Discursos João Paulo II 1980 - A UM GRUPO DE «PRÉMIOS NOBEL»

Segunda-feira, 22 de Dezembro de 1980



Estimados Vencedores do Prémio Nobel

1. Sinto-me sinceramente feliz e honrado ao ser-me dado saudar em vós uma plêiade de ilustres personalidades da ciência que, provenientes muito embora de diferentes países, estais ligados por fraternidade no ideal de buscar desinteressadamente a verdade nos vários campos da experiência humana. A altíssima honraria que se vos outorgou, como condecoração pelo diuturno labutar, constitui-se em significativo reconhecimento pela vossa contribuição ao avanço dos conhecimentos do ser humano sobre si mesmo e sobre o mundo que o rodeia.

Ao contemplar-vos, voa o meu pensamento a todos os que têm sido agraciados com o mesmo prémio, bem como aos que, com menos sucesso, mas não com menor generosidade, dedicaram e ainda estão a dedicar as suas vidas à paciente pesquisa dos complexos meandros da realidade, na esperança de descobrirem um novo segredo que tenha permanecido oculto em alguma página do maravilhoso livro da natureza.

Ao saudar-vos, senhores, desejo honrar esse longo rol de cientistas e exprimir o meu profundo apreço e gratidão pelos seus trabalhos. Embora nem sempre sejam coroados de sucesso os seus esforços, a sua apaixonada dedicação à verdade enriquece o legado espiritual da humanidade.

2. Durante o colóquio organizado pela associação Nova Spes, reflectistes sobre um tema que é altamente relevante para o tempo presente: o ser humano entre esperanças e ameaças. Estou ansioso por ouvir de vós as conclusões a que chegastes, num tópico que se está tornando de palpitante interesse, dia a dia, em vista do desenvolvimento da pesquisa científica.

Em muitas ocasiões senti-me obrigado a chamar a atenção de pessoas em posições de responsabilidade, para os riscos incumbentes sobre a humanidade, derivados de um uso destorcido das descobertas científicas. O futuro do mundo está ameaçado nas suas próprias raízes precisamente por esses avanços que trazem o mais claro cunho da genialidade humana. Eis o resultado de se utilizar o progresso científico que nada tem a ver com a ciência. A ciência é feita para a verdade e a verdade, para o ser humano, e o ser humano reflecte como numa imagem (cf. Gén Gn 1,27) a eterna verdade transcendente que é Deus. No entanto, a experiência da história, particularmente da história recente, mostra como os avanços científicos estão sendo usados contra o ser humano, às vezes de maneira terrificante. No decurso da viagem que me apresto a fazer ao Extremo Oriente, tenciono ir a Hiroxima, a fim de orar naquele lugar que foi o primeiro a conhecer a potência tremendamente destruidora da energia atómica.

Cada um de vós poderia falar longamente sobre as perspectivas de desenvolvimento da pesquisa no seu próprio campo. Poderia igualmente dissertar sobre os riscos de aplicações destorcidas do desenvolvimento esperado. Existem hoje inúmeras possibilidades de manipular o ser humano. Amanhã serão ainda mais numerosas estas possibilidades. Será que preciso de enfatizar o perigo de desumanização radical a que se expõe o ser humano, caso avance loucamente por essa estrada?

3. A questão que se tornou hoje dramaticamente urgente é a de se saber qual critério seguir para não sofrer tais consequências desastrosas. Quando falei a cientistas e estudantes na catedral de Colónia, no dia 15 de Novembro passado, disse: «A ciência tecnológica no intuito de transformar o mundo, é justificada pelo serviço que presta ao ser humano e à humanidade» (Encontro com os cientistas em Colónia, 15 de Novembro de 1980, n. 4). É este, senhores, o critério decisivo: o critério de servir ao ser humano, a todo o ser humano, na inteireza da sua subjectividade espiritual e corporal.

A nossa cultura está impregnada em todos os campos por uma noção amplamente funcional da ciência, decisivo é o sucesso técnico. O facto de ser tecnicamente possível produzir um certo resultado é tido por muitos como suficiente motivo para não terem de levantar mais questões a respeito da legitimidade do processo que leva a tal resultado, ou mesmo da legitimidade do próprio resultado. É claro que semelhante visão não deixa espaço para um valor ético supremo ou mesmo para a própria noção de verdade.

Não tardaram a aparecer as consequências de tão acanhada visão da ciência: o progresso científico nem sempre vem acompanhado por análoga melhoria nas condições de vida do ser humano. Têm surgido indesejados e imprevistos efeitos, os quais despertam séria preocupação em segmentos cada vez mais amplos da população. Basta pensarmos na problemática ecológica resultante do progresso industrial. Levantam-se assim sérias dúvidas acerca da capacidade que tenha o progresso como um todo, de servir ao ser humano.

Como poderia, pois, ser uma surpresa que se comece hoje a falar de uma crise de legitimidade da ciência, crise essa que diz respeito aos rumos a serem tomados por toda a nossa cultura científica no seu conjunto? A ciência por si só não é capaz de fornecer resposta cabal ao quesito do significado básico da vida e actividade humanas. O seu significado só se desvenda quando indo a razão além do dado físico, usa métodos metafísicos para atingir a contemplação das «causas finais» e ali descobre a suprema explicação apta a iluminar os eventos humanos e dar-lhes o seu sentido.

A busca do significado final é complexa por sua própria natureza e exposta ao risco do erro: ficar-se-ia tantas vezes às apalpadelas nas trevas caso não nos viesse em ajuda a luz da fé. A revelação cristã prestou inestimável contribuição à consciência que a humanidade moderna pode adquirir, da sua própria dignidade e dos seus próprios direitos. Em absoluto não hesito em repetir aqui o que disse aos membros da UNESCO: «O conjunto das afirmações concernentes ao ser humano, pertence à própria substância da mensagem cristã e da missão da Igreja, a despeito de tudo o que a crítica possa haver declarado a este propósito» (Discurso à Unesco, Paris, 2 de Junho de 1980).

4. Não há nenhuma intenção de ignorar ou subestimar as tensões que surgiram, no decurso da história, entre a Igreja e as ciências naturais na era moderna. A recordação desses conflitos não pode deixar de afluir a quem hoje ainda partilha a mesma fé, mas que está mais cônscio das equivocadas avaliações e dos métodos defeituosos que deram origem a esse contraste. Fé e ciência pertencem a duas diferentes ordens de conhecimento que não se podem sobrepor uma à outra.

Contanto que se respeite a distinção entre essas ordens de conhecimento e tanto a ciência como a teologia procedam nas suas especulações sem deixar de atender aos princípios metedológicos peculiares a cada qual, não é de se temer que cheguem a resultados contraditórios. Podemos deveras confiar em que, quando for o caso, as duas ordens de conhecimento entabularão um benéfico diálogo através do qual se poderá esquadrinhar cada vez mais penetrantemente a verdade em todos os seus aspectos, porque ambas, a razão e a fé, provêm da mesma divina fonte de toda a verdade.

Quem crê sabe muito bem que tudo quanto existe brota de uma palavra proferida pelo Criador, de um fiat primordial, que já continha todas as coisas e a sua ordem universal. Consequentemente, quem crê julga que o mundo tem uma explicação e que, à medida que a ciência avança árdua e penosamente, mesmo que por vezes hesite ou perca o seu rumo, deve ela chegar à compreensão do que constitui o universo — precisamente como o indica a etimologia desta palavra «universo» — uma ordem complexa em que os vários elementos estão harmoniosamente relacionados uns aos outros.

Do mesmo modo, os grandes cientistas estão convencidos de que o objectivo final da ciência natural é a descoberta de uma lei fundamental — a mais simples possível, mas em virtude, justamente, da sua própria simplicidade, a mais difícil de se compreender — para explicar a constituição do universo. O cientista pensa que um só princípio rege todas as coisas e as suas interacções básicas (cf. Vítor Weisskopf, «O significado do pensamento de Einstein», Pontifícia Academia Scientiarum, Einstein, Galileu, Editora Vaticana, 1980, p. 31).

E assim o problema já não é hoje o de oposição entre ciência e fé. Começou uma nova época: os esforços de cientistas e teólogos devem agora demandar o desenvolvimento de um diálogo construtivo, que torne possível perscrutar cada vez mais profundamente o fascinante mistério do ser humano, bem como afastar as ameaças contra o ser humano, que infelizmente se tornam dia a dia mais graves.

5. Senhores, é de extraordinária importância o papel que podeis desempenhar a este propósito. O excelso prémio mediante o qual se atestou reconhecimento não somente pelos resultados dos vossos estudos, senão também pela vossa generosa dedicação durante tantos anos à nobre tarefa da pesquisa científica, confere-vos particular competência para tomardes parte neste diálogo com os representantes do saber teológico.

Os esforços que envidareis nesta permuta interdisciplinar, junto com os esforços correspondentes dos peritos da «ciência de Deus», incentivarão significativo progresso na compreensão da verdade, que é uma unidade complexa e, portanto, não pode ser captada senão quando encarada de diversos ângulos, senão quando seja o ponto de encontro de diferentes formas de aberto e complementar conhecimento. Em particular, será assim incentivado um conhecimento mais completo do ser humano, dos componentes da sua essência, como também da dimensão histórica, mas nem por isso menos transcendental, da sua existência.

Ver-se-á então mais e mais claramente o ser humano assim como ele é: um fim, jamais um meio; um sujeito, jamais um objecto: uma meta, jamais meramente uma etapa rumo a uma meta. Numa palavra, ver-se-á o ser humano como uma pessoa, para com a qual a única atitude legítima é a de respeito incondicional. Respeito para com o ser humano tornar-se-á, pois, o supremo teste para aquilatar qualquer aplicação da ciência e qualquer planeamento concreto de novas experiências que a tecnologia possa tornar possível.

Destes valores éticos de base é que depende o porvir da humanidade. Ignorá-los significaria tornar-se responsável perante a posteridade — se é que haverá posteridade — pelo crime extremamente sério de «lesa humanidade». Sois os pioneiros da ciência e deveis actuar quais vigilantes sentinelas nos meandros do progresso, denunciando toda e qualquer forma de intervenção sobre o ser humano ou sobre o seu ambiente de vida, que pudesse vir a ser considerado como uma agressão à sua dignidade ou aos seus direitos inalienáveis. E esta uma responsabilidade que recai sobre vós. Oxalá se constitua igualmente na razão pela qual verdadeiramente mereçais ser guindados amanhã à admiração e à gratidão dos que forem salvaguardados, graças à vossa corajosa antevisão, dos riscos de medonhas catástrofes.

Aproximamo-nos do dia em que, com jubilosa emoção, rememora a Igreja o nascimento, em Belém, de um Homem que também era Deus. Quisera exprimir o desejo de que a celebração deste Natal torne a inspirar quem quer que creia, a consagrar todas as suas energias a defender a única, irrepetível dignidade de cada ser humano. Este meu desejo é também a prece do meu coração ao Verbo de Deus, que se fez ser humano por amor ao ser humano.



MENSAGEM DO PAPA JOÃO PAULO II


AO POVO DA POLÓNIA POR OCASIÃO


DO SANTO NATAL DE 1980




Louvado seja Jesus Cristo

"Com todos parto o 'oplatek' à volta da mesa da ceia da Vigília". Estas palavras escrevia-as na carta aos meus compatriotas dirigida ao Cardeal Primaz e a todos os irmãos no Episcopado na terra da Polónia. Hoje é-me dado acrescentar alguma coisa a estas palavras. Desejo pois tomar na mão este "oplatek", que recebi do Primaz, e desejo agora aqui, diante de vós, aproximar-me, encontrar-me e dividir espiritualmente convosco precisamente este "oplatek" que tenho na mão. Desejo reparti-lo com cada um de vós, com todos, e portanto com cada um sem excepções.

Desejo que esta minha palavra da Vigília chegue a cada um, sobretudo desejo que chegue às famílias, aos pais e aos filhos; à geração dos adultos e à dos jovens; e seja esta, palavra de amor, de paz e de reconciliação que vem do coração. Desejo que este augúrio da Vigília chegue de modo particular àqueles meus irmãos e irmãs que por qualquer motivo estão a sofrer, a todos os que sofrem em geral, e a todos os que se sentem sós.

Nesta Noite Santa desejo anunciar-vos a Boa-Nova. Vós mesmos anunciareis esta Boa-Nova, quando vos reunirdes para a Missa da meia-noite.

Quando os sacerdotes nas suas paróquias, nas suas igrejas, começarem a Santa Missa, esta Boa-Nova de Belém difundir-se-á com a voz da "koleda": "No silêncio da noite espalha-se a voz 'levantai-vos pastores'...". Uma vez foram estas palavras dirigidas aos pastores de Belém. Hoje sejam elas mesmas endereçadas a todos nós, a cada um: àqueles que trabalham com os braços e aos que trabalham com o cérebro; aos homens de ciência; aos jovens que estudam e aos que trabalham; aos anciãos, à geração mais idosa e às crianças; à geração mais jovem e aos recém-nascidos. São exactamente estes, os mais pequenos, que têm direito particularíssimo à festa de hoje.

A noite da Vigília foi sempre para nós, originários da Polónia, momento de particular comunhão. Não só no interior de cada família, mas também naquela grande família, que é a nossa Pátria, a nossa Nação.

A esta grande família desejo recordar as palavras que escreveu o poeta Stanislaw Wyspianski exactamente para a Vigília do Natal: "Faz que nos sintamos fortes e dá-nos uma Polónia viva". São as palavras da oração de Konrad. São palavras de oração, mas não é acaso possível pô-las na boca de cada um de nós, do mais simples ao mais culto, desde quem executa as ordens até quem exerce o poder? Permiti-me portanto colocar estas palavras nos vossos lábios, caros irmãos e irmãs, e rezar esta noite juntamente convosco, como o Konrad de Wyspianski, pela Pátria comum, com estas palavras.

Orando, confio a Cristo e à Sua Mãe tudo aquilo que se realizou e se está realizando nestes últimos meses.

Confio-Lhe esta obra particular, obra de unidade, de paz, de recíproco respeito e compreensão; obra que não é dirigida contra ninguém; não é "contra" mas é "por": pela reconstrução, pelo renovamento, para que todos possam participar mais plenamente, para todos se poderem sentir protagonistas da criatividade, do trabalho, do dever, mas também da alegria pela construção do bem comum.

Com o pensamento voltado para tudo isto, eu parto este "oplatek" com toda a grande comunidade da nossa Pátria, e faço votos por que estas acções sejam acompanhadas ainda pela ordem, pelo respeito recíproco, pela graça da paz tanto interior como exterior, de modo que se possa completar a obra iniciada.

Caros irmãos e irmãs, amadíssimos compatriotas, parto convosco este "oplatek" e formulo estes votos daqui, da minha capela no Vaticano. Formulo-os assim como estão inscritos no meu coração e também, seguindo essa pista, é necessário dizer que estou no coração de cada um de vós, no coração da nossa amada Pátria.

Desejo concluir este encontro desacostumado convosco, amados compatriotas, acrescentando uma saudação a todos sem exceptuar ninguém. Procurei recordar-me de todos, embora não tenha conseguido nomear a todos, por causa do limitado tempo de que disponho. Recebei agora a bênção em nome da Santíssima Trindade.

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

AOS DIRIGENTES DO «CIRCULO DE SÃO PEDRO»

Sala do Trono

Terça-feira, 23 de Dezembro de 1980



Caros Dirigentes do "Círculo de São Pedro"!

1. Com verdadeira alegria e profunda satisfação recebo-vos hoje, nas proximidades das Festas Natalícias, e apresento a minha saudação mais cordial a todos vós, de modo particular ao Assistente, Sua Excelência D. Ettore Cunial, e ao Presidente Marquês Giulio Sacchetti. Viestes com gentil pensamento para manifestar ao Vigário de Cristo os vossos bons votos e os de todos os pertencentes à vossa antiga e benemérita Associação e para trazer o óbolo de São Pedro, por vós recolhido na Diocese de Roma para as necessidades da Santa Sé. Recebei portanto também os sentimentos do meu reconhecimento mais vivo, juntamente com a satisfação e o apreço pela vossa obra e pelo vosso empenho. No tecido das várias actividades formativas e caritativas de Roma, está também a vossa Associação, sensível às tantas necessidades, e dinâmica em muitos modos, na qual procurais viver de modo concreto e testemunhar louvavelmente a vossa fé cristã. Bendito seja Deus pela vossa boa vontade, e continue sempre a graça do Altíssimo a dar-vos a luz e a força necessárias para realizardes bem a vossa missão nesta nossa sociedade moderna, tão necessitada de ideias justas e de amor fraterno.

2. A solenidade do Santo Natal, já próxima, em que comemoramos o nascimento em Belém do Divino Redentor Jesus, leva-me a deter-me alguns instantes convosco para meditar sobre este acontecimento histórico e determinante, e para vos sugerir algumas directrizes práticas.

A fé, baseada na narrativa evangélica, diz-nos que Deus se fez homem, isto é se inseriu na nossa história humana, não tanto para a contestar, mas sobretudo para a iluminar, para a orientar e salvar, remindo cada alma humana. É este o sentido da Encarnação do Verbo, é este o sentido autêntico do Natal, a festa da verdadeira alegria e da verdadeira esperança.

Compreender e aceitar a mensagem do Natal significa viver a perene contemporaneidade de Cristo. Na nossa história de homens inteligentes e livres, Jesus permanece para sempre e para todos '"a salvação", isto é a resposta aos interrogativos supre-mos que atormentam o homem, e a graça para os levantar do mal e viver na perspectiva da eternidade. Trazei este sentido do Natal nos vossos espíritos, na vossa vida e nos vossos ideais humanos e cristãos! O homem de hoje, confundido por tantas ideologias contrastantes e ferido por tantos fenómenos dramáticos e dolorosos, tem necessidade de saber com certeza que apesar de tudo existe esperança e alegria, porque Deus se fez homem. Cristo encarnou verdadeiramente por nós, o Salvador anunciado pelos Profetas veio e ficou connosco!

Devemos crer no Natal, fortemente, profundamente!

3. Desejo concluir citando-vos um pensamento de uma mulher forte e sapiente, Edith Stein, que tendo-se convertido do Hebraísmo, se tornou carmelita e imolou a sua vida em Auschwitz como filha da mesma estirpe do Redentor Jesus. Quando a Segunda Guerra Mundial estava mais acesa e tudo pareceria cair no ódio e na crueldade, Ela escrevia: "As almas estão guardadas ciosamente no coração de Deus... Esta fé na história secreta das almas deve fortificar-nos quando aquilo que vemos externamente, em nós e nos outros, nos tiraria a coragem..." (Carta de 16 de Maio de 1941).

A festividade do Natal vos dê coragem e confiança, sempre! Este é o voto que vos deixo, como também a todos os sócios do Círculo de São Pedro e às vossas famílias, ao mesmo tempo que de coração vos dou a propiciadora Bênção Apostólica, penhor de copiosas graças divinas.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS MEMBROS DA 31ª ESQUADRILHA


DA AERONÁUTICA MILITAR ITALIANA


Terça-feira, 23 de Dezembro de 1980



É-me particularmente grato saudar o Comandante, os Oficiais e os Sub-oficiais da 31.8 Esquadrilha da Aeronáutica Italiana, que tanto vos prodigalizastes pela Santa Sé com maestria e generosidade. Dou-vos cordiais boas-vindas a esta casa, e saúdo também com muito gosto os vossos Familiares que vos acompanham.

Antes de tudo, desejo vivamente agradecer-vos o preciosíssimo serviço que me prestastes durante este ano, serviço que facilitou a viagem de Castel Gandolfo a Roma para as Audiências das quartas-feiras, e também por ocasião das deslocações aéreas nalgumas das minhas viagens pastorais na Itália: a Aquila, a Sena, a Otranto e depois e sobretudo entre as vítimas do terramoto da Campânia e da Basilicata. Se pude levar a diversos lugares a minha palavra de porta-voz de Jesus Cristo e de Pastor da Igreja, para confirmar os irmãos na fé, para os estimular ao testemunho cristão e para confortar os aflitos, isto devo-o também a vós: à vossa atenção e à vossa perícia, que tornaram seguros e confortáveis os itinerários das minhas peregrinações apostólicas. Recebei, portanto, juntamente com o meu reconhecimento, também o meu sincero apreço.

E como já estamos nas vésperas da Solenidade do Natal, também vos faço os meus votos de Boas-Festas. O Santo Natal chega pontual e agradavelmente todos os anos; mas é necessário recordarmos sempre a nós mesmos que não é possível reduzi-lo a uma ocorrência exterior, correndo o risco de o desvirtuar. Ele, pelo contrário e antes de tudo, é um estímulo para renovarmos a nossa fé genuína n'Aquele que, como escreve São Paulo, «de rico que era se fez pobre por nós, a fim de que nos tornássemos ricos mediante a sua pobreza» (cf. 2Co 8,9). 0 Natal é a festa do Senhor, que se debruça sobre as nossas misérias e sobre as nossas limitações ao ponto de as compartilhar, e «não se envergonha de nos chamar irmãos» (He 2,11). Por conseguinte, o nosso pensamento não pode deixar de se dirigir para aqueles que sofrem actualmente no mundo por motivos múltiplos, e em particular dirige-se para aqueles lugares feridos pelo terramoto, que, devido a vós, pude visitar pessoalmente no mês passado. Queira o Senhor aliviar as tribulações daqueles nossos irmãos, mantendo vivo em nós o sentido da oração por eles e da efectiva solidariedade para vencerem tantas necessidades espirituais e materiais.

E a todos vós conceda o Senhor uma existência serena, e fecunda de bons êxitos: no vosso qualificado trabalho, nas vossas relações com o próximo, especialmente no âmbito das vossas famílias. Oxalá Ele reforce e leve a feliz realização a vossa boa vontade e os vossos sensatos propósitos de uma vida humana e cristã cada vez melhor. Para isto vem Ele: para estar connosco todos os dias, até ao fim do mundo (cf. Mt Mt 28,20).

Ao estarmos todos vivificados por esta fé e animados por esta expectativa, sinto-me feliz em confirmar os meus votos com a Bênção Apostólica que de coração concedo a todos vós aqui presentes e a quantos vos são queridos.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS JOVENS DA COMUNIDADE DE TAIZÉ


Basílica Vaticana

Terça-feira, 30 de Dezembro de 1980



Caros Jovens

A visão que me é dada da vossa impressionante reunião, neste lugar histórico e único no mundo — e pensando no serviço eclesial particularíssimo que o Senhor me pediu misteriosamente pela voz do Colégio dos Cardeais, fez já dois anos - convida-me a utilizar as palavras do profeta Isaias para convidar todo o Povo de Deus — a nova Jerusalém — à admiração, à alegria: «Levanta-te e resplandece! Chegou a tua luz, a glória do Senhor levanta-se sobre ti... As nações caminharão para a tua luz,... levanta os olhos e vê à tua volta: todos se reúnem para vir a ti; os teus filhos chegarão de longe... Quando vires isto resplandecerás, e o teu coração palpitará e se dilatará» (Is 60,1-6).

História antiga? Não, sempre actual! Graças a Vós e graças a tantos e tantos peregrinos que tomam o caminho de Roma para venerarem os túmulos dos Apóstolos e se encontrarem de novo com o Sucessor de Pedro. Na impossibilidade de contactar com cada um de vós — não sois 25.000? exprimo a todos as minhas calorosas felicitações. Sei que viestes de longe e mesmo de muito longe, sobretudo da Europa, mas igualmente da Ásia e da Austrália, da Africa e das duas Américas. Realizastes maravilhas de organização, de transporte, de orçamento, de ajuda mútua diversa e de preparação espiritual. E aceitastes vivera vossa permanência em Roma em condições de grande simplicidade e de fadigas causadas por numerosas deslocações. Sois verdadeiros peregrinos. Percorrendo o programa das vossas jornadas, vi imediatamente que tínheis vindo primeiro que tudo para fazer uma experiência de fraternidade e de oração nesta diocese de Roma, que foi a sede de Pedro e continua a sê-lo de todos os seus sucessores. Desejaria agora meditar convosco e confirmar-vos na vossa fé na Igreja, nos vossos laços com a Igreja de Roma e do seu Bispo, nos vossos projectos de participação para construir um mundo, lá onde viveis e segundo os critérios do Evangelho.

2. Assim compartilhastes, na oração e nas relações mútuas, o mesmo anelo de reconciliação, de paz, diria mesmo, a vossa preocupação pela unidade. E, realmente, é uma maneira de preparar, ao vosso nível, os caminhos da unidade, de viver um pouco o mistério dela.

Porque a unidade eclesial, caros amigos, é mistério profundo, que transcende os nossos esforços e os nossos desejos. Os Padres do Concílio Vaticano II meditaram longamente neste mistério da Igreja, do Povo de Deus, como testemunham a Constituição Lumen Gentium e outros textos. «Esta unidade, concedeu-a Cristo à sua Igreja desde o começo». (Decreto sobre o Ecumenismo, 4, parágr. 3). E, ao mesmo tempo, ela deve buscar-se sem descanso e reconstruir-se, para o conjunto dos cristãos.

Em certo sentido, os cristãos não preexistem à Igreja, e não subsistem como tais, independentemente da Igreja. Digamos melhor: os homens agregam-se a Ela para se tornarem cristãos, a Ela que nasceu, como povo único, do desígnio de Deus Pai, do sacrifício de Cristo e do dom Espírito Santo. «O conjunto daqueles que olham com fé para Jesus, autor da salvação, princípio de unidade e paz, Deus chamou-os, com eles fez a Igreja, para ela ser, aos olhos de todos e de cada um, o sacramento visível desta unidade salutar» (Lumen Gentium LG 9). A unidade não vem só de ouvir a mesma mensagem evangélica, que nos é aliás transmitida pela Igreja; reveste profundidade mística: é ao Corpo mesmo de Cristo que nós somos agregados, mediante a fé e o baptismo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo; é o mesmo Espírito que nos justifica e anima a nossa vida cristã: «Há um só Corpo e um só Espírito, como existe uma só esperança no chamamento que recebestes. Há um único Senhor, uma única fé, um único baptismo» (Ep 4,4-5). Tal é a fonte única que traz e requer, hoje como na doutrina dos Apóstolos, na comunhão fraterna, na fracção do pão e nas orações» (Lumen Gentium LG 13). A estrutura mesma da Igreja, com a sua hierarquia e os seus sacramentos, não faz senão traduzir e realizar esta unidade essencial recebida de Cristo-Cabeça. Por fim, esta unidade, interior à Igreja de Cristo, constitui «para o conjunto do género humano o germe mais forte de unidade, de esperança e de salvação» (Lumen Gentium LG 9). Tal é a graça concedida desde o princípio à Igreja, tal é a sua vocação.

3. Mas não é dito com isto que todos os filhos da Igreja vivam segundo esta graça e esta vocação. Cristo, que mereceu pela Sua cruz este povo unificado, e pôs as condições e os caminhos da unidade do mesmo, mencionou Ele próprio os riscos de divisão entre os que haveriam de crer n'Ele. Foi por isso que pediu com tanta insistência que estas ameaças fossem vencidas: «Todos sejam um, como Tu, Pai, estás em Mim e eu em Ti... a fim de que o mundo creia que Tu Me enviaste» (Jn 17,21). A unidade aparece, por conseguinte, como característica fundamental da Igreja, mas cuja realização é difícil, semeada de escolhos, pelo menos se nos fixamos na unidade profunda desejada por Cristo. E é um facto que nesta única Igreja de Deus apareceram desde a origem certas cisões (cf. Decreto sobre o Ecumenismo Unitatis redintegratio UR 3). Como andar dos tempos, a Igreja conheceu dissenções mais graves, que a nossa geração herda e sofre, segregando por vezes novas cisões, e vós sois especialmente sensíveis a este sofrimento, a esta anomalia. E bom sinal. A fidelidade a Cristo constitui para nós o dever instante de reconstruirmos a unidade plena. Verdade seja que certo número de bens nos ficaram comuns. E há progressos notáveis de compreensão, de caridade e de oração comum, mesmo que, por honestidade e lealdade para connosco mesmos e para com os nossos irmãos, não possamos celebrar juntos a Eucaristia do Senhor, porque este é o sacramento da unidade. Não se pode, com efeito, separar a comunhão eucarística e a comunhão eclesial numa só e mesma fé. Com fervor e humildade, cada um deve portanto trazer, para esta obra de reconstrução da unidade, o seu contributo próprio, segundo as suas responsabilidades na Igreja. Há o nível de investigação teológica, que é necessária, e de que são conhecidos os preparativos leais e pacientes. Há o nível da oração e da caridade, em que estais comprometidos. Mas os cristãos precisam «de se purificar e renovar para que, no rosto da Igreja, o sinal de Cristo brilhe mais claro»(Lumen Gentium ). A conversão do coração e a santidade da vida são, com a prece, a alma de todo o ecumenismo (cf. Decreto Unitatis redintegratio UR 8). Não se trata de uma unidade deturpada, mas da correspondente aos caminhos traçados pelo Senhor na fundação da sua Igreja e aplicados pela mais venerável tradição da mesma Igreja. A este propósito, a experiência que fazeis em Roma pode ajudar-vos a melhor os compreender.

4. E, primeiramente, esta unidade da Igreja, dada por Cristo, maltratada pelos cristãos e portanto necessitada de reconstrução contínua, foi especialmente confiada ao apóstolo Pedro, vindo das margens do lago de Tiberíades até às bordas do Tibre, e martirizado aqui mesmo no reinado de Nero. Não foi a João, o grande contemplativo, nem a Paulo, o teólogo e o pregador incomparável, que entregou Cristo o cargo de confirmar os outros Apóstolos, seus irmãos (cf. Lc Lc 22,31-32), de apascentar os cordeiros e as ovelhas (cf. Jo Jn 21,15-17), mas somente a Pedro. E sempre instrutivo e comovedor meditar nos textos evangélicos que exprimem o papel único e irredutível de Pedro no Colégio Apostólico e na Igreja nascente. E mesmo assombroso, para cada um de nós, medir quanto mantém Cristo ao seu Apóstolo toda a própria confiança, apesar da fraqueza momentânea dele. E este papel tomou-o Pedro a sério, até ao supremo testemunho do sangue derramado. A sua primeira epístola bem parece demonstrar que ele meditou muito as palavras admiráveis que Jesus lhe dissera. Revela a espiritualidade pessoal deste cargo de reunir o rebanho do único pastor: «apascentai o rebanho que Deus vos confiou..., não constrangidos, mas de boa vontade... e quando o Príncipe dos pastores aparecer, recebereis a coroa de glória» (1P 5,24 cf. ibid 1P 2,25). Pedro lembra-se que é a rocha mas também o pastor. E se recomenda aos anciãos que desempenhem a sua tarefa pastoral com entusiasmo é porque ele próprio se recorda de ter recebido a sua em resposta a uma tríplice confissão de amor.

Este carisma de São Pedro passou aos sucessores do Apóstolo. Por isso, desde bem cedo desempenhou a Igreja de Roma papel de primeiro plano. Conheceis sem dúvida alguns exemplos típicos. Desde o fim do século I, o Bispo de Roma, São Clemente, intervém com autoridade na Igreja que está em Corinto, precisamente para restabelecer nela a unidade interna. Pelo ano de 110, Santo Inácio de Antioquia, escrevendo à Igreja de Roma, saúda-a como aquela que preside à reunião universal na caridade. O célebre epitáfio de Abércio, visível no museu do Vaticano, testemunha, cerca do ano de 180, a irradiação da Igreja romana. Santo Ireneu, Bispo de Lião, no fim do segundo século, proclama que qualquer Igreja, desejosa de conservar a tradição apostólica, deve para isto assegurar-se que está em comunhão com Roma.

5. Outra característica desta comunidade é a comemoração e o culto dos seus Mártires, a ,começar de São Pedro e de São Paulo e, em seguida de muitos outros. E difícil elaborar estatísticas com rigor. Mas as catacumbas, que num primeiro momento eram cemitérios, onde os cristãos sepultavam os seus mortos, deixando aí expressa a sua esperança por meio de inscrições e de pinturas, tornaram-se depois lugares de culto fervoroso dos Mártires.

É verdade que as catacumbas estiveram abandonadas durante muito tempo; mas há motivo para nos regozijarmos vendo os estudos modernos e a piedade esclarecida conjugarem os esforços para despertar nos peregrinos o gosto pelas fontes cristãs e para lhes recordar que a Igreja de Cristo, desde os seus primórdios, e hoje ainda nas nações onde se acha cerceada a liberdade religiosa, tem sempre os seus Mártires. A visita às catacumbas deveria levar os cristãos a professarem mais corajosamente a própria fé.

Este olhar de relance, para a Igreja que está em Roma, sugere-me fazer os melhores votos por que cada vez mais ganheis gosto pela história. O conhecimento de dois mil anos de Cristianismo pode inculcar nos cristãos duas coisas importantes: o sentido da continuidade e o sentido do relativo. O primeiro pode preservar dá ilusão, ingénua e presunçosa, de a geração, à qual pertencemos, ser a primeira a descobrir certas verdades e a viver determinadas experiências. O sentido do relativo, que nada tem que ver com o cepticismo, ensina-nos por sua vez a discernir o essencial. Certo número de dificuldades em crer e de crises religiosas, individuais ou colectivas, provêm de se relativizar o absoluto e se absolutizar o relativo. Pode-se perguntar—sendo como é tão importante tal discernimento — se é possível, nos dias de hoje, e num mundo civilizado, ser-se plenamente cristão ignorando tudo ou quase tudo do passado da Igreja.

6. A vossa experiência romana de fraternidade e oração realizou-se numa ou noutra das trezentas paróquias desta diocese. Agradeço-vos o testemunho cristão que lhes trouxeste com simplicidade e verdade. O meu reconhecimento vai igualmente para todos os romanos que vos abriram as suas igrejas e as suas casas.


Discursos João Paulo II 1980 - A UM GRUPO DE «PRÉMIOS NOBEL»