Discursos João Paulo II 1981 - Segunda-feira, 5 de Abril de 1981

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


NA INAUGURAÇÃO DO NOVO ÓRGÃO


DA BASÍLICA DO VATICANO


Sábado, 11 de Abril de 1981



Estimado Senhor Presidente,
ilustres e distintos convidados

Com grande alegria aceito nesta celebração, e na sua presença, o órgão transportável que o Senhor Helmut Schmidt, Chanceler da República Federal da Alemanha, me tinha anunciado como oferta do Governo à Santa Sé, durante a sua visita ao Vaticano a 9 de Julho de 1979. Com a bênção litúrgica ponho-o oficialmente em serviço, um serviço que deve consistir sobretudo — tal como indica o bilhete de acompanhamento — em animar e representar com o seu funcionamento os actos religiosos que forem celebrados na Praça de São Pedro.

O encontro de hoje é para mim ocasião oportuna para renovar sinceramente o meu agradecimento, expresso já noutro momento, ao Senhor Chanceler e ao Governo da República Federal da Alemanha. É-me também oferecida a oportunidade para lhe pedir cordialmente, Senhor Presidente, que ao regressar à capital da República transmita de viva voz este agradecimento com uma palavra especial de reconhecimento e apreço. Agradeço também a todos aqueles que, de um modo ou outro, contribuíram para a realização desta bonita iniciativa e, ainda, àqueles que colaboraram na organização desta significativa festa de consagração.

Representados por Vossa Excelência, nomeio aqui o Presidente da "Consociatio Internationalis Musicae Sacrae", Prelado Professor Dr. Johannes Overath, a quem se deve, na maior parte, o plano organizador e a sua execução. Menciono também o construtor do órgão, Sr. Werner Walcker-Mayer, de cuja oficina, já tradicional, saiu considerável número de órgãos de primeira qualidade. Para eles e para todos os que estão aqui presentes, especialmente para o Senhor Presidente, que representa o Senhor Chanceler, vai a minha cordial saudação de boas-vindas e a expressão do meu particular reconhecimento.

O órgão não só faz parte, na sua composição elementar, dos mais antigos instrumentos musicais da humanidade mas também alcançou entre eles, no decurso da história, um lugar de honra inclusivamente nos ambientes régios. Já nos primeiros séculos do cristianismo foi introduzido na Europa através de Bizáncio e da corte francesa. Na Igreja latina bem depressa se converteu no instrumento 'tradicional e preferido para a música. Na Alemanha, precisamente, graças ao progressivo aperfeiçoamento técnico, a música de órgão deu origem a obras-primas da melhor qualidade artística, alcançando uma expressividade religiosa especial. Basta aqui mencionar agora o nome de Johan Sebastian Bach. Inclusivamente nos nossos dias a interpretação do organista goza ainda de uma atracção especial, em cuja execução se distinguem, como todos sabem, altas personalidades da vida pública.

Nos tempos mais recentes a Igreja fez um apelo de grande autoridade, nada menos que através do Concílio Vaticano II, a ter "em grande apreço" o órgão na Igreja latina como instrumento musical tradicional. Assim diz literalmente a Constituição sobre a Sagrada Liturgia: "O seu som é capaz de trazer às cerimónias do culto um esplendor extraordinário e elevar poderosamente o espírito para Deus e para as realidades celestiais" (Sacrosanctum Concilium SC 120). É mais que uma feliz casualidade o facto de ser um órgão de fabricação alemã o que, daqui por diante — seguindo o espírito do Concílio — embelezara as celebrações solenes na Praça de São Pedro para a maior glória de Deus e a edificação espiritual dos homens. Oxalá, que mediante a sua música melodiosa e embelezadora, eleve a Deus os corações dos crentes na oração e no canto da Igreja; os disponha também, através de uma celebração eucarística mais agradável, a servir a Deus na sua vida com um coração alegre. A música fala, quando a palavra emudece (cf. Agostinho, Enarr. in Ps 32). Ela expressa o inefável, o sublime. A música muda do órgão é capaz precisamente de significar, na sua forma peculiar, os mistérios litúrgicos; é capaz de interpretar e de avivar "a adoração em espírito e verdade" (Jn 4,23). Oxalá a sua linguagem, compreensiva a todos os homens para além de todas as fronteiras, sirva, para obter o amor e a paz. Com profundo agradecimento por esta celebração e este encontro de hoje, para todos os que estão aqui presentes e todos os que tomaram parte nesta oferta, peço em especial o dom da alegria cristã, e concedo a todos, de coração, a bênção apostólica.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


A UM GRUPO DE UNIVERSITÁRIOS DE PAVIA


Sábado, 11 de Abril de 1981



Caríssimos Irmãos e Irmãs

1. Ao mesmo tempo que agradeço reconhecidamente a Dom Angelo Comini as nobres e devotas palavras que me dirigiu em nome de todos, vós, exprimo-vos a minha grande alegria por me ser dado encontrar-me hoje convosco, estudantes dos três Colégios Universitários de Pavia. A vós e ao Reitor Magnífico da célebre Universidade, que vos acompanha, dirijo a minha mais cordial saudação.

Vós fazeis-me conhecer de modo directo o que são o Almo Colégio Borromeo, o Colégio Ghislieri e o Colégio Feminino de Santa Catarina de Sena, que formam notável orgulho da Cidade de Pavia, porque fazem parte constitutiva da sua plurissecular tradição cultural. Esses Colégios têm sem dúvida alto título de nobreza, derivante quer dos Fundadores, que foram São Carlos e três grandes Papas, quer dos nomes ilustres de homens excelsos nas Letras e nas Ciências, que neles estiveram hospedados. Mas esses Colégios recebem hoje a sua vida e prestígio de vós que, juntamente com os Responsáveis por vós, os constituís diria fisicamente. Por isso, não quero só louvar o passado, tanto mais que o Colégio de Santa Catarina de Sena é ainda muito jovem, não tendo atingido dez anos de existência. Quero, em vez disso, prestar-vos testemunho da vossa seriedade nos estudos e animar-vos a prosseguir com ânimo e entusiasmo a vossa escolha de vida.

2. Folheando o Anuário do Almo Colégio Borromeo, impressionou-me uma citação do conhecido artista e literato do século XVI, Giorgio Vasari, que, a propósito do arquitecto do mesmo Colégio, escrevia que "deu princípio em Pavia... a um palácio para a Sabedoria" (ib. p. 10). Parece-me definição belíssima. E os Estudantes do "Borromeo" não me levarão a mal se me permito aplicá-la também aos outros dois Colégios, dos quais o Ghislieri é posterior àquele apenas seis anos; apesar de tudo, são ambos, do mesmo modo que o primeiro, dignos de toda a estima e elogio.

"Um palácio para a Sabedoria": tal é cada Colégio, em que vós respectivamente passais os vossos anos juvenis de frequência universitária. E estas palavras significam, parece-me, duas coisas complementares.

Primeiro que tudo, vós atendeis neles à vossa preparação profissional, mediante assíduo exercício da inteligência, que é ao mesmo tempo a vossa disciplina e a vossa alegria. E certamente estais conscientes de que, procedendo assim, não se trata só de acumular erudição, num puro amontoar quantitativo de dados. O homem não é um computer, instrumento aperfeiçoado quanto se queira, mas sempre máquina, isto é, privado de alma e de capacidade dialógica. Ele deve antes tender à "sabedoria", isto é, a uma formação humana integral, que se funde e em parte se identifique com uma acabada síntese de noções intelectuais e de perspectivas morais, de aprendizagem e de visão do mundo, de inteligência e de vida. A sociedade contemporânea tem certamente necessidade de profissionais, mais ainda porém de exemplos vivos de feliz composição entre ciência e maturidade pessoal: de homens, quero dizer, que saibam ir ao encontro do próximo não apenas sobre a base de um frio ofício bem aprendido e bem exercido, mas sobretudo pondo-se numa dimensão verdadeiramente humana, de mútua participação, mesmo de fraternidade.

Convido-vos, portanto, a dirigir os vossos estudos para um conjunto harmonioso, que seja ao mesmo tempo o constitutivo e o selo mais verdadeiro da vossa personalidade. Também só com este horizonte, a vossa quotidiana dedicação ao estudo adquirirá uma cor e um gosto novos, e diria mesmo uma facilidade insuspeitada, porque já não o vereis como fim a si mesmo, mas como caminho e componente de um projecto mais vasto, que é a realização global de vós mesmos como imagem de Deus.

3. E aqui se inscreve o segundo aspecto da citada definição. Vasari escreve o termo "Sabedoria" com inicial maiúscula. O vosso Colégio é certamente um palácio para a sabedoria. Mas não pode haver sabedoria completa, saborosa e verdadeiramente fecunda, se não é de algum modo o reflexo da Sabedoria divina. O antigo profeta de Israel vê nela o primeiro fruto, mesmo a primeira qualificação, do Espírito do Senhor (cf. Is Is 11,2), e o Autor do livro bíblico dedicado precisamente à Sabedoria, quase numa estática e amorosa contemplação que lhe multiplica os atributos, louva-a como "sopro do poder de Deus", "irradiação límpida da glória do Omnipotente", "resplendor da luz eterna", "espelho sem mancha da actividade de Deus", "imagem da Sua bondade" (Sg 7,25-26).

Mas o que para Israel era simples aspecto da divindade, para nós cristãos, é agora humana encarnação em Jesus de Nazaré, crucificado e ressurgido, tornado para nós, como se exprime o apóstolo Paulo, "o poder e a sabedoria de Deus" (1Co 1,24 cf. ib 1Co 1,30).

Caríssimos jovens, é para Cristo que vos chamo: para que o façais Senhor, isto é, ponto de referência e medida da nossa vida. A Carta aos Colossenses chega a dizer que n'Ele "estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência" (Col 2,3). E sem dúvida, colocando-nos no seu ponto de vista, vemos as coisas, os homens e a história mesma, de outro modo: em maior profundidade e com maior autenticidade. Só então, de facto, se realiza plenamente a afirmação bíblica: "A sabedoria do homem alegra o seu, rosto" (Qo 8,1), porque isto é possível aceitando o convite do Salmista: "Olhai para Ele, a fim de vos alegrardes" (Ps 34,6).

4. Irmãos e filhos dilectíssimos vivei com alegria e ao mesmo tempo com seriedade estes vossos anos. De vós, como de todos os jovens, esperam muito o mundo e a Igreja de amanhã. Em particular de vós, que empregais no estudo e na investigação intelectual as vossas melhores energias, tem-se o direito de esperar maior tomada de consciência do que é e do que merece o homem: de esperar uma mais convicta responsabilidade.

Amai o vosso Colégio e a vossa Universidade, porque são o regaço em que vos formais, do qual partireis para os vossos múltiplos serviços à sociedade, e de que trareis sempre convosco o sinal. E eu formulo em vosso favor os mais sentidos votos por uma verdadeira maturidade académica, que seja inseparavelmente acompanhada pela humana e cristã. Esteja sempre convosco a minha Bênção Apostólica, que tenho o prazer de conceder a vós todos, aos vossos amigos e a todos os que vos são caros, como penhor de abundantes graças celestiais como também do meu afecto.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


A UM GRUPO DE ESTUDANTES


DE INSTITUTOS CATÓLICOS BELGAS


Sábado, 11 de Abril de 1981



Sinto-me feliz em poder saudar hoje um grupo tão numeroso de representantes da juventude flamenga alunos e alunas de 21 Institutos católicos das Dioceses de Antuérpia e Hasselt. Merece especial menção o Colégio de Santo Huberto de Neerpelt, que já veio vinte e uma vezes a Roma.

Amanhã começa para toda a Igreja uma semana santa e misericordiosa: comemoram-se a paixão e morte do Senhor, coroadas pela sua ressurreição. Mediante o seu sacrifício, o Senhor libertou-nos a todos.

Convida-nos a edificar a nossa vida fazendo o dom de nós mesmos por amor. O mundo tem necessidade de homens, de jovens, que no nome do Senhor e fortificados pela sua palavra e a sua graça, saibam opor uma alternativa eficaz à falta de amor, à injustiça e à insegurança: a alternativa do amor, da caridade e da confiança.

Eis a mensagem que hoje vos confio, para a levardes às vossas Dioceses: que se esforcem sempre por seguir o Senhor.

Sois jovens, entusiastas e generosos: é por isto que a Igreja e o Papa contam com cada um de vós! É por isto que eu vejo em vós a garantia do futuro!

O Senhor vos acompanhe sempre! E eu, de todo o coração, dou-vos a minha Bênção Apostólica.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


DURANTE O ENCONTRO


COM OS JOVENS DE RUÃO, FRANÇA


Segunda-feira, 13 de Abril de 1981



Caros amigos da diocese de Ruão

Sois bem-vindos. Sempre me sinto bem ao encontrar-me com jovens que decidem reflectir e orar juntos, à luz do Evangelho, e fazê-lo em Igreja, com o seu Arcebispo, os seus sacerdotes, as religiosas é os mais velhos que os ajudam na sua fé.

Vindes de Assis. Colocastes as vossas pegadas nas de São Francisco: ele soube responder ao apelo de Cristo com amor e disponibilidade que não param de nos admirar. Para ele, o Evangelho, e em particular o das Bem-aventuranças, não ficou sendo apenas um belo texto nem mesmo um ideal; significava atitudes que haviam de realizar-se muito concretamente, quase à letra. Porque foi testemunha sem igual de Cristo, provocou na Igreja um movimento espiritual que muitos já não ousavam esperar. Com Francisco de Assis, tornai-vos discípulos de Cristo.

Mas, ao mesmo tempo, sabeis como Francisco, muito diferente nisto de outras pessoas que tinham veleidades de reforma da Igreja, insistiu sempre em articular a sua acção e pregação com o ministério dos sacerdotes, dos Bispos e do Papa, daqueles que foram constituídos Pastores pelo Espírito Santo para construírem a Igreja, guiá-la, ajudá-la a ser fiel e unida à roda de Cristo, seu Chefe invisível. É na Igreja que recebemos a verdadeira fé, os sacramentos Cristo e o discernimento daquilo que é verdadeiramente cristão. Por isso vos felicito: terminais o vosso retiro encontrando-vos com o Sucessor de Pedro, encarregado, como o primeiro Apóstolo, de reforçar os seus irmãos na fé.

Começamos a Semana Santa, na qual vamos seguir passo a passo a Cristo: Ele dá-nos o Seu testamento, o do maior amor; oferece a Sua vida, para nós sermos perdoados e renovados pelo Seu Espírito; daí surgem os sacramentos que vão regenerar a Igreja, o da reconciliação e o da Eucaristia; ressuscita na glória que pertence ao Filho único de Deus, na qual Ele nos fará participar. Vivamos intensamente estes importantes momentos litúrgicos. É também toda a vida do mundo actual, com as suas provas e as suas alegrias, que precisamos de associar à Páscoa do Salvador. Desejo que oiça cada um de vós o apelo, que lhe dirige Cristo, quanto à sua vida cristã e à vocação particular que lhe é destinada no serviço humano e no serviço espiritual dos seus irmãos. Orai também por mim´. De todo o coração, com o vosso Arcebispo, vos abençoo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS JOVENS PARTICIPANTES NO CONGRESSO


INTERNACIONAL PROMOVIDO PELO


INSTITUTO PARA A COOPERAÇÃO UNIVERSITÁRIA


Terça-feira, 14 de Abril de 1981



Caríssimos Irmãos e Irmãs

1. Sois mais uma vez bem-vindos a Roma, onde, seguindo um costume que estimais e é muito significativo, vos reunistes para celebrar o vosso Congresso anual. Sabeis que para mim é uma alegria encontrar-me convosco nesta circunstância.

Sei que também este ano o vosso encontro romano foi precedido por amplo trabalho de investigação, realizado nas Faculdades e nos Institutos de não menos de 400 Universidades do mundo inteiro. E agora preparais-vos para tirar as conclusões dos inquéritos e dos encontros que realizastes a nível nacional nos últimos meses.

Vejo com interesse que prosseguis sondando em profundidade os contactos existentes entre o campo multiforme dos conhecimentos científicos, que oferecem matéria ao vosso esforço de estudantes universitários, e aquelas verdades sobre o homem e e seu destino, que são iluminadas por uma superior sabedoria. Já o ano passado tive o prazer de me deter convosco sobre este assunto, tão fascinador quer do ponto de vista da investigação intelectual quer pelas suas consequências morais: ele, de facto, atinge o universitário não só na sua qualidade, por assim dizer, de profissional da cultura, mas também no seu comportamento quotidiano e nas suas responsabilidades de serviço para com a sociedade.

2. Eis o tema que desejo oferecer hoje à vossa reflexão: a experiência e o sentido da vossa liberdade. O estudo que vos ocupa, e o desenvolvimento da vossa formação cultural e humana, estão a desenvolver em vós uma percepção cada vez mais plena da liberdade e das suas possibilidades. Esta progressiva experiência deve-se porém realizar não só como experiência de uma dádiva, mas sobretudo como tarefa, como fadiga da liberdade, como eu disse falando recentemente aos estudantes e professores da Universidade de Roma. Estas palavras — tarefa, fadiga — chamam imediatamente à consciência a realidade inopugnável da responsabilidade moral, ampla nos seus conteúdos e forte nas suas exigências, que recai sobre cada homem já possuidor do conhecimento da própria liberdade. Mas quem vive, como vós, na busca da verdade, é chamado a descobrir essa responsabilidade moral com clareza singular. A tarefa que se abre diante de vós é sobretudo esta: que a experiência de tal liberdade se funde e aprofunde no terreno daquelas verdades últimas, que explicam ao homem o sentido da própria existência e do próprio destino, e determinam as razões das próprias escolhas.

3. Dir-se-ia que o tema da verdade tem lugar privilegiado naquela que, por natureza, é a sede onde se elaboram a ciência e a cultura, isto é, na Universidade. Mas que é a verdade? Sois talvez testemunhas de que nenhuma pergunta mais do que esta, tão antiga e tão conatural ao homem, suscita tanta perplexidade e indiferença nos ambientes da vossa sociedade, desfibrada pelo pragmatismo, que tende a traduzir essa interrogação fundamental nestes termos, bem diversos: para que serve a verdade? Empobrecida deste modo, a pergunta já não desperta no homem nenhum interesse profundo.

Uma verdade, a fim de ser usada para os próprios fins, toma o lugar da verdade que dá ao homem a sua intransponível e justa medida, e o define como homem, em toda a sua dignidade de imagem de Deus. A diferença é profunda, porque, onde o homem recusa a fadiga de lançar solidamente as raízes da própria liberdade no terreno da verdade, precisamente nessa primeira atitude da sua consciência, começa ele a hipotecar a sua mesma liberdade: o seu procedimento moral já se vê com isso comprometido, na medida em que fica desviado no seu ponto de partida e nas suas aspirações. Reflecti nisto: quem não quer medir o uso da própria liberdade com aquela decisiva verdade acerca da condição e do destino do homem, corre o risco de deixar-se engolir por aqueles que eu definiria como os mecanismos da adaptação social. Liberdade ilimitada, ou antes hábito e uniformidade? Liberdade ou submissão? Se no seu esforço cultural o estudante se contenta só com as verdades pragmáticas, iniciará a vida profissional como o espectador que entra às apalpadelas num teatro escuro, guiado pela frouxa luz que o porteiro segura. Serão outros a marcar-lhe o lugar e o percurso: os únicos consentidos por um sistema de subvalores que, com as suas leis implacáveis, minimiza cada critério moral e reduz todos os ideais ao interesse pelo bom êxito, pelo prestígio ou pelo dinheiro.

4. Certamente, o utilitarismo e o materialismo prático, hoje tão espalhados, não constituem o humus mais propício para fazer que brote a exigência cristã de uma verdadeira liberdade e de uma verdade livre dos condicionamentos das modas; precisamente por isto parece-nos que a universidade — a vida e a cultura universitária — merecem e exigem de vós esse serviço. Quer dizer, exigem esforço para testemunhar com o exemplo os frutos pessoais e sociais de uma liberdade ligada às verdades últimas sobre Deus e sobre o homem.

Pelo contrário, os programas pedagógicos, que nascem aniquilando ou ignorando as mais profundas aspirações do homem, geram mais tarde ou mais cedo frutos desumanos de egoísmo e violências. É realidade que salta aos olhos de todos: os sobressaltos niilistas de alguns ambientes universitários não constituem porventura também o resultado final desses programas que afagam o homem fazendo-lhe brilhar diante dos olhos a ilusão de uma liberdade sem limites, porque sabem que deste modo o podem dominar melhor, subtraindo-o em primeiro lugar a Deus e depois a si mesmo? Programado e constituído objecto de redução arbitrária, concebido e educado para ser aprisionado pelas necessidades e pelos consumos da sociedade materialista, o homem no fim de contas revolta-se. Não conhecendo as verdadeiras raízes do seu próprio mal-estar, desafoga cegamente a própria raiva: converte-se em instrumento de violência inútil. E faz em pedaços os símbolos do bem-estar material de que se sente prisioneiro. É necessário ter a coragem de indagar e dizer porquê.

5. Caríssimos: sei que vós entendeis bem e apreciais a importância dos tempos em que vivemos. Sei que entendeis e estais dispostos a assumir a tarefa que vos espera como cristãos. É necessário que saibais criar, dentro de vós e à volta de vós mesmos, amplos espaços de humanidade. Espaços para acolher e para fazer que amadureça uma sabedoria sobre o homem, que ilumine hoje os vossos estudos universitários e incida, no dia de amanhã, no vosso serviço profissional. A Universidade, parece-me, é meio especialmente adequado para descobrir e aceitar com coerência a própria educação de cristãos que vivem no mundo e se sentem responsáveis pelo mundo. É grande tarefa a dos universitários: não é possível reduzi-la à necessidade de acumular conhecimentos de diversos sectores nos distintos campos do saber. Espera-vos a tarefa, a fadiga, de integrar as verdades parciais na Verdade Suprema, a liberdade na responsabilidade moral, dentro de uma sólida unidade de vida cristã.

Este esforço far-vos-á ver cada dia como a verdade, a que estais a abrir as portas da vossa mente e do vosso coração, não é teoria abstracta, que permanece à margem do encargo profissional. É luz que se projecta sobre o trabalho quotidiano e ajuda a descobrir o seu sentido humano e divino, a única perspectiva dentro da qual se exerce realmente a liberdade do homem, que é a libertação das coacções do mal. Eis aí a liberdade que o homem pode fazer sua, só com a condição de colocar-se humildemente a buscar a Verdade última.

Orientados para esta verdade, que diz respeito à vossa pessoa e ao vosso fim, estais a descobrir a grandeza da tarefa que vos foi confiada e as imensas possibilidades de serviço que se abrem a todos quantos dão um horizonte divino à própria vocação profissional. "A verdade vos libertará" (Jn 8,32), diz Jesus: a verdade que Ele anuncia ao homem não é portanto abstracção, mas luz que penetra na nossa vida. É Ele mesmo que proclama: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida" (ibid. 14, 6). É a guia para uma vida livre das coacções do egoísmo e da manipulação social.

Desejaria que no ânimo de todos vós encontrassem eco as palavras do Evangelho de São João: Et vita erat lux hominum (ibid. 1, 4), "a vida era a luz dos homens". O Verbo eterno de Deus fez-se homem; a Verdade eterna aproximou-se de nós fazendo-se vida humana e por isso fazendo-se também doação até à morte, segundo contemplamos nestes dias santos. Eis aqui, traduzida em ensinamento real, a verdade mais profunda que foi dada a conhecer ao homem a respeito da vida. Cristão é quem, livre e alegremente, imprime à própria existência um novo ritmo que a vida de Cristo deu à vida humana. Tende sempre a coragem de empregar assim a vossa liberdade, deixando que na vossa existência — inteligência, sensibilidade e afectos — pulse este novo ritmo de vida, inaugurado pelo Filho de Deus feito homem.

6. Caros jovens: vindes de diferentes procedências linguísticas e eu desejo a todos vós que experimenteis a alegria e a força de estardes unidos em Cristo. Não recueis, rejeitai todas as ilusões e falsos mitos de liberdade: segui a Cristo!

Só deste modo sereis capazes de ajudar os vossos muitos colegas a descobrir as dimensões insuspeitas que a vocação universitária deles reveste à luz do mistério redentor de Cristo. Esta é a tarefa que vos espera. Diante da renúncia daqueles que se declaram estar emaranhados pelos ímpetos da busca do prazer; diante do desespero do niilismo; diante da esterilidade de ideologias ateístas, a Igreja e a humanidade esperam de vós o testemunho claro e alegre daqueles que imprimem na sua tarefa intelectual e moral, a marca do testemunho de Cristo, na liberdade que Ele obteve para nós.

Saudando agora de todo o coração os estudantes de língua francesa, continuo a minha exortação nessa mesma língua. Dizia que o vosso compromisso deve trazer a marca da sabedoria de Cristo e da liberdade que Ele nos adquiriu. Não esqueçais ser Cristo a Verdade, uma Verdade que é Vida. Não esqueçais que a Verdade — Cristo — deve tornar-se também a vossa vida quotidiana. Penso sobretudo na estreita coesão que deveis estabelecer entre a vossa fé cristã e estes aspectos tão importantes da vossa vida que são o estudo, a investigação e o trabalho: devem estar cheios do sentido de Deus.

Saúdo também cordialmente os estudantes de língua alemã. No quadro de vida e de acção que escolhestes, tende muito em conta a vossa vocação cristã. Oxalá vos seja concedido, hoje nas tarefas e obrigações diárias na Universidade e amanhã no vosso trabalho profissional, encontrardes-vos pessoalmente com Cristo e tê-lo como Guia e Mestre; Ele é quem vos mostra o caminho para conseguirdes servir os homens de modo adequado e contribuirdes para garantir o bem-estar e a salvação deles.

E a vós, amados irmãos e irmãs de língua portuguesa, também quero saudar cordialmente; e a todos exorto a proceder nesta comum caminhada, com liberdade responsável, à luz de Deus e da condição de cristãos, empenhados em viver e testemunhar a verdade da própria adesão a Cristo, como opção unificadora de todas as demais opções livres. Ele, Cristo, é sempre o caminho; e a toda a hora nos convida a sermos, com Ele, luz para os homens-irmãos, "pela vida do mundo". Tende confiança! Nesta caminhada assiste-nos sempre a amorosa e discreta presença de Maria Santíssima, Mãe de Cristo e nossa Mãe, e Sede da eterna Sabedoria. A Ela recomendo todos e cada um de vós.



PALAVRAS DO PAPA JOÃO PAULO II


NO FINAL DA VIA-SACRA NO COLISEU DE ROMA


Sexta-feira, 17 de Abril de 1981



1. "Nós vos adoramos e bendizemos, ó Jesus, que remistes o mundo pela vossa Santa Cruz".

Viemos aqui ao anoitecer desta Sexta-feira Santa, amados Irmãos e Irmãs, Romanos e Peregrinos das diversas partes do mundo, para glorificar a Cruz de Cristo.

Esta Cruz encontra-se aqui, no meio das ruínas do Coliseu, como um sinal.

Junto desta Cruz meditámos nas estações da Via-Sacra, o Caminho da Cruz de Jesus de Nazaré, e sobre a sua morte na Cruz.

"Jesus Nazareno, rei dos Judeus" (Jn 19,19): foi esta a inscrição que Pilatos mandou colocar por cima da cabeça do Condenado.

Junto desta Cruz acabamos de meditar também na história da Via-Sacra dos cristãos das primeiras gerações e dos primeiros séculos — "via-sacra" que os conduziu aos lugares onde se consumou o seu martírio em Roma e no mundo antigo. Aqueles que assim morreram pela fé, abraçavam com amor a Cruz de Cristo, repetindo: "Nós vos adoramos e bendizemos, á Cristo, que remistes o mundo pela vossa Santa Cruz". Eles tomaram sobre si mesmos o estigma da Redenção, tornado incandescente pelo seu próprio sangue; e assim completaram, com a sua própria cruz, "o que faltava aos sofrimentos de Cristo" (cf. Col Col 1,24).

E foi assim sempre, nas diversas épocas da história e nos diversos lugares da terra. Nos lugares próximos e longínquos. A minha peregrinação recente ao Extremo Oriente recordou a todos quanto foram semelhantes a "via-sacra" dos nossos irmãos e irmãs daqueles territórios longínquos e a das primeiras gerações de mártires que por aqui passaram, seguindo Cristo até à morte.

Não podemos terminar este dia sem recordar, sem abraçar, com a memória e o coração, tantos e tantos nossos irmãos e irmãs na fé que, também na nossa época, estão prontos para sofrer ultrajes por causa do nome de Cristo (cf. Act Ac 5,41), de diversas maneiras, com diversas humilhações e discriminações, prisões e torturas.

Vós todos, queridos "com-testemunhas" dos sofrimentos de Cristo — onde quer que vos encontreis — ficai sabendo que estivestes aqui presentes juntamente connosco, durante esta Via-Sacra no Coliseu de Roma: estivestes presentes no coração do Papa, sucessor de Pedro, e no coração de toda a assembleia!

2. Nós vos adoramos, Jesus Cristo!

Sim, nós vos adoramos. Pomo-nos de joelhos e não encontramos palavras suficientes nem gestos para vos exprimir a veneração de que nos compenetra a vossa Cruz, de que nos compenetra a vossa humilhação até à morte; de que nos compenetra o dom da Redenção proporcionado a toda a humanidade — a todos e a cada um dos homens — mediante a submissão total e incondicionada da vossa vontade à vontade do Pai.

"Com efeito, Deus amou tanto o mundo que deu o seu Filho unigénito" (Jn 3,16).

E o Filho, Jesus Cristo, "que era de natureza divina, não julgou o ser igual a Deus um bem a que nunca devesse renunciar; mas... tomando a condição de servo... humilhou-se a Si mesmo, fazendo-se obediente até à morte e morte de cruz" (Ph 2,6-8).

E precisamente por isso tornou-se o Senhor das nossas almas: Redentor do mundo. E precisamente por isso revelou-nos até ao último sinal o amor de Deus para com o homem: o amor do Pai. Revelou-o em Si mesmo: em Si — obediente até à morte; e revelou-o ao assumir a condição de servo: daquele Servo de Javé prenunciado por Isaías:

"Ele tomou sobre si as nossas enfermidades, / carregou-se com as nossas dores. / Nós o julgávamos castigado / e ferido por Deus e humilhado; / mas foi transpassado por causa dos nossos delitos, / esmagado por causa das nossas iniquidades. / O castigo, salutar para nós, foi infligido a ele, / e as suas chagas nos curaram. / Todos nós, como ovelhas, andávamos desgarrados, / cada um seguia o seu caminho. / Mas o Senhor fez recair sobre ele / as culpas de todos nós. / E, maltratado, deixou-se humilhar / e não abriu a sua boca; / era como um cordeiro levado para o matadouro, / como uma ovelha emudecida nas mãos do tosquiador; / e não abriu a sua boca.

... Depois, sairá das aflições do coração para ver a luz / e da visão desta se saciará. / O justo, meu servo, justificará a muitos / e tomará sobre si as suas iniquidades. / Por isso dar-lhe-ei como prémio as multidões... / em recompensa de se ter prodigalizado a si mesmo até à morte / e de se ter deixado contar entre os malfeitores, / enquanto ele só tomou sobre si os pecados de muitos / e intercedia pelos culpados" (Is 53,4-7 Is 53,11-12).

Ele revelou o amor do Pai no seu próprio amor. Do alto da sua cruz ele tem o direito de dizer aos homens de todos os tempos: "Quem me vê, vê também o Pai" (Jn 14,9).

Ele revelou, mediante a sua paixão e a sua cruz, o Pai de todos os filhos pródigos. Ele revelou, mediante a sua morte, que no mundo está presente o Amor — o Amor mais forte do que a morte, o Amor mais forte do que o pecado.Ele revelou-nos Deus, que é "rico em misericórdia" (Ep 2,4). Ele abriu diante de nós o caminho da esperança.

3. E eis-nos aqui: nós, ao declinar deste dia romano de Sexta-Feira Santa, aqui bem próximos do Coliseu, junto da Cruz dos séculos, desejamos por meio da vossa Cruz e da vossa Paixão, ó Cristo, bradar hoje por tal Misericórdia, que de maneira irreversível entrou na história do homem, em todo o nosso mundo humano, e que, não obstante as aparências de fraqueza, é mais forte do que o mal. Ela é a potência e a força maior sobre a qual o homem, ameaçado de tantos lados, se possa apoiar nos dias de hoje.

"Hágios o Theós / Hágios íschyrós / Hágios Athánatos eleison hymás".

"Sanctus Deus / Sanctus Fortis / Sanctus Immortalis miserere nobis".

Santo Deus, Santo Forte, Santo Imortal, tende piedade de nós!

Tende piedade: "eléison": "miserere"!

Que a potência, do vosso amor mais uma vez se demonstre maior do que o mal que nos ameaça. Que ela se demonstre maior do que o pecado — do que os multíplices pecados — que de um modo cada vez mais absoluto se arrogam o direito público de cidadania na vida dos homens e das sociedades.

Que a potência da vossa Cruz, Cristo, se demonstre maior do que o autor do pecado, que se chama "o príncipe deste mundo" (Jn 12,31)!

Sim, porque pelo vosso Sangue e pela vossa Paixão vós remistes o mundo!

Amém.




Discursos João Paulo II 1981 - Segunda-feira, 5 de Abril de 1981