Discursos João Paulo II 1980 - Domingo, 5 de Outubro de 1980


VISITA PASTORAL DO SANTO PADRE A ÓTRANTO (ITÁLIA)

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

NA CERIMÓNIA DE DESPEDIDA DE ÓTRANTO


Aeroporto de Galatina

Domingo, 5 de Outubro de 1980



Senhor Ministro
Senhor Presidente da Câmara Municipal
Caros Cidadãos de Otranto e da Península Salentina!

1. Sinto o dever, antes de tudo, de agradecer intensamente às Autoridades civis e religiosas presentes pelas cordiais palavras de boas-vindas que me dirigiram não só neste lugar Sagrado, mas também no aeroporto de Galatina, logo após ter pisado o solo da última extremidade da Itália. Retribuo com sincera deferência a sua saudação, e estendo-a de bom grado a todos os que aqui se reuniram para me manifestarem, além do obséquio e da devoção, a sua satisfação pela minha visita de hoje. Mas, encontrando-me — e é pela segunda vez — no sul da Itália, desejo também dirigir uma afectuosa palavra às queridas populações que aqui moram, cuja comunicativa bondade e calor humano conheço e muito aprecio.

2. Disse "lugar sagrado", porque nos encontramos na Colina dos Mártires: precisamente aqui, há exactamente cinco séculos, se deu o esplêndido, único e heróico testemunho de centenas e centenas de filhos desta terra generosa, os quais, estimulados e precedidos pelo admirável exemplo do Beato António Trimaldo, caíram um a um para "ser fiéis à fé". Feliz, portanto, foi a escolha ao fixar o ponto do nosso primeiro encontro no "Locus martyrii": este, portanto, é que define imediatamente a razão primeira da minha viagem, que é — como sabeis — para recordar um acontecimento tão glorioso na história da Igreja e para honrar os que foram os seus protagonistas.

3. Assim fazendo, o meu olhar não se limita só a um passado, ainda que insigne e memorável, mas dirige-se também sobre a realidade eclesial de hoje.

Os Mártires de Cristo — aqueles das primeiras gerações, aqueles da assim chamada idade média ou do início da idade moderna (é o caso dos vossos e nossos Mártires de Ótranto), como aqueles dos nossos tempos, oferecem, de facto, um exemplo que equivale a uma permanente e universal mensagem para a Igreja e para o mundo. Não é talvez verdade que o martírio se impõe por si mesmo, pelas virtudes que pressupõe e exprime? Não é porventura verdade que o sacrifício, impelido até à "perda" da vida, tem uma sua própria linguagem, que transcende a época, em que é consumado, e se torna compreensível em todos os tempos? Exactamente este é o motivo do culto perene que, não só em cumprimento da norma litúrgica, se presta aos Mártires.

O sangue dos Mártires de Ótranto, que banhou e consagrou estas terras, é um tesouro precioso que faz parte daquela escondida energia que penetra e alimenta, na sua mais profunda vitalidade, a Igreja a nível universal e local. Mas — como é evidente — sobretudo para vós, irmãos da arquidiocese de Ótranto, e para vós, habitantes da Terra de Ótranto, existe este tesouro, feito de méritos, de ensinamentos e de exemplos.

Ao renovar a expressão da minha gratidão pelo caloroso acolhimento, a mim reservado nesta Cidade tão nobre pela sua origem e plurissecular história religiosa e civil, de bom grado faço votos por que a minha visita pastoral vos seja de estímulo e de apoio, não só no devoto reconhecimento e no legítimo orgulho com que contemplais os vossos conterrâneos Mártires, mas também, e sobretudo, na profissão intrépida daquela fé católica, de que foram testemunhas e modelos. Como eles, também vós sede sempre de Cristo e com Cristo!



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS BISPOS CALDEUS EM VISITA


«AD LIMINA APOSTOLORUM»


Terça-feira, 6 de Outubro de 1980



Beatitude
e Veneráveis Irmãos

Acolher-vos por ocasião a vossa visita aos túmulos dos Apóstolos, causa-me alegria profunda. Foi, com efeito, nesta ilustre Cidade de Roma que o Príncipe dos Apóstolos derramou o próprio sangue. E o seu martírio fez desta mesma cidade a Sede da Igreja que preside à Caridade e a Cátedra de Verdade destinada a robustecer os outros Irmãos.

O nosso encontro quer ser momento abençoado pelo Senhor para exprimir, a Vossa Beatitude e aos Bispos da Igreja Caldeia, os meus sentimentos de satisfação pelo vosso ardor em difundir a Palavra de Deus e pelo vosso zelo pastoral ao serviço das comunidades cristãs que vos estão confiadas.

Estou certo que, regressando às vossas dioceses, mais que nunca na expectativa da vossa presença e da vossa afectuosa dedicação, dando-se as circunstâncias, trabalhareis com novo entusiasmo na expansão do reino de Deus, que é reino de amor e de paz.

O vosso cuidado fundamental estará sem dúvida em animar a vossa Igreja a dar testemunho cristão, resoluto e fiel. Com este fim, a reforma desejada da liturgia, para ser realizada segundo as indicações da Santa Sé com o objectivo de favorecer maior participação dos fiéis na celebração dos mistérios divinos, será certamente útil.

Esta obra, Veneráveis Irmãos, compete-vos em primeiro lugar, assim como aos vossos diligentes colaboradores, os sacerdotes ocupados no serviço pastoral das comunidades cristãs, para um culto agradável ser prestado a Deus, e a estima e o amor das coisas celestiais se comunicarem às almas.

Desejo que o Senhor vos abençoe, concedendo-vos vocações cada vez mais numerosas, que, em consequência, exigirão de vós a obrigação permanente de velar pela sua formação espiritual e intelectual adequada.

Tenho o prazer de sublinhar também a presença e o trabalho realizado pelas Congregações religiosas. É graças a elas que o ideal de perfeição evangélica resplandece para honra e serviço da Igreja Caldeia. Aos religiosos e às religiosas expresso a minha alegria e os meus incitamentos para que vão, cada vez mais longe, na própria vida de piedade e caridade, segundo as normas dadas pelo Concílio Vaticano II e as novas exigências pastorais. Esforcem-se eles por conseguir a própria actualização, judiciosamente e em qualidade, para atingirem verdadeira renovação de vida espiritual e melhor se inserirem nas actividades pastorais, em harmonia com o carácter particular de cada Instituto e sob a direcção esclarecida da Jerarquia.

O encontro de hoje com todos vós — encontro visivelmente colegial à roda do Vigário de Cristo — constitua estimulante para viverdes juntos o vosso trabalho pastoral, qual quer que seja o país em que tenhais a missão de o realizar. A Santa Sé aprecia estes encontros no plano nacional, sob forma de Assembleias ou de Conferências episcopais, mesmo entre ritos diferentes. Correspondem, com efeito, às directrizes do Concílio Vaticano II e constituem instrumento eficaz e praticamente indispensável, se é que se quer garantir unidade de acção entre vários países e manter a harmonia e o entendimento fraterno entre os vários ritos "nos laços da paz". E tudo isto se pode fazer sem de maneira nenhuma causar prejuízo às atribuições do Patriarca e do seu Sínodo.

Quero, por último, aproveitar a ocasião para vos garantir que a Santa Sé fará todos os esforços possíveis para fornecer uma assistência religiosa mais apropriada aos fiéis dos ritos orientais, actualmente disseminados em todas as partes do mundo.

A vós, Beatitude e caros Irmãos no episcopado; a vós, Sacerdotes, Religiosos e Religiosas; e a vós todos, fiéis da Igreja Caldeia — renovo a garantia do meu profundo afecto e dirijo uma paternal Bênção Apostólica.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS PARTICIPANTES DO PRIMEIRO ENCONTRO


MUNDIAL DOS VIGÁRIOS CASTRENSES


9 de Outubro de 1980



Queridos Irmãos

Os Congressos internacionais de militares, em particular os que se realizam todos os anos em Lourdes, já deram provas do seu valor. Mas é a primeira vez, creio eu, que se reúnem Vigários do Exército provenientes de diversos Países e continentes. Aproveito a ocasião para vos saudar, felicitar pela iniciativa e encorajar.

Tendes a partilhar experiências certamente diferentes, mas paralelas, a confrontar os problemas precisos que se vos apresentam e aquilo que empreendeis, uns e outros, para lhes fazer face. Deste modo, emergirão questões maiores que procurareis aprofundar para esclarecer os caminhos do vosso ministério.

Certas questões fundamentais, de ordem ética, emergirão seguramente, acerca, por exemplo, da legitimidade de certos métodos de defesa, da noção de guerra «justa» no contexto hodierno, da ameaça da utilização dos armamentos nucleares — de que eu próprio já falei com gravidade em diversas circunstâncias — ou de outros armamentos de grande poder, da questão cada vez mais frequente da objecção de consciência, etc.. Estais evidentemente situados num lugar em que estes problemas adquirem maior gravidade. Questões teóricas aparentemente, porque a solução não está nas mãos dos capelães militares; mas questões importantes e que vos dizem respeito, porque vós tendes parte especial na formação da consciência dos militares e da opinião pública; tendes um testemunho da Igreja a dar, como Pastores especializados nestes difíceis problemas.

Penso contudo que o essencial dos vossos debates fraternais deve basear-se na assistência espiritual aos militares: é a vossa razão de ser. Que imenso campo! Que tarefa complexa!

Ocupais-vos, por um lado, dos militares de carreira e das suas famílias. Apesar das suas deslocações bastante frequentes, é um meio relativamente estável. Não sois o seu único ponto de referência na Igreja: eles têm as próprias paróquias e diversas associações cristãs. Mas vós sois, por um título particular, os seus Pastores, os confidentes da sua vida e os sacerdotes que não raro podem melhor ajudá-los na sua vida sacramental e apostólica.

Está-vos confiado, por outro lado, o conjunto dos jovens militares do contingente, que prestam o seu serviço à pátria. O período que prestam de serviço militar reveste-se de grande importância para a sua evolução, embora frequentemente eles próprios pensem que deve ser um parêntesis sem interesse na sua vida familiar e profissional. Quando se pensa que quase a totalidade dos jovens faz esta experiência, o vosso ministério reveste uma urgência considerável. Estais situados na encruzilhada da vida das novas gerações. Para os jovens que foram amparados até então por um meio tradicionalmente cristão, este tempo constitui em geral uma prova da sua liberdade, no plano espiritual e moral, que pode acabar num abandono da prática religiosa e da fé, mas também em apreciável maturação das suas convicções. Para outros, é a ocasião nova de reencontrar a Igreja, os cristãos, um capelão. A sua permanência na caserna é ainda mais limitada do que outrora e muitas vezes não inclui o domingo. Mas os capelães e todos aqueles que colaboram com eles podem esforçar-se por lhes proporcionar outras ocasiões de reflexão, de oração, de se abrirem às necessidades dos outros. Oxalá o tempo de serviço militar possa tornar-se cada vez mais, graças ao vosso contributo, um tempo suplementar e original de preparação humana e espiritual para a vida! Aqui o zelo sacerdotal, apostólico, de cada um dos vossos capelães desempenha um papel capital. Desejaríeis, evidentemente, que fossem mais numerosos. Amparai-os bem no seu difícil ministério, ajudai-os como a irmãos; encorajai-os a rodearem-se de leigos cristãos cujo testemunho é indispensável, e a inserirem devidamente os seus esforços na Igreja, em harmonia com o ministério complementar dos outros Pastores.

Mas detenho-me por aqui, porque são questões que já debatestes ou debatereis com precisão. Fortifique o Senhor a vossa esperança! Peço-lhe que fecunde o vosso apostolado e abençoo-vos a todos do coração, queridos Irmãos, como também àqueles que colaboram convosco nos vossos diferentes países.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

AOS PARTICIPANTES NO CONGRESSO

SOBRE EVANGELIZAÇÃO E ATEÍSMO


10 de Outubro de 1980



Eminências Excelências Monsenhor
Caros Irmãos e Irmãs

1 . Aceitai os meus agradecimentos pelas vossas palavras. Como é fácil verificar, o ateísmo é sem contestação um dos fenómenos mais importantes e, é preciso mesmo dizer, o drama espiritual do nosso tempo (Gaudium et spes GS 19).

Embriagado pelo turbilhão das suas descobertas, certo de um progresso científico e técnico aparentemente sem limites, o homem moderno descobre estar inexoravelmente diante do seu destino: «De que nos serve ir à luz — segundo a expressão de um dos homens de cultura mais prestigiosos da nossa época —, se é para lá nos suicidarmos?» (Andre Malraux, Prefácio de L' enfant du rire, de P. Bockel, Grasset).

Que é a vida? Que é o amor? Que é a morte? Desde que há homens que pensam, estas perguntas fundamentais não deixaram de Lhes habitar o espírito. Há milénios que as grandes religiões se esforçaram por lhes dar as suas respostas. O homem mesmo não parecia, ao olhar penetrante dos filósofos, como sendo, inseparavelmente, homo faber, homo ludens, homo sapiens, homo religiosus? E não é a esse homem que a Igreja de Jesus Cristo deseja propor a boa nova da salvação, portadora de esperança para todos, através do fluxo das gerações e do refluxo civilizações?

2. Mas eis que, num gigantesco desafio, o homem moderno, desde o Renascimento, se dirigiu contra esta mensagem de salvação, e pôs a rejeitar Deus precisamente em nome da sua dignidade de homem. Primeiro reservado a um grupinho de espíritos, à «inteligência» que se considerava como o escol, o ateísmo tornou-se hoje fenómeno de massa que investe as Igrejas. Bem mais ainda, penetra-as a partir de dentro, como se os crentes mesmos, incluindo os que dizem pertencer a Jesus Cristo, encontrassem em si uma secreta conivência, ruinosa da fé em Deus, em nome da autonomia e da dignidade do homem. É de um «verdadeiro secularismo» que se trata, segundo a expressão de Paulo VI na Exortação apostólica Evangelii nuntiandi: «Uma concepção do mundo segundo a qual este último se explica por si mesmo, sem haver necessidade de recorrer a Deus; Deus tornado assim supérfluo e embaraçoso. Tal secularismo, para reconhecer o poder do homem, acaba assim por passar sem Deus e mesmo por renegar a Deus» (Evangelii nuntiandi EN 55).

3. Este o drama espiritual do nosso tempo. A Igreja não podia utilizá-lo em seu favor. Pretende, pelo contrário, enfrentá-lo corajosamente. Pois o Concílio quis colocar-se ao serviço do homem, não do homem abstracto, considerado como entidade teórica, mas do homem concreto, existencial, defrontado com as suas interrogações e as suas esperanças, as suas dúvidas e mesmo as suas negações. Ë a esse homem que a Igreja propõe o Evangelho. Precisa ele portanto de o conhecer, com esse conhecimento enraizado no amor, que se abre para o diálogo na claridade e na confiança entre homens separados pelas convicções, mas convergentes no seu mesmo amor pelo homem.

«O humanismo laico e profano, disse Paulo VI no encerramento do Concílio, apareceu em toda a sua terrível estatura e por assim dizer desafiou o Concilio para a luta. A religião, que é o culto de Deus que quis ser homem, e a religião — porque o é — que é o culto do homem que quer ser Deus, encontram-se. Que aconteceu? Combate, luta, anátema? Tudo isto podia ter-se dado, mas de facto não se deu. Aquela antiga história do bom samaritano foi exemplo e norma segundo os quais se orientou o nosso Concílio» (Paulo VI, Alocução ao Concílio Vaticano II, 7 de Dezembro de 1965).

Eu mesmo, na tribuna das Nações Unidas, em Nova Iorque, a 2 de Outubro de 1979, expressei este voto: «O confronto entre a concepção religiosa do mundo e a concepção agnóstica ou mesmo ateística, que é um dos sinais dos tempos, poderia manter leais e respeitosas dimensões humanas, sem violar os essenciais direitos da consciência de nenhum homem ou mulher que vivem sobre a face da terra» (João Paulo II, Discurso às Nações Unidas, 2 de Outubro de 1979, n. 20).

Tal é a convicção do nosso humanismo plenário, que nos leva diante mesmo dos que não partilham a nossa fé em Deus em nome da fé que têm no homem e é este o trágico mal-entendido que é preciso dissipar. A todos queremos dizer com fervor: também nós, tanto e mais que vós se é possível, temos o respeito do homem. Por isso, queremos ajudar-vos a descobrir e a partilhar connosco a alegre nova do amor de Deus, deste Deus que é a fonte e o fundamento da grandeza do homem, ele mesmo filho de Deus, e tornado nosso irmão em Jesus Cristo.

4. Expresso-vos assim, caros amigos, quanto me alegro com estes dias de estudos que vos reúnem em Roma, na Pontifícia Universidade Urbaniana, sob os auspícios do Instituto superior para o estudo do ateísmo, promotor do vosso Congresso internacional sobre Evangelização e Ateísmo.

Com muito interesse percorri o programa que me enviastes. Notei com simpatia a presença de ilustres professores e homens de estudo, que tenho o gosto de receber aqui. Para dizer a verdade, é quase um sentimento de vertigem que sobe ao espírito, ao descobrir a vastidão do campo considerado e os eixos de investigação que vós nele traçastes: aspectos fenomenológico, histórico, filosófico e teológico do ateísmo contemporâneo.

O fenómeno, com efeito, invade-nos de todos os lados: do Oriente ao Ocidente, dos países socialistas aos países capitalistas, do mundo da cultura ao do trabalho. Nenhuma das idades da vida lhe escapa, desde a jovem adolescência exposta à dúvida até ao ancião entregue ao ceptismo, passando pelas desconfianças e as recusas da idade adulta. Não há nenhum continente que tenha sido poupado.

Foi o que levou o meu predecessor Paulo VI, de venerada memória, a erigir dentro da Cúria romana, ao lado dos Secretariados para a unidade dos cristãos e para os não-cristãos, outro organismo dedicado, por vocação, ao estudo do ateísmo e ao diálogo com os Não-Crentes (Constituição Apostólica Regimini Ecclesiae Universae, de 15 de Agosto de 1967, com referência ao ensinamento do Vaticano II, Gaudium et spes ). Deve, com efeito, ficar claro aos olhos de todos que a Igreja quer estar em diálogo com todos, incluídos os que se apartaram dela e a rejeitam, tanto nas suas convicções afirmadas e determinadas como nos seus comportamentos decididos e por vezes militantes. Um e outro aliás estão intimamente misturados. As motivações despertam a acção. E o operar, por sua vez, modela o pensamento.

5. Também é com reconhecimento que aceito as vossas reflexões, para as integrar no esforço pastoral da Igreja em direcção de todos os que a títulos diversos e de muitas maneiras sem dúvida, apelam pouco ou muito para o ateísmo poliforme do nosso tempo. Que há aparentemente de comum, com efeito, entre países em que o ateísmo teórico, poder-se-ia dizer, está no poder, e outros pelo contrário cuja neutralidade ideológica, professada, oculta verdadeiro ateísmo prático? Sem dúvida a convicção de o homem ser, ele sozinho, o tudo do homem (Cf. João Paulo II, Homilia, 1 de Junho de 1980 em Iss-les-Moulineaux).

Certamente, já o salmista ia repetindo: «Os insensatos dizem em seu coração: 'Não há Deus'» (Ps 27). E o ateísmo não é de hoje. Mas estava como que reservado para o nosso tempo fazer dele a teorização sistemática, e pô-lo verdadeiramente em prática em grupos humanos e mesmo em importantes países.

6. Todavia — como não o reconhecer com admiração? — o homem resiste diante destes assaltos repetidos e destes fogos cruzados do ateísmo pragmatista, neopositivista, psicanalítico, existencialista, marxista, estruturalista, nietzchiano... A invasão das práticas e a falta de estruturação das doutrinas não impedem — muito pelo contrário, às vezes mesmo suscitam, até no coração dos regimes oficialmente ateus como no seio das sociedades chamadas de consumo — um inegável despertar religioso. Nesta situação contrastada, é verdadeiro desafio que a Igreja tem de enfrentar, e tarefa gigantesca que precisa de realizar, e pede a colaboração de todos os seus filhos: aculturar de novo a fé nos diversos espaços culturais do nosso tempo, e reencarnar os valores do humanismo cristão.

Não é exigência instante dos homens do nosso tempo que, por vezes desesperadamente e como às apalpadelas, buscam o sentido do sentido, o sentido último? Apesar das diferenças de origem e orientação, as ideologias modernas encontram-se na encruzilhada da auto-suficiência do homem, sem nenhuma conseguir satisfazer a sede de absoluto que o atormenta. Porque, «o homem ultrapassa infinitamente o homem», como notava Pascal nos seus Pensamentos. Por isso, do excesso das suas certezas, como do vazio das suas interrogações ressurge sempre a busca deste Infinito de que ele não pode apagar a imagem em si, mesmo quando a evita: «Tu estavas no interior de mim. E eu estava fora de mim mesmo» confessava já Santo Agostinho (Santo Agostinho, Confissões, X, 27.).

7. Na encíclica Ecclesiam Suam interrogava-se Paulo VI sobre este fenómeno e via nele o caminho de um diálogo de salvação: «As razões do ateísmo, impregnadas de ansiedade, coloridas de paixão e de utopia, mas muitas vezes tão generosas, inspiradas por um sonho de justiça e de progresso, encaminhado para finalidades de ordem social divinizadas: outros tantos sucedâneos do Absoluto e do Necessário... Os ateus, vemo-los também às vezes movidos por nobres sentimentos, desapontados com a mediocridade e o egoísmo de tantos meios sociais contemporâneos, e hábeis para vir buscar ao nosso Evangelho formas e linguagem de solidariedade e de compaixão humana: não seremos nós um dia capazes de reconduzir às suas verdadeiras fontes, que são cristãs, estas expressões de valores morais?» (Paulo VI, Encíclica Ecclesiam Suam).

O ateísmo proclama o desaparecimento necessário de toda a religião, mas ele próprio é fenómeno religioso. Não façamos dele, por isso, um crente que a si mesmo se ignora. E não reduzamos o que é drama profundo a um mal-entendido superficial. Diante de todos os falsos deuses a renascerem sem cessar — do progresso, do «vir a ser» e da história — saibamos encontrar o radicalismo dos primeiros cristãos diante dos idólatras do paganismo antigo, e repetir com São Justino: «Certamente, confessamo-lo, nós somos os ateus desses pretensos deuses» (São Justino, Iª Apologia. VI, n. 1).

8. Sejamos, pois, em espírito e em verdade, testemunhas do Deus vivo, portadores da sua ternura de pai para o vazio de um universo fechado sobre si mesmo e a oscilar entre o orgulho luciferino e o desespero desenganado. Como, em particular, não ser sensível ao drama do humanismo ateu, de que o antiteísmo, e mais precisamente o anticristianismo, chega a esmagar a pessoa humana que ele quisera libertar do pesado fardo de um Deus considerado como opressor? «Não é verdade que o homem não possa organizar a terra sem Deus, mas não pode, no fim de contas, senão organiza-la contra o homem. O humanismo exclusivo é humanismo inumano» (R. P. Henri De Lubac, Le drame de l'humanisme athée , Spes. , p. 12. Citado por Paulo VI, Encíclica Populorum progressio. Páscoa 1967, n. 42). A quarenta anos de distância, cada pessoa pode encher estas linhas premonitórias, do Padre de Lubac, com o peso trágico da história do nosso tempo.

Que convite este para voltarmos ao coração da nossa fé: «O redentor do homem, Jesus Cristo. é o centro do cosmos e da história» (Primeira fase da encíclica Redemptor hominis )! A derrocada do deísmo, a concepção profana da natureza, a secularização da sociedade, o ímpeto das ideologias, o aparecimento das ciências humanas, as rupturas estruturalistas, o regresso do agnoticismo e a subida do neopositivismo técnico não são outras provocações para o cristão reencontrar, num mundo que envelhece, toda a força da novidade do evangelho sempre novo, fonte inesgotável de renovação: «Omnem novitatem attulit, semetipsum afferens»? E São Tomás de Aquino, a onze séculos de distância, prolongava o dito de Santo Ireneu: «Cristus initiavit nobis viam novam» (Prima Secundae, q. 106, art. 4, ad primum).

É ao cristão que pertence dar disso testemunho. Transporta certamente este tesouro em vasos de barro. Mas não é, por isso, menos chamado a colocar a candeia no velador, para ela iluminar todos os que estão na casa. E o papel mesmo da Igreja, da qual o Concílio nos recordava que ela é portadora d'Aquele que é o único Lumen gentium. Este testemunho deve ser ao mesmo tempo testemunho de pensamento e testemunho de vida. Como vós sois homens de estudo, insistirei, ao terminar, na primeira exigência, a segunda de facto diz-nos respeito a todos.

9. Aprender a bem pensar era resolução que de boa vontade se professava ontem. E continua a ser necessidade primária para operar. O apóstolo não está dispensado disto. Quantos baptizados se tornaram estranhos a uma fé que talvez nunca os tenha verdadeiramente habituado, porque ninguém a ensinou bem a eles! Para se desenvolver, o germe da fé precisa ser alimentado com a palavra de Deus, com os sacramentos e com todo o ensinamento da Igreja, isto num clima de oração. E, para atingir os espíritos, ganhando ao mesmo tempo os corações, urge que a fé se apresente como ela é, e não sob falsos revestimentos. O diálogo da salvação é diálogo de verdade na caridade.

Hoje, por exemplo, as mentalidades estão profundamente impregnadas pelos métodos científicos. Ora uma catequese insuficientemente informada da problemática das ciências exactas como das ciências humanas na sua diversidade, pode acumular os obstáculos numa inteligência, em lugar de abrir nela o caminho para a afirmação de Deus. E é a vós, filósofos e teólogos, que me dirijo: procurai os caminhos para apresentar o vosso pensamento de maneira que ajude os cientistas a reconhecerem a validez da vossa reflexão filosófica e religiosa. Porque disso depende a credibilidade, mesmo a validez, desta reflexão, para muitos espíritos influenciados, mesmo sem o saberem, pela mentalidade científica transportada pelos «mass media». E desde já me alegro de que a próxima assembleia plenária do Secretariado para os Não-Crentes, em Março-Abril próximos aprofunde este tema: Ciência e Não-Crença.

Tenho de concluir. Desafiada mais que nunca pelo drama do ateísmo, a Igreja pretende hoje renovar o seu esforço de pensamento e de testemunho no anúncio do Evangelho. Enquanto uma multidão de questões invade o espírito do homem à busca da modernidade, o mistério está para além dos problemas. E, como o Concílio Vaticano II nos ensinou, «o mistério do homem não se esclarece verdadeiramente senão no mistério do Verbo encarnado» (Gaudium et spes GS 22 Gaudium et spes GS 1). Inspire o Seu Espírito de luz o vosso trabalho intelectual e anime o Seu Espírito de fortaleza o vosso testemunho de vida. Acompanho este voto e esta oração com a minha Bênção Apostólica.









DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS BISPOS DA BIRMÂNIA


EM VISITA «AD LIMINA POSTOLORUM»


Sábado, 10 de Outubro de 1980



Queridos Irmãos no Episcopado,

Constitui grande alegria para mim, como Sucessor de Pedro na Sé de Roma, acolher-vos a vós meus irmãos Bispos da Birmânia, e abraçar-vos na caridade de Jesus Cristo, eterno e encarnado Verbo de Deus.

1. Nesta vossa visita ad limina, vindes como Ordinários de quatro Igrejas locais: Mandalay, Myitkyina, Bassein e Kengtung. Vindes também como representantes de todos os Bispos da Birmânia servindo todo o povo católico do vosso país. Saúdo-vos, portanto, com grande respeito e amizade, com profunda estima e amor. Saúdo-vos como colaboradores no Evangelho, como Bispos da Igreja de Deus, que estão unidos a mim e a todos os membros do Colégio Episcopal nos vínculos da fé e da caridade, e que são chamados a exercer conjuntamente — de acordo com o papel de cada um — a responsabilidade para com a Igreja universal.

2. Saúdo-vos como herdeiros espirituais de autênticos e generosos missionários, que trabalharam paciente e perseverantemente para que o Evangelho se encarnasse na cultura do vosso povo e transformasse as suas vidas pela sua própria enobrecedora originalidade. Em vós a Igreja autentica os trabalhos dos missionários, presta homenagem aos seus sacrifícios, e perpetua a sua memória. Saúdo-vos como líderes espirituais dos fiéis, muitos dos quais têm demonstrado e exercido heroísmo na fé católica dando assim um fúlgido testemunho de Jesus Cristo e do Seu

3. Esta é verdadeiramente uma hora de acção de graças. Juntos expressamos a nossa gratidão à Santíssima Trindade pelas bênçãos outorgadas ao vosso povo, pelas graças que têm tocado as suas vidas. Por Jesus Cristo, nós agradecemos o facto de que a palavra de Deus arraigou-se nos corações dos vossos antepassados e germinou frutos de justiça e santidade de vida, geração após geração. Nós damos graças pelo grande dom de perseverança que tem caracterizado as vidas de tantos indivíduos e comunidades:

Nós louvamos o poder do Mistério Pascal: só ele poderia garantir fidelidade a Cristo e à sua Igreja, que foi e permanece uma indiscutível realidade na vossa experiência cristã. Apesar das dificuldades de toda a sorte, apesar dos obstáculos de várias origens, apesar das exigências perenes do Evangelho — face às quais a natureza humana recua instintivamente em qualquer época — a graça de Jesus Cristo tem, reiteradamente, conquistado os corações humanos e sustentado os esforços de tantos fiéis que zelosamente se esforçam por Cristo e seguem os seus passos.

Mediante a acção do Espírito Santo, a morte e a Ressurreição de Cristo têm surtido grandes coisas no seio do vosso povo: os jovens têm correspondido à vocação para o sacerdócio e a vida religiosa; muitos do laicato têm entendido a sua dignidade Cristã e abraçado entusiasticamente a sua missão; os catequistas têm ajudado a fazer com que a Igreja se torne sempre mais uma comunidade evangelizada e evangelizadora. Tudo isso, Irmãos veneráveis, é devido à graça de Cristo, que em cada época deve ser reconhecido e proclamado como o Redentor do homem e o Salvador do mundo.

4. O nosso encontro é igualmente uma hora de renovação. A proximidade dos túmulos dos Apóstolos Pedro e Paulo constitui para nós um desafio a ratificar a nossa dedicação ao Evangelho e a proclamá-lo fiel e integralmente. Somos chamados a abraçar nas nossas próprias vidas, com novo vigor, a palavra de Deus com todas as suas exigências, e a propô-la com confiança e consistência, ao nosso povo em nome d'Aquele que era conhecido como um "sinal de contradição" (Lc 2,34) e que uma vez, disse: "Estreita é a porta e difícil o caminho que leva à vida" (Mt 7,14).

É também a ratificação da nossa dedicação ao múnus que exercemos em nome do Bom Pastor. Como Bispos, somos chamados a tornar visível e atractivo nas nossas próprias pessoas o amor desapegado, sacrificado e compassivo de Jesus Cristo para com o seu povo. Somente na intimidade com Jesus nós encontraremos a força interior na genuína preocupação por todos os nossos irmãos e irmãs. É somente com santidade de vida que seremos ministros relevantes e representantes de um Cristo que ama.

5. Esta é uma hora de acção de graças e de renovação; é outrossim uma hora de esperança! Porque o Espírito de Deus derramou-se em nossos corações e porque o destino final da Igreja está nas mãos de Jesus, nós somos sustentados por uma grande esperança. A nossa esperança é que cada comunidade de fiéis na Birmânia, reunida em virtude da palavra de Deus e fortalecida pelos sacramentos de Cristo, possa desempenhar sempre mais efectivamente a sua missão evangelizadora e servir a causa do avanço humano. Em suma, que todos os fiéis se relacionem com os seus próximos como Jesus o fez com os seus, como Jesus quer que o façamos com os nossos. Queridos Irmãos, as palavras de São Paulo confirmam-nos na nossa esperança hoje: "Pois é para tal fim que penamos e mourejamos: porque depositamos a nossa esperança no Deus vivente" (1Tm 4,10).

E deste dom de esperança implantado nos vossos corações possa brotar em cada um de vós e nos outros Bispos vossos irmãos na vossa Pátria, uma nova confiança em Cristo, uma nova segurança no ministério pastoral — confiança e segurança a que esteja alheia qualquer forma de complacência humana, mas que derive da confiança em Cristo e na Sua palavra, e se sinta forte da promessa de Jesus, que diz: Ecce ego vobiscum sum (Mt 28,20).

6. Neste espírito de acção de graças e de renovação, com esta re-temperada esperança e confiança, peço-vos leveis as minhas saudações a todos os amados fiéis da Birmânia. Ao clero, aos religiosos e às religiosas, aos seminaristas e aos catequistas, e a todos os que militam nas filas do laicado católico, envio a minha Bênção Apostólica, com o penhor das minhas preces, especialmente pelos doentes e sofredores, pelos que vivem aflitos na solidão e na ansiedade. E a todos os vossos irmãos não cristãos, em particular aos membros das comunidades budistas, com que sois fadados a conviver e colaborar, bem como às autoridades do Estado dirijo as minhas cordiais e respeitosas saudações.

E a vós, meus queridos Irmãos no Episcopado: "Graça, misericórdia e paz da parte de Deus nosso Pai e de Jesus nosso Senhor" (1Tm 1,2).




Discursos João Paulo II 1980 - Domingo, 5 de Outubro de 1980