas abraçarem atividades novas e lançarem experiências de novas inserções na vida e atividades da Igreja, ou mesmo em atividades temporais em setores diversificados.

Pode acontecer que se vejam negligenciadas as obras e atividades, às quais se dedicam tradicionalmente as vossas Famílias religiosas. Não quero silenciar uma coisa bem simples e que todas sabeis: essas obras e atividades precisam de ser oportunamente renovadas, para melhor corresponderem à realidade atual do Brasil. Nunca se há de esquecer, no entanto, que as escolas, os hospitais, os centros de assistência e muitas outras iniciativas de há multo existentes para o serviço dos irmãos, em particular dos mais pobres, ou para o desenvolvimento cultural e espiritual das populações, conservam toda a sua atualidade.

Mais: se devida e oportunamente renovadas, seguindo critérios sãos, tais obras e atividades continuam a demonstrar-se lugares privilegiados de evangelização, de testemunho da caridade autêntica e de promoção inumana. É óbvio que o fundamental critério prudencial a seguir nas adaptações a novas exigências é sempre o do Evangelho: à luz dos “sinais dos tempos”, focalizados na devida perspectiva, saber tirar “coisas novas e velhas” do rico tesouro de um passado feito de experiências.

8. Torna-se necessário, entretanto, abandonar algumas vezes obras ou atividades para poder dedicar-se a outras, inclusive de caráter mais pastoral; e para tal fim criam-se comunidades mais restritas, que precisam adotar novas formas de presença ao mundo dos homens. Conheço o esmero que pondes na busca e realização dessas novas formas de presença e só posso apreciar esse vosso empenho. Contudo, quereria recordar aqui convosco algumas das condições a observar sempre nessas novas experiências de vida religiosa.

a) Tais experiências devem ser conduzidas sempre num clima de oração. A alma que vive num habitual contacto-presença com Deus e se deixa permear pelo calor de Sua caridade, com facilidade saberá:

– fugir da tentação de particularismos e de oposições, que em si mesmas comportam o risco de levar a penosas divisões;

– interpretar, à luz do Evangelho, a opção pelos pobres e por todas as vítimas do egoísmo dos homens, sem ceder ao radicalismo sócio-político que, mais tarde ou mais cedo, se demonstra inoportuno, produz efeitos contrários aos desejados e gera novas formas de opressão;

– aproximar-se das pessoas e inserir-se no ambiente, sem pôr em questão a própria identidade religiosa, nem esconder ou disfarçar a originalidade específica da sua vocação: seguir Cristo pobre, casto e obediente.

b) Além do clima de oração em que hão de realizar-se, essas experiências de novas inserções têm de ser preparadas por um estudo sério, em colaboração íntima com os superiores responsáveis e em diálogo constante com os Bispos interessados. Assim se buscarão soluções acertadas, se há de proceder à preparação de planos e programas relacionados com as escolhas feitas e à atuação de iniciativas, “calculando” e “examinando” primeiro, como diz o Senhor, as possibilidades de êxito (cf. Lc 14,28ss); isso, sem temer os riscos, como nos ensinam as “parábolas do reino dos céus”(cf. Mt 13), e agindo sempre em conformidade com as exigências mais urgentes e segundo o caráter do Instituto.

c) Por fim, em todas estas novas fundações, importa agir sempre de acordo com as normas e as orientações dadas pela Hierarquia, avaliando objetiva e equitativamente as experiências realizadas e aplicando-se humilde e corajosamente, quando é o caso, em corrigir, suspender ou orientar de maneira mais conveniente as experiências que se estão fazendo.

9. Em tudo e sempre na vida religiosa, para um seguro discernimento, é necessário comportar-se como Filhas que amam a Igreja, seguindo os seus critérios e diretrizes, mediante uma adesão generosa e fiel ao Magistério autêntico. Aí se encontra a garantia de fecundidade da vida e da atividade na consagração. Aí se encontra uma condição indispensável para uma adequada interpretação dos “sinais dos tempos”. Vêm-me à mente, ao tocar este ponto, o que dizia o meu Predecessor Paulo VI: a Igreja universal deve estar presente em cada comunidade eclesial, que tem sempre necessidade de respiração universal para não morrer de asfixia espiritual: A prometida fidelidade a Cristo nunca pode ser separada da fidelidade à Igreja: “Quem vos ouve é a Mim que ouve” (Lc 10,16).

Neste ponto há um amplo campo de ação aberto às Superioras e Formadoras de Institutos e de Comunidade. Sua função as levará a procurar os meios melhores para promover aquilo que seguramente garante a união dos espíritos e dos corações. Nada disso se verificará sem rezar e agir para que todas as Religiosas encontrem na consagração a realização mais alta da sua condição de pessoa e de mulher, para que os Institutos e Comunidades superem eventuais dificuldades de crescimento ou de perseverança, e para que o ideai da vida consagrada exerça uma verdadeira atração sobre a juventude.

10. Uma palavra final às caríssimas religiosas que consagram a vida à contemplação e vivem no recolhimento e na clausura a sua vida religiosa. Vossa forma de vida, queridas filhas, vos coloca no coração do mistério da Igreja. Vossa vida pessoal tem centro no amor esponsal a Cristo. Por isso, modeladas pelo seu Espírito, deveis dar-Lhe todo o vosso ser, tornando vossos os Seus próprios sentimentos, os Seus projetos e a sua missão de caridade e de salvação. Ora, isto não se confina dentro das quatro paredes dos mosteiros, mas diz respeito à grande história dos homens, onde se constrói a justiça, onde se cria a comunhão e participação nos bens materiais e espirituais, onde se procura instaurar a civilização do amor, onde, enfim, há de chegar, com a boa nova do Evangelho, a salvação de Deus.

Por isso, a vossa vida contemplativa é absolutamente vital para a Igreja e para a humanidade, não obstante a incompreensão ou mesmo oposição que às vezes transparece no pensamento moderno, na opinião pública e, quem sabe, em certas franjas mal esclarecidas do cristianismo. Nesta certeza, vivei na alegria a radicalidade da vossa condição absolutamente original: o amor exclusivo do Senhor e, n’Ele, o amor de todos os vossos irmãos em humanidade. Aplicando vossa capacidade de amar na adoração e na prece, a vossa própria existência grita silenciosamente o primado de Deus, atesta a dimensão transcendente da pessoa inumana e leva os homens, as mulheres e os jovens a pensar e a interrogar-se sobre o sentido da vida.

Que os vossos mosteiros permaneçam lugares de paz e de interioridade, sem deixardes que pressões do exterior venham demolir as vossas sadias tradições e anular os vossos meios de cultivar e promover o recolhimento. E orai, orai muito pelos que também rezam, pelos que não podem rezar, pelos que não sabem rezar e pelos que não querem rezar. E tende confiança! Com esta palavra, o Papa deseja estimular a generosidade de todas as religiosas contemplativas do Brasil, seja qual for a sua Família espiritual.

11. Caríssimas Irmãs:

Trago no coração muitas outras coisas que gostaria de comunicar-vos, não fosse a falsa de tempo. Renovo, pois, a todas a minha estima e confiança. A todas faço votos, para “que a vossa caridade vá crescendo cada vez mais, em ciência perfeita e em inteligência, a fim de que o discernimento das coisas úteis vos torne puras e irrepreensíveis”(cf. Ph 1,9-10).

Uma tal “ciência perfeita” que de vós se espera, indicou-a o Espírito Santo nas palavras do Apóstolo: “não saber outra coisa, a não ser Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado”(1Co 2,2). Só Ele, Cristo, é princípio estável e centro permanente da missão que Deus vos confiou num mundo de contrastes: viver e testemunhar o Seu amor, mergulhando naquele mistério da economia divina que uniu a salvação e a graça com a Cruz (cf. Redemptor Hominis RH 11).

Ao abençoar-vos todas, de coração abençoo vossas Famílias religiosas, vossa vida de generosa imolação, confiando-vos a Maria Santíssima, Mãe da Igreja e modero de vossa vida consagrada.

Contai com as orações do Papa. Acompanhai-o também com as vossas orações, sobretudo nestes dias de sua peregrinação apostólica pelo vosso querido Brasil.



VIAGEM APOSTÓLICA DO SANTO PADRE AO BRASIL

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

DURANTE O ENCONTRO COM


OS TRABALHADORES EM SÃO PAULO


São Paulo, 3 de Julho de 1980



Caros irmãos e irmãs em Cristo

1. Sinto-me muito feliz e honrado por me achar entre vocês hoje em São Paulo. Fel iz por descobrir a cidade de vocês, esta imensa metrópole de incrível desenvolvimento industrial, na qual um incrível crescimento industrial caminha de mãos dadas com uma urbanização acelerada ao mesmo tempo fascinante e preocupante. Feliz principalmente porque descubro a cidade através das pessoas, através de vocês, homens e mulheres, que aqui trabalham, sofrem e esperam. Vocês chegaram aqui vindos de todos os cantos deste imenso país e do mundo inteiro. Vieram para ganhar a vida e para colaborar na grande obra comum, vital para toda a Nação: a construção de uma cidade digna do homem! Sim, porque São Paulo são vocês! São Paulo, não são antes de tudo estas realizações materiais, nem sempre orientadas por um sentido justo e pleno do homem e da sociedade e nem sempre capazes de organizar um ambiente onde se possa levar uma vida digna do homem. São Paulo são também os numerosíssimos marginalizados, os desempregados, os subempregados, os mal empregados, que não encontram onde empenhar os seus braços e onde desenvolver os generosos recursos de suas inteligências e de seus corações. São Paulo são vocês, aqui reunidos para celebrar sua dignidade de trabalhadores e manifestar a disposição de construir juntos uma cidade do tamanho de suas esperanças de homens. São Paulo, são vocês aqui reunidos para buscar no Evangelho de Jesus Cristo as luzes e as energias necessárias para realizar a tarefa que os espera: transformar São Paulo nume cidade plenamente inumana.

2. Sim, quem nos reúne aqui é Jesus Cristo, o Senhor do universo e da história. Em seu nome o Papa os visita hoje. Trabalhadores, meus irmãos e irmãs, dou graças a Deus por me ter concedido estar com vocês. E agradeço a vocês a alegria profunda que causa este encontro a este ministro de Jesus Cristo que nos anos da juventude, na sua Polónia natal, conheceu diretamente a condição de trabalhador manual com a grandeza e a dureza, as horas de alegria e os momentos de angústia, as realizações e as frustrações que essa condição comporta. Do fundo do coração lhes digo o que apóstolo São Paulo dizia aos Romanos: “Sinto um grande desejo de vê-los, para lhes comunicar algum dom espiritual, para os confortar, ou antes, para ser confortado por vocês e junto de vocês pela fé que nos é comum, a mim e a vocês” (Rm 1,11-12). Por isso, eu os convido, trabalhadores cristãos, meus irmãos e irmãs, a começar por celebrar na alegria a amizade que Jesus nos oferece, a todos e a cada um: A Fé, a Esperança e a Caridade com que Jesus anima os nossos corações quando nos reunimos em seu nome, na sua Igreja que Ele instituiu para acolher os seus dons e os distribuir a todos. A festa cristã da alegria não é um luxo reservado aos ricos. Todo o mundo está convidado a tomar parte. No ano passado, os marginalizados de uma outra grande metrópole, Nova Iorque, cantaram comigo o “aleluia” da ressurreição. E ainda há pouco, a imensa África, a África da pobreza, deu ao Papa e ao mundo o espectáculo de uma festa inesquecível. E esta festa vem da convicção de que nós somos amados por Deus e de que Deus está conosco. Deus nos visita! O Reino de Deus está entre nós! Eis a fonte inesgotável da nossa alegria: saber que Deus nos ama e nos reconhece, saber que estamos livres do pecado, que fomos elevados à dignidade insuperável de filhos de Deus, ricos de Fé, de Esperança e de Amor que o Espírito Santo derrama nos nossos corações. Festejemos portanto nosso Deus e nosso Pai, Jesus Cristo nosso Senhor e nosso Irmão, o Espírito Santo que nos reúne! A opção pelos mais pobres, na qual a Assembleia dos Bispos em Puebla quis comprometer a Igreja na América Latina, é essencialmente essa: que os pobres sejam evangelizados, que a Igreja desdobre de novo todas as suas energias para que Jesus Cristo seja anunciado a todos, principalmente aos pobres, e que todos tenham acesso a esta fonte viva, à mesa da palavra e do pão, aos sacramentos, à comunidade dos baptizados. Aí está o sentido desta nossa reunião de hoje, da nossa festa cristã. Sairemos daqui para a nossa tarefa de cidadãos e de trabalhadores com um novo entusiasmo; com uma consciência mais clara da nossa dignidade, dos nossos direitos, das nossas responsabilidades; com uma fé renovada nos recursos prodigiosos com que, criando-nos à sua imagem e semelhança, nos enriqueceu para podermos enfrentar os desafios do nosso tempo, os desafios desta metrópole que é São Paulo.

3. Falo-lhes em nome de Cristo, em nome da Igreja, da Igreja inteira. É Cristo que envia a sua Igreja a todos os homens e a todas as sociedades, com uma mensagem de salvação. Esta missão da Igreja realiza-se ao mesmo tempo em duas perspectivas: a perspectiva escatológica que considera o homem como um ser cuja destinação definitiva é Deus; e a perspectiva histórica que olha este mesmo homem em sua situação concreta, encarnado no mundo de hoje. Esta mensagem de salvação que a Igreja, em virtude de sua missão, fez chegar a cada homem e igualmente à família, aos diferentes âmbitos sociais, às nações e à humanidade inteira, é mensagem de amor e de fraternidade, mensagem de justiça e de solidariedade, em primeiro lugar para os mais necessitados.

Numa palavra: é uma mensagem de paz e de justa ordem social. Quero repetir aqui, diante de vocês, o que disse aos trabalhadores em Saint-Denis, bairro operário de outra grande cidade, Paris: A partir das palavras tão profundas do “Magnificat”, eu quis considerar com eles que, “o mundo querido por Deus é um mundo de justiça; que a ordem que deve reger as relações entre os homens se alicerça na justiça; que esta ordem deve ser continuamente implantada no mundo, sempre de novo, à medica que aumentam e se desenvolvem as situações e os sistemas sociais, à medica que surgem novas condições e possibilidades económicas, novas possibilidades da técnica e da produção, e ao mesmo tempo novas possibilidades e necessidades de distribuição dos bens”(João Paulo II, Homilia em “Saint-Denis” 5, 31 de maio de 1980)

A Igreja, quando proclama o Evangelho, procura também obter, sem por isso abandonar o seu papel específico de evangelização, que todos os aspectos da vida social, onde se manifesta a injustiça, sofram uma transformação para a justiça. O bem comum da sociedade requer, como exigência fundamental, que a sociedade seja justa! A persistência da injustiça, a falsa de justiça, ameaça a existência da sociedade de dentro para fora, da mesma maneira que, tudo quanto atenta contra a sua soberania ou procura impor-lhe ideologias e modelos, toda chantagem económica e política, toda força das armas pode ameaçá-la de fora para dentro.

Esta ameaça a partir do interior existe realmente quando, no domínio da distribuição dos bens, se confia unicamente nas leis económicas do crescimento e do maior lucro; quando os resultados do progresso tocam apenas marginalmente, ou não tocam em absoluto, as vastas camadas da população; ela existe também, enquanto persiste um ateísmo profundo entre uma minoria multo grande de ricos de um lado, e a maioria dos que vivem na necessidade e na miséria, de outro lado.

4. O bem comum da sociedade, que será sempre o novo nome da justiça, não pode ser obtido pela violência, pois a violência destrói o que pretende criar, seja quando procura manter os privilégios de alguns, seja quando tenta impor as transformações necessárias. As modificações exigidas pela ordem social justa devem ser realizadas por uma ação constante – muitas vezes graduai e progressiva, mas sempre eficaz – no caminho de reformas pacíficas.

É este o dever de todos. É este particularmente, o dever dos que detêm o poder na sociedade, quer se trate do poder económico quer se trate do poder político. Todo poder encontra a sua justificação unicamente no bem comum, na realização de uma ordem social justa. Por conseguinte, o poder não deverá nunca servir para proteger os interesses de um grupo em detrimento dos outros. A luta de classes, por sua vez, também não é caminho que leve à ordem social, porque ela traz em si o risco de inverter as situações dos contendentes, criando novas situações de injustiça.

Nada se constrói sobre uma base de desamor, e, menos ainda, de ódio que vise a destruição de outrem.

Repelir a luta de classes é também optar resolutamente por uma nobre luta a favor da justiça social. Os diversos centros do poder e os diferentes representantes da sociedade devem ser capazes de se unir, de coordenar os próprios esforços e de chegar a um acordo sobre programas claros e eficazes. Nisto consiste a fórmula cristã para criar uma sociedade justa! A sociedade inteira deve ser solidária com todos os homens e, em primeiro lugar, com o homem que tem mais necessidade de auxílio, o pobre. A opção pelos pobres é uma opção cristã; é também a opção da sociedade que se preocupa com o verdadeiro bem comum.

5. Escutemos o que o próprio Cristo nos diz a respeito disto, quando se dirige à multidão, vinca de toda a região e de além-fronteiras para vê-lo. Sentado no meio de seus discípulos, Jesus começou a sua instrução com estas palavras: “Bem-aventurados os que têm o espírito de pobre, porque deles é o reino dos céus” (Mt 5,3). Para além daqueles seus ouvintes, é também a nós, reunidos aqui em São Paulo, no Brasil, que Ele dirigia estas palavras. Vinte séculos não tiraram nada da importância premente, da gravidade e da esperança contidas nestas palavras do Senhor. “Bem-aventurados os que têm o espírito de pobre!”. Estas palavras são válidas para cada um de nós. Este convite grita dentro de cada um de nós. Adquirir o espírito de pobre: é isto o que Cristo pede a todos.

Aqueles que têm posses devem adquirir o espírito de pobre, devem abrir o próprio coração aos pobres, pois se não o fizerem as situações injustas não mudarão; poder-se-á mudar a estrutura política ou o sistema social, mas sem mudança no coração e na consciência, a ordem social justa e estável não será alcançada. Os que não têm posses, os que se encontram em necessidade devem também adquirir o “espírito de pobre”, não permitindo que a pobreza material lhes tire a própria dignidade inumana, porque esta dignidade é mais importante que todos os bens.

É neste contexto que a doutrina cristã sobre o homem, alimentada pelo Evangelho, pela Bíblia e por séculos de experiência, valoriza de modo singular o trabalho inumano. A dignidade do trabalho. A nobreza do trabalho. Vocês conhecem a dignidade e a nobreza do próprio trabalho, vocês que trabalham para viver, para viver melhor, para ganhar para suas famílias o pão de cada dia, vocês que se sentem feridos na sua afeição de pais e de mães ao verem filhos mal alimentados, vocês que ficam tão contentes e orgulhosos quando lhes podem oferecer uma mesa farsa, quando podem vesti-los bem, dar-lhes um lar decente e aconchegante, dar-lhes escola e educação em vista de um futuro melhor. O trabalho é um serviço, um serviço a suas famílias, e a toda a cidade, um serviço no qual o próprio homem cresce na medica em que se dá pelos outros. O trabalho é uma disciplina em que se fortalece a personalidade.

A primeira e fundamental aspiração de vocês é, portento, trabalhar. Quantos sofrimentos, quantas angústias e misérias não causa o desemprego! Por isso, a primeira e fundamental preocupação de todos e de cada um, homens de governo, políticos, dirigentes de sindicatos e donos de empresas deve ser essa: der trabalho a todos. Esperar a solução do problema crucial do emprego como um resultado mais ou menos automático de uma ordem e de um desenvolvimento económico, qualquer que sejam, nos quais o emprego aparece apenas como uma consequência secundária, não é realista, e portento não é admissível. Teoria e prática económicas devem ter a coragem de considerar o emprego e suas modernas possibilidades como um elemento centrai em seus objectivos.

6. É de justiça que as condições de trabalho sejam as mais dignas possível, que se aperfeiçoe a Previdência social de modo a permitir a todos, na base de uma crescente solidariedade, enfrentar os riscos, os apertos e os encargos sociais. Ajustar o salário, em suas modalidades diversas e complementares, até o ponto em que se possa dizer que o trabalhador participa real e equitativamente da riqueza para cuja criação ele contribui solidariamente na empresa, na profissão e na economia nacional, é uma exigência legítima. Sobre todos estes pontos a Igreja, principalmente a partir da primeira grande Encíclica Social, a Rerum Novarum, não parou de desenvolver um ensinamento multo rico. Convido a todos, trabalhadores e responsáveis políticos, profissionais e sindicais, a prestar renovada atenção a este ensinamento. Ninguém vai encontrar aí soluções já prontas, mas poderá encontrar esclarecimentos e estímulos para a própria reflexão e prática. A tarefa é delicada e este conjunto complexo de problemas, em que todos os factores – emprego, investimento, salário – reagem uns sobre os outros, não se há de regular nem pela demagogia, nem por sortilégios ideológicos, nem por um cientifismo frio e teórico que, ao contrário do verdadeiro espírito científico, deixasse para um futuro incerto a rectificação de seus pressupostos. Torno a afirmar aqui o que declarei a propósito do emprego: esperar que a solução dos problemas do salário, da previdência social e das condições de trabalho, brote de uma espécie de extensão automática de uma ordem económica não é realista, e por isso não é admissível. A economia só será viável se for inumana, para o homem e pelo homem.

7. Por isso mesmo é mesmo importante que todos os protagonistas da vida económica tenham a possibilidade efectiva de participar livre e activamente da elaboração e controle das decisões que lhes dizem respeito, em todos os níveis. Já o Papa Leão XIII, na Rerum Novarum, afirmou claramente o direito dos trabalhadores de se reunirem em associações livres, com a finalidade de fazerem ouvir a sua voz, de defenderem seus interesses e contribuírem de maneira responsável para o bem comum, cujas exigências e disciplina se impõem a todos no âmbito de leis e contratos sempre perfectíveis.

A Igreja proclama e sustenta estes diversos direitos dos trabalhadores, porque está em jogo o homem e sua dignidade. E o fez com profunda e ardente convicção tanto mais quanto, para ela, o homem que trabalha se fez cooperados de Deus. Feito à imagem de Deus, ele recebeu a missão de administrar o universo para desenvolver as suas riquezas e garantir-lhes uma destinação universal, para unir os homens no serviço mútuo e na criação comum de um sistema de vida digno e belo, para a glória do Criador.

Trabalhadores, não se esqueçam nunca da grande nobreza que, como homens e como cristãos, vocês devem imprimir ao seu trabalho, mesmo ao mais humilde e insignificante. Não se deixem, jamais, degradar pelo trabalho; antes procurem viver a fundo a sua verdadeira dignidade que a Palavra de Deus e o ensinamento da Igreja colocam em evidência. O trabalho, com efeito, fez de vocês, antes de tudo, colaboradores de Deus no prosseguir a obra de sua criação. Levem avente – com o suor da fronte, sim, mas sobretudo com o justo orgulho de serem criados à imagem do mesmo Deus – o dinamismo contido na ordem dada ao primeiro homem de povoar a terra e de dominá-la (cf. Gn 1,28). O trabalho associa vocês mais estreitamente à Redenção que Cristo realizou pela Cruz, quando os leva a aceitar tudo o que há de penoso, de cansativo, de mortificante, de crucificante na monotonia quotidiana; quando os leva ainda a unir seus sofrimentos aos sofrimentos do Salvador, para completar “o que falsa à Paixão de Cristo, em favor do seu Corpo que é a Igreja” (Col 1,24). Por isso, o trabalho os leva, enfim, a sentirem-se solidários com todos os seus irmãos – aqui no Brasil e em todo o mundo. Ele fez de vocês construtores da grande família inumana, mais ainda, de toda a Igreja, no vínculo da caridade, porque cada um é chamado a ajudar o outro (cf. Ga 6,2), na exigência sempre renovada de uma recíproca colaboração, e na ajuda interpessoal pela qual nós homens somos necessários uns aos outros, sem excluir ninguém.

É esta a concepção cristã do trabalho: parte da fé em Deus Criador e, mediante Cristo Redentor, chega à edificação da sociedade inumana, à solidariedade com o homem. Sem esta visão, qualquer esforço, mesmo o mais tenaz, é carente e caduco. Está fadado a desiludir, a falir. Construam sobre este fundamento. E se lhes disserem que, para defender as conquistas do trabalho, é preciso pôr de lado, talvez até cancelar esta visão cristã da existência, não acreditem. O homem, sem Deus e sem Cristo, constrói sobre areia. Trai a própria origem e nobreza. E, por fim, chega a prejudicar o homem, a ofender o irmão.

8. Vocês trabalham no ambiente de uma grande cidade, que continua crescendo rapidamente. Ela é um reflexo das incríveis possibilidades do género inumano, capaz de realizações admiráveis, mas capaz também, quando faltam a animação espiritual e a orientação moral, de triturar o homem.

Muitas vezes, uma lógica económica exclusivista, mais depravada ainda por um materialismo crasso, invadiu todos os campos da existência, comprometendo o ambiente, ameaçando as famílias e destruindo todo o respeito pela pessoa inumana. As fábricas lançam seus detritos, deformam e poluem o ambiente, tornam o ar irrespirável. Ondas de migrantes se amontoam em pardieiros indignos, onde muitos perdem a esperança e acabam na miséria. As crianças, os jovens, os adolescentes não encontram espaços vitais para desenvolver plenamente suas energias físicas e espirituais, multas vezes limitados os a ambientes malsãos ou espalhados pela rua, onde flui o trânsito entre os edifícios de cimento e o anonimato da multidão que se desgasta sem jamais se conhecer. Ao lado de bairros onde se vive com todos os confortos modernos, outros existem onde faltam as coisas mais elementares, e algumas periferias vão crescendo desordenadamente.

Muitas vezes o desenvolvimento se torna uma versão gigantesca da parábola do rico e do Lázaro.

A proximidade do luxo e da miséria acentua o sentimento de frustração dos desafortunados.

Impõe-se então uma pergunta fundamental: como transformar a cidade nume cidade verdadeiramente inumana, no seu ambiente natural as suas construções e nas suas instituições?

Uma condição essencial é a de der à economia um sentido e uma lógica humanas. Vale aqui o que eu disse a respeito do trabalho. É preciso libertar os diversos campos da existência do domínio de um economismo avassalador. É preciso pôr as exigências económicas no seu devido lugar e criar um tecido social multiforme, que impeça a massificação. Ninguém está dispensado de colaborar nessa tarefa. Todos podem fazer alguma coisa em si mesmos e ao redor de si. Não é verdade que os bairros mais desatendidos são muitas vezes o lugar onde a solidariedade suscita gestos de maior desprendimento e generosidade? Cristãos, em qualquer lugar onde estiverem, assumam a sua parte de responsabilidade neste imenso esforço pela reestruturação inumana da cidade. A fé fez disto um dever. Fé e experiência, juntas, darão a vocês luzes e energias para caminhar.

9. Os cristãos têm o direito e o dever de contribuir na medica de sua capacidade para a construção da sociedade. E o fazem através dos quadros associativos e institucionais que a sociedade livre elabora com a participação de todos. A Igreja como tal não pretende administrar a sociedade, nem ocupar o lugar dos legítimos órgãos de deliberação e de ação. Pretende apenas servir a todos aqueles que, em qualquer nível, assumem as responsabilidades do bem comum. Seu serviço é essencialmente de ordem ética e religiosa. Mas para garantir este serviço, de acordo com a sua missão, a Igreja exige com todo o direito um espaço de liberdade indispensável e procura manter a sua especificidade religiosa.

E assim, todas as comunidades de cristãos, tanto as comunidades de base, como as paroquiais, as diocesanas ou toda a comunidade nacional da Igreja, devem der a sua contribuição específica para a construção da sociedade justa. Todas as preocupações do homem devem ser tomadas em consideração, pois a evangelização, razão de ser de qualquer comunidade eclesial, não seria completa se não se levasse em conta as relações que existem entre a mensagem do evangelho e a vida pessoal e social do homem, entre o mandamento do amor ao próximo que sofre e passa necessidade e as situações concretas de injustiça a combater, e de justiça e de paz a instaurar.

Que deste nosso encontro de hoje, em torno da Jesus Cristo, vocês levem consigo a certeza de que a Igreja quer estar presente, com toda a sua mensagem evangélica, no coração da cidade, no coração das populações mais pobres da cidade, no coração de cada um de vocês. Vocês são amados por Deus, trabalhadores de São Paulo e do Brasil. E vocês devem amar a Deus. Este é o segredo da sua alegria, de uma alegria que, brotando dos seus corações, irradiará nos seus rostos e no rosto da cidade, como sinal de que é uma cidade humana.



Discursos João Paulo II 1980 - Rio de Janeiro, 2 de Julho de 1980