Discursos João Paulo II 1981 - Quarta-feira, 1 de Abril de 1981

PALAVRAS DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS SALMISTAS DAS COMUNIDADES


NEOCATECUMENAIS ITALIANAS


Pátio de São Dâmaso

Quinta-feira, 1 de Abril de 1981



A Igreja prepara-se para celebrar a noite pascal do Senhor, da sua Ressurreição, durante todo este período da Quaresma. Fá-lo para que o Senhor encontre os nossos corações preparados, amadurecidos, amadurecidos para o seu mistério e para o seu amor. É certamente com o testemunho da Palavra de Deus e com gestos de amor que devemos aperfeiçoar-nos para esta noite e para este amor definitivo que se revelou na noite pascal. Assim, desejo-vos que vos prepareis bem para este grande mistério, ponto central da nossa fé, e que está também no centro da história do homem e do cosmos.

Já vos encontrei mais vezes em diversas paróquias romanas, e espero que nessas paróquias colaboreis com os sacerdotes, e também com os Bispos nos sectores da diocese de Roma, com o Cardeal Vigário, pois é assim que confirmais igualmente o vosso entusiasmo pascal. A Páscoa é o dia da Igreja. Na Igreja, no seu conjunto, na sua vida, devemos procurar espaço, um espaço autêntico para o nosso entusiasmo religioso e para o nosso apostolado.

Quereria agradecer-vos a vossa visita e todos estes cantos religiosos muito belos e executados com grande vibração e entusiasmo. Agradeço-vos esta visita e, abençoo todos vós, as vossas famílias e as vossas crianças, que tiveram também parte especial e muito bonita no encontro desta noite.

Quereria dizer ainda uma palavra especial a todos os que sofrem e estão perto de vós: transmiti a todos esta palavra e lembrança, esta recordação do Papa, porque me sinto espiritualmente sempre unido a eles, pois se associam de modo especial à paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, e assim, participando no mistério da Sua paixão, preparam-nos para a sua Páscoa.

Por fim, quero abençoar-vos e também todos os que vos são caros, em Roma e em todas as outras cidades da Itália e fora da Itália.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


NA CELEBRAÇÃO DO CENTENÁRIO


DO NASCIMENTO DE ALCIDE DE GASPERI


Quinta-feira, 2 de Abril de 1981



Ilustres Senhores

1. Sinto-me satisfeitíssimo por dirigir as minhas cordiais boas-vindas a vós, responsáveis pelos Partidos e Movimentos de inspiração cristã da Europa e de outros continentes, que vos reunistes em Roma para comemorar a figura de um grande estadista, como foi Alcide De Gasperi, por ocasião do centenário do seu nascimento. A vossa é comemoração muito oportuna e importante, pois diz respeito a um católico de grande estatura espiritual e de insigne prestígio político, que deixou nobre testemunho na história da Itália e da Europa no último após-guerra, em virtude de uma esclarecida consciência cristã.

Não é meu propósito explicar a formação e o ambiente cultural, nem sequer o esforço político de Alcide De Gasperi, cuja personalidade é objecto, aliás, de uma indagação cada vez mais intensa, de estudo e de interpretação, por parte de especialistas e de pessoas a ele ligados por vínculos familiares ou ideais.

Quereria aqui prestar homenagem sobretudo à fisionomia espiritual do homem e do estadista, que, em virtude da sua fé coerente, desempenhou uma missão que é apontada como exemplo. Nele a fé foi sempre inspiradora, força de coesão, critério de valores e razão de escolha, como ele mesmo se exprimia só com vinte anos, no entusiasmo da juventude: "O catolicismo é alguma coisa de mais integral, não estranho a nada que seja bem, adverso a qualquer mal, regra fixa que deve seguir o homem desde o berço ao túmulo, a alma e a medula de todas as coisas". É surpreendente que pessoa tão jovem tivesse já visão assim clara e vibrante da mensagem cristã. A sua foi uma fé nascida na família e levada à maturidade num ambiente, e eclesiástico da região de Trento no século último, saturado de convicções e de dinamismo cristão; alimentada de cultura, não sem ímpetos de requinte ascético e místico; testemunhada em público e em particular sem hesitações, conquistando estima e respeito até de muitos não-crentes.

2. Jovem político, foi movido na sua acção pelo ideal social cristão, estudado nas intuições dos primeiros pioneiros europeus e na Encíclica de Leão XIII Rerum Novarum, que há noventa anos exprimiu, de maneira orgânica, o primeiro alto ensinamento do Magistério sobre a questão social.

Depois da primeira guerra mundial esteve ao lado de Don Luigi Sturzo na Itália, combatendo pelas liberdades essenciais da pessoa, da consciência, da família, da escola, dos entes e corpos intermédios, das associações e dos sindicatos e, ao prevalecer o regime autoritário, sofreu perseguição e cadeia.

Recebido por Pio XI para trabalhar na Biblioteca Vaticana, encontrou maneira de travar amizades com ilustres personalidades da cultura e de aprofundar, no silêncio humilde daqueles anos, os estudos de sociologia cristã, aperfeiçoando as possibilidades de os aplicar. No fim da segunda guerra mundial, vindo a ser chefe do Governo da democracia ressurgida, guiou a Itália na fase trabalhosa da reconstrução e do renascimento.

A experiência original numa região com pluralismo étnico e cultural, e a meditação histórica sobre as tragédias produzidas pelas duas tremendas guerras mundiais, ambas desencadeadas por exasperado nacionalismo, acenderam em De Gasperi uma paixão viva pelo ideal da unificação europeia, ao lado de insignes estadistas, como Robert Schuman e Konrad Adenauer. Juntamente com eles, entendeu esta meta ideal como reconciliação de povos que tanto se tinham combatido, e sobretudo como colaboração que, salvaguardando as identidades históricas e culturais de cada país, conferisse à Europa mesma o sentido de uma missão espiritual e histórica, aberta à amizade com todos os outros povos.

3. É na complexidade desta vastíssima acção que mais brilha a sua fé cristã, a qual inspirou constantemente o esforço político, o susteve e o justificou, como ele mesmo explicava confidencialmente: "Se não sentisse desempenhar um dever cristão e merecer o auxílio de Deus, não estaria neste posto nem sequer um dia mais".

No decurso da sua vida, a relação com Deus foi contínua e. profunda. Fechado na prisão, quis a Bíblia como primeiro livro e citava-a nos seus escritos, tirando dela força e coragem. Comove aquilo que escreveu depois da condenação a quatro anos de cadeia: "Deus tem um desígnio imperscrutável diante do qual me inclino adorando... Esforço-me por identificar a minha vontade com a de Deus".

A sua vida íntima mantinha-o em contacto com o Senhor, como o provam as cartas à filha religiosa e os vários pensamentos que redigia às vezes às pressa. Num deles, lê-se: "Perdoa-me, Senhor, mas levo comigo para as minhas ocupações a Tua oração; penetra toda a minha actividade, ora Tu no meu trabalho e em toda a doação de mim mesmo"..

Também a sua confiança e o seu optimismo, no meio do torvelinho das vicissitudes humanas, se radicam na fé, como se vê nestas afirmações: "Não temos o direito de desesperar do homem, nem como indivíduo nem como colectividade; não temos direito de desesperar da vitória, uma vez que Deus trabalha não só nas consciências individuais, mas também na vida de todos". Igualmente, o seu profundo sentido da justiça social promana da mesma fonte: "Que valor teria o sentido substancial da civilização, que aplica à realidade social o princípio evangélico, se não conseguíssemos fazer justiça ao pobre, se nós católicos não aplicássemos o espírito do Evangelho?".

4. De Gasperi entendeu a autoridade como serviço para o bem comum e aceitou-a como cruz e sofrimento, e não como meta e instrumento de interesse pessoal. Notava, até com ela sofrer, a limitação dos planos e dos recursos para ir em auxílio de todos os cidadãos, a fim de realizar uma autêntica justiça social, de salvaguardar a democracia e a realidade, sem decair no arbitrário e no relativismo moral. Homem de paz e de concórdia, sentiu que o dilacerava o tormento da responsabilidade na gigantesca e misteriosa luta entre o bem e o mal, e sentia por isso a necessidade da oração, como alimento espiritual essencial, indispensável, e afirmava que para esperar com eficácia é necessário "caminhar para a luz e meter a própria mão na mão de Deus".

Justamente por isso disse dele Robert Schuman: "A vida religiosa, a democracia, a Itália e a Europa eram para ele postulados de uma fé profunda e indefectível. Tinha a alma de um Apóstolo; De Gasperi foi, durante toda a vida., exemplo da fidelidade que sobrevive às provas mais duras. Mantenhamo-nos fiéis à sua memória e ao seu grande exemplo".

5. Ilustres Senhores, a reverente homenagem para com um político e um estadista, como Alcide De Gasperi, coloca-nos diante do problema, por vezes tormentoso, do testemunho do crente quando ao serviço da vida pública.

Um Estado, e em particular um Estado democrático, que se funda no livre concenso dos cidadãos, poderá desempenhar o seu cargo essencial em ordem à actualização do bem comum, apenas se, em defesa das suas instituições e leis, houver, no cidadão e naqueles que legitimamente o representam, forte tensão moral e o decidido intento de defender e promover os mais altos valores éticos. Por outras palavras, uma política mede-se certamente pelo programa social que sabe exprimir e pela eficácia e oportunidade com que sabe levá-lo à prática; para uma sua apreciação global, é todavia decisivo conhecer qual pensamento sobre o homem a inspira e que posto se lhe atribui a respeito dos seus direitos e da sua dignidade, da sua responsabilidade e das suas exigências espirituais.

Para atingir alto nível de eficiência, a vossa acção deverá brotar de uma provada capacidade de oferecer soluções adaptadas às urgências dos tempos em contínua e, às vezes, tumultuosa evolução; mas ela, ao mesmo tempo, não poderá deixar de inspirar-se numa adesão sem reticências aos valores essenciais da mensagem cristã, com a transcendente dignidade da pessoa e portanto a defesa da vida desde o seu primeiro aparecimento, a realização da justiça social e a consequente defesa dos mais humildes.

Não escapa a ninguém a dificuldade em que se encontra o cristão, empenhado na actividade política, ao enfrentar o encargo e para usar as palavras do Concílio — de "inscrever a lei divina na vida da cidade terrena" (Gaudium et Spes GS 43). Todavia, ainda em consideração de "o Cristianismo — como afirmava De Gaspari — ter já deixado na história tais rastos que influi, como elemento ambiental e vital, mesmo naquele que não o professa", o homem de fé não renunciará nunca diante do seu compromisso de traduzir em acto as próprias motivações ideais, aquilo em que crê, os valores que defende. É necessário então fazer apelo constante a uma forte e esclarecida espiritualidade; a uma capacidade criadora de propostas actuais e eficazes, alimentada por visões imunes de egoísmos e de interesses pessoais; e a uma força de persuasão e atracção, tanto mais eficaz quanto mais é testemunhada por integridade e por espírito . de serviço.

Nesta perspectiva, a figura de Alcide De Gasperi desenha-se nitidamente como interpelação e advertência. Permanece verdade, com efeito, particularmente no campo da vida pública, que nenhuma ideia poderá mostrar-se convincente, se não é valorizada pela coerência de vida daquele que a professa.

Animando-vos a trabalhar sem descanso segundo estes ideais, imploro sobre vós e sobre os que vos são caros, e de modo particular sobre a dilecta Esposa e Família de Alcide De Gasperi, os dons da divina assistência, e acompanho este ardente voto com a minha Bênção Apostólica.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS PARTICIPANTES NA SESSÃO PLENÁRIA


DO SECRETARIADO PARA OS NÃO-CRENTES


Quinta-feira, 2 de Abril de 1981



Senhores Cardeais
caros Irmãos no Episcopado caros amigos

1. Constitui alegria para mim encontrar nesta manhã, pela primeira vez, os participantes na Assembleia plenária do Secretariado para os Não-Crentes, com o seu novo Pró-Presidente e os seus novos membros. Trata-se, com efeito, de aumentar o impulso já dado pelo Papa Paulo VI com o caro Cardeal Franz König e o saudoso Padre Vincenzo Miano.

O tema que estudais presentemente, "Ciência e não-crença", é de importância capital, e a Santa Sé há muito que está desejosa de lhe promover o aprofundamento. Situa-se com propriedade no objectivo do vosso Secretariado que recebeu, como encargo, ao mesmo tempo o estudo do ateísmo e o diálogo com os não-crentes. É muito claro para vós todos, bem o sei, que não se trata de estudo realizado de maneira académica, mas de trabalho de reflexão pastoral, o que não exclui nem rigor dos métodos nem investigação aprofundada. Certamente, não podeis dialogar, como os dois outros Secretariados, com organismos internacionais adequados; o vosso trabalho exige antes relações com as Conferências episcopais segundo as diversas situações sócio-culturais.

2. Sob este último aspecto, o vosso tema de investigação é riquíssimo, se se considera que a ciência é um facto de cultura, que traz consigo consequências importantes para as mentalidades, quer se trate das ciências da natureza quer das ciências humanas.

Procurar compreender a totalidade do real é ambição legítima, que honra o homem e é cultivada pelo crente. Não há portanto oposição a este nível, mas antes, no das mentalidades, quando estas últimas são dominadas por uma concepção cientista, segundo a qual se identificaria o campo da verdade com o que pode ser conhecido e verificado experimentalmente. Tal mentalidade positivista caracteriza em profundidade a cultura moderna, derivada da filosofia chamada "das luzes". É então certa filosofia que se opõe de maneira ideológica à fé, mas não a ciência em si mesma. Muito pelo contrário, a busca apaixonada dos "comos" exige uma resposta aos "porquês".

O mesmo acontece, em certo sentido, com as ciências humanas, que mostram desenvolvimento crescente e têm aliás um campo que se define com maior dificuldade. Não sucumbem elas a uma pretensão cientista bem mais do que dão prova da sua real cientificidade, quando os seus promotores tendem a apresentar, como modelo ideal deste tipo de conhecimento, uma concepção que reduz o homem — que é sujeito — a um objecto de estudos, de investigações e de experiências, excluindo a realidade propriamente espiritual?

3. O desenvolvimento das ciências, pelo acréscimo de racionalidade que traz, apela afinal para um objectivo de totalidade que não fornece: o sentido último. Porque, se é verdade que a ciência é a forma privilegiada de conhecimento, não se segue daí que o saber científico seja a única forma legítima de saber. Nesta perspectiva radicalmente diminuidora, a fé já não apareceria senão como representação ingénua da realidade, ligada a uma mentalidade mitológica. Numa perspectiva totalizante, pelo contrário, importa bem discernir as ordens específicas, e, longe de opor os conteúdos, propor a integração deles numa epifania da verdade.

É certo que tomar em consideração a totalidade do real, é delicado e difícil. Por vezes há redução de uma ordem à outra; por vezes, pelo contrário, julga-se poder desprezar toda a articulação. Deve reconhecer-se nisto uma tentação dupla para os crentes: o racionalismo e o fideísmo.

4. Ainda assim, mais que de uma confrontação abstracta entre a descrença científica e a fé cristã, é de um diálogo entre os homens que se trata, em que a dinâmica da racionalidade não se opõe de maneira nenhuma à transcendência da fé na sua especificidade, mas, num sentido, a invoca. É na experiência da vida, que parece necessário superar o vazio interior produzido pelo desabamento do sentido, quando a totalização das actividades dos homens se situa num universo fechado e já não é assumida numa perspectiva que as ultrapassa, num supra-racional que, longe de ser um não-racional ou um infra-racional, é o fundamento e o fim da racionalidade.

5. É preciso assinalar também um risco inerente ao método da própria investigação científica. Esta tem o seu objecto e as suas exigências próprias. Mas, na medida em que impregna todo o pensamento e toda a maneira de ver a existência, ela pode trazer para o campo da fé a perda da certeza própria desta última, em que o saber é também amor. Assim, este espírito de investigação perpétua pode levar a repor em causa os dons essenciais da fé e, sem os negar, a suspender o juízo e a afirmação, enquanto a própria pessoa não esclareceu todas as razões de crer e todos os aspectos do mistério cristão, como se se esperassem outras descobertas relativas ao credo em si. Certamente é necessário, como dizia o Apóstolo Pedro, ser sempre capaz de dar conta da esperança que está em nós (cf. 1P 3,15). E há verdadeiro trabalho científico que se deve continuar assiduamente em teologia, em exegese e em moral; mas apoiando-se num dado revelado, e dentro de uma adesão global já dada a Jesus Cristo e à Sua Igreja, que não mete provisoriamente entre parêntesis as afirmações certas do Magistério. É para vós, está claro, uma evidência; mas os espíritos imbuídos de investigação científica podem encontrar nelas um mal-estar ou um obstáculo, por falta de compreender o específico e a transcendência da fé, e arriscam-se a ficar na soleira desta.

6. Esta dificuldade e as mais radicais que eu indicava acima, importa esclarecê-las e ajudar as nossas gerações a vencê-las.

Como eu dizia a 10 de Outubro último, a propósito do tema que estudais, "uma catequese insuficientemente informada da problemática das ciências exactas como das ciências humanas, na sua diversidade, pode acumular os obstáculos numa inteligência, em lugar de aí abrir caminho à afirmação de Deus". É o que se dá quando se trata de uma verdadeira deslocação entre a imagem actual do mundo que nos oferecem as ciências — e sobretudo pela vulgarização das ciências no grande público — e as expressões tradicionais da fé, repetidas por vezes sem atender às mentalidades como elas são.

7. Por fim, como esquecer que até sábios reconhecem que a objectividade e a racionalidade, por mais importantes que sejam, não satisfazem a necessidade que tem o homem de compreender o seu destino? Mas isto não basta para levar tais sábios a reconhecer um Deus pessoal e transcendente. E alguns voltam-se para uma espécie de panteísmo de cor mística. Repudiando o cientismo — esta ciência desvairada para fora das suas fronteiras — eles rejeitam do mesmo modo as Igrejas instituídas, por motivo de uma reivindicação de autonomia humana e de críticas de ordem sócio-política, conjugadas com o relativismo que é produzido pela descoberta das diversas religiões e pela abundância das seitas.

O encontro entre a ciência e a fé apresenta problemas que o crente pode resolver razoavelmente. Mas o mistério da fé não pode ser vivido senão de maneira existencial. E o encontro multiforme do ateísmo, da descrença e da indiferença requer a existência de crentes com convicções bem estruturadas e que vivam uma experiência cristã, noutros termos, que possuam formação sólida, não separada da oração e do testemunho evangélico. A fé é dom de Deus, é graça, e, uma vez mais, supõe o amor.

8. As universidades católicas, os filósofos e os teólogos, os pensadores e os escritores — por seu lado —têm de desempenhar papel considerável: apresentar uma antropologia verdadeira e crível, através das diversas culturas, esse terreno fundamental de encontro. Como eu o disse na UNESCO a 2 de Junho último: "O homem vive uma vida verdadeiramente humana graças à cultura" (n. 6). Trata-se de mostrar como o homem — e hoje o homem marcado pelas ciências e pelo espírito científico — se torna plenamente homem abrindo-se à plenitude do Verbo Encarnado: "Eis o homem".

É o que mostra a importância para a Igreja de uma pastoral da inteligência. E o Secretariado para os Não-Crentes tem o encargo de desempenhar nela um papel importante de incitação, de aprofundamento, de sugestões e de proposição, dentro da Cúria romana e ao serviço das Igrejas locais, que se defrontam com o desafio do ateísmo e do drama da incredulidade, estando o Secretariado, é evidente, em ligação com as competências universitárias. Poderá assim ajudar numerosos crentes a testemunhar valores que formam as suas razões de viver, a encontrar as palavras para as fazer aceitar, e a não temer afirmar-se como testemunhas de Deus em nome mesmo da procura obstinada da Verdade que, através de séculos de investigação científica, faz a grandeza da humanidade.

Estas reflexões não esgotam evidentemente este vasto assunto. Voltaremos a ele. Desejo que hoje encontreis nele um incentivo a continuar o vosso trabalho. Continuai a abrir um caminho ao Evangelho, a lançar pontes. O Espírito Santo vos ilumine e fortifique! Com a minha afectuosa Bênção Apostólica.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS OPERÁRIOS DAS INDÚSTRIAS MERLONI


DE FABRIANO (ITÁLIA)


Sábado, 3 de Abril de 1981



Caríssimos Filhos e Filhas
do Grupo Industrial Merloni

1. Sei que há tempos desejais ter um encontro comigo, para recordar a importante ocorrência do quinquagésimo aniversário de fundação da vossa Empresa. Agradeço-vos sinceramente este desejo, e alegro-me muito de poder hoje satisfazê-lo, reservando-vos esta Audiência particular, à qual viestes tão numerosos e devotos.

Vejo no meio de vós o Senhor Cardeal Pietro Palazzini que, como conterrâneo e amigo, quis acompanhar-vos juntamente com o vosso Bispo D. Luigi Scuppa e com alguns Prelados da Região do Picenum. A saudação, que afectuosamente lhes dirijo, estende-se em sinal de satisfação e de augúrio a todos vós aqui presentes: não só aos titulares e aos dirigentes das Indústrias fundadas pelo saudoso Senador Aristide Merloni, mas também a cada um de vós, que dentro delas prestais o vosso quotidiano trabalho, e ainda aos respectivos familiares.

2. Não me compete reevocar história ou as linhas de evolução da vossa Empresa, que se destaca no sector especializado das suas produções. Contudo, ao ver-vos diante de mim como representantes do mundo do trabalho e protagonistas num determinado sector industrial, não posso deixar de ressaltar as características, que distinguiram desde o início tal actividade.

Quais são estas características? Desejaria recordar apenas duas: em primeiro lugar, a coordenação entre as exigências técnicas e as exigências humanas. Sei que o fundador preferiu e quis estabelecer indústrias de dimensões médias, que fossem quase o intermédio entre a pequena empresa de gestão familiar e as assim chamadas grandes indústrias.

Parece-me isto um ponto de equilíbrio, que pode assegurar o necessário respeito das leis intrínsecas ao processo produtivo, como se configura na organização industrial moderna, e ao mesmo tempo vale, talvez, para salvaguardar melhor aqueles componentes humanos, aos quais o trabalho está por si mesmo subordinado. Quando digo componentes humanos, refiro-me por exemplo à natural relação entre o trabalhador e o próprio ambiente familiar e sócio-cultural, sem forçados desenraizamentos e traumáticas ausências; mas entendo sobretudo — como bem compreendeis — tudo quanto no seu, conjunto diz respeito ao homem e interessa ao homem: isto é, os direitos e os deveres, as necessidades e as aspirações que são próprias da pessoa, como núcleo vivo e sagrado, ao qual quis já referir-me na minha primeira Encíclica Redemptor hominis (cf. II, 12; III, 14-16). O homem, por vontade de Deus que o criou e o colocou no ápice da sua criação, é e deve ser sempre o centro de referência, permanecendo assim no início e no término do inteiro ciclo produtivo. Não é o homem para o trabalho, porque ele não é máquina que segue ao lado de outras máquinas por ele manobradas; mas é o trabalho para o homem, enquanto é para este fonte de sustento e instrumento para a sua elevação cultural e moral. São coisas por vós conhecidas, caros Irmãos e Filhos; mas diante de vós, que representais aqui as típicas indústrias da região de Fabriano (consenti-me recordar, a esta altura, as renomadas fábricas de papel, que desde a Idade Média levaram também para fora da Itália, o nome da vossa cidade), este meu reevocar o homem e o seu natural perfil de criatura espiritual e dotada de um destino transcendente pode constituir elemento de oportuna e salutar reflexão.

Quero também acrescentar que esta colocação humana, ou "humanista", do trabalho se coaduna bem com outra característica, que — como tive ocasião de acenar diante dos trabalhadores do porto de Ancona, em Setembro de 1979 (cf. vol. Insegnamenti II, 2P 269) — é própria do vosso povo: refiro-me àquela profunda dedicação ao trabalho, que se pode chamar perseverança e tenacidade ou, mais brevemente, "laboriosidade".

Ao recordar estas duas características, faço férvidos votos por que, longe de serem descuidadas, elas possam ter ulterior desenvolvimento por ocasião do cinquentenário, para serem transmitidas, como indicações de permanente validade e como património moralmente precioso, às gerações dos vossos filhos e sucessores.

3. Mas património é também a prática ético-religiosa, baseada na sincera adesão à fé dos pais, e também isto quis recordar no discurso em Ancona (ibid. 267). A região das "Marche", de facto, tem uma tal riqueza de tradições, de exemplos e de instituições que lhe revelam imediatamente a fisionomia cristã.

Evidentemente só a laboriosidade, embora sendo um dado de grande valor, não poderia bastar: se o homem é criatura que "está mais no alto" que as outras criaturas, tem o dever de olhar para além e acima delas. Tendo a luz da inteligência, sendo elevado à dignidade de filho de Deus, o homens deve permanecer unido ao Pai celeste, estabelecendo e vivendo como Ele uma relação consciente e pessoal que não é só de veneração e de fé, mas também de afecto e ele caridade.

Estamos — como bem percebeis — no âmbito daquele "primeiro e maior mandamento" dado a nós por Jesus Cristo, o qual ainda nos recorda: "Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro se, depois, perde a sua alma?" (Mt 16,26). E que valor teria — poder-se-ia aqui perguntar à maneira de lógica dedução o progresso económico-industrial, mesmo se grandioso e incessante, se houvesse um regresso paralelo na ordens espiritual e moral? Compete também a vós, caros trabalhadores marquejanos, evitar na vossa vida tal funesto contraste, impedindo que o bem-estar material venha a obscurecer o autêntico bem que é a virtude, e procurando que a hodierna tendência ao consumismo não leve ao prático esquecimento nem, tão-pouco, à formal negação de Deus,

4. Há na vossa Região um centro espiritual que, se para todos os cristãos é sugestivo lugar de peregrinação e de oração, o é por especial título para vós. Este centro é Loreto, onde em base à antiga tradição da Santa Casa, nos é apresentado com particular relevo um dos mistérios fundamentais da nossa fé: o do Filho unigénito de Deus, que Se fez homem no seio da Virgem Maria. Lugar privilegiado de piedade mariana é Loreto, mas, precisamente por esta sua directa conexão com o mistério salvífico do Verbo Encarnado, é também lugar de inexaurível meditação e de perene culto a Cristo Senhor e Redentor do Homem.

É importante e necessário, caros Trabalhadores, que na vossa vida profissional; como nas vossas famílias e no conjunto das relações sociais, haja sempre esta sensibilidade feita de interesse, de atenção e de preocupação, pelos valores primordiais e irrenunciáveis da fé cristã, que constituem — recordai-o sempre! — não só herança a ser conservada, mas também um bem pessoal que deve ser incrementado, testemunhado e partilhado com os irmãos.

Da minha parte, considerarei útil e profícuo o encontro de hoje convosco, se acolherdes com ânimo aberto e generoso esta minha, exortação. Na ocorrência cinquentenária apresento-vos sinceros votos pela vossa actividade de trabalhadores honestos e competentes, mas — em conformidade com o meu ministério de Pastor da Igreja — desejo indicar-vos e recomendar-vos a ulterior e mais sublime perspectiva de um viver cristão, inspirado em coerência exemplar.

Com a minha Bênção Apostólica.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS PARTICIPANTES NOS JOGOS MUNDIAIS


PARA PESSOAS DEFICIENTES "ROMA 81"


Pátio São Dâmaso, Vaticano

Sábado, 3 de Abril de 1981



1. Sinto-me feliz por ter esta oportunidade de me encontrar convosco, e causa-me satisfação que os Segundos Jogos para Pessoas Deficientes, "Roma 81", vos tenham trazido em grupo. Os jogos que vos trouxeram mostram clara e efectivamente que as pessoas deficientes podem e são totalmente integradas na vida social. Mostram que vivem uma vida plena e tomam parte nas suas alegrias.

O desporto, para vós, não é objecto de interesse económico. Não viestes para conquistar novos recordes absolutos nas várias modalidades do atletismo. Contudo, a vossa participação no desporto estabelece um recorde que, sob muitos pontos de vista, é ainda mais importante: o recorde de vos superardes a vós mesmos, um recorde de fraternidade universal mediante o desporto e a prática da solidariedade com todos os membros da família humana.

2. Por conseguinte, congratulo-me com todos aqueles que se ocuparam da organização dos jogos. Nela participaram os Jogos Internacionais "Stoke Mandeville" e a Organização Desportiva Internacional para os Deficientes, a Comissão Olímpica Nacional Italiana, a Federação Italiana do Desporto para os Deficientes, e as Autoridades da Região do Lácio e da Província e Cidade de Roma. As minhas felicitações vão também para os organizadores e os participantes no congresso científico, realizado em coincidência com os jogos, sobre os problemas médicos, jurídicos e técnicos dos deficientes. Congratulo-me com todos vós pela assistência que ofereceis aos deficientes, pelas possibilidades que lhes abris para melhorarem a própria vida e pela esperança que lhes dais.

3. É-me grato observar que agora está a mostrar-se maior sensibilidade para com as necessidades dos deficientes. O que faz aumentar e manter esta sensibilidade é uma consciência maior do valor e da dignidade da pessoa humana, o que não depende de qualidades secundárias, tais como a força e o aspecto físico, mas do facto fundamental de que o deficiente ou a deficiente são pessoas, seres humanos.

4. A par disto requer-se a consciência do dever de solidariedade para com todos os membros da família humana, que têm direito a ser inseridos nas diferentes formas da vida da sociedade. Por conseguinte, devemos procurar pôr fim às discriminações, não só de uma raça em relação à outra, mas também dos fortes e dos sãos em relação aos débeis e aos doentes. Num documento publicado recentemente, a Santa Sé reafirmou os princípios fundamentais relativos aos deficientes, que são pessoas humanas, com os seus direitos, e devem ser ajudados, de acordo com os princípios de integração, normalização e personalização, a fim de ocuparem o lugar que lhes pertence na sociedade, sob todos os aspectos e em todos os níveis, na medida compatível com as suas possibilidades.

5. É importante que a aumentada consciência e sensibilidade agora existentes sejam concretizadas em legislações apropriadas e que aqueles que se dedicam ao campo da medicina, da psicologia, da sociologia e da educação, encoragem a plena integração da pessoa deficiente na sociedade. Mas não é menos importante que se verifique uma mudança de coração, uma conversão, por parte de todos os cidadãos e de todos os grupos na sociedade, de modo a aceitarem de boa-vontade e fraternalmente a presença de pessoas deficientes na escola, no trabalho e em todas as actividades, incluindo o desporto.

6. As pessoas deficientes desempenham parte importante na criação de uma nova civilização, a civilização do amor, mediante a remoção de barreiras sociais e o advento de novos valores, os valores não da força mas de humanidade.

7. Em Jesus Cristo há uma importante mensagem para todos os deficientes, para aqueles que se lhes dedicam, e para a sociedade como um todo nas suas relações com eles. Jesus Cristo trouxe-nos uma mensagem que acentuou o valor absoluto da vida e da pessoa humana, que provém de Deus e é chamada a viver em comunhão com Deus. A mesma mensagem pode ler-se na sua própria vida de amor, pelos doentes e os que sofrem, e de serviço a eles. A mensagem também vem das palavras com que Ele próprio se identificou com todos os que estão em necessidade e fez ver que os seus discípulos deviam ser conhecidos pelo serviço amoroso prestado aos pobres e aos fracos: "Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes" (Mt 25,40).

Rezo por que a sua mensagem seja ouvida, seja dada vigorosa esperança aos deficientes, e novo amor penetre toda a sociedade.




Discursos João Paulo II 1981 - Quarta-feira, 1 de Abril de 1981