Discursos João Paulo II 1980 - Salvador, 6 de Julho de 1980

Queridos irmãos e irmãs!

1. A tradicional hospitalidade baiana de que sou objeto nesta hora, para meu gáudio e felicidade, não podia exprimir-se melhor do que na palavra eloquente e sincera de vosso Arcebispo, o caríssimo Cardeal Avelar Brandão Vilela. Agradecendo-lhe e à toda a Bahia quero expressar-lhes o meu “muito obrigado” pela acolhida que me reserva.

Pisando este solo, tenho viva consciência de um encontro marcado com as nascentes mais puras do Brasil. No litoral baiano desembarcaram os descobridores. Não muito longe daqui a voz, embargada de emoção, de Frei Henrique de Coimbra pronunciou, pela primeira vez na terra apenas descoberta, as palavras da consagração. Aqui foi criada a primeira Diocese brasileira. Esta cidade foi a primeira capital da Pátria, quando esta nasceu para a independência. Creio que posso dizer, sem desdouro para as outras regiões do País, que aqui tocamos com as mãos a brasilidade no que lhe é mais essencial.

Por todos estes títulos quero, nesta oportunidade, saudar cordialmente o povo desta cidade e de todo o Estado.

2. “Crescei na graça e no conhecimento de nosso Salvador” (2P 3,18), exortava o primeiro Papa, dando a Jesus – como faz frequentemente – este nome de Salvador, que foi dado à vossa cidade. Com estas mesmas palavras eu vos saúdo. E com palavras de São Paulo, faço votos e rezo para que “desponte a benignidade de nosso Deus Salvador e seu amor para com os homens” (cf. Tt 3,4). A benignidade do Salvador para os Pastores desta Arquidiocese e de todas as Dioceses sufragâneas. Para os fiéis destas várias Igrejas Particulares. Para os Governantes e responsáveis pelo bem-comum no Estado, nesta Capital e em todas as cidades. Para os que exercem responsabilidades. Para as famílias, sobretudo para as que padecem tribulação ou estão no luto. Para os jovens e crianças como para os anciãos. Para os doentes e os que são sós. A benignidade e a “caridade do Salvador” para todos vós e todos os vossos caros.

3. Seja-me permitida uma saudação particular ao Presbitério de cada uma das Dioceses locais, cuja imagem desejo ver nos Sacerdotes aqui presentes. Ministros de Cristo Sacerdote, chamados a agir “in persona Christi”, vivei também como se o próprio Cristo vivesse em vós. a única forma de serdes autênticos educadores na fé, pastores e guias para os fiéis que às vezes em altas vozes mas quase sempre numa súplica sem palavras, vos pedem orientação para a própria vida, luz para o seu caminho.

Uma saudação também para os seminaristas. Amai vossa vocação como o dom mais precioso que vos foi concedido. Cultivai-a com a oração e o fervor do espírito, preparando-vos com zelo, para o dia em que Cristo porá em vós o sinete da consagração sacerdotal.

4. Acolhei todos vós, filhos caríssimos, as saudações e votos do Papa com a afeição que ele neles coloca. E seja a Bênção Apostólica que de coração vos concedo, o penhor da graça divina que vos faça “viver sensata, justa e piedosamente, aguardando a nossa bendita esperança e a manifestação da glória do nosso grande Deus e Salvador” (Tt 2,12-13).



VIAGEM APOSTÓLICA DO SANTO PADRE AO BRASIL

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

ÀS AUTORIDADES E AO POVO


DE SALVADOR DA BAHIA


Baía de Todos os Santos, 6 de Julho de 1980



Caríssimos irmãos e irmãs,

1. Chegado a esta vossa cidade, que se debruça, magnífica, sobre a baía de Todos os Santos, é com imensa alegria que contemplo a vossa tão numerosa assembleia, reunida nesta praça.

Saúdo o vosso Cardeal Avelar Brandão Vilela, seu Arcebispo Coadjutor, o seu Bispo Auxiliar, os seus mais próximos colaboradores. Saúdo as Autoridades Estaduais e Municipais. Saúdo os sacerdotes, os religiosos e as religiosas aqui presentes. Saúdo esta multidão inteira na qual vejo filhos e irmãos muito caros. Procuro vossos rostos um por um, aperto vossas mãos e ofereço-vos um abraço. Na Igreja não somos massa amorfa e anónima. Não somos números impessoais e desconhecidos uns dos outros. Somos Povo de Deus. Somos amados, um por um, Pelo Pai, no Filho, por meio do Espírito Santo. Somos pessoas capazes de corresponder ao apelo do amor eterno deste Deus, que desde sempre nos conheceu e nos predestinou para sermos conformes à imagem do seu Filho; que nos chamou, nos justificou, e nos glorificou (cf. Rm 8,30);. Somos, por isso, irmãos, que nos amamos e formamos um só corpo.

Eu te saúdo, pois, Povo de Deus que estás em Salvador da Bahia. Saúdo esta Igreja, eternamente amada pelo Senhor, com as mesmas palavras de São Paulo, que a Liturgia fez próprias: “A graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Amor do Pai, a comunhão do Espírito Santo esteja com todos vós” (cf. 2Co 13,13).

2. Este encontro é dedicado aos “construtores da sociedade pluralista de hoje”, vindos aqui, a título especial, como sinal da realidade extraordinariamente rica de forças humanas, intelectuais e sociais, que o Brasil representa no mundo. Saúdo-vos, portanto, de modo particular, irmãos e irmãs, que fazeis da construção da sociedade, o vosso ideal, a vossa honra, o vosso labor quotidiano. Todo homem é construtor da sociedade em que vive. O Concílio Ecuménico do Vaticano II pôs em evidência esta verdade: “Compete aos leigos – disse o Concílio – assumir como tarefa própria, a instauração da ordem temporal, e nela agir directamente e de modo concreto, guiados pela luz do Evangelho e do pensamento da Igreja e movidos pela caridade cristã; como cidadãos, cooperar com os demais concidadãos, segundo a específica competência e sob a própria responsabilidade; procurar, antes de tudo e em todas as coisas, o Reino de Deus”(Apostolicam Actuositatem AA 7).

Vejo em todos vós os construtores do Brasil de hoje e de amanhã. Se o Brasil chegou ao limiar do século XXI como uma Nação cheia de promessas, foi graças ao esforço de grupos de indivíduos que, assumindo a diversidade inerente a esta terra imensa, procurando o próprio aperfeiçoamento e o bem-estar devidos a si mesmos, às famílias e aos seus concidadãos, contribuíram para a construção da própria comunidade, da sua Cidade e da Nação. De igual modo, sois chamados a edificar o futuro da vossa Pátria, um futuro de paz, de prosperidade e de concórdia, um futuro que somente será garantido quando todos os cidadãos, segundo as próprias responsabilidades e com uma única comum preocupação, souberem criar e manter relações sociais baseadas no respeito do bem comum, que põe no centro de tudo o Homem, criatura de Deus.

Ao realçar vigorosamente esta realidade, eu me dirijo a todos e a cada um de vós, aos presentes e aos distantes: trabalhadores e industriais, profissionais e estudantes, economistas e artistas, homens da ciência e da técnica, artesãos e jornalistas, políticos e camponeses, habitantes das grandes e pequenas cidades. Sois todos, de certo modo e em certa medida, os construtores da sociedade pluralista de hoje!

A própria expressão já diz quais são a complexidade e a riqueza do mundo moderno, no seu dinamismo, na sua vitalidade, na sua ascensão contínua para um nível mais alto. Felicidade a vós, homens e mulheres que construís o mundo de hoje e de amanhã!

3. Que rumo segue o mundo? Para onde vai? Não vos falo aqui como economista ou sociólogo, mas em força do mandato e missão de Pastor Universal daquela Igreja que o meu inesquecível predecessor Paulo VI definiu “perita em humanidade”.

Se o quadro grandioso, de força e capacidade criativa e construtiva do homem, que a sociedade moderna apresenta, suscita em nós espanto e admiração, não é menos espantoso o quadro da alienação a que a sociedade foi muitas vezes reduzida. Na minha primeira vinda ao vosso continente, senti a necessidade de dizer aos Bispos latino-americanos reunidos em Puebla: “Talvez uma das mais notáveis debilidades da civilização atual esteja numa inadequada visão do homem. A nossa è, sem dúvida, a época em que mais se tem escrito e falado sobre o homem, a época dos humanismos e do antropocentrismo. E no entanto, paradoxalmente. é também a época das profundas angústias do homem com respeito a sua própria identidade e destino, do rebaixamento do homem a níveis antes insuspeitados, época de valores humanos conculcados como jamais o foram antes” (João Paulo II, Discurso à III Conferência Geral do Episcopado da América Latina 9, 28 de Janeiro de 1979).

Não é necessário repetir, porque todos os conheceis bem, os danos que trouxe ao homem a auto-suficiência de uma cultura e de uma técnica fechadas ao transcendente, a redução do homem a mero instrumento de produção, vítima de ideologias preconcebidas ou da fria lógica das leis económicas, manobrado para fins utilitaristas e interesse de grupos, que ignoraram e ignoram o bem verdadeiro do homem.

A própria palavra “pluralismo” traz no seu seio um perigo. Numa sociedade que gosta de definir-se “pluralista” existe, de fato, uma diversidade de crenças, de ideologias, de ideias filosóficas. Reconhecer contudo, esta pluralidade não me exime – nem a nenhum cristão que adira ao Evangelho – de afirmar a base necessária, os princípios indiscutíveis que devem sustentar toda atividade orientada para a construção de uma sociedade que deve responder às exigências do homem, tanto a nível dos bens materiais quanto dos bens espirituais e religiosos, uma sociedade fundada sobre um sistema de valores que a defendam das manipulações do egoísmo individual ou coletivo.

4. Consciente da missão universal que me trouxe nestes dias para o meio de vós, tenho o dever de proclamar bem alto a Palavra de Deus: “Se o Senhor não constrói a casa, em vão trabalham os construtores (Ps 126,1)!”.

É a resposta que a Igreja deve dar, hoje sobretudo: não se edifica a sociedade sem Deus, sem a ajuda de Deus. Seria uma contradição. É Deus a garantia de uma sociedade à medida do homem: primeiro porque Ele imprimiu no íntimo do homem a suprema nobreza de sua imagem e semelhança (cf. Gn 1,26ss); depois, porque Jesus Cristo veio recompor esta imagem deturpada pelo pecado, e, como “Redentor do Homem”, o restituiu à dignidade irrenunciável da sua origem. As estruturas externas – Comunidades e Organismos internacionais, Estados, Cidades, atividades de cada homem – devem realçar esta realidade, dar lei o espaço necessário; de outro modo, elas ruem, ou se reduzem a uma fachada sem alma.

A Igreja, fundada por Cristo, indica ao homem de hoje o caminho a seguir para construir a cidade terrena, prelúdio – embora não isento de antinomias e contradições – da cidade celeste. A Igreja indica o modo de construir a sociedade em função do homem, no respeito ao homem. Sua tarefa é inserir em todos os campos da atividade humana o fermento do Evangelho. em Cristo que a Igreja é “perita em humanidade”.

Percorrendo a história da vossa pátria, não posso deixar de observar que a Igreja, cumprindo nos séculos passados a sua missão, contribuiu para fazer esta mesma história, para determinar os valores que constituem a herança cultural do povo brasileiro. A Igreja está de tal modo ligada ao vosso povo que, eliminá-la, seria mutilar o seu patrimônio sócio-cultural. Por isso ela deve continuar colaborando na construção da vossa sociedade, reconhecendo e alentando as aspirações de justiça e de paz que encontra nas pessoas e no povo, na sua sabedoria e nos seus esforços de promoção. Neste ponto a Igreja pretende respeitar as atribuições dos homens públicos. Não tem pretensão de intrometer-se na política, não aspira a participar na gestão dos assuntos temporais. A sua contribuição específica será a de fortalecer as bases espirituais e morais da sociedade, fazendo o possível para que toda e qualquer atividade no campo do bem-comum se processe em sintonia e coerência com as diretrizes e exigências de uma ética humana e cristã.

5. Esse serviço, tendo embora como objecto a realidade concreta, a tarefa concreta realizada em comum, é antes de tudo um serviço de formação das consciências: proclamar a lei moral e suas exigências, denunciar os erros e os atentados à lei moral, à dignidade do homem em que se baseia, esclarecer, convencer.

É o que observei no já citado discurso em Puebla: “Deve-se colocar particular cuidado na formação de uma consciência social em todos os níveis e em todos os setores. Quando aumentam as injustiças e cresce dolorosamente a distancia entre pobres e ricos, a Doutrina Social, de uma forma criativa e aberta aos amplos campos de presença da Igreja, deve ser precioso instrumento de formação e ação” (João Paulo II, Discurso à III Conferência Geral do Episcopado da América Latina 9, 28 de Janeiro de 1979).

Em sua doutrina social, a Igreja não propõe um modelo político ou econômico concreto, mas indica o caminho, apresenta princípios. E o faz em função de sua missão evangelizadora, em função da mensagem evangélica que tem como objectivo o homem em sua dimensão escatológica, mas também no contexto concreto de sua situação histórica, contemporânea. Ela o faz porque acredita na dignidade do homem, criado à imagem de Deus: dignidade que é intrínseca a cada homem, a cada mulher, a cada criança, seja qual for o lugar que ocupe na sociedade.

Todo homem tem o direito de esperar que a sociedade respeite sua dignidade humana e lhe permita manter uma vida de acordo com esta dignidade. No discurso que pronunciei perante a Organização dos Estados Americanos (OEA), no dia 7 de outubro do ano passado, propus o homem como o único critério que dá sentido e direção a todos os compromissos dos responsáveis pelo bem-comum, seja ele um simples cidadão, ou alguém investido de poder.

Propus como critério o homem concreto, com estas palavras: “Quando se fala do direito à vida, à integridade física e moral, à alimentação, à habitação, à educação, à saúde, ao trabalho, à participação responsável na vida da nação, fala-se da pessoa humana. É esta pessoa humana que se encontra frequentemente ameaçada e faminta, sem casa e sem trabalho decentes, sem acesso ao patrimônio cultural de seu povo ou da humanidade e sem voz para fazer ouvir suas angústias. É preciso dar uma vida nova à grande causa do desenvolvimento integral e devem fazê-lo exactamente aqueles que, de uma maneira ou de outra, já gozam destes bens; e que devem se pôr a serviço de todos aqueles – e são tão numerosos em vosso continente! – que estão privados destes mesmos bens em uma medida por vezes dramática”(João Paulo II, Discurso à Organização dos Estados Americanos (OEA) 5, 6 de outubro de 1979).

6. Colocar o homem no centro de toda atividade social, portanto, quer dizer sentir-se preocupado por tudo aquilo que é injustiça, porque ofende a sua dignidade. Adoptar o homem como critério quer dizer comprometer-se na transformação de toda situação e realidade injustas, para torná-las elementos de uma sociedade justa.

Esta foi a mensagem que dirigi às Autoridades deste Pais; esta a mensagem que apresentei aos trabalhadores de São Paulo. Esta é também a mensagem que vos apresento hoje, a vós construtores da sociedade que me ouvis aqui, em São Salvador da Bahia!

Toda sociedade, se não quiser ser destruída a partir de dentro, deve estabelecer uma ordem social justa. Este apelo não é uma justificação da luta de classes – pois a luta de classes é destinada à esterilidade e à destruição – mas é um apelo à luta nobre em prol da justiça social na sociedade inteira!

Vós todos, que vos chamais os construtores da sociedade, tendes nas mãos um certo poder, por causa de vossas posições, de vossas situações e de vossas atividades. Empregai-o a serviço da justiça social. Rejeitai o raciocínio inspirado pelo egoísmo coletivo de um grupo, de uma classe ou baseado na motivação do proveito material unilateral. Recusai a violência como meio de resolver os problemas da sociedade, pois a violência é contra a vida, é destruidora do homem. Vosso poder, seja ele político, econômico ou cultural, aplicai-o a serviço da solidariedade que abrange todo o homem, e, em primeiro lugar, aqueles que são os mais necessitados, e cujos direitos são mais frequentemente violados. Colocai-vos do lado dos pobres, coerentes com o ensinamento da Igreja, do lado de todos os que são, de alguma maneira, os mais desprovidos dos bens espirituais ou materiais, dos quais eles têm direito.

“Bem-aventurados os pobres em espírito” (Mt 5,3). Bem-aventurados os que na carência sabem salvaguardar sua dignidade humana; mas bem-aventurados também aqueles que não se deixam possuir por seus bens, que não permitem que o seu sentido de justiça social seja sufocado pelo apego às suas posses. Verdadeiramente bem-aventurados os pobres em espírito!

7. Propondo-vos esta mensagem de justiça e de amor, a Igreja é fiel à sua missão e tem a consciência de servir ao bem da sociedade. Ela não considera que seja tarefa sua entrar nas atividades políticas, mas ela sabe que está a serviço do bem da humanidade. A Igreja não combate o poder, mas proclama que é para o bem da sociedade e para a salvaguarda de sua soberania, que o poder é necessário; e só isso o justifica. A Igreja está convencida de que é seu direito e seu dever promover uma pastoral social, isto é, exercer uma influência, através dos meios que lhe são próprios, para que a vida da sociedade se torne mais justa, graças à ação conjunta, decidida mas sempre pacífica, de todos os cidadãos.

Dirijo-me portanto a todos aqueles que são, em algum setor da sociedade, construtores desta mesma sociedade e aos quais chega minha palavra – palavra de Igreja – aqui em Salvador ou em qualquer parte do Brasil.

A vós, principalmente, que tendes responsabilidades especiais por vossa posição e poder de cristãos.

A vós líderes e militantes políticos, quero recordar que o ato político por excelência é ser coerente com uma vocação moral e fiel a uma consciência ética que, para além dos interesses pessoais ou de grupos, visa a totalidade do bem comum de todos os cidadãos.

A vós, educadores, que tendes a função de explicitar, junto aos jovens e em diálogo com eles, os valores com os quais se tornarão por sua vez construtores da sociedade, peço que assenteis a vossa atividade sobre fundamentos sólidos e inculqueis nos jovens o senso da dignidade da pessoa humana.

A vós, empregadores, comerciantes e industriais, eu vos exorto a incluir nos vossos planos e projetos o homem em primeiro lugar, este homem que, por seu trabalho e pelo produto dos seus braços e da sua inteligência é construtor da sociedade, primeiro da própria família e depois, das comunidades mais amplas. Não vos esqueçais de que todo homem tem direito ao trabalho, não só no meio urbano e nas grandes concentrações industriais, mas também no meio rural.

A vós, homens de ciência, a vós, técnicos, tenho o dever de lembrar: a ética tem sempre a primazia sobre a técnica e o homem sobre as coisas.

A vós, trabalhadores, devo dizer: a construção da sociedade não é tarefa só daqueles que controlam a economia, a indústria ou a agricultura. também com o vosso suor que construís a sociedade, para os vossos filhos e para o futuro. Se tendes o direito de dizer a vossa palavra sobre a atividade econômica e industrial, tendes também o dever de orientá-la segundo as exigências de lei moral, que é justiça, dignidade e amor.

A vós, especialistas em comunicação, o meu pedido: não acorrenteis a alma das massas com o poder que tendes, filtrando as informações, promovendo exclusivamente a sociedade da abundância, acessível apenas a uma minoria. Fazei-vos antes os porta-vozes do homem, de suas legítimas exigências e de sua dignidade. Sede instrumentos de justiça, de verdade e de amor. Defender o que é humano é permitir ao homem o acesso à plena verdade.

8. Sim, irmãos e irmãs, construir a sociedade é antes de tudo tomar consciência, não no sentido exclusivo de tomar conhecimento dos resultados de uma certa análise da situação e dos males da sociedade, mas na plena acepção da palavra, isto é, formar a própria consciência segundo as exigências da lei de Deus, da mensagem de Cristo sobre o homem, da dimensão ética de toda empresa humana.

Construir a sociedade é comprometer-se, tomar o partido da consciência, dos princípios da justiça, da fraternidade, do amor, contra os intentos do egoísmo, que mata a solidariedade, e do ódio, que destrói.

Construir a sociedade é ultrapassar as fronteiras, as divisões, as oposições, para trabalhar juntos. O homem tem em si a abertura para o outro. E Cristo nos interpela de modo contundente: “Quem é o meu próximo?”. Nenhuma obra durável e verdadeiramente humana é possível se não é feita por todos, na colaboração de todas as forças vivas da sociedade, no intercâmbio entre todos os homens e mulheres sem distinção de posição social ou de situação econômica.

Construir a sociedade é, enfim, converter-se continuamente, rever as próprias atitudes, para detectar os preconceitos estéreis e descobrir os próprios erros, a fim de se abrir aos imperativos de uma consciência formada à luz da dignidade de cada pessoa humana, tal como foi revelada e confirmada por Jesus Cristo. abrir o coração e o espírito para que a justiça, o amor e o respeito à dignidade e aos destinos do homem penetrem no pensamento e inspirem a atuação.

9. Para a construção de um mundo à medida do homem, a Igreja, “perita em humanidade”, oferece a própria colaboração. Mas também solicita a vossa, plena, sincera, generosa, sem segundas intenções.

Depende de vós todos e de cada um que o futuro do Brasil seja um futuro de paz, que a sociedade brasileira seja uma convivência na justiça. Creio que é chegada a hora de todo homem e toda mulher deste imenso país tomar uma resolução e empenhar decididamente as riquezas do próprio talento e da própria consciência para dar à vida da nação uma base que há de garantir um desenvolvimento das realidades e estruturas sociais na justiça. Alguém que reflete sobre a realidade da América Latina, tal como se apresenta na hora atual, é levado a concordar com a afirmação de que a realização da justiça neste Continente está diante de um claro dilema: ou se faz através de reformas profundas e corajosas, segundo princípios que exprimem a supremacia da dignidade humana, ou se faz – mas sem resultado duradouro e sem benefício para o homem, disto estou convencido – pelas forças da violência. Cada um de vós deve sentir-se interpelado por este dilema. Cada um de vós deve fazer a sua escolha nesta hora histórica.

Irmãos e irmãs. Meus amigos! Não tenhais medo de olhar para a frente, de caminhar para a frente, rumo ao ano 2000! Um mundo novo deve surgir, em nome de Deus e do homem! Não recueis! A Igreja espera muito de vós. “Queres, junto comigo, construir o mundo, elevá-lo, torná-lo melhor e mais digno de ti e de teus irmãos, que são os meus irmãos?”. Não frustreis a expectativa de Cristo!

Não desiludais as esperanças do homem vosso contemporâneo!

Neste esforço imane, mas estupendo, sabei que o Papa está convosco, reza por vós, vos traz no coração e, em nome de Cristo, vos abençoa!



VIAGEM APOSTÓLICA DO SANTO PADRE AO BRASIL

ENCONTRO DO PAPA JOÃO PAULO II

COM OS LEPROSOS


Salvador da Bahia, 7 de Julho de 1980



Filhos e filhas caríssimos

1. A vossa presença desperta na minha alma um sentimento particular, algo daquela emoção e daquele afeto que Nosso Senhor Jesus Cristo experimentou, durante o ministério da vida pública, para com os doentes que de todas as partes acorriam para ouvir a sua palavra de Salvação e ser curados de suas enfermidades.

Entre tantos episódios de cura narrados pelos quatro Evangelistas, vos lembrareis decerto daquele que descreve São Lucas: o homem doente que de rosto em terra Lhe suplicava: “Senhor, se queres, podes limpar-me”. Jesus estende a mão, toca-o e lhe diz: “Quero; fica limpo”. E desaparecem todas as marcas da doença (Cf. Lc 5,12-13).

O humilde Vigário de Cristo está hoje no meio de vós com a mesma intensidade de afeto com que o Messias divino acolhia e abençoava as multidões e, de modo especial, as pessoas aflitas pela enfermidade que aflige a vós também.

2. Comentam muitos que a purificação externa do corpo era o símbolo de uma transformação interior: o renascer de uma pureza, de uma confiança, de uma coragem que vêm do Alto. O Papa gostaria que seu contacto convosco vos trouxesse estes inapreciáveis sentimentos interiores. Ele vos exorta a não vos deixardes abater nem pelo medo nem pela falta de confiança. A não cederdes à tentação do isolamento. A unirdes a confiança nos progressos da medicina a uma atitude de constante e confiante oração.

3. Em nome daquele mesmo Jesus, que eu hoje represento diante de vós, exorto-vos também a utilizardes bem e valorizardes o sofrimento que trazeis impresso no vosso corpo e no vosso espírito. Recordai-vos sempre de que a dor nunca é vã, nunca é inútil. Antes, precisamente no momento em que fere a vossa existência, limitando-a na sua afirmação humana, se é elevada a uma dimensão sobrenatural, ela pode ao mesmo tempo sublimar e resgatar essa existência para um destino superior que ultrapassa o limiar da situação pessoal para atingir a sociedade inteira, tão necessitada de quem saiba sofrer e oferecer-se pela sua redenção. Se aplicardes à vossa dor estas grandes intenções, que superam o nível puramente humano, colaborareis com Cristo no plano da salvação e sereis capazes de difundir ao redor de vós maravilhosos exemplos de força moral, que somente quem sofre com esta fé na alma pode comunicar aos outros.

4. Confio muito na vossa lembrança, no vosso auxílio e na vossa oração, não só pelo bom êxito desta viagem apostólica no Brasil, mas também por todas as solicitudes que trago no meu coração de Pastor da Igreja universal.

Com estes pensamentos, saudando-vos com benevolência e exprimindo meu alto apreço por aqueles que cuidam de vós e vos assistem, confio-vos à materna proteção da Santíssima Virgem, de quem sei que sois muito devotos, e concedo-vos de todo o coração a Bênção Apostólica.



VIAGEM APOSTÓLICA DO SANTO PADRE AO BRASIL

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

POR OCASIÃO DA VISITA


À FAVELA DE ALAGADOS EM SALVADOR


Salvador (Bahia), 7 de Julho de 1980



Caríssimos amigos, irmãos e irmãs em Cristo

1. Este encontro com vocês, me traz grande alegria; o calor da sua acolhida me impressiona e me comove. Saudando a todos, com afeto em Cristo Senhor, elevo a Deus um pensamento agradecido, por me ter permitido vir até aqui, visitar o lugar onde vivem e sobretudo ver vocês.

Quando viajo em minhas visitas pastorais, com a missão de representar Cristo diante de toda a Igreja esparsa pelo mundo, lembro-me sempre de que o mesmo Cristo exigiu de São Pedro e, por conseguinte, daqueles que viessem a ocupar o lugar dele, na “Igreja que preside à assembléia universal da caridade” (S. Inácio de Antioquia, Epistula ad Romanos, “Inscriptio”, 1,1-2, 2: Funk, 1, 213), uma profissão de amor. Amor a este Cristo, sem o qual é impossível apascentar bem os fiéis cristãos, que Ele chamava os “cordeiros” e as “ovelhas”. E o amor ao próximo, e em primeiro lugar aos irmãos na fé. Por este amor, todos saberão que somos seus discípulos (cf. Jn 13,35).

Em obediência a este mandamento, eu faço o possível por encontrar-me com todos: ricos e pobres, os que vivem com comodidade, ao menos relativa, e os que têm grandes dificuldades para viver. A todos quero falar e testemunhar o amor de Nosso Senhor Jesus Cristo, para que creiam n’Ele e possam chegar à Salvação.

Mas os menos favorecidos de bens da terra, porque têm mais necessidade de ajuda e conforto, ocupam sempre um lugar especial nesta preocupação de ser fiel e continuar a missão de Cristo: “anunciar aos pobres a Boa Nova” da salvação de Deus (cf. Lc 4,18).

Considero como dito a vocês tudo aquilo que dizia ao visitar a favela do Vidigal no Rio de Janeiro. Eu me sinto interpelado, como a Igreja se sente interpelada, pela proclamação das bem-aventuranças por parte do Cristo Senhor e me sinto comprometido para fazer algo, para que os homens todos sejam interpelados por tal proclamação, mobilizados para a grande tarefa de promoção de maior justiça, a construção de uma sociedade sempre mais justa, por isso mesmo mais humana. A justiça, porém, novo nome do bem comum, como já tive ocasião de dizer, só se consolidará sobre a base da conversão das mentes e das vontades: fazer que cada homem tenha coração de pobre: “Bem-aventurados os pobres de espírito” (Mt 5,3).

2. Assim estou aqui porque quero ser fiel ao espírito de Cristo e porque amo a vocês, como são e como se apresentam. Todos são pessoas humanas e meus irmãos em Nosso Senhor Jesus Cristo.

Pensei em tantos bairros pobres de Salvador e de todo o Brasil, que gostariam de receber a visita do Papa. O Papa teria um prazer especial em fazer esta visita a cada casa ou barraco onde vivem famílias ou pessoas humildes, às vezes em dura pobreza. Não sendo possível fazê-lo, quero que a visita que agora lhes faço seja também um símbolo, como se entrando aqui eu estivesse penetrando em todos os bairros iguais a este.

Dizia que aproximando-me de vocês eu encontro pessoas humanas: seres que possuem uma inteligência sedenta da verdade e uma vontade que deseja o amor, filhos de Deus, almas redimidas por Cristo, e portanto seres ricos de uma dignidade que ninguém pode machucar sem ferir o próprio Deus. Assim, vocês apreciam, certamente, quem lhes dá conforto, alento, coragem e esperança; quem os ajuda a crescer e desenvolver-se em sua capacidade de pessoas humanas e a superar os obstáculos à própria promoção; quem os ajuda a amar em um mundo de ódio e a ser solidários em um mundo terrivelmente egoísta. Mas é claro que vocês têm consciência de não serem somente objeto de benemerências mas pessoas ativas na construção do próprio destino e da própria vida. Queira Deus que sejamos muitos a oferecer a vocês uma colaboração desinteressada para que se libertem de tudo quanto de certo modo os escraviza, mas em pleno respeito àquilo que vocês são, em pleno respeito ao seu direito de serem os primeiros autores da própria promoção humana. Minha maior alegria, foi a de saber de várias fontes, que há em vocês, entre outras, duas grandes qualidades: vocês têm, graças a Deus, o sentido de família, e vocês possuem um grande senso de solidariedade para se ajudarem uns aos outros, quando é preciso.

Continuem a cultivar esses bons sentimentos, a ser muito amigos de todos, mesmo daqueles que, por qualquer motivo, parece lhes fecham o coração. Vocês sejam corações sempre abertos!

3. Vejam: só o amor conta – não é demais repetir isso – só o amor constrói. Vocês têm de lutar pela vida, fazerem tudo para melhorar as próprias condições em que vivem, é um dever sagrado, porque essa é também a vontade de Deus. Não digam que é vontade de Deus que vocês fiquem numa situação de pobreza, doença, má habitação que contraria, muitas vezes, a sua dignidade de pessoas humanas. Não digam: “É Deus quem quer”. Sei que isso não depende só de vocês. Não ignoro que muita coisa deverá ser feita por outros para acabar com as más condições que afligem vocês ou para melhorá-las. Mas vocês é que têm de ser sempre os primeiros no tornar melhor a própria vida em todos os aspectos. Desejar superar as más condições, dar as mãos uns aos outros para juntos buscar melhores dias, não esperar tudo de fora mas começar a fazer todo o possível, procurar instruir-se para ter mais possibilidades de melhoria: estes são alguns passos importantes na caminhada de vocês.

Assim, deste lugar e neste momento, em nome de vocês como seu irmão em humanidade, só com o poder do amor e a força do Evangelho de Jesus Cristo, eu peço a todos aqueles que podem ou devem ajudar que deixem entrar no próprio coração o eco das angústias dos corações de vocês, vendo faltar o alimento, a roupa, a casa, a instrução, o trabalho, os remédios, enfim tudo aquilo que é necessário para alguém viver como pessoa humana. E que esse meu clamor suscite um diálogo, mesmo que seja silencioso, um diálogo de amor, que se exprime com atos de ajuda e de partilha entre irmãos. Deus, Pai de nós todos, verá com agrado e abençoará tal bondade, como Jesus prometeu: “Dai, e vos será dado” (Lc 6,38).

Com este apelo às consciências, desejo encorajar o desejo de vocês, que é também o meu, de melhorarem seu nível de vida, para sempre se tornarem: mais homens, com toda a sua dignidade; mais irmãos de todos os homens, na família humana; e mais filhos de Deus, sabendo e praticando o que isso quer dizer. E com grande afeto, abençoo a todos vocês, às suas famílias e a todos aqui dos Alagados, bem como a todos os presentes. O Papa reza por todos; rezem também por ele, principalmente nestes dias em que está no Brasil.



Discursos João Paulo II 1980 - Salvador, 6 de Julho de 1980