Discursos João Paulo II 1980 - 28 de Agosto de 1980

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS BISPOS INDIANOS DO RITO MALABAR


E DO RITO MALANCAR EM VISITA


«AD LIMINA APOSTOLORUM»


Sexta-feira, 29 de Agosto de 1980



Veneráveis e caros Irmãos em Nosso Senhor Jesus Cristo

1. Estou-vos muito agradecido pela visita de hoje; é verdadeiramente com grande alegria que dirijo a minha afectuosa saudação a todos vós que, juntamente com o Cardeal Joseph Parecattil, Arcebispo de Ernakulam e Presidente da Pontifícia Comissão para a Revisão do Código de Direito Canónico Oriental, viestes de várias partes da Índia para esta visita ad limina e para o nosso encontro colegial.

Em vós sinto eu aqui a presença de toda a Igreja Siro-Malabar, esta Igreja Oriental e autenticamente Indiana que durante séculos foi uma maravilha de testemunho cristão na fidelidade à sua fé primitiva e às suas tradições legitimas. E por isso a minha saudação vai hoje para a vossa Igreja inteira: para os sacerdotes, os religiosos e as religiosas, os membros dos Institutos seculares, os jovens, as pessoas idosas, os pais e mães de família, os trabalhadores, as crianças e todos os fiéis, especialmente os doentes e aflitos.

A minha saudação e bons votos vão também para os fiéis e Pastores das outras Igrejas que vivem ao lado de vós nas diferentes partes do Kerala e no resto da Índia, como também para os irmãos das comunidades cristãs que não se encontram ainda em perfeita comunhão connosco. Vão igualmente para todos os membros das religiões não cristãs.

3. Nesta visita colegial, desejo expressar oficialmente a minha gratidão pelos cuidados relatórios que pusestes à minha disposição e à disposição dos meus colaboradores na Sé Apostólica, para maior conhecimento das vossas Eparquias, abundantes em clero e religiosos. Estas Eparquias estão ricas de actividade pastoral e missionária; as suas actividades manifestam-se também no campo da cultura por meio de colégios e escolas, no campo da assistência caritativa e social por meio de hospitais e dispensários, e onde quer que há necessidade de trabalhar pelo progresso humano, social e espiritual; das vossas comunidades ou de qual quer pessoa sem distinção de fé, raça ou rito. Notei a vossa actividade, cheia de dedicação e amor para com todos. É honra e dever para toda a Igreja católica, e tal é também a tarefa da vossa Igreja. Sempre assim foi, e hoje especialmente esta actividade brilha com novo lustre. Tenho o gosto de prestar testemunho ao vosso zelo.

4. Esta perspectiva de abertura para toda a gente, sem qualquer distinção, é estímulo para o meu próprio serviço apostólico, que é descrito por Lumen Gentium com estas palavras: "Preside à universal assembleia da caridade, protege as legítimas diversidades e vigia por que as particularidades ajudem a unidade e de forma alguma a prejudiquem" (n. 13).

Desejei este encontro convosco e quero agradecer-vos a louvável responsabilidade com que aceitastes o convite da Sagrada Congregação para participar num encontro de estudo sobre a reforma da Sagrada Liturgia da vossa própria Igreja. E encontro de que parece justo esperar o mais feliz dos resultados no respeitante a uma clara disciplina litúrgica e a uma renovação litúrgica segundo as directrizes e o espírito do Concílio Vaticano II. Deveis estar certos que o Sucessor de Pedro, em cada ocasião como neste encontro fraterno, tem só um desejo e propósito, o de ser o que o Concílio chamou "perpétuo e visível fundamento da unidade, não só dos Bispos mas também da multidão dos fiéis" (Lumen Gentium LG 23).

5. Que pretende fundamentalmente este encontro, da nossa e vossa reunião colegial com a competente Congregação da Santa Sé, senão a realização da perfeita comunhão no vínculo da paz? A Liturgia manifesta e efectua a unidade de uma maneira de todo especial. "As acções litúrgicas não são acções privadas, mas celebrações da Igreja, que é "sacramento de unidade", isto é, Povo santo reunido e ordenado sob a direcção dos Bispos. Por isto, tais acções pertencem a todo o Corpo da Igreja, manifestam-no e influem nele" (Sacrosanctum Concilium SC 26).

Além de dar a conhecer com tal vigor este conceito teológico fundamental, o Concílio chama a atenção para outros princípios da maior importância: a Igreja quer respeitar e promover de maneira especial "as qualidades e dotes de espírito das várias raças e povos. A Igreja considera com benevolência tudo o que nesses costumes não está indissoluvelmente ligado a superstições e erros, e, quando é possível, mantém-no inalterável, por vezes chega a aceitá-lo na Liturgia, se se harmoniza como verdadeiro e autêntico espírito litúrgico" (ibid., 37). Além disso, Lumen Gentium declara: "Por divina Providência, sucedeu que várias Igrejas, instituídas em diversos lugares pelos Apóstolos e seus sucessores, se juntam, no decorrer do tempo, em vários grupos organicamente unidos, os quais, salvas a unidade da fé e a única constituição divina da Igreja universal, têm leis próprias, rito litúrgico próprio, e património teológico e espiritual próprio... Esta variedade de Igrejas locais a convergir para a unidade, manifesta mais claramente a catolicidade da indivisa Igreja" (n. 23).

Mas, ao mesmo tempo, o Concílio deseja que estas Igrejas sejam fiéis às suas tradições: "Esta é a intenção da Igreja católica: que permaneçam salvas e íntegras as tradições de cada Igreja particular ou rito. E ela mesma quer igualmente adaptar a sua forma de vida às várias necessidades dos tempos e lugares" (Orientalium Eaclesiarum, 2). Este mesmo Decreto declara também: "Saibam e tenham por certo todos os Orientais que sempre podem e devem observar os seus legítimos ritos litúrgicos e sua disciplina; que não serão introduzidas modificações a não ser em razão de um progresso próprio e orgânico" (ibid., 6).

Para conseguirem o seu objectivo é necessário aplicarem rigorosa e severamente as directrizes conciliares com fidelidade às tradições de cada rito em particular: "Tudo isto deve ser observado pelos próprios Orientais com a maior fidelidade. E de tudo isto devem eles adquirir um conhecimento cada vez maior e uma prática cada vez mais perfeita. E se indevidamente os abandonaram em vista das circunstâncias de tempos ou pessoas, procurem regressar às tradições atávicas" (ibid., 6). Dificuldades não faltarão no regresso às fontes genuínas de cada rito. Trata-se, não obstante, de dificuldades que devem ser encaradas com união de forças e com a ajuda de Deus.

A renovação litúrgica é, por este motivo, o elemento fundamental para a vida sempre frutuosa da vossa Igreja: renovação fundada na fidelidade às vossas próprias tradições eclesiásticas genuínas e aberta às necessidades do vosso povo, à vossa cultura e a possíveis mudanças de vidas ao vosso próprio desenvolvimento orgânico. Sereis utilmente guiados pelos princípios fundamentais que estão expostos na carta Dominicae Cenae, que vos auxiliarão para não errar numa matéria tão importante e delicada.

6. Depois desta reflexão sobre a Liturgia, tenho o gosto de falar a respeito do Memorandum que desejastes tornar-me conhecido por meio da Sagrada Congregação para as Igrejas Orientais. O conteúdo deste documento, apesar da brevidade nele imposta por motivo das circunstâncias, convida-me a reflectir sobre a história da vossa gloriosa Igreja, que no mundo livre é a Igreja Oriental mais numerosa e florescente, a única com grandíssimo número de sacerdotes, religiosos e religiosas, seminaristas e leigos.

Como podemos nós deixar de encarecer com alegria e verdadeira satisfação o contributo da vossa Igreja para a causa das missões, não só na Índia mas ainda em toda a parte, para a promoção do sacerdócio e das vocações religiosas, para as actividades de ensino e de assistência caridosa, etc.? Não se trata de subestimar os muitos factores humanos que têm a sua própria influência nestes fenómenos, mas antes de notar quanto tais factores são também devidos à fé cristã das vossas famílias siro-malabares, que estão sempre prontas para dar os filhos à causa da Igreja universal mesmo além dos limites da vossa Igreja particular. Desejo exprimir os meus sinceros agradecimentos a vós, Bispos, aos vossos sacerdotes, aos religiosos, aos membros dos Institutos seculares, aos seminaristas e às famílias generosas, por aquilo que tendes feito e continuais a fazer pela Igreja universal. Aquilo que por um lado os missionários da Europa e da América fizeram e estão ainda fazendo para auxílio dos Orientais, isso fizeste-lo e continuais a fazê-lo vós para auxílio da Igreja Latina. Agradeço-vo-lo sinceramente. Tudo isto está em perfeita harmonia com o espírito do Concílio que deseja que as Igrejas particulares sintam nos próprios corações a responsabilidade pelas outras Igrejas e pela Igreja universal.

7. Depois de um olhar para a vossa Igreja, o meu pensamento volta-se para os desejos que vós apresentastes. A importância do que vós destes a conhecer, tanto como as exigências canónicas, eclesiológicas, pastorais, doutrinais e práticas disso derivadas, explicam porque não é possível nesta ocasião dar imediata e completa resposta àquilo que propusestes.

Quando há uma questão de matérias, que dizem respeito a toda a Igreja e à criação de estruturas supra-episcopais em que estão envolvidos os interesses de diferentes Bispos e de Igrejas particulares, a Santa Sé adopta procedimentos sérios e ponderados, que estão sancionados pela prática de muitos séculos. Desejo assegurar-vos que me sinto muito feliz ao ver que vos estais esforçando por afirmar e aprofundar a vossa identidade como Igreja Oriental particular. Tenho o prazer de citar aqui o pensamento do meu grande predecessor Paulo VI no discurso de encerramento do Sínodo dos Bispos de 1974: "E do mesmo modo desejamos que se evite cuidadosamente que a profunda investigação deste aspecto essencial das coisas, que dizem respeito à Igreja, de algum modo prejudique a firmeza da 'comunhão' com as outras Igrejas particulares e com o sucessor de Pedro, a quem entregou Cristo Senhor o cargo grave, perene e repleto de amor, de apascentar os cordeiros e as ovelhas (Jn 21,13-17) e de fortalecer os irmãos (Lc 22,32) para ser fundamento e sinal da unidade da Igreja" (26 de Outubro, AAS 66, p. 636).

Com referência a algumas frases do vosso Memorandum, gostaria de recordar-vos um aspecto do ensino colegial do Concílio Vaticano II: "O Romano Pontífice, em virtude do seu cargo de vigário de Cristo e pastor de toda a Igreja, tem nela pleno, supremo e universal poder que pode sempre exercer livremente" (Lumen Gentium LG 22). Por ocasião do supra-mencionado Sínodo, Paulo VI acrescentou: "há sobretudo um propósito, pelo qual todos — devido ao cargo recebido por cada um e fielmente desempenhado — correspondam à vontade de Deus, impelidos pelo maior amor" (ibid.). Desejo todavia assegurar-vos que tudo será feito quanto seja compatível com o bem da Igreja universal e com a gradualidade necessária.

Na mesma ordem de ideias, há também o problema da assistência aos vossos fiéis fora das vossas Eparquias. Por um lado, o meu inolvidável predecessor João Paulo I, no seu breve pontificado, teve a oportunidade e alegria de poder nomear o Arcebispo Antony Padiyara Visitador Apostólico para os fiéis malabares, que vivem em várias regiões da índia fora dos territórios da jurisdição oriental. O Arcebispo esforçou-se com exemplar solicitude por desempenhar o cargo a ele confiado, e eu desejo exprimir-lhe a minha gratidão diante de vós.

Envolvidos também, por outro lado, nesta questão, encontram-se o Representante Papal na Índia e os Ordinários Latinos dos lugares onde estes fiéis malabares estão vivendo. Posso assegurar-vos que serão tornados acessíveis a estes fiéis todos os auxílios que as leis da Igreja prevêem, especialmente as prescrições, que vós mesmos citastes, do Decreto Christus Dominus. Bem sabido é como, depois do Concílio, a Igreja quis rever a Constituição Apostólica Exsul Familia, e o meu predecessor Paulo VI em Pastoralis Migratorum Cura não omitiu nenhum esforço para colocar todas as ajudas espirituais à disposição dos emigrantes. O comum interesse dos Bispos dos locais de origem dos emigrantes, e dos Bispos das novas residências deles, requer harmonia de relações e espírito de fraternal colaboração. É o meu mais sério desejo, e a minha convicção, que as Conferências Episcopais quer da Índia, quer regionais, encontrem maneira de desenvolver o modo justo de prover a esta necessidade.

Neste esforço para ajudar os fiéis mais necessitadas, quer espiritual quer materialmente, os Bispos do Malabar encontrarão na Santa Sé sincera ajuda e força animadora, que, numa perspectiva eclesial que abarca, as necessidades das Igrejas particulares e o bem comum de toda a Igreja, procura criar um clima de conhecimento mútuo e de estima entre todo o povo, especialmente entre os fiéis de diferentes raças, nações e ritos.

Desejaria acrescentar ainda uma palavra a respeito das vossas Eparquias. Não estou só a pensar na vossa Igreja em função de números, estatísticas e actividades proeminentes de cada uma das vossas Eparquias, mas estou a contemplar a rica vida espiritual que existe nelas.

Estou a pensar nos vossos sacerdotes, tão numerosos e generosos. Estou a pensar nos vossos religiosos que são membros de Institutos Orientais, como ainda de Ordens e Congregações de origem latina, os quais são dóceis ao chamamento de Cristo e se encontram na vanguarda da vida da Igreja. Estou a pensar no grande número de religiosas de vida contemplativa e activa, cuja oblação consagrada reflecte a de Maria Santíssima, e se torna a base para um serviço interno que reflecte o maternal cuidado de toda a Igreja, especialmente em favor dos pequenos, dos fracas, dos pobres e dos que sofrem.

Estou a pensar nos jovens e particularmente nos seminaristas: cada um de vós tem um seminário menor para candidatos ao sacerdócio, e há dois seminários maiores — o Pontifício Seminário de Alwaye e o Seminário Apostólico de Kottayem — além do Escolasticado dos Carmelitas de Maria Imaculada, com duas faculdades teológicas, e de um terceiro já projectado. A este propósito é digna de ser atendida a seguinte exortação: "A formação de futuros sacerdotes deveria considerar-se como um dos mais importantes ministérios numa diocese e, nalguns respeitos, o mais exigente. De facto, o trabalho de ensinar une o professor muito intimamente ao trabalho de Nosso Senhor e Mestre, que preparou os Seus Apóstolos para serem testemunhas do Evangelho e dispensadores dos mistérios de Deus" (Sagrada Congregação para a Educação Católica. "A formação teológica dos futuros Sacerdotes", IV, 1, 3).

Concluindo, apresento à vossa reflexão um desejo profundo do meu coração: Vós estais aqui unidos com Pedro "movidos pela caridade fraterna e pelo zelo da missão universal confiada aos Apóstolos" (Christus Dominus CD 36). É ocasião propícia para recordar o tema supremo da unidade: união fraterna entre os Bispos; união entre os diferente ritos; união entre o Bispo e os sacerdotes, entre o Bispo e os Religiosos, entre o Bispo, os sacerdotes e os leigos; entre os pobres e os ricos. A unidade, que nestes dias de graça procurastes nos campos litúrgico e pastoral, deve ser o primeiro fruto desta experiência particular de harmonia e colaboração.

Os meus pensamentos vão para os Bispos dos outros ritos que trabalham no mesmo território e devem ser não somente irmãos coexistentes convosco, mas que vivam ao vosso lado em profunda comunhão eclesiástica convosco e com toda a Igreja. Os meus pensamentos vão também para os vários grupos e comunidades de irmãos separados que olham, sinceramente admirados, para a vossa ligação com o Sucessor de Pedro.

A minha última palavra é de esperança e oração para Maria Mãe da Igreja. Proteja-vos, ela sempre, e mediante a sua intercessão continuem as vossas Eparquias a ter grande florescimento de vocações e grande santidade de vida. E torne-nos ela capazes todos nós de fixar o nosso olhar constantemente no seu Filho, Jesus Cristo, Sumo Sacerdote e Pastor supremo da Igreja de Deus.

E agora uma palavra aos Bispos Malancares que estão associados de modo fraterno com o grupo de Prelados Malabares.

Desejo fazer chegar uma saudação especialíssima a vós, uma vez que este ano é o aniversário de um extraordinário acontecimento na vossa Igreja. Estais celebrando as Bodas de Ouro desse movimento espiritual de que o falecido e estimado Mar Ivaníos foi pioneiro, movimento que trouxe à plena comunhão com Roma ele próprio, outros Prelados e as comunidade que ele fundou: os Irmãos da Imitação de Cristo e as Irmãs de Betánia Como sinal da minha própria participação nestas Bodas de Ouro, tenho o gosto de anunciar a minha decisão de enviar como meu Representante e como portador da minha mensagem o, Cardeal Wladislaw Rubin, Prefeito da Sagrada Congregação para as Igrejas Orientais, que se tornará presente nas solenes celebrações que estão marcadas de 26 a 28 de Dezembro próximo.

Prometo-vos -as minhas orações, a minha bênção e o meu fraternal afecto em Jesus Cristo Nosso Senhor.



VISITA PASTORAL DO SANTO PADRE À REGIÃO DOS ABRUZOS

ENCONTRO COM OS TRABALHADORES

JUNTO AO TÚNEL DO GRAN SASSO


DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


Sábado, 30 de Agosto de 1980



Caríssimos Irmãos da Terra dos Abruzos e do Molise

1. Há um ano — era exactamente a 26 de Agosto—, no aniversário da elevação ao pontificado do meu amado predecessor João Paulo I, quis subir a Canale d'Agordo no cimo da Marmolada, no candor majestoso do panorama alpino, para rezar a Maria Santíssima juntamente com os corajosos escaladores que lá em cima me tinham precedido. Hoje estou igualmente alegre de encontrar-me convosco neste lugar não menos sugestivo, aos pés do Gran Sasso de Itália, no coração daqueles Apeninos que formam — segundo a conhecida imagem — a espinha dorsal da península italiana inteira.

Nem são muito diferentes, neste momento, os sentimentos e os pensamentos que me sobem aos lábios partindo do coração, ao mesmo tempo que, na beleza e pureza do grandioso espectáculo, torno a pensar como fiz entre a gente do Véneto na especial fisonomia da vossa gente, laboriosa e tenaz. Oh, bem sei que vós sois filhos dos Abruzos e do Molise. Refiro-me à vossa têmpera, à vossa probidade, à solidez perdurante no meio de vós da instituição familiar, e refiro-me ao apego ao costume ancestral que inconfundivelmente delineia a vossa vida religiosa e civil. Por isso, quis o meu primeiro encontro convosco, precisamente aqui, junto do maciço mantanhês e na embocadura deste túnel auto-estradal, que foi recentemente aberto no seu interior. E agradeço às Autoridades e às pessoas que se fizeram aqui intérpretes dos sentimentos comuns nesta hora: o Senhor Ministro das Obras Públicas em representação do Governo Italiano, o Presidente da Junta regional, o Presidente da Sociedade que levou à frente o extraordinário empreendimento do túnel, um representante dos mineiros e um dos agricultores e criadores de gado. É-me em seguida agradável apresentar uma especial saudação ao Senhor Presidente da Conferência episcopal regional, e ao Arcebispo de Aquila.

2. Caríssimos, só com nomear o Gran Sasso entendia-se outrora — mas já não se entende hoje — urna cadeia que "dividia" a vossa nobre Região, segundo a clássica partição topográfica e administrativa de Abruzo citerior e de Abruzo ulterior. Graças ao trabalho humano, que precisamente aqui por não poucos anos se desenvolveu e "triunfou" das mais árduas dificuldades de origem geológica e técnica, agora a velha "divisão" pode considerar-se superada; e não só no sentido de poder em breve haver ligações estradais cada vez mais fáceis e rápidas, mas no sentido bastante importante e, do ponto de vista étnico e ético, bem mais significativo, de um ulterior processo no conhecimento, nas permutas, e nas relações recíprocas de colaboração entre as populações desta e das Regiões adjacentes.

Amigos e irmãos que me escutais! Vim a este lugar para honrar e celebrar o trabalho, e não já segundo o modelo de uma genérica e retórica exaltação, mas no seu valor efectivo, isto é na sua capacidade e na sua "virtude" de transformar-se em positivo contributo para a melhor compreensão e para a verdadeira fraternidade dos homens entre si. Fonte de vida material e moral, o trabalho encontra exactamente aqui uma prova convincente e eloquente da sua natureza e da insubstituível função, que Deus criador lhe assinalou "desde a origem" (cf. Gén Gn 1,28 Gn 2,15 Gn 3,19) e o Apóstolo vigorosamente reafirma (cf. 2Th 3,7-12). Aqui se apresenta ele ainda, não já como elemento de luta e de choque, mas de união e de concórdia no âmbito da sociedade.

3. Mas para o assunto conseguir precisar-se ainda melhor, desejo agora referir-me às duas formas de trabalho, melhor às duas categorias de trabalhadores, que vejo aqui representadas. Não posso limitar-me a dizer que desejo honrar o trabalho humano; devo antes dirigir-me directamente a vós, caros mineiros e caros agricultores e pastores, que vos reunistes para saudar-me e prestar-me homenagem.

Como poderia, de facto, esquecer as vossas pessoas, se — como escreveu o Concílio Vaticano II com palavras bastante fáceis de entender — hic labor.., a persona immediate procedit (Const. past. Gaudium et Spes GS 67)? E como poderia esquecer as vossas profissões, com as sacrifícios e as dificuldades, as incertezas e os perigos que elas comportam? Certamente, são evidentes as diferenças no tipo de trabalho a que vos aplicais: vós, mineiros, trabalhastes e trabalhais nas entranhas da terra, escavando-a e penetrando nela com esforço duradouro e severo, que não anda isento, infelizmente, de riscos para a saúde mesma; vós, cultivadores e pastores, pelo contrário, trabalhais ordinariamente ao ar livre, seguindo a normal rotação das estações. Todavia, a uns e outros de vós — eis um elemento comum — é sempre a natureza que aparece na sua realidade de criatura de Deus. Trabalhando a terra no exterior ou no interior, vós tendes sempre diante uma obra que pode oferecer-vos, e seguramente vos oferece, uma série completa de motivos para reflectir, meditar e adorar. Foi escrito com razão que o homem é um ser religioso (animal religiosum); mas parece-me: quem, como vós, vive em contacto quotidiano com a natureza e a descobre como um conjunto admiravelmente ordenado no seu tríplice reino, mineral, vegetal e animal, nota não tanto a oportunidade, mas a facilidade diria, e quase o convite, a considerar e a contemplar nela a obra omnipotente e providencial de Deus, nosso criador e nosso pai. Vós, precisamente por aquilo que sois e pelo que fazeis, empregados quer no duro trabalho da escavação de mina quer nos cuidados diurnos e nocturnos da agricultura e da vida pastoril, recordai-vos sempre que deveis ser "exemplarmente" espíritos religiosos, abertos e atentos para reconhecer aqueles vestígios que a Sabedoria divina deixou, tão numerosos como evidentes, no mundo criado. "São insensatos por natureza todos os homens que desconhecem Deus, e que, pelos bens visíveis, não chegaram a conhecer Aquele que é; nem, pela consideração das Suas obras, reconheceram o Artista (...) Com efeito, pela grandeza e beleza das criaturas pode-se, por analogia, chegar ao conhecimento do seu Autor" (Sg 13,1-2 Sg 13,5).

Desejo, por isso, apelar para a vossa sensibilidade de crentes ou, melhor, para a vossa fé de cristãos, para que ela, longe de vir a faltar, encontre antes, na mesma actividade que desempenhais, ocasião e razão de aprofundamento e de crescimento.

4. O último pensamento-recordação do encontro de hoje brota das coisas que disse até agora, e é uma espécie de confronto entre elas. Aqui, na grandiosidade do maciço apenínico, tudo nos fala da obra de Deus; mas aqui também — acrescentei diante de vós, trabalhadores — tudo nos fala da obra do homem. Existe porventura relação entre estas duas obras? Sim, sem dúvida: Deus cria do nada na radicalidade de uma operação que faz existir as coisas, que antes não existiam; o homem, pelo contrário, transforma, intervém — por mandado divino — sobre as coisas criadas, elevando-se de tal maneira ao grau e à honra de colaborador do mesmo Criador. Sabei olhar também sob este aspecto o vosso trabalho: ao lado do aludido motivo da contemplação, dai a ele esta segunda dimensão, pensando que a sua dignidade é participação humilde e modesta, mas também efectiva e real, da transcendente dignidade da obra divina.

Irmãos da montanha dos Abruzos! Pouco antes de ir a Aquila, quis confiar-vos estes pensamentos. Para lá me dirijo a fim de venerar um Santo que, apesar de nascido na Toscana, também entre os vossos antepassados pregou a palavra de Deus: São Bernardino de Sena. Daqui o invoco eu em vosso favor e das vossas famílias, implorando a sua celestial protecção e bênção, para que o amor que ele teve à vossa terra continue ainda como salvaguarda, incitamento e conforto da vossa vida cristã. Assim seja.



VISITA PASTORAL DO SANTO PADRE À REGIÃO DOS ABRUZOS

ENCONTRO COM OS JOVENS EM FRENTE

AO SANTUÁRIO DEDICADO


A NOSSA SENHORA DA CRUZ NO MONTE ROIO


DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


Sábado, 30 de Agosto de 1980



Caríssimos jovens de Áquila, dos Abruzos e do Molise

1. Manifesto-vos antes de mais a minha grande alegria ao encontrar-me convosco, junto deste célebre Santuário dedicado a Maria Santíssima.

Preparastes-vos para a visita do Papa percorrendo esta manhã a "Via Mariana", monumento de fé e piedade mandado construir pelo Cardeal Carlo Confalonieri, quando era Arcebispo de Áquila, e, parando nas respectivas 15 capelas, meditastes os mistérios do Rosário.

Agradeço-vos de coração esta iniciativa espiritual, como também a vossa presença tão devota, alegre e numerosa; saúdo-vos a todos com particular afecto. Pretendo também, neste momento, apresentar a minha reconhecida e fraternal saudação ao Cardeal Decano, ao Cardeal Corrado Bafile, filho desta cidade, e a todos os Bispos da Conferência Episcopal dos Abruzos, que desejaram estar presentes convosco neste significativo encontro.

Vim à vossa terra para honrar de modo especial São Bernardino de Sena, no VI centenário do nascimento. Vim para ver-vos também a vós, caros jovens, para vos falar, para vos ouvir, para travar convosco uma amizade mais cordial e concreta, para vos fixar nos olhos como fazia Jesus, e para vos deixar uma mensagem que seja para vós vincada recordação e compromisso programático.

E vós viestes de encontro ao Papa com a vossa alegria, a vossa bondade, a vossa vivacidade e também com as vossas ansiedades e as vossas interrogações: viestes para escutar a sua voz e para rezar com ele. Agradeço-vos ainda esta vossa gentileza e disponibilidade.

2. Reflectindo agora um momento convosco sobre a figura de São Bernardino, desejo propor-vos algumas indicações que vos possam servir como programa de vida, seguindo as pisadas do grande santo.

Aprendei, primeiro que tudo, de São Bernardino o valor essencial do conhecimento de Jesus.

Conheceis a vida de São Bernardino: ficando órfão desde tenra idade, foi educado em Sena numa profunda e esclarecida fé cristã, de maneira que ele, atingida a juventude, desejou consagrar-se totalmente a Jesus na vida religiosa e sacerdotal, para dedicar-se de modo essencial a tornar conhecido, ao maior número de irmãos, Cristo amigo e redentor.

Ordenado sacerdote na Ordem de São Francisco, por não menos de 12 anos quis ainda estudar e recolher material bíblico, teológico, moral, ascético e místico, para estar bem preparado a desempenhar de modo digno e satisfatório a sua missão de pregador. Em 1417, começando de Génova, partiu para a sua vasta e intensa obra, percorrendo o Norte e o Centro da Itália, anunciando a todos com ardor e com paixão o amor de Cristo e difundindo em toda a parte a devoção ao Nome de Jesus, especialmente sob o símbolo "IHS": Iesus Hominum Salvator. São Bernardino foi grande enamorado de Jesus e gastou toda a vida a fazer conhecer e amar o Divino Salvador, como demonstram os seus ainda actuais sermões em latim e em língua vulgar.

Caríssimos! Como o jovem Bernardino, procurai conhecer Jesus de modo autêntico e completo. Aprofundai o conhecimento d'Ele para entrardes na Sua amizade. O conhecimento de Jesus, ele só, vos pode dar a verdadeira alegria, não a egoísta e superficial; é o conhecimento de Jesus que rompe a solidão, ultrapassa as tristezas e as incertezas, dá o verdadeiro significado à vida, refreia as paixões, sublima os ideais, expande as energias na caridade, e nas escolhas decisivas ilumina. Assim se lê na Imitação de Cristo: "Quando está presente Jesus, tudo é bom e nada parece difícil; quando está ausente Jesus, tudo se torna pesado. Quando Jesus não fala interiormente, a consolação de nada vale; se, pelo contrário, Jesus diz mesmo que seja uma só palavra, sente-se grande consolação... Que te pode dar o mundo sem Jesus? Estar sem Jesus é insuportável inferno, e estar com Jesus doce paraíso. Se Jesus estiver contigo, não há inimigo nenhum que te possa causar dano" (L. II, VIII, 1-2).

Também a vós digo o que disse aos jovens de Paris: "Jesus não é só irmão para nós, amigo, homem de Deus. Nós reconhecemos n'Ele o Filho unigénito de Deus, aquele que é uma coisa só com Deus Pai e que o Pai deu ao mundo... Deixai que seja para vós Cristo, o Caminho, a Verdade e a Vida. Deixai que seja a vossa salvação e a vossa felicidade. Deixai que tome conta da vossa vida inteira para que ela atinja com Ele todas as suas dimensões, de maneira que todas as vossas relações, actividades, sentimentos e pensamentos sejam integrados n'Ele, poder-se-ia dizer 'crucificados' " (1° de Junho de 1980).

Como desejava São Bernardino, esteja escrito o nome de Jesus nos vossos pensamentos, torne-se palpitação do vosso coração, jorre honrado e abençoado dos vossos lábios: Jesus é o amigo que não atraiçoa, que vos ama e quer o vosso amor. Seja vosso firme propósito conhecê-1'O cada vez melhor mediante a leitura do Evangelho, o estudo de obras apropriadas, as reflexões sobre as biografias dos santos e sobre as experiências dos convertidos.

Aprendei depois de São Bernardino a viver com coerência a vossa fé cristã. De facto, não basta o conhecimento de Jesus; é necessário ser-se coerente na vida com as ideias professadas.

Esse santo teve de viver numa época difícil e até mesmo desconcertante: a Itália era então cristã sem dúvida, mas infelizmente na prática vivia-se pouco cristãmente. Eram tempos perturbados, tumultuosos, densos de inquietações e contestações na vida civil e também no interior da Igreja. Sobretudo vigorava uma penosa situação de injustiça social, de ódio e de inimizades entre família e família, entre cidade e cidade. São Bernardino não se assustou nem com os tempos nem com os homens: espírito inteligente e prudente, compreendeu logo que era necessário vencer o mal semeando o bem, e organizou a sua pregação e o seu ministério como luta encarniçada e continua contra o pecado, chamando os cristãos, leigos e sacerdotes, humildes e poderosos, patrões e trabalhadores, à coerência de vida. A sua eloquência era viva e alegre, mas também cortante e inexorável, e com intrépida coragem enfrentou o mal em toda a parte, fustigando vícios e defeitos, sem poupar ninguém, exortando à conversão e à penitência, convidando ao perdão e à paz. Sabia ser humorista e irónico quando necessário, e nos seus sermões deixou-nos saborosos e transparentes esboços da vida do tempo.

O humanista Maffeo Vegio, seu contemporâneo, narra que os fiéis se aproximavam em tão grande número dos sacramentos, que às vezes não se encontravam sacerdotes suficientes para confessar e administrar a Eucaristia.

Eis, caros jovens, a segunda insistente exortação: sede coerentes! A fé cristã, a nossa mesma dignidade e a expectativa do mundo actual exigem essencialmente este compromisso de coerência. E a primeira fundamental expressão de coerência é a luta ao pecado, isto é, o esforço constante e até heróico de viver em graça. Infelizmente vivemos numa época em que o pecado se tornou precisamente uma indústria que produz dinheiro, movimenta planos económicos e dá bem-estar. Tal situação é certamente impressionante e terrível. Todavia, é necessário não nos deixarmos nem atemorizar nem oprimir: qualquer época exige do cristão "coerência". E por isso, mesmo na sociedade actual, envolvida por uma atmosfera laica e permissiva, que pode tentar e engodar, vós, jovens, mantende-vos coerentes com a mensagem e a amizade de Jesus; vivei na graça, permanecei no Seu amor, pondo em prática toda a lei moral, alimentando a vossa alma com o Corpo de Cristo, usufruindo periódica e seriamente do Sacramento da Penitência.

Por fim, aprendei de São Bernardino a coragem do testemunho. Na verdade, ele foi testemunha decidida e intrépida de Cristo. Mais, ainda antes, no tempo da adolescência, tinha sido exemplo entre os jovens de Sena; e em 1400, quando rebentou a terrível peste, com doze amigos não teve medo de dedicar-se a ajudar os pobres enfermos, com risco da própria vida.

Sede corajosos vós também! O mundo precisa de testemunhas, convictas e intrépidas. Não basta discutir, é preciso actuar. Transforme-se a vossa coerência em testemunho, e a primeira forma de tal esforço seja a "disponibilidade". Senti-vos, como o Bom Samaritano, sempre disponíveis a amar, a socorrer e a ajudar, na família, no trabalho e no divertimento, com os vizinhos e com os de longe. Ajudai também os vossos sacerdotes nas várias actividades paroquiais; ajudai os vossos Bispos. Reflecti também, com seriedade e generosidade, se o Senhor não chama também algum de vós à vida sacerdotal, religiosa e missionária. O vosso Seminário espera cada ano com ansiedade e confiança que algum entre para iniciar a formação própria do Sacerdócio. No mundo de hoje, faminto de Cristo e do Seu Evangelho, há necessidade do vosso testemunho.

3. Termino confiando-vos à Virgem Maria, de quem São Bernardino de Sena foi devotíssimo e que, pode dizer-se, ele cada dia andou anunciando pela Itália. Ficando órfão de mãe, quis escolher como mãe Nossa Senhora e a ela sempre dirigiu o seu afecto, nela sempre confiou totalmente. Ele, pode afirmar-se, tornou-se o cantor da beleza de Maria e pregando com inspirado amor a sua Mediação, não receou afirmar: "Toda a graça que é dada aos homens, procede de uma tríplice ordenada causa: de Deus passa a Cristo, de Cristo passa à Virgem, pela Virgem é dada a nós" (Sermo VI in festis B. V. M. De Annun. a. 1, c. 2).

Dirigi-vos cada dia com confiança e com amor a ela, e pedi-lhe a graça da beleza da vossa alma e da vossa vida, daquilo que unicamente vos pode tornar felizes.

Com estes votos, invocando a intercessão de São Bernardino, concedo-vos a Bênção Apostólica, que sempre vos acompanhe como sinal do meu intenso afecto.



Discursos João Paulo II 1980 - 28 de Agosto de 1980