AUDIÊNCIAS 1981

Ressurreição significa restituição à verdadeira vida da corporeidade humana, que foi sujeita à morte na sua fase temporal. Na expressão de Lucas (20, 36) por nós citada há instantes (e Mt 22, 30 e de Mc 12,25) trata-se certamente da natureza humana, isto é psicossomática. A comparação com os seres celestiais, usada no contexto, não constitui novidade alguma na Bíblia. Além do mais, já o Salmo, exaltando o homem como obra do Criador, diz: "Contudo, criaste-lo pouco inferior aos anjos" (Ps 8,6). É necessário supor que na ressurreição esta semelhança se tornará maior: não através de uma desencarnação do homem, mas mediante outro género (poder-se-ia mesmo dizer: outro grau) de espiritualização da sua natureza somática — isto é mediante outro "sistema de forças" no interior do homem. A ressurreição significa nova submissão do corpo ao espírito.

6. Antes de nos aplicarmos a desenvolver esse argumento, convém recordar que a verdade sobre a ressurreição teve significado-chave para a formação de toda a antropologia teológica, que poderia ser considerada simplesmente como "antropologia da ressurreição". Reflectir sobre a ressurreição fez que Tomás de Aquino pusesse de parte na sua antropologia metafísica (e ao mesmo tempo teológica) a concepção filosófica platónica sobre a relação entre a alma e o corpo e se aproximasse da concepção de Aristóteles (1). A ressurreição, de facto, assegura, pelo menos indirectamente, que o corpo, no conjunto do composto humano, não está só temporalmente unido à alma (como sua "prisão" terrena, como julgava Platão) (2), mas que juntamente com a alma constitui a unidade e integridade do ser humano. Assim de modo preciso ensinava Aristóteles (3), diversamente de Platão. Se São Tomás na sua antropologia aceitou a concepção de Aristóteles, fê-lo atendendo à verdade sobre a ressurreição. A verdade sobre a ressurreição afirma, com efeito, com clareza que a perfeição escatológica e a felicidade do homem não podem entender-se com um estado da alma sozinha, separada (segundo Platão: liberta) do corpo, mas é preciso entendê-la como o estado do homem definitiva e perfeitamente "integrado" através de uma união tal da alma com o corpo, que qualifica e assegura definitivamente a referida integridade perfeita.

Neste ponto interrompemos a nossa reflexão a respeito das palavras pronunciadas por Cristo sobre a ressurreição. A grande riqueza dos conteúdos encerrados nestas palavras leva-nos e retomá-las nas futuras considerações.



Notas

1) Cf. por exemplo: "Habet autem anima alium modum essendi cum unitur corpori, et cum fuerit a corpore separata, manente tamen eadem animae natura; non ita quod uniri corpori sit ei accidentale, sed per rationen suae naturae corpori unitur..." (S. Tomás, Sum. Theol. 1a, q. 89, a. 1).

"Si autem hoc non est ex natura animae, sed per accidens hoc convenit ei ex eo quod corpori alligatur, sicut Platonici posuerunt... remoto impedimento corporis, rediret anima ad suam naturam... Sed, secundum hoc, non esset anima corpori unita propter melius animae...; sed hoc esset solum propter melius corporis: quod est irrationabile, cum materia sit propter formam, et non e converso..." (Ibidem).

"Secundum se convenit animae corpori uniri... Anima humana manet in suo esse cum fuerit a corpore separata, habent aptitudinem et inclinationem naturalem ad corporis unionem" (Ibidem, 1a, q. 76, a.1 ad 6).

2) Tò mèn sômá estin hemin sêma (Platão, Gorgia 493 A; cf. também Fédon 66 B; Cratilo 400 C).

3) A. De anima, II, 412a, 19-22; cf. também Metaph. 1029 b 11 - 1030 b 14.

Saudações

Aos peregrinos de língua francesa

Saúdo com prazer todos os peregrinos de língua francesa presentes neste encontro e dirijo de modo particular aos membros do Movimento Internacional dos Intelectuais Católicos, que se encontram em Roma para o seu Simpósio sobre a "nova ordem económica internacional", o meu encorajamento, e agradeço-lhes a sua amável visita.

Faço votos por que os vossos trabalhos dêem um contributo de inspiração cristã para as pesquisas em curso neste campo particularmente complexo, a fim de que se manifestem, progressiva e concretamente, as soluções próprias para superar as desigualdades e as injustiças que bradam entre os povos. Esta solidariedade real e internacional é uma condição essencial para a paz entre as nações e para o advento de uma civilização digna da nossa época. Oxalá o ensinamento do Magistério eclesial seja para vós e para os vossos colaboradores uma fonte preciosa de luz e de coragem! Confio a Cristo Redentor as tarefas delicadas que assumis, e peço-Lhe que vos abençoe.

Não queria deixar de encorajar também os Irmãos de Ploërmel é de São Gabriel que seguem juntos com ardor um tirocínio de renovação espiritual. O Senhor vos abençoe também a vós!

Aos jovens da "Cruzada Estudantil da Colômbia"

Uma especial saudação aos jovens da "Cruzada Estudantil da Colômbia".

Queridos jovens: nas vossas tarefas escolares e na vida inteira, procurai dar um claro testemunho de espírito cristão, desejosos de agradar sempre a Deus de O servir com predilecção nos mais necessitados. A vós, formadores e familiares, dou-vos a minha cordial Bênção Apostólica.

Aos grupos de peregrinos de língua inglesa

Tenho muito prazer em dar as boas-vindas às irmãs do ARC Programa, que vieram a Roma de diversos continentes. Jesus Cristo comunique a cada uma de vós, mediante o seu Espírito Santo, a grandeza da vossa consagração à Igreja. A verdade de Jesus vos liberte, e o seu amor vos possua plenamente e para sempre.

Dirijo também as minhas saudações aos sacerdotes dos Estados Unidos que estão a estudar na Casa Santa Maria. Lembrai-vos sempre que os fiéis esperam receber de vós a santa palavra de Deus. Queridos irmãos, a eficácia da vossa orientação eclesial depende directamente a vossa união com Jesus Cristo, Sacerdote Supremo e Vítima da salvação.

Aos vários grupos italianos

Dirijo também uma saudação cordial e de bons votos às Irmãs Oblatas do Divino Amor reunidas em Grottaferrata para o seu Capítulo Geral. As grandes linhas da vossa vocação religiosa: Adoração, Reparação e Apostolado, vos estimulem a ser cada vez mais conscientemente o coração da Igreja, sobretudo mediante a adesão fiel aos mais elevados ideais evangélicos. Com a minha afectuosa Benção.

Saúdo cordialmente os participantes no Congresso Nacional de Estudo para Ecónomos de Comunidades e Instituições Eclesiásticas e Religiosas.

Soube com prazer, caríssimos filhos, que no decurso do encontro examinastes os complexos problemas do vosso sector à luz também das indicações contidas na Encíclica Laborem exercens.Ao fazer votos por que estes dias de estudo vos tenham oferecido orientações úteis para a vossa delicada actividade, concedo a todos, como prenúncio de copiosos favores celestes, a minha Bênção Apostólica.

E agora saúdo afectuosamente todos os Membros do Circo "Moira Orfei" que quiseram fazer-me uma visita.

Caríssimos Irmãos e Irmãs, vós assumis o encargo de oferecer um divertimento são, distensivo, inteligente ao homem moderno tão cheio de tensão e de problemas. Dou-vos todo o meu encorajamento, ao mesmo tempo que vos agradeço este testemunho itinerante de apego aos valores morais da família e da colaboração fraterna. O Senhor vos assista e conforte todos os dias, e eu abençoo-vos de coração.

Dirijo-me, por fim, aos jovens, aos jovens Casais e aos Doentes.

Desejo, desta ver, saudá-los juntos para salientar a necessidade daquele amor fraterno, que deve reinar na Igreja entre os diversos membros e os vários grupos.

A expectativa do Senhor sustém a nossa oração neste período do Advento. O cristão é um homem que espera Cristo mas esta sua atitude não é passiva nem um desinteresse para com o mundo, Caminhemos, pois. para o Senhor com ânimo alegre, sem nos pouparmos! Vás, Jovens, confiai-Lhe com fé as vossas esperanças; vós, Casais, o vosso amor cristão o o compromisso de uma fiel e recíproca doação: vós, caríssimos Doentes, oferecei-lhe o ouro fino e luzidio do vosso sofrimento que, em união com o Seu, é graça, é salvação, é alegria para toda a Comunidade dos Fiéis.

A todos abençoo de coração



PAPA JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA GERAL


Quarta-feira, 9 de Dezembro de 1981




A perfeita realização da pessoa

1. "Na ressurreição nem os homens terão mulheres, nem as mulheres maridos, mas serão como anjos de Deus no céu" (Mt 22,30 analogamente Mc 12,25). "São semelhantes aos anjos, e, sendo filhos da ressurreição, são filhos de Deus" (Lc 20,36).

Procuremos compreender estas palavras de Cristo relativas à futura ressurreição, para delas tirarmos conclusões sobre a espiritualização do homem, diferente da espiritualização da vida terrena. Poder-se-ia aqui falar também de um perfeito sistema de forças nas relações recíprocas entre o que no homem é espiritual e o que é corpóreo. O homem "histórico", em seguida ao pecado original, experimenta uma múltipla imperfeição deste sistema de forças, que se manifesta nas bem conhecidas palavras de São Paulo: "Outra lei vejo nos meus membros, a lutar contra a lei da minha razão" (Rm 7,23).

O homem "escatológico" estará livre dessa "oposição". Na ressurreição o corpo voltará à perfeita unidade e harmonia com o espírito: o homem já não experimentará a oposição entre o que nele é espiritual e o que é corpóreo. A "espiritualização" significa não só que o espírito dominará o corpo mas, diria, que ele penetrará inteiramente no corpo, e que as forças do espírito penetrarão nas energias do corpo.

2. Na vida terrena, o domínio do espírito sobre o corpo — e a simultânea subordinação do corpo ao espírito — pode, como fruto de um perseverante trabalho sobre nós mesmos, exprimir uma personalidade espiritualmente amadurecida; todavia, o facto de as energias do espírito conseguirem dominar as forças do corpo não tira a possibilidade mesma da recíproca oposição entre elas. Mas a "espiritualização", a que aludem os Evangelhos sinópticos (Mt 22,30 Mc 12,25 Lc 20,34-35) nos textos aqui analisados, encontra-se já fora de tal possibilidade. É portanto uma espiritualização perfeita, em que é completamente eliminada a possibilidade de "outra lei lutar contra a lei da... razão" (cf. Rom Rm 7,23). Este estado que — como é evidente — se diferencia essencialmente (e não só quanto ao grau) daquilo que experimentamos na vida terrena, não significa todavia alguma "desencarnação" do corpo nem, por conseguinte, uma "desumanização" do homem. Antes, ao contrário, significa a sua perfeita "realização". De facto, no ser composto, psicossomático, que é o homem, a perfeição não pode consistir numa recíproca oposição do espírito e do corpo, mas numa profunda harmonia entre eles, na salvaguarda do primado do espírito. No "outro mundo", tal primado será realizado e manifestar-se-á numa perfeita espontaneidade, privada de qualquer oposição por parte do corpo. Todavia isto não se entende como definitiva "vitória", do espírito sobre o corpo. A ressurreição consistirá na perfeita participação de tudo o que no homem é corpóreo naquilo que nele é espiritual. Ao mesmo tempo consistirá na perfeita realização do que no homem é pessoal.

3. As palavras dos Sinópticos asseguram que o estado do homem no "outro mundo" será não só estado de perfeita espiritualização, mas também de fundamental "divinização" da sua humanidade. Os "filhos da ressurreição" — como lemos em Lucas 20, 36 não só "são iguais aos anjos", mas também "são filhos de Deus". Pode-se tirar daí a conclusão de o grau da espiritualização, próprio do homem "escatológico", ter a sua fonte no grau da sua "divinização"; incomparavelmente superior àquela que se pode conseguir na vida terrena. É necessário acrescentar que se trata não só de um grau diverso, mas em certo sentido doutro género de "divinização". A participação na natureza divina, a participação na vida interior de Deus mesmo, penetraçãoe permeação daquilo que é essencialmente humano por parte do que é essencialmente divino, atingirá então o seu auge, pelo qual a vida do espírito humano chegará a tal plenitude que antes lhe era absolutamente inacessível. Esta nova espiritualização será portanto fruto da graça, isto é de Deus se comunicar, na sua mesma divindade, não só à alma, mas a toda a subjectividade psicossomática do homem. Falamos aqui da "subjectividade" (e não "natureza"), porque aquela divinização deve entender-se não só como um "estado interior" do homem (isto é: do sujeito), capaz de ver Deus "face a face", mas também como nova formação de toda a subjectividade pessoal do homem à medida da união com Deus no Seu mistério trinitário e da intimidade com Ele na perfeita comunhão das pessoas. Esta intimidade — com toda a sua intensidade subjectiva — não absorverá a subjectividade pessoal do homem, antes, pelo contrário, fá-la-á ressaltar numa medida incomparavelmente maior e mais plena.

4. A "divinização" no "outro mundo", indicada pelas palavras de Cristo, trará ao espírito humano tal "gama de experiência" da verdade e do amor, que o homem nunca poderia atingir na vida terrena. Quando Cristo fala da ressurreição, demonstra ao mesmo tempo que nesta experiência escatológica da verdade e do amor, unida à visão de Deus "face a face", participará também, a seu modo, o corpo humano. Quando Cristo diz que os que participarem na futura ressurreição não tomarão mulher nem marido (cf. Mc Mc 12,25), as Suas palavras — como já antes foi observado — afirmam não só o fim da história terrena ligada ao matrimónio e à procriação, mas parecem também desvelar o novo significado do corpo. É porventura possível, neste caso, pensar — a nível de escatologia bíblicano descobrimento do significado "esponsal" do corpo, sobretudo como significado "virginal" de ser, quanto ao corpo, homem ou mulher? Para responder a esta pergunta, que deriva das palavras referidas pelos Sinópticos, convém penetrar mais a fundo na essência mesma do que será a visão beatífica do Ser Divino, visão de Deus "face a face" na vida futura. É necessário também deixarmo-nos guiar por aquela "gama de experiência" da verdade e do amor, que ultrapassa os limites das possibilidades cognoscitivas e espirituais do homem na temporalidade, e de que ele se tornará participante no "outro mundo".

5. Esta "experiência escatológica" do Deus Vivo concentrará em si não só todas as energias espirituais do homem, mas, ao mesmo tempo, desvelar-lhe-á, de modo vivo e experimental, "o comunicar-se" de Deus a tudo o que é criado e, em particular, ao homem; o que é mais pessoal "dar-se" de Deus, na sua mesma divindade, ao homem: àquele ser, que desde o princípio traz em si a imagem e semelhança d'Ele. Assim, portanto, no "outro mundo" o objecto da "visão" será aquele mistério oculto da eternidade no Pai, mistério que no tempo foi revelado em Cristo, para completar-se incessantemente por obra do Espírito Santo; aquele mistério tornar-se-á, se assim nos podemos exprimir, o conteúdo da experiência escatológica e a "forma" da inteira existência humana na dimensão do "outro mundo". A vida eterna deve entender-se em sentido escatológico, isto é como plena e perfeita experiência daquela graça (charis) de Deus, da qual o homem se torna participante por meio da fé durante a vida terrena, e que pelo contrário deverá não só revelar-se àqueles que participarão do "outro mundo" em toda a sua penetrante profundidade, mas ser também experimentada na sua realidade beatificante.

Aqui suspendemos a nossa reflexão centrada sobre as palavras de Cristo relativas à futura ressurreição dos corpos. Nesta "espiritualização" e "divinização", em que o homem participará na ressurreição, descobrimos — numa dimensão escatológica — as mesmas características que qualificavam o significado "esponsal" do corpo; descobrimo-lo no encontro com o mistério de Deus Vivo, que se desvela mediante a visão d'Ele "face a face".

Saudação

Saúdo os ouvintes de língua portuguesa!

Ainda nos fulgores da festa da Imaculada, que ontem solenemente celebramos, tentemos compreender melhor a espiritualização do homem. Pela ressurreição do corpo, o homem ficará liberto da oposição entre o espiritual e o corpóreo, para gozar de uma perfeita harmonia interior. Será sua perfeita realização pessoal.

Ao par da espiritualização, a Bíblia fala também da divinização do homem, que consiste na participação na vida íntima do próprio Deus. Esta divinização há de trazer uma experiência de verdade e de amor que o homem jamais poderia alcançar aqui na terra.

Para que a fé nesta revelação da plenitude do homem em Deus, a exemplo da Virgem Imaculada, vos encha de conforto e coragem na luta do dia a dia, vos dou minha Bênção Apostólica.



PAPA JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA GERAL


Quarta-feira, 16 de Dezembro de 1981


As palavras de Cristo sobre a ressurreição completam a revelação do corpo

1. "Na ressurreição... nem os homens terão mulheres, nem as mulheres maridos, mas serão como anjos de Deus" (Mt 22, 30, analogamente Mc 12,25). "... São semelhantes aos anjos e, sendo filhos da ressurreição, são filhos de Deus" (Lc 20,36).

A comunhão (communio)escatológica do homem com Deus, constituída graças ao amor de uma perfeita união, será alimentada pela visão, "face a face", da contemplação daquela comunhão mais perfeita, porque puramente divina, que é a comunhão trinitária das Pessoas divinas na unidade da mesma divindade.

2. As palavras de Cristo, referidas pelos Evangelhos sinópticos, consentem-nos deduzir que os possuidores do "outro mundo" conservarão — nesta união com o Deus vivo, que brota da visão beatífica da Sua unidade e comunhão trinitária — não só a sua autêntica subjectividade, mas a adquirirão em medida muito mais perfeita que na vida terrena. Nisto será, além disso, confirmada a lei da ordem integral da pessoa, segundo a qual a perfeição da comunhão não só é condicionada pela perfeição ou maturidade espiritual do sujeito, mas também, por sua vez, a determina. Aqueles que participarem no "mundo futuro", isto é na perfeita comunhão com o Deus vivo, gozarão de uma subjectividade perfeitamente madura. Se nesta perfeita subjectividade, conservando embora no seu corpo ressuscitado, isto é glorioso, a masculinidade e a feminilidade, "não tomarão mulher nem marido", isto explica-se não só com o fim da história, mas também — e sobretudo — com a "autenticidade escatológica" da resposta àquele "comunicar-se" do Sujeito Divino, que formará a beatificante experiência do dom de Si mesmo por parte de Deus, absolutamente superior a toda a experiência própria da vida terrena.

3. O recíproco dom de si mesmo a Deus — dom, em que o homem concentrará e exprimirá todas as energias da própria subjectividade pessoal e ao mesmo tempo psicossomática — será a resposta ao dom de Si mesmo por parte de Deus ao homem (1). Neste recíproco dom de si por parte do homem, dom que se tornará, até ao fundo e definitivamente, beatificante, como resposta digna de um sujeito pessoal ao dom de si por parte de Deus, a "virgindade" ou melhor o estado virginal do corpo manifestar-se-á plenamente como simples complemento escatológico do significado "esponsal" do corpo, como o sinal específico e a expressão autêntica de toda a subjectividade pessoal. Assim portanto, aquela situação escatológica, em que "não tomarão mulher nem marido", tem o seu sólido fundamento no estado futuro do sujeito pessoal, quando, em seguida à visão de Deus "face a face", nascer nele um amor de tal profundidade e força de concentração sobre Deus mesmo, que absorverá completamente a sua inteira subjectividade psicossomática.

Esta concentração do conhecimento ("visão") e do amor sobre Deus mesmo — concentração que só pode ser a plena participação na vida: interior de Deus, isto é na mesma Realidade Trinitária — será ao mesmo tempo a descoberta, em Deus, de todo o "mundo" das relações, constitutivas da sua perene ordem ("cosmos"). Tal concentração será sobretudo a redescoberta de si por parte do homem, não só na profundidade da própria pessoa, mas também naquela união que é própria do mundo das pessoas na constituição psicossomática delas. Certamente é uma união de comunhão. A concentração da consciência e do amor sobre Deus mesmo, na comunhão trinitária das pessoas pode encontrar uma resposta beatificante naqueles que se tornarem participantes do "outro mundo", só através do realizar-se da comunhão recíproca comensurada às pessoas criadas. E por isso professamos a fé na "comunhão dos Santos" (communio sanctorum) e professamo-la em relação orgânica com a fé na "ressurreição dos mortos". As palavras com que afirma Cristo que no "outro mundo... não tomarão mulher nem marido", estão na base destes conteúdos da nossa fé, e, ao mesmo tempo, requerem uma adequada interpretação precisamente à sua luz. Devemos pensar na realidade do "outro mundo", nas categorias da redescoberta de unia nova e perfeita subjectividade de cada um, e ao mesmo tempo da redescoberta de uma nova, perfeita intersubjectividade de todos. De tal modo, esta realidade significa o verdadeiro e definitivo complemento da subjectividade humana, e, nesta base, o definitivo complemento do significado "esponsal" do corpo. A total concentração da subjectividade criada, remida e glorificada, sobre Deus mesmo não afastará o homem deste complemento, antes — pelo contrário — vos introduzirá e vos consolidará nela. Pode-se dizer, por fim, que deste modo a realidade escatológica se tornará fonte da perfeita actuação da "ordem trinitária" no mundo criado das pessoas.

5. As palavras com que apela Cristo para a futura ressurreição — palavras confirmadas de modo singular pela Sua ressurreição — completam o que nas presentes reflexões costumamos chamar "revelação do corpo". Tal revelação penetra em certo sentido no coração mesmo da realidade que experimentamos, e esta realidade é sobretudo o homem, o seu corpo, o corpo do homem "histórico". Em igual tempo, esta revelação consente-nos ultrapassar a esfera desta experiência em duas direcções. Primeiro que tudo, na direcção daquele "princípio", ao qual Cristo faz referência no Seu colóquio com os Fariseus a respeito da indissolubilidade do matrimónio (cf. Mt Mt 19,3-9); em segundo lugar, na direcção do "outro mundo", para o qual o Mestre chama a atenção dos seus ouvintes em presença dos Saduceus, que "afirmam que não há ressurreição" (Mt 22,23). Estes dois "ampliamentos da esfera" da experiência do corpo (se assim se pode dizer) não são completamente inacessíveis para a nossa compreensão (obviamente teológica) do corpo. O que o corpo humano é no âmbito da experiência histórica do homem não é de todo interrompido por aquelas duas dimensões da sua existência, reveladas mediante a palavra de Cristo.

6. É claro que se trata aqui não tanto do "corpo" em abstracto, mas do homem que é espiritual e corpóreo juntamente. Prosseguindo nas duas direcções, indicadas pela palavra de Cristo, e ligando-nos de novo à experiência do corpo na dimensão da nossa existência terrena (portanto na dimensão histórica), podemos fazer certa reconstrução teológica do que poderia ser a experiência do corpo em base ao "princípio" revelado do homem e também daquilo que ele será na dimensão do "outro mundo". A possibilidade de tal reconstrução, que amplia a nossa experiência do homem-corpo, indica, pelo menos indirectamente, a coerência da imagem teológica do homem nestas três dimensões, que juntamente concorrem para a constituição da teologia do corpo.

Ao interromper, por hoje, as reflexões sobre este tema, convido-vos a dirigir os vossos pensamentos para os dias santos do Advento que estamos a viver.

Nota

1) "Na concepção bíblica (...) trata-se de uma imortalidade "dialógica" (ressuscitação!), quer dizer que a imortalidade não deriva simplesmente da óbvia verdade de o indivisível não poder morrer, mas do acto salvador daquele que ama, que tem poder de o fazer; por isso o homem não pode desaparecer totalmente, porque é conhecido e amado por Deus. Se todo o amor postula a eternidade, o amor de Deus não só a quer, mas exercita-a e é-a.

... Dado que a imortalidade apresentada pela Bíblia não deriva da força própria de quanto de per si é indestrutível, mas de ser acolhido no diálogo com o Criador, por este facto deve-se chamar ressuscitação..." (J. Ratzinger, "Risurrezione della carne — aspetto teologico", em: Sacramentum Mundi, vol. 7, Bréscia 1977, Morcelliana, PP 160-161).

Apelo em favor da Polónia

Seja louvado Jesus Cristo! Caríssimos Compatriotas!

Os acontecimentos dos últimos dias fizeram dirigir os olhos de todo o mundo para a Polónia. Nisto manifesta-se uma clara inquietação e, contemporaneamente, a solidariedade com a nossa Nação.

Pelas expressões de tal solidariedade estou grato a todos, porque com muita frequência são dirigidas directamente a mim.

Esta inquietação é fundada. Basta ler o discurso, que no domingo à tarde pronunciou o Primaz da Polónia na igreja de "Nossa Senhora elas Graças" em Varsóvia, para sentir a medida de tal inquietação dentro do País, que devido à introdução do estado de assédio ficou privado dos normais contactos com o resto do mundo. O primaz diz: "A Igreja soube com pesar da ruptura do diálogo, que se travava com tanto custo, e da entrada no caminho da violência, qual é o estado de assédio. E isto não pode acontecer sem a violação dos fundamentais direitos civis. Traz consigo, em muitos casos, o desprezo da dignidade humana, a prisão de inocentes, o aviltamento dos homens da cultura e da ciência, a incerteza de tantas famílias...".

Em tais condições, a minha solicitude dirige-se ainda para a Pátria, para a Nação, de que sou filho — e que, como toda a Nação e País, tem direito a uma particular solicitude por parte da Igreja. Esta solicitude abrange neste momento toda a Polónia e todos os Polacos.

Eles têm, como Nação, o direito de viver a própria vida e de resolver os próprios problemas internos no espírito das próprias convicções em conformidade com a própria cultura e tradição nacionais.

Estes problemas, certamente difíceis, não se podem resolver com o uso da violência.

Daqui o meu apelo e o meu pedido: é necessário voltar ao caminho do renovamento, construído com o método do diálogo, no respeito dos direitos de cada homem e de cada cidadão. Este caminho não era fácil — por causas compreensíveis — mas não é impossível.

A força e a autoridade do poder exprimem-se em tal diálogo e não no uso da violência.

Já no domingo, tendo chegado a primeira notícia da introdução do estado de assédio, recordei as palavras que pronunciei em Setembro: "Não se pode derramar sangue polaco!". Hoje repito as mesmas palavras.

E juntamente com toda a Igreja e, em particular, com a Igreja na Polónia, confio a Cristo, que é Senhor do século futuro, e a sua Mãe, em Jasna Gora, toda a minha Pátria, esta Nação provada, não pela primeira vez, na luta pelo justo direito de ser ela mesma!
* * *


Saudação

A minha saudação cordial aos ouvintes de língua portuguesa!

Ao prepararmo-nos para a vinda de Cristo, nestes dias penitenciais do Advento, continuamos a reflexão sobre o corpo humano.

O nosso corpo está destinado à glorificação, pela ressurreição dos mortos. Na visão beatificante do Céu dar-se-á a redescoberta tanto da subjectividade, como da intersubjectividade pessoal, aparecendo o verdadeiro e definitivo significado esponsal do mesmo corpo. Assim, não há uma ruptura total entre a experiência histórica do homem e sua situação futura de ressuscitado.

Oxalá possais descobrir e apreciar, cada vez mais, o sentido do próprio corpo, à luz da glória celeste. Com a minha Bênção Apostólica.



PAPA JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA GERAL


Quarta-feira, 23 de Dezembro de 1981




Recuperemos a verdade do Natal na sua autenticidade e no seu significado

Caríssimos Irmãos e Irmãs

I. A Audiência de hoje realiza-se no clima do Natal agora iminente, que com tanta eloquência fala ao espírito e ao coração. A Liturgia do Advento preparou-nos espiritualmente para reviver o mistério que assinalou uma viragem na história humana: o nascimento de um Menino que é também o Filho de Deus, o nascimento do Salvador.

É acontecimento que verdadeiramente mudou o rosto do mundo. Disto não é acaso testemunho a própria atmosfera alegre que se respira pelas ruas das cidades e das aldeias, nos lugares de trabalho e no íntimo das nossas casas? A festa do Natal entrou nos costumes como incontrastada data de alegria e de bondade, e como ocasião e estímulo para um pensamento gentil, para um gesto de altruísmo e amor. Esta abundância de generosidade e cortesia, de atenção e de cuidados, inscreve o Natal entre os momentos mais belos do ano, mesmo da vida, impondo-se também àqueles que não têm fé mas não conseguem subtrair-se à fascinação que se desprende desta mágica palavra: Natal.

Isto explica também o aspecto lírico e poético, que circunda esta data: quantas melodias pastoris, quantas canções dulcíssimas desabrocharam à volta deste acontecimento! E que enorme carga de sentimento ou, por vezes, de saudade ele consegue despertar! A natureza que nos circunda adquire neste dia uma linguagem sua, doce e inocente, que nos faz saborear a alegria das coisas simples e verdadeiras, pelas quais o nosso coração aspira, mesmo sem o saber.

2. Mas atrás deste aspecto sugestivo, eis que logo se manifestam outros, que lhe alteram a limpidez e lhe insidiam a autenticidade. São, estes, os aspectos puramente exteriores e consumísticos da festa, que chegarão talvez a esvaziar, do seu significado verdadeiro, a data, quando se apresentam não como expressão da alegria interior caracterizante, mas como elementos principais dela, ou quase como sua única razão de ser.

O Natal perde então a sua autenticidade, o seu sentido religioso, e torna-se ocasião de dissipação e desperdício, escorregando para exterioridades inconvenientes e fúteis, que parecem ofensa para aqueles que a pobreza condena a contentarem-se com as migalhas.

3. É necessário recuperar a verdade do Natal na autenticidade do dado histórico e na plenitude do significado de que ele é portador.

O dado histórico é que — num determinado momento da história, em certa povoação da terra — de uma humilde mulher da estirpe de David nasceu o Messias, anunciado pelos profetas: Jesus Cristo Senhor.

O significado é que, com a vinda de Cristo, a história humana inteira encontrou o seu termo, a sua explicação e a sua dignidade. Deus veio ao nosso encontro em Cristo, para nós podermos ter acesso a Ele. Se se repara bem, a história humana é uma ininterrupta aspiração para a alegria, a beleza, a justiça e a paz. São realidades que só em Deus podem encontrar-se em plenitude. Pois bem, a Natal traz-nos o anúncio de Deus ter decidido vencer as distâncias, transpor os abismos inefáveis da, Sua transcendência, aproximar-se de nós, até tomar Sua a nossa vida, até fazer-se nosso irmão.

Eis então: procuras a Deus? Encontra-lo no teu irmão, porque em cada homem agora está Cristo como que identificado. Queres amar a Cristo? Ama-O no teu irmão, porque quanto tu fazes a um qualquer dos teus semelhantes, Cristo considera-o como feito a Si. Se, portanto, te esforçares por abrir-te com amor ao teu próximo, se procurares estabelecer relações de paz com ele, se quiseres pôr em comum com o próximo os teus recursos, para que a tua alegria, comunicando-se, se torne mais verdadeira, terás ao teu lado Cristo, e com Ele deverás alcançar a meta que o teu coração sonha: um mundo mais justo, e portanto mais humano.

Encontre o Natal cada um de nós, empenhado em descobrir a mensagem que parte da manjedoura de Belém. Requer-se um pouco de coragem, mas vale a pena, porque, só se soubermos abrir-nos assim à vinda de Cristo, poderemos fazer a experiência da paz anunciada pelos Anjos na noite santa. Constitua o Natal, para todos vós, um encontro com Cristo, que se fez homem para dar a cada homem a capacidade de se tornar filho de Deus.

4. É este o augúrio que dirijo a todos, ao mesmo tempo que tenho o prazer de enviar uma particular saudação aos Dirigentes, aos Professores e aos Estudantes da Escola de Música "Tommaso Ludovico Victoria", fundada pela Associação Italiana de Santa Cecília e actualmente associada ao Pontifício Instituto de Música Sacra.

Caríssimos, agradeço-vos, bem do coração, terdes vindo alegrar este encontro, na proximidade do Natal, com os vossos cantos harmoniosos. E, ao mesmo tempo que á vós, agradeço aos vossos familiares que sei estarem também presentes em número considerável.

A vós estudantes, em particular, gosto de recomendar que prossigais com amor e constância neste vosso empenho de estudo, que educa para a arte, enobrece o coração e une as almas em harmonia de bondade e de vida.

Aprendei, por outro lado, a completar tal estudo com um aprofundado conhecimento das verdades religiosas, para que os valores da fé estejam unidos aos valores da arte.

Sede sempre, com a prática das virtudes cristãs, fiéis testemunhas de Cristo na escola, nas famílias e na sociedade. E oxalá o vosso canto, unido ao canto dos Anjos, obtenha do divino Menino de Belém paz verdadeira e durável para a humanidade inteira.

5. Torno extensiva a saudação a todos os jovens. Caríssimos, a iminência do Santo Natal, que nos recorda o amor sem limites do Filho de Deus, descido do Céu a uma carne mortal "por nós homens e pela nossa salvação", desperte em cada um de vós sentimentos de sincero amor pelo próximo, confirmando-vos no propósito de colocar as energias, de que Deus vos enriqueceu, a serviço dos irmãos.

A minha palavra de saudação vai depois para os doentes. Caríssimos irmãos e irmãs, na luz do Natal, que tanta doçura difunde nos corações, desejo dirigir-vos um particular voto de serenidade e de paz. O pensamento das dificuldades e incómodos, em que veio encontrar-se — nascendo — Jesus Menino, vos conforte nos vossos sofrimentos e vos ajude a ver neles uma ocasião, o mais significativa possível, para estardes perto d'Ele na obra da redenção, a que deu início já desde a manjedoura de Belém.

Estão presentes na Audiência numerosos recém-casados. Também para vós, caríssimos, a minha saudação e os meus votos. Na cena do presépio, em que o amor de dois Esposos é alegrado com os vagidos de um Recém-nascido, vós podeis contemplar, na sua expressão mais alta, o que o vosso coração está procurando. Fiquem Jesus, Maria e José o modelo constante do vosso empenho de doação recíproca — e o recurso ao auxílio d'Eles vos socorra em qualquer dificuldade, alimentando nos vossos corações a chama daquele amor, que o sacramento consagrou diante de Deus e diante dos homens.

A todos os meus votos de um alegre e santo Natal. A todos a minha cordial Bênção.



Saudação

Queridos irmãos e irmãs de língua portuguesa

Na antevéspera do Natal, saúdo-vos a todos e a cada um, cordialmente, já à luz do " grande Mistério " que vamos celebrar, não como acontecimento passado, mas em toda a sua actualidade.

O Menino do Presépio é " o nosso grande Deus e Salvador ": é o Verbo, a Palavra viva em que todo o ser de Deus se exprime, que se fez Carne e habitou entre nós, inserindo-se plenamente na história humana, para transformar e salvar o mundo, e permitindo aos homens tornarem-se a família dos filhos de Deus.

Jesus Cristo é o dom supremo da bondade e misericórdia divinas: n’Ele e por Ele nos vieram a graça, a alegria e a paz de Deus, que para a humanidade imploro e todos vós do coração desejo. E muito Boas-Festas do Natal, com a minha Bênção Apostólica.




AUDIÊNCIAS 1981