Discursos João Paulo II 1982 - Sexta-feira, 19 de Fevereiro de 1982


DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

AOS BISPOS FOCOLARINOS

VINDOS DE VÁRIOS PAÍSES


Sala dos Suíços, Palácio Apostólico de Castel Gandolfo

Domingo, 21 de Fevereiro de 1982



Veneráveis Irmãos no Episcopado!

1. "Onde estiverem reunidos, em Meu nome, dois ou três, Eu estou no meio deles" (Mt 18,20). Movidos pelo desejo de experimentar mais profundamente a verdade desta preciosa palavra de Cristo, estais reunidos, vindos de perto e de longe, no "Centro Mariapoli" de Rocca di Papa, onde, vivendo comunitariamente, passastes uma semana de reflexão e de prece no contexto da espiritualidade do "Opus Mariae".

Enquanto o Papa vivia intensa e consoladora experiência de comunhão com algumas jovens Igrejas do Continente africano, celebrando com elas o mistério da unidade que pulsa no grande Organismo da Igreja universal, vós celebráveis este mesmo mistério na caridade de uma reunião fraterna, que vos consentiu partilhar reciprocamente, sob o olhar de Maria, anseios, projectos, perspectivas, confiantes esperanças.

Ao fazerdes isto, não vos nutristes somente do património de uma espiritualidade que vos é particularmente cara, mas actualizastes além disso uma dimensão característica da vossa realidade ontológica como bispos. De facto, como todo o cristão é, por sua natureza, co-discípulo de Cristo, assim cada sacerdote é co-sacerdote e cada bispo é, por definição, co-bispo. Um vínculo de autêntica fraternidade une entre si os bispos não só de uma mesma província ou nação, mas de toda a Igreja católica. Além da aproximação espiritual que pode ser suscitada pela formação recebida pelo tipo de trabalho, há de facto o dado sacramental da inserção no Corpo episcopal universal, desejado por Cristo como "collegium" (cf. Const. dogm. Lumen gentium LG 22 Decret. Christus Dominus CD 4). O Bispo, portanto, é chamado a fazer suas espiritualmente — e às vezes também na prática — as preocupações dos bispos de outras Igrejas locais e da própria Igreja universal, assumindo, como o Apóstolo, a "sollicitudo omnium ecclesiarum" (2Co 11,28) e contribuindo deste modo para o progresso do Reino de Deus no mundo (cf. Const. dogm. Lumen gentium LG 23 Decret. Christus Dominus CD 3, 6, CD 7).

2. Este empenho a integrar a vossa missão, juridicamente circunscrita a uma diocese, mediante semelhante co-responsabilidade aberta, não vos levará de modo algum a descuidar do rebanho que vos foi confiado nem do dever de que estais directamente incumbidos. Uma acção pastoral, que de modo constante esteja consciente da dimensão "católica" do ministério episcopal, tem em si maiores garantias de estar plenamente em sintonia com Cristo na construção daquilo que foi o seu supremo anseio na hora da Paixão "que todos sejam uma só coisa" (Jn 17,21). "Uma só coisa" os sacerdotes entre si e com os fiéis; "uma só coisa" as associações e os movimentos no seio da paróquia e da diocese; "uma só coisa" as diversas Igrejas locais espalhadas pelo mundo.

O anseio da unidade levar-vos-á, além disso, com sempre renovado estímulo a assumir a responsabilidade do problema ecuménico, encorajando-vos a tentar todas as iniciativas úteis para apressar o momento em que, segundo a palavra de Cristo, haverá "um só rebanho e um só pastor" (Jn 10,16).

De outra parte, a consciência em vós reavivada do ónus que pesa sobre os ombros dos outros bispos, ajudar-vos-á a levar com maior serenidade o vosso encargo. E ainda: o facto de terdes feito uma experiência mais directa da espiritualidade como discípulos e como pastores, que anima tantos irmãos vossos no episcopado, estimular-vos-á ao aprofundamento e enriquecimento com sempre maior generosidade da vossa pessoal resposta Àquele que vos chamou "amigos", introduzindo-vos na consciência dos segredos a Ele confiados pelo Pai (cf. Jo Jn 15,15).

3. Se Bispos reflectem, como fizestes, sobre a sua recíproca unidade, no contexto da universal comunhão eclesiástica, não podem deixar de ser coerentemente conduzidos a referir-se ao ministério de Pedro. Agradeço-vos, Irmãos, a cordial disponibilidade com que, além de terdes aprofundado no estudo as exigências da vossa união com o Sucessor de Pedro, vos comprometestes a reconhecê-las e actuá-las concretamente na vida.

O Bispo de Roma é o primeiro entre vós Bispos. Ele conta convosco e está junto de cada um de vós.

Assim unidos nos quer o Espírito Santo, enquanto estamos à espera dos seus dons de luz e de sabedoria, circundados — como então estavam os Doze no meio dos cento e vinte — pelos nossos irmãos. E, como outrora, temos entre nós Maria, Mãe de Cristo e Mãe da Igreja, a quem é confiado também o ministério de Pedro. Regina Apostolorum, Mater unitatis, ora pro nobis!

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

AO SENHOR ALGERNON WASHINGTON SYMMONDS

PRIMEIRO EMBAIXADOR DOS BARBADOS


JUNTO DA SANTA SÉ POR OCASIÃO


DA APRESENTAÇÃO DA CARTAS CREDENCIAIS


Quinta-feira, 25 de Fevereiro de 1982



Senhor Embaixador

É-me grato aceitar as Cartas que o acreditam como primeiro Embaixador Extraordinário e Plenipotenciário dos Barbados junto da Santa Sé. Aprecio os bons votos que me trouxe da parte do Ilustríssimo J. M.G. M. Adams e peço-lhe queira retribuir-lhe as cordiais saudações.

A Santa Sé alimenta sempre interesse na promoção do diálogo com os governantes das nações ou com outras autoridades civis que têm uma responsabilidade primária, na solidez e no bem-estar da sociedade. Do mesmo modo o estabelecimento de relações diplomáticas com os governos individualmente é saudado como um meio para trabalhar em estreita colaboração a fim de se realizarem objectivos comuns e o progresso da pessoa humana em todas as suas dimensões.

Este momento de hoje é pois importante tanto para a Santa Sé como para o seu país. É sinal do nosso desejo mútuo de consolidar os laços de compreensão e confiança já existentes, e é expressão do nosso empenho em alimentar um clima de diálogo não só entre nós próprios mas também entre a família inteira das nações.

Aprecio a referência que fez aos desejos comuns à Santa Sé e aos Barbados: as nossas comuns aspirações de alcançar a paz e a justiça internacional e a preocupação que temos de que sejam respeitados os direitos humanos. A observância dos direitos humanos e a obtenção da paz e da justiça a nível internacional são certamente metas desejáveis. E ao procurar alcançá-las, não devemos esquecer-nos que é o conseguimento delas dentro de cada nação que formará o sólido alicerce para a sua realização na ordem internacional. Nisto, a Igreja e os governos podem trabalhar de mãos dadas.

A Igreja, quer a nível local quer universal, está pronta e deseja cooperar com cada um dos governos, como o seu, em programas dedicados ao pleno desenvolvimento integral da pessoa humana, quer seja no campo da educação ou mediante programas que tenham em vista o cuidado da saúde e da assistência aos necessitados. Ao mesmo tempo que a Igreja salienta o primado do espiritual sobre o material, não deixa de apoiar todos os esforços meritórios para satisfazer as necessidades dos homens e das mulheres do nosso tempo. Estou certo que o governo dos Barbados aprecia estes objectivos.

Ao dar-lhe as boas-vindas ao seu novo cargo. Senhor Embaixador, peço a Deus Todo-Poderoso o abençoe e lhe conceda a Sua protecção. Tenho confiança que será feliz na sua missão e exprimo-lhe os meus melhores bons votos pelo bem-estar do seu país, pela paz e a harmonia internacional.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS PARTICIPANTES NO II CURSO-CONVÉNIO


INTERNACIONAL SOBRE A TERAPIA DOS TUMORES


Sala Clementina

Quinta-feira, 25 de Fevereiro de 1982



Caros Irmãos e Irmãs!

1. Sinto-me verdadeiramente feliz de apresentar a minha mais cordial saudação a todos vós, que participais durante estes dias no Segundo Curso-Convénio Internacional sobre o tema "Radiodiagnose e terapias integradas na oncologia", promovido pela Faculdade de Medicina e Cirurgia da Universidade do Sagrado Coração, aqui em Roma. Percorrendo o programa do Curso notei que os ilustres Relatores provêm, não só da Itália, mas também da Jugoslávia, Alemanha, França, Inglaterra, Canadá, Estados Unidos da América e Japão. Trata-se de uma representação verdadeiramente vasta e sobretudo qualificada no sector, em que a vossa competência é amplamente reconhecida. Pois bem, a todos vós, e em primeiro lugar ao Director do Curso, Professor Attilio Romanini, renovo a minha saudação, que exprime também a alegria sincera de poder estar convosco; antes, agradeço-vos a ocasião que me é dada de vos dirigir a minha palavra sobre o importante tema por vós debatido, no campo em que para mim sois mestres. É-me grato unicamente abrir-vos o meu ânimo sobre a colaboração do problema humano do doente de tumor, e assegurar-vos o meu encorajamento na vossa preciosa actividade.

2. Para além dos aspectos estritamente técnicos, próprios da oncologia, propõe-se sempre, não só aos parentes mas sobretudo ao médico, a questão do melhor relacionamento a ser instaurado com o doente. A doença do câncer, de facto, permanece ainda em parte diante de todos, e também a vós embora sejais Especialistas na matéria, um enigma: tanto na sua origem como na sua terapia. Sabeis bem que é muito fácil um colapso psicológico do paciente, em particular pelas terríveis ou incertas perspectivas que ela lhe reserva. Terapias difíceis ou até mesmo mutiladoras, isolamento e discriminação por parte dos sãos, angustiosa preocupação pelo progresso do mal: todos estes são motivos que, além da dor física, fazem da enfermidade uma das mais tremendas formas de sofrimento. Mas contemporaneamente, e sob um outro ponto de vista, estes são também motivos para que não se deixe sozinho o doente, mas se tome a peito a sua sorte, se lhe dê confiança e assistência, direi com fraterna participação, no caminho do seu sofrimento tanto físico como psicológico. E tudo isto exige-se não só dos familiares, que mais de perto compartilham as aflições dele, mas também e de modo especial de vós, que como médicos dele cuidais, e ainda dos enfermeiros e de toda a equipa terapêutica.

3. Dado que pertence à tradição da Igreja considerar de modo cristão tudo o que é autenticamente humano, sinto-me no dever de vos convidar com urgência a humanizar sempre mais a medicina por vós desenvolvida, e a instaurar um vínculo de sincera solidariedade humana com os vossos pacientes, que vá para além de um simples relacionamento profissional. No seu íntimo o doente espera também isto de vós. Aliás, ele está perante vós em toda a sua nobreza de pessoa humana que, embora sendo necessitada, sofredora e talvez também deprimida, não por isto deve ser considerada um objecto passivo, mesmo que fosse um objecto de cuidados mais ou menos experimentais. Pelo contrário, uma pessoa é sempre um sujeito e como tal deve ser valorizada. Esta é a dignidade primordial do homem. E precisamente no relacionamento com o homem sofredor — ainda mais se padece de tumor — encontramo-nos diante de um teste que experimenta e põe à prova a existência e a genuinidade das nossas convicções referentes a isto. Uma pessoa exige pela própria natureza um relacionamento pessoal. Também o doente jamais é só um caso clínico, mas sempre um "homem doente"; ele espera para si cuidados competentes e eficazes, mas também a capacidade e a arte de inspirar confiança, talvez ao ponto de discutir honestamente com ele a sua situação e, sobretudo, de adoptar uma sincera atitude de "simpatia", no sentido etimológico do termo, de modo que traduza na prática as palavras do Apóstolo Paulo, que faziam já de novo ressoar as de um antigo sábio: "Alegrai-vos com os que se alegram; chorai com os que choram" (Rm 12,15 cf. Ecli Si 7,38).

Neste sentido, como bem se compreende, a actividade do Médico está mais próxima de uma missão que de uma simples profissão. De facto, nela está envolvida toda a sua humanidade e dela se requer dedicação total. Pois bem, caros Irmãos e Irmãs, sinto o dever de vos encorajar com todo o coração no vosso benemérito trabalho, tanto de pesquisa científica quanto de assistência terapêutica. Certamente muitos devem tanto a vós. E, se permitis, faço-me intérprete de quantos não têm talvez a possibilidade de vo-lo exprimir, apresentando-vos o reconhecimento de todos os doentes de cancro, mas não só deles, por tudo o que fazeis para o seu bem e do homem em geral neste sector tão urgente e dramático.

Prossegui, portanto, com tenácia e entusiasmo o vosso louvável empenho, segundo as vossas respectivas especializações. A estas faço votos por que possam ser o mais possível frutuosas, como merece a seriedade dos vossos trabalhos e a mesma causa do homem que, também no plano físico, sempre espera "entrar na liberdade da glória dos filhos de Deus" (Rm 8,21).

Da minha parte, asseguro-vos particular lembrança na oração, a fim de que o Senhor, que por definição bíblica é "Aquele que ama a vida" (Sg 11,26), abençoe as vossas ocupações e favoreça os vossos esforços. Destes votos é penhor a Bênção Apostólica, que de bom grado vos concedo, também como sinal da minha alta consideração, e que faço extensiva a quantos vos são caros.

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

NO ENCONTRO COM OS ESTUDANTES

DO INSTITUTO ECUMÉNICO DE BOSSEY


Sexta-feira, 26 de Fevereiro de 1982



Caros directores, estudantes e colaboradores da Bossey Graduate School

Bem-vindos a Roma! É uma alegria para mim receber-vos aqui e saudar-vos no amor de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo.

Durante os últimos cinco meses estivestes a reflectir no amoroso desígnio de Deus em Cristo. Estais bem cientes que um objectivo fundamental da Igreja é que a vida no mundo deveria conformar-se mais à inigualável dignidade do homem em todos os seus aspectos, de maneira que tornasse essa vida ainda mais humana (cf. Redemptor Hominis RH 13).

É precisamente em ordem a alcançar isto que a Igreja é ao mesmo tempo sinal e salvaguarda da transcendência da pessoa humana. Oxalá esta profunda convicção seja o motivo que leveis convosco no regresso às vossas terras, onde sereis chamados a afirmar a humanidade feita à semelhança de Deus e maravilhosamente restaurada em Cristo!

Espero que a vossa permanência em Roma seja uma época feliz. Enriqueça-vos ela também no espírito. Como estais nos lugares para onde vieram Pedro e Paulo, progredi na vossa apreciação dos princípios da fé cristã neste lugar e na significação deles para o mundo.

As minhas orações e os meus pensamentos acompanhar-vos-ão nos anos futuros ao servirdes nosso Senhor Jesus Cristo. Deus vos abençoe, as vossas famílias e os que vos são queridos, e ainda os países a que agora ides voltar.

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

AOS PADRES PROVINCIAIS DA COMPANHIA DE JESUS

Sala do Consistório

Terça-feira, 27 de Fevereiro de 1982



1. Tenho particular gosto em vos acolher hoje, caríssimos Irmãos em Cristo, neste especial encontro! Saúdo do coração o meu Delegado para a Companhia de Jesus, Padre Paulo Dezza, e o seu Coadjutor, Padre Pittau, e especialmente o venerado Prepósito-Geral, Padre Pedro Arrupe, e todos vós, Assistentes e Conselheiros da Cúria Generalícia e 86 Padres Provinciais, representantes diante dos meus olhos dos 26.000 Jesuítas, que, espalhados por todas as partes do mundo, estão empenhados em "servir o único Senhor e a Igreja, Sua Esposa, sob o Romano Pontífice, Vigário de Cristo na terra".

A estes sentimentos de sincera alegria pela vossa presença junta-se o devido sentimento de reconhecimento e gratidão, que — seguindo os meus Predecessores — desejo dirigir a toda a Companhia de Jesus e a cada um dos seus Membros, pelo contributo histórico de apostolado, de serviço, e de fidelidade a Cristo, à Igreja e ao Papa, dado de há séculos com uma generosidade incansável e uma dedicação exemplar em todos os campos do apostolado, nos ministérios e nas missões. É reconhecimento que, hoje, em nome da Igreja toda, eu dirijo a vós, dignos herdeiros de tais Religiosos, que têm feito, de há quatro séculos e meio, da "maior glória de Deus" o seu mote e o seu ideal.

Esta gratidão e este reconhecimento adquirem especial significado nas actuais circunstâncias, que se manifestam e são objectivamente delicadas para o governo da vossa benemérita Ordem. É sabido que, em seguida à enfermidade que atacou o caríssimo Padre Arrupe, julguei oportuno nomear um meu Delegado pessoal, e um seu Coadjutor, para o governo da Ordem e para a preparação da Congregação Geral. A situação, indubiamente singular e excepcional, sugeriu uma intervenção, uma "prova", que — e digo-o com intensa comoção — foram acolhidas pelos Membros da Ordem com espírito autenticamente inaciano.

É exemplar e comovedora foi sobretudo, em tal circunstância delicada, a atitude do Reverendíssimo Prepósito-Geral, que me edificou a mim e a vós com a sua plena disponibilidade diante das superioras indicações, com o seu generoso "fiat" à vontade exigente de Deus, que se manifestou na improvisa e inesperada doença, e nas decisões da Santa Sé. Tal atitude, evangelicamente inspirada, foi uma vez mais a confirmação daquela total e filial obediência, que todo o Jesuíta deve mostrar para com o Vigário de Cristo.

Ao Padre Arrupe, aqui presente com o silêncio eloquente da sua enfermidade, oferecida a Deus pelo bem da Companhia, desejo dizer, nesta ocasião particularmente solene para a vida e para a história da vossa Ordem, o "obrigado" do Papa e da Igreja!

Um sentimento de reconhecimento devo publicamente manifestar também ao meu Delegado pessoal, o Padre Paulo Dezza, que em espírito de perfeita obediência inaciana aceitou um peso e um encargo, particularmente difíceis, pesados e delicados. Mas a sua profunda espiritualidade, a sua vasta preparação cultural, a sua consumada experiência religiosa são e serão para a Companhia uma garantia de fidelidade na continuidade. Análogo sentimento exprimo para o seu Coadjutor, o Padre José Pittau, que trabalhou por tantos anos no Japão, naquele nobre País em que o Padre Arrupe difundira, em particular depois da terrível segunda guerra mundial, os tesouros da sua apostólica intrepidez e generosidade sacerdotal.

2. Viva satisfação tenho o dever de manifestar pela análoga atitude de obediência e disponibilidade confiante, de que deram concreta demonstração neste período os Assistentes, os Conselheiros da Cúria Generalícia como também os Jesuítas de todo o mundo. A opinião pública, que talvez esperasse dos Jesuítas um gesto ditado só pela lógica humana, recebeu, com admiração, uma resposta, ditada pelo contrário pelo espírito do Evangelho; pelo espírito profundamente "religioso", pelo espírito das boas, autênticas, tradições inacianas.

Tal atitude de obediência e disponibilidade foi a resposta consciente, por parte da Companhia de Jesus, a um gesto de amor, realizado a seu respeito pela Santa Sé e pelo Vigário de Cristo.

Sim, caríssimos Irmãos! A decisão, que foi tomada pela Santa Sé, tem a sua profunda motivação e a sua verdadeira fonte no particular amor, que ela alimentou e alimenta pela vossa grande Ordem, benemérita no passado e protagonista do presente e do futuro da história da Igreja!

Por meu lado, depois, tal amor é ditado por uma especial relação da Companhia de Jesus com a minha pessoa e com o meu ministério universal, mas brota também da minha experiência sacerdotal e episcopal na arquidiocese de Cracóvia, como também da esperança e das expectativas no que diz respeito à realização dos encargos pós-conciliares e actuais da Igreja.

Em tal clima de sereno acolhimento da vontade de Deus, vós, nestes dias, estais a reflectir, na meditação e na oração, sobre o modo melhor de responder às expectativas do Papa e do Povo de Deus, num período de polarizações e contradições, que distinguem a sociedade contemporânea. Objecto das vossas reflexões, animadas pelo "discernimento" inaciano, são os problemas fundamentais da identidade e da função eclesial da Companhia: o "sentire cum Ecclesia"; o apostolado; a qualidade da vida religiosa do jesuíta; a formação — que coisa espera a Igreja da Companhia de Jesus.

3. Olhando, neste nosso encontro, para o vosso grupo qualificado de Filhos de Santo Inácio, oferece-se à minha consideração o aspecto da vossa Ordem e da sua gloriosa história.

É conhecido por todos aqueles que sabem a história da Igreja, como e quanto a Companhia de Jesus, que surgiu no tempo do Concílio de Trento, contribuiu eficazmente para a aplicação das orientações daquele Concílio e para a inclusão, na Igreja mesma, daquela corrente de vitalidade, que ele trouxe.

É porém oportuno reflectir sobre o passado da vossa Ordem para recolher as notas fundamentais deste processo e os aspectos mais ricos e positivos do modo como a Companhia contribuiu para isso: serão como luzes orientadoras, faróis indicadores do que a Companhia de hoje, movida pelo dinamismo típico do carisma do seu Fundador, mas em autêntica fidelidade a ele, pode e deve realizar para favorecer o que o Espírito de Deus despertou na Igreja com o Concílio Vaticano II.

Percorrendo de novo os 4 séculos e meio da sua história, surgem alguns elementos de autêntico valor: são os característicos da vida e da missão daquele Corpo, que por querer de Inácio é a Companhia de Jesus.

A primeira preocupação de Inácio e dos seus companheiros foi a de promover um autêntico renovamento da vida cristã. A situação da sociedade e da Igreja era tal que só a obra de homens de Deus podia ter influxo é oferecer um contributo de vitalidade santificadora.

A exemplo de Jesus, que percorreu "todas as cidades e as aldeias, ensinando nas sinagogas, proclamando a Boa Nova do Reino" (Mt 9,35), os primeiros companheiros, enviados pela obediência, foram peregrinando pelas várias cidades, difundindo a boa nova e levando um sopro de vida santa; é o início daquelas missões populares, destinadas a servir o povo cristão, a instruí-lo na fé e a levá-lo a uma coerência de vida; missões populares que terão em seguida florescente desenvolvimento e vasto influxo benéfico.

Para uma mais profunda renovação da vida cristã revelaram-se meio particularmente eficaz os exercícios espirituais de Santo Inácio, que assinalaram um vestígio indelével na história da espiritualidade. Nos exercícios formaram-se os primeiros companheiros e os sucessores deles, e com os exercícios tornaram-se uns e outros os guias espirituais de inumeráveis fiéis, ajudaram-nos a descobrir a sua vocação segundo o plano de Deus e a tornar-se autênticos cristãos comprometidos, qualquer que fosse o seu estado de vida.

4. Ao lado da direcção espiritual foi cuidado solícito da Companhia a difusão da verdadeira doutrina católica, entre os doutos e os indoutos, desde as crianças aos mais anciãos. Os dois Santos Jesuítas Doutores da Igreja, São Pedro Canísio e São Roberto Belarmino, foram os autores de dois célebres catecismos para as crianças e foram ambos mestres admirados, o primeiro envolvido nas discussões teológicas do Concílio de Trento, e o segundo defensor da fé a partir das cátedras de Lovaina e de Roma.

Para semelhante intento Santo Inácio, e depois dele a Companhia, desvelaram-se na educação da juventude: fundaram e multiplicaram os colégios nos quais, seguindo o novo sistema pedagógico — a célebre "Ratio studiorum" —, tendiam a dar uma formação geral da pessoa humana, para forjar homens que, eminentes nos estudos e em todas as profissões, fossem ao mesmo tempo eminentes cristãos.

Tudo isto acontecia num tempo, em que o mundo e particularmente a Europa estavam em transformação, melhor numa viragem decisiva no campo literário e científico. Neste processo inseriram-se rigorosamente literatos e cientistas jesuítas, realizando obra de pioneiros "ad maiorem Dei gloriam", isto é, favorecendo aquele desenvolvimento cristão do homem que, quando se realiza, é para a glória de Deus.

5. Olhando depois para um sector de vital importância para a Igreja, a preocupação de Santo Inácio, e atrás dele da Companhia, foi a dos seminários e dos centros superiores de estudo para a formação do clero. A Santo Inácio se deve a fundação do tão benemérito Colégio Romano, transformado na Universidade Gregoriana, e também a fundação do Colégio Germânico, ao qual se seguiram, frequentemente com a colaboração de muitos jesuítas, os outros colégios nacionais em Roma, a fim de prepararem para a Igreja numerosos sacerdotes dotados de sã doutrina e sólida virtude, que se tornaram zelosos apóstolos nas próprias pátrias e não raro mártires da fé.

Em conexão com estes centros de estudo, a Companhia deu validíssimo contributo no campo das ciências sagradas, de particular importância para a Igreja. E a abundante falange dos jesuítas, cultores da teologia, da exegese bíblica, da patrologia, da história eclesiástica, da moral e do direito canónico, e de tantas outras ciências relacionadas com os estudos sagrados.

Mas a visão de Santo Inácio abriu-se para horizontes ainda mais vastos, tanto quanto era vasto o mundo, que, em seguida aos recentes descobrimentos geográficos, tinha tomado mais amplas dimensões. É o anelo de Cristo, que vibrava no coração do Santo, e no coração de todos os que, participando do seu espírito, se ofereceram inteiramente a "Nosso Senhor, rei eterno", cuja "vontade é de conquistar o mundo todo" (Exercícios Espirituais, n. 95).

O grupo dos primeiros companheiros de Inácio era pequeno; no entanto o Santo mandou para o Oriente São Francisco Xavier, o primeiro daquela ininterrupta multidão de missionários jesuítas, que no Oriente e no Ocidente, foram "enviados" a anunciar o Evangelho e, ardorosos de zelo apostólico, estavam prontos a dar a vida para testemunhar a sua fé, como atestam os numerosos Mártires da Companhia. Enquanto o fim primário da missão deles era comunicar a fé e a graça de Cristo, eles esforçaram-se ao mesmo tempo por elevar o nível humano e cultural das populações, no meio das quais trabalhavam, por fomentar uma vida social mais justa e mais em correspondência com os desígnios de Deus, pelo que são ainda agora recordadas na história as famosas Reduções do Paraguai.

A generosidade e o ímpeto destes missionários atraiam novas levas; as cartas de São Francisco Xavier tocavam os corações dos estudantes universitários de Paris. Coisa semelhante fizeram a vida e os escritos de tantos outros conhecidos apóstolos do reino de Cristo, aos quais anda junto um exército anónimo de santos religiosos, que nas longínquas terras de missão sacrificaram a vida na humildade e no escondimento.

Entre os muitos missionários jesuítas desejo nomear um, porque a sua recordação é hoje de particular actualidade: o Padre Mateus Ricci, de quem estamos para celebrar o quarto centenário da sua entrada na China; aquele grande País que tinha sido o sonho de São Francisco Xavier, falecido 30 anos antes na ilha de Sanchão, às portas daquela China que foi e quer voltar a ser campo privilegiado do apostolado da Companhia.

Assim no decurso da sua história, a Companhia de Jesus, em toda a parte do mundo, onde se combatia por Cristo e pela Sua Igreja, esteve presente com os seus filhos melhores, ardentes de zelo, armados de virtude, fornecidos de doutrina e fiéis às directrizes do seu chefe, do Vigário de Cristo, o Romano Pontífice.

Esta é a Companhia de Jesus, que a história põe diante do nosso olhar; a Companhia de Jesus que os inimigos de Cristo perseguiram até lhe conseguirem a supressão, mas que a Igreja fez ressurgir, sentindo a necessidade de filhos tão generosos e devotos, nos quais os Papas confiaram no passado e nos quais o Papa quer confiar também para o futuro.

6. Se falei da Companhia de Jesus no passado, com o fim de recolher os traços característicos da sua vida e missão, foi porque penso na Companhia de hoje e no que dela espera a Igreja para o presente e o futuro.

Quem observa a riqueza do contributo que a vossa Ordem ofereceu à vida da Igreja e do mundo, e chega a pôr em evidência os seus aspectos principais, não pode deixar de ver o que foi para Santo Inácio uma das notas mais características da Ordem por ele fundada, sob o impulso do Espírito Santo.

Na sua história, com efeito, a Companhia de Jesus, sempre se distinguiu mediante as formas múltiplas e variadas do seu ministério apostólico, pela mobilidade e pelo dinamismo que o seu Fundador lhe infundiu e que a tornaram capaz de discernir os sinais dos tempos e, por isso, de estar na vanguarda da renovação desejada pela Igreja.

Em virtude da vocação apostólica e missionária que é a vossa, os membros do escolhido corpo que vós formais por vontade de Santo Inácio e da Igreja, encontram-se segundo as palavras que vos dirigia Paulo VI, "na vanguarda da profunda renovação que a Igreja, sobretudo depois do Concílio Vaticano II, procura levar a termo, neste mundo secularizado. A vossa Companhia é, pode dizer-se, o test da vitalidade da Igreja através dos séculos; é talvez um dos cadinhos mais significativos, em que se encontram as dificuldades, as tentações, os esforços e as iniciativas, a perenidade e os êxitos de toda a Igreja" (Paulo VI, Alocução aos Padres da 32ª Congregação Geral, 3 de Dezembro de 1974).

Pois bem! Como já vos dizia o meu venerado predecessor, a Igreja espera hoje da Companhia que ela contribua eficazmente para a aplicação do Concílio Vaticano II, como, no tempo de Santo Inácio e muito depois, ela empregou todos os esforços para dar a conhecer e fazer reduzir à prática o Concílio de Trento e para ajudar de maneira notável os Pontífices Romanos no exercício do ministério supremo deles.

7. Permiti-me que insista uma vez mais e solenemente sobre a interpretação exacta do recente Concílio. Tratava-se e continua a tratar-se de uma obra de renovamento eclesial, atento ao Espírito Santo. Sobre este ponto capital, os documentos conciliares são de uma clareza que não tem igual (cf. Lumen gentium LG 4, 7, 9; cf. Gaudium et spes GS 21, parág. 5 e n. GS 43, parág. 6). E esta renovação de fidelidade e de fervor em todos os domínios da missão da Igreja — aperfeiçoada e expressa na audição colegial do Espírito do Pentecostes — deve ser igualmente acolhida e vivida agora segundo o mesmo Espírito, e não segundo critérios pessoais ou teorias psicossociológicas. É para realizar melhor este trabalho no seio do povo de Deus, que os contemplativos e os religiosos que praticam a vida apostólica, foram chamados pelo mesmo Concílio a uma renovação da própria existência evangélica. O decreto Perfectae caritatis (n. 2 e n. 3) exprime com clareza e fervor estes critérios de renovação. Sendo-lhes fiel, já não há lugar para desvios certamente nocivos à vitalidade das comunidades da Igreja inteira. Parece-me que a Companhia de Jesus, cada vez mais impregnada do espírito da verdadeira renovação, será capaz de desempenhar plenamente o seu papel tanto hoje como ontem e sempre: a saber, ajudar o Papa e o Colégio Apostólico a fazer progredir toda a Igreja pelo grande caminho traçado pelo Concílio, e a convencer os que infelizmente são tentados, pelos caminhos seja do progressismo seja do integrismo, a voltarem com humildade e alegria à comunhão sem sombras com os seus Pastores e com os seus irmãos que sofrem com essas atitudes e com que eles andem longe. Este trabalho paciente e delicado é sem dúvida obra de toda a Igreja. Mas, na fidelidade ao vosso Pai Santo Inácio e a todos os seus filhos, deveis hoje arvorar-vos como um só homem para esta missão de unidade na verdade e na caridade.

O quarto voto da Companhia foi precisamente compreendido por Santo Inácio como a expressão viva e vital da consciência de a missão de Cristo se prolongar no tempo e no espaço naqueles que, chamados por Ele a segui-1'O e a partilhar os Seus trabalhos (cf. Exercícios Espirituais, nn. 91-98), fazem próprios os Seus sentimentos e vivem assim a íntima união com Ele e, pelo facto mesmo, com o seu Vigário na terra.

Eis porque Santo Inácio e os seus companheiros, querendo participar na missão de Cristo, que prossegue na Igreja, decidiram colocar-se incondicionalmente à disposição do Vigário de Cristo e ligar-se a ele por "um voto especial", porque esta união com o Sucessor de Pedro, que é o núcleo principal dos membros da Companhia, assegurou sempre a vossa comunhão com Cristo; mais ainda, é "o sinal da vossa comunhão com Cristo, Chefe primeiro e supremo da Companhia que por antonomásia é Sua, de Jesus" (Paulo VI, Alocução aos Padres da 32ª Congregação Geral, 3 de Dezembro de 1974).

8. Por causa desta nota distintiva e característica da vossa Ordem, a Igreja espera portanto em primeiro lugar que vós adapteis as diferentes formas de apostolado tradicional que mantém ainda hoje todo o seu valor, trabalhando para renovar a vida espiritual dos fiéis, a educação da juventude, a formação do clero, dos religiosos e das religiosas, e a actividade missionária; isto inclui catequese, proclamação da Palavra de Deus, difusão da doutrina de Cristo, penetração cristã no domínio da cultura de um mundo que procura estabelecer divisão e oposição entre ciência e fé, e ainda inclui actividade pastoral em favor dos pobres, dos oprimidos e dos marginalizados, exercício do ministério sacerdotal em todas as suas expressões autênticas, sem esquecer os novos meios do apostolado de que dispõe a sociedade moderna, como a imprensa e os meios de comunicação social, aperfeiçoando o uso que a Companhia já deles fez durante a época recente.

Além disso, a Igreja deseja ver a Companhia interessar-se cada vez mais pelas iniciativas que o Concílio Vaticano II particularmente animou:

— o ecumenismo, para reduzir o escândalo da divisão dos cristãos. Eis que há mais de 20 anos, a Igreja criou o Secretariado para a Unidade dos Cristãos: importa que num mundo que se descristianiza, aqueles que crêem em Deus e em Cristo colaborem entre si;

— o aprofundamento das relações com as religiões não cristãs, fomentado pelo Secretariado para os não-cristãos e a apresentação da vida e da doutrina cristã de maneira adaptada às diferentes culturas, a qual tenha em conta a grande sensibilidade dos traços característicos e das riquezas de cada uma;

— os estudos e as iniciativas respeitantes ao fenómeno preocupante do ateísmo, fomentados pelo Secretariado para os não-crentes, recordando-vos do cargo que Paulo VI vos confiou de "resistir vigorosamente e com todas as vossas forças ao ateismo" (Alocução aos Padres da 32ª Congregação Geral, 7 de Maio de 1965).

Há ainda um ponto para o qual desejaria atrair a vossa atenção. Nos nossos dias, sente-se com urgência cada vez maior, na acção evangelizadora da Igreja, a necessidade de promover a justiça. Se se têm em conta as verdadeiras exigências do Evangelho e ao mesmo tempo a influência que exercem as condições sociais sobre a prática da vida cristã, compreende-se facilmente porque considera a Igreja a promoção da justiça como parte integrante da evangelização. Trata-se de um campo importante da acção apostólica. Neste campo nem todos têm a mesma função e, no que respeita aos membros da Companhia, é preciso não esquecer que a necessária preocupação pela justiça deve exercer-se em conformidade com a vossa vocação de religiosos e de sacerdotes.Como disse a 2 de Julho de 1980 no Rio de Janeiro, o serviço sacerdotal, "se quer permanecer fiel a si mesmo, é um serviço excelente e essencialmente espiritual. Que isto seja hoje acentuado contra as multiformes tendências a secularizar o serviço do padre reduzindo-o a uma função meramente filantrópica. O seu serviço não é o do médico, do assistente social, do político nem do sindicalista. Em certos casos, talvez, o padre poderá prestar, embora de maneira supletiva, estes serviços e, no passado prestou-os de forma egrégia. Mas hoje eles são realizados adequadamente por outros membros da sociedade, enquanto que o nosso serviço se especifica sempre mais claramente como um serviço espiritual. É na área das almas, das suas relações com Deus, e do relacionamento interior com os seus semelhantes que o sacerdote tem uma função essencial a desempenhar. É aqui que se deve realizar a sua assistência aos homens do nosso tempo. Certamente, sempre que as circunstâncias o exijam, ele não se eximirá de prestar também uma assistência material, mediante as obras de caridade e a defesa da justiça. Mas, como tenho dito, isto é, em definitivo, um serviço secundário, que não deve jamais fazer perder de vista o serviço principal, que é o de ajudar as almas a descobrir o Pai, a abrir-se para Ele e a amá-1'O sobre todas as coisas" (n. 7).

Já o Concílio Vaticano II pôs em realce o valor e a natureza do apostolado dos leigos e exortou-os a tomar a parte que lhes compete na missão da Igreja; mas o papel dos sacerdotes e dos religiosos é diferente. Não têm de tomar o lugar dos leigos e menos ainda devem descuidar o cargo que lhes é especificamente próprio.

9. As vossas Constituições registam claramente aqueles requisitos que são necessários a fim de a Companhia de Jesus contribuir eficazmente para a aplicação dos Decretos Conciliares como a Igreja espera que ela faça.

Primeiro existe a formação prolongada e sólida dos futuros apóstolos da Companhia. Na mesma fórmula do Instituto, depois de descrever o caminho típico da Companhia, Inácio escreve: "Porque a experiência nos ensinou que esta vida terrena traz consigo muitas e grandes dificuldades, julgámos ainda conveniente determinar que ninguém seja admitido a fazer parte desta Companhia, sem primeiro ser bem conhecida a sua vida e doutrina com demoradas e diligentíssimas provas" (Fórmula do Instituto da Companhia de Jesus, n. 9).

Não deveis ceder à fácil tentação de deixar perder esta formação que tem tanta importância em todos e cada um dos seus aspectos, espiritual, doutrinal, disciplinar e pastoral; o prejuízo sucessivo superaria de longe o valor de qualquer resultado que talvez pudesse ser obtido.

Recordai-vos que, já nos tempos do vosso Fundador, a Companhia enfrentava os mesmos problemas angustiantes que enfrentais hoje. Também então havia demasiado poucos apóstolos, aptos e prontos para satisfazer adequadamente as necessidades pastorais.

10. Contudo, deveis ter presente que esta longa e exigente preparação tem como seu objectivo primário a formação dos homens que são preeminentes devido à sua união mútua com Deus. De facto, Inácio estava convencido que toda a actividade apostólica só tem valor e é eficaz se dimana daquela "união entre o instrumento e Deus", de que fala com tanta frequência. A primazia da vida interior é o próprio fundamento da visão e da espiritualidade de Inácio; constitui o âmago secreto de uma autêntica vida apostólica, porque o verdadeiro apóstolo vive acima da sua missão em total dependência de Deus e em união com Ele.

O vosso Fundador e como ele os seus primeiros companheiros foram sem dúvida homens de Deus; em resposta à chamada de livre doação por parte do Rei Eterno (Ex. Espirit., nn. 91-98), e tendo compreendido interiormente o Espírito que animava o próprio Jesus, o Único enviado pelo Pai, eles viveram como o Senhor pediu aos seus apóstolos que vivessem, quando lhes disse: "Permanecei em Mim e Eu permanecerei em vós. Como a vara não pode dar fruto por si mesma se não estiver na videira, assim acontecerá convosco se não estiverdes em Mim. Eu sou a videira, vós as varas; quem está em Mim e Eu nele, esse dá muito fruto; porque sem Mim nada podeis fazer" (Jn 15,4-5).

Ainda outra vez, em virtude do que é o elemento mais rico no espírito do vosso Fundador, peço-vos reflictais sobre o sentido mais profundo da "Contemplação para obter o Amor", pela qual o homem apostólico vive na consciência da realidade que "todos os bens e dons descem do alto, assim como o meu moderado poder do sumo e infinito do alto, e assim a justiça, bondade, piedade, misericórdia, etc., assim como do sol descem os raios e da fonte as águas..." (Ex. Espirit., n. 237). Tal é o espírito do verdadeiro apóstolo que vive a sua missão em total dependência de Deus e em união com Ele.

Por esta razão na vida religiosa apostólica de que Santo Inácio, sob o impulso de Deus, foi um dos grandes Fundadores, não deverá haver separação "entre a vida interior e o apostolado". São dois elementos essenciais e constitutivos desta vida: são inseparáveis e exercem influência e compenetram-se mutuamente um ao outro.

11. Juntamente com a solidez da virtude, as vossas Constituições insistem numa solidez e vigor de doutrina, como é essencial para um apostolado eficaz. Por conseguinte, "Os Jesuítas são universalmente considerados como um esteio para a doutrina e a disciplina da Igreja inteira. Os bispos, os sacerdotes e os leigos costumam ver a Companhia como autêntico ponto de referência, e por isso seguro, para o qual é possível dirigir-se a fim de encontrar a certeza de doutrina, discernimento moral, lúcido e seguro, e autêntico alimento para a vida interior" (Carta do Cardeal Villot ao Padre Arrupe, 2 de Julho de 1973). O mesmo há-de ser verdade no futuro mediante aquela leal fidelidade ao Magistério da Igreja, e de modo particular ao Romano Pontífice, ao qual estais ligados por dever.

12. De facto, um laço especial liga a Companhia ao romano Pontífice, Vigário de Cristo na terra. Como já mencionei acima, Santo Inácio e os seus companheiros, tendo compreendido espiritualmente o verdadeiro significado e valor da missão de Cristo, e como ela se prolonga na história, dedicaram capital importância a este laço de amor e serviço ao Romano Pontífice, de modo que desejaram que este "voto especial" fosse elemento característico da Companhia. Ao descreverem a sua própria disposição comum, e o que esperavam daqueles que mais tarde seriam admitidos no Corpo Professo da Companhia, escreveram aquelas palavras que são e devem ficar gravadas no coração de todo o Jesuíta merecedor deste nome: "Por maior devoção à obediência da Sé Apostólica, para maior abnegação das nossas vontades, e mais certa direcção do Espírito Santo, julgámos da maior importância que cada um de nós, e todos os que para o futuro fizerem a mesma profissão, além daquele vínculo comum dos três votos, com este fim nos liguemos por um voto especial, pelo qual nos obrigamos a seguir tudo aquilo que o actual e os outros Romanos Pontífices no tempo existentes, mandarem, para proveito das almas e da propagação da fé. E assim fiquemos obrigados, quanto estiver na nossa mão, a ir sem demora para qualquer região aonde nos quiserem mandar, sem qualquer subterfúgio ou escusa" (Fórmula do Instituto da Companhia de Jesus, n. 3). É evidente que aqui tocamos na essência do carisma inaciano, e no qual está o verdadeiro coração da vossa Ordem. E é a isto que deveis permanecer sempre fiéis.

O Romano Pontífice, a quem estais ligados por este voto especial, é, nas palavras do Concílio Vaticano II, "o Supremo Pastor da Igreja" (Christus Dominus CD 5). Como tal ele tem um particular ministério de serviço a exercer para o bem da Igreja universal; em tal serviço ele de bom grado aceita a vossa amorosa, dedicada e provada colaboração. Mas o mesmo Romano Pontífice também aceita a colaboração que lhe ofereceis no seu cargo de cabeça do Colégio Episcopal (cf. Lumen Gentium LG 22), em união com os seus irmãos Bispos num ministério colegial de discernimento e harmonia, o qual, em virtude de carismas distintos, coordena em docilidade ao Espírito Santo as outras tarefas de serviço eclesial (cf. Mutuae Relationes, 6). Por esta razão estais igualmente ligados aos membros do Colégio Episcopal por um laço que de vós requer estardes unidos com eles na caridade pastoral e em estreita colaboração prática. Precisamente em consequência da vossa especial disponibilidade para a chamada do Romano Pontífice, estais em condições de trabalhar cada vez mais efectivamente com o Colégio dos Bispos e com cada um dos seus membros, que no Sucessor de Pedro encontram a sua perene e visível fonte e fundamento de unidade (cf. Lumen Gentium LG 23).

Como explica o Concílio Vaticano II o Romano Pontífice também dispõe dos organismos da Cúria Romana no exercício do seu serviço à Igreja universal (cf. Christus Dominus CD 9). Este facto requer leal colaboração entre a Companhia de Jesus e estes organismos. Devido às exigências dos vossos votos e à realidade do meu ministério, não podia ser de outro modo. Algumas das especiais tarefas confiadas à Companhia de Jesus e outros trabalhos importantes, que ela assumiu no período pós-conciliar, correspondem aos programas da Sé Apostólica, que são coordenados por alguns dos seus novos organismos. Mediante a colaboração com estes vários órgãos, a Companhia de Jesus pode encontrar a sua justa orientação em numerosas publicações e ao mesmo tempo dar enorme contributo à Igreja universal. Por seu lado, o Romano Pontífice oferece-vos, em nome de Cristo, de quem é Vigário, o seu total amor de reconhecimento pela vossa colaboração pessoal com ele, com o Colégio dos Bispos, e com a Cúria Romana inteira, que a Companhia de Jesus tem estado generosamente a ajudar de diversos modos desde há anos.

13. Não me detenho mais nestas reflexões, porque sei que nestes dias estais a considerar, juntamente com o Padre Delegado, os desejos expressos por mim acerca da Companhia e que, com espírito de fé e de fraterna colaboração, buscais os meios mais viáveis para os colocar em prática.

Só tenho que vos encorajar a prosseguir neste trabalho, que, assim como resultará particularmente proveitoso para a vossa Companhia, será também de grande utilidade a toda a Igreja, que olha para a Companhia com especial interesse e apreço.

A exemplaridade da vossa vida religiosa, a atmosfera espiritual das vossas comunidades, a austeridade no teor de vida e o fervor nas obras apostólicas, serão motivo de edificação para todo o povo de Deus e atrairão para a vossa Companhia vocações cada vez mais numerosas de jovens generosos, que aspiram não a uma mediocridade no seguimento de Cristo, mas ao radicalismo na sua consagração a Ele.

Assim estareis a preparar-vos de um modo excelente para a Congregação Geral. Estou certo de que esta preparação procederá de tal maneira que seja possível, dentro deste ano, a convocação da Congregação Geral, que não só há-de dar à Companhia um novo Prepósito-Geral, segundo o desejo manifestado há tempo pelo venerado Padre Arrupe, senão que juntamente há-de transmitir a toda a Companhia um novo estímulo para levar a cabo com renovado alento a sua missão, conforme as esperanças da Igreja e do mundo.

Acompanho-vos, por isso, com os meus votos e orações para que o Senhor, por intercessão d'Aquela, a quem costumais invocar como Rainha e Mãe da Companhia de Jesus, e dos vossos numerosos Santos e Beatos, abençoe e torne fecundo o vosso trabalho.

A estes Santos e Beatos, elevados já às honras dos altares, é consolador acrescentar também tantos outros dos vossos Irmãos que pelas suas insignes virtudes aguardam seja pela Igreja reconhecida oficialmente a santidade deles. A este propósito, é-me grato recordar que precisamente no passado 11 de Fevereiro tive a satisfação de declarar a heroicidade das virtudes do humilde e tão querido Irmão Coadjutor Francisco Gárate, falecido há cinquenta anos e oriundo da mesma terra que viu nascer o vosso Santo fundador, Inácio de Loyola.

A vida destes religiosos da Companhia, como a de tantos excelentes jesuítas que vivem e trabalham no mundo com um espírito de fé cheio de amor e uma entrega realmente exemplar aos homens, está a demonstrar que também no nosso tempo floresce a santidade na Companhia.

E, além disso, demonstra quão válida continua a ser a vocação dos Irmãos Coadjutores da Companhia, que, com a sua entrega total ao serviço do Senhor, mediante o desempenho dos seus cargos, colaboram eficazmente com os Padres para o ministério sacerdotal próprio da Companhia.

Com estes sentimentos, dou-vos de todo o coração, e mediante vós a todos os membros da Companhia, como penhor dos divinos dons, a minha Bênção Apostólica.




Discursos João Paulo II 1982 - Sexta-feira, 19 de Fevereiro de 1982