Discursos João Paulo II 1981 - Sábado, 19 de Dezembro de 1981

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS PROFESSORES E AOS ALUNOS DO


INSTITUTO PARA A FAMÍLIA


Sábado, 19 de Dezembro de 1981



Caros Irmãos e Irmãs

Tenho o prazer de vos dar as minhas cordiais boas-vindas, neste meu primeiro encontro convosco, dilectos Professores e Estudantes do Instituto para a Família, agregado à Universidade Lateranense. E apraz-me saudar em vós os primeiros membros desta novíssima instituição académica, da qual espero uma vida intensa e fecunda.

1. Na recente Exortação Apostólica Familiaris consortio escrevi: "A Igreja, sabedora de que o bem da sociedade e de si mesma está profundamente ligado ao bem da família, sente do modo mais vivo e veemente a sua missão de proclamar a todos o desígnio de Deus sobre o matrimónio e sobre a família" (n. 3). O Instituto é uma das expressões mais claras e importantes desta sabedoria.

Quis eu mesmo este Instituto, atribuindo-lhe particular importância para toda a Igreja. Ele, de facto, é chamado a tornar-se centro superior de estudos e de investigação ao serviço de todas as comunidades cristãs, com uma finalidade precisa: aprofundar cada vez mais o conhecimento da verdade do matrimónio e da família, à luz conjunta da fé e da recta razão. Esta verdade deve ser o objecto de toda a vossa investigação científica, estando vós profundamente convencidos de que só a fidelidade a ela salva inteiramente a dignidade do matrimónio e da família.

Tudo isto comporta que aprofundeis o vosso trabalho de estudantes com grande seriedade e sentido de responsabilidade. O que significa, primeiro que tudo, uma justa atitude pessoal no que respeita àquela verdade que é objecto dos vossos estudos: ela deve ser procurada com humilde veneração, pois conhecê-la, mais que conquista humana, é dom de Deus. Significa, também, um empenho constante de estudo rigoroso e de contínua reflexão, pois a verdade mostra-se interiormente só a quem procura com toda a sua pessoa. O facto, pois, de que, já neste primeiro ano da sua actividade académica, no Instituto se tenham inscrito alunos provenientes de todas as partes do mundo, consentir-vos-á um diálogo cultural, uma troca de ideias, de informações e de experiências a raio eclesial internacional.

2. Nesta circunstância, desejo chamar a vossa atenção para alguns pontos que julgo de particular importância para a consecução da finalidade que o Instituto se propõe.

Na base dos vossos estudos deve colocar-se uma sólida e adequada antropologia: antropologia que encerre a verdade inteira da pessoa humana. De facto, a solução dos problemas, postos pelo matrimónio e pela família, implica sempre uma antropologia. A qual, se não é adequada, gera soluções não respeitadoras da dignidade do homem e da mulher. Para dar só um exemplo, mas de importância decisiva, é por esta razão que na já citada Exortação Apostólica, falando da diferença que existe entre a contracepção e o recurso aos métodos naturais, escrevi: "Trata-se de uma diferença bastante mais vasta e profunda do que habitualmente se pensa, a qual implica em última análise duas concepções da pessoa e da sexualidade humana entre si irredutíveis" (n. 32). É sobre esta visão adequada da pessoa humana, a qual — como ensina o Vaticano II — pode ter um conhecimento completo de si mesma só à luz do Mistério do Verbo encarnado (cf. Gaudium et spes GS 22), é sob esta visão, dizia, que vós deveis fundar todas as respostas aos problemas hoje postos pela vida matrimonial e familiar. Consequência essencial dela é a reflexão ética: a reflexão, isto é, sobre o valor e sobre os valores da pessoa humana como tal e, em particular, sobre os valores morais que devem ser respeitados na vida matrimonial e familiar.

De tudo isto deriva, em seguida, que a investigação no Instituto, mesmo na necessária pluralidade de ensinamentos, deve ser cada vez mais caracterizada por uma profunda unidade no seu conjunto. Cada disciplina é como um fragmento que, misturando-se com os outros, mostra uma "figura" unitária, que vós deveis claramente atingir: a "figura" do matrimónio e da família na sua verdade completa, conforme é pensada por Deus. É esta a dignidade suprema do pensar teológico, que São Tomás não hesitava em chamar "quaedam participatio divinae scientiae".

E é por isto que invoco sobre vós a luz do Verbo encarnado, para que, a Sua verdade seja a guia dos vossos estudos, que desejo proveitosos para vós mesmos e para todos quantos lhes experimentam, sobre si, o revérbero.

Em penhor destes votos, concedo do coração a vós todos a minha paternal Bênção Apostólica.





DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


DURANTE A VISITA AO HOSPITAL


"NOVO RAINHA MARGARIDA"


NO BAIRRO TRASTEVERE DE ROMA


Domingo, 20 de Dezembro de 1981



Caríssimos irmãos e irmãs!

1. Ao realizar a minha visita ao Hospital Rainha Margarida, desejo primeiro que tudo apresentar a minha cordial e deferente saudação aos Dirigentes, aos Médicos, aos Empregados, às Irmãs e a quantos se encontram aqui para esta reunião. A vós todos, os sentimentos da minha estima e consideração pela insubstituível obra de autêntica promoção humana e de admirável valor social, que realizais no cumprimento do vosso dever, melhor da vossa missão.

Mas o meu pensamento particularmente afectuoso não pode deixar de dirigir-se aos caros hóspedes deste Instituto, atacados pela doença. A vós, que sofreis no corpo e no espírito, a minha benevolência, a minha compreensão e a minha solidariedade, que desejo manifestar também aos parentes, aqui em pessoa, que com intensa comoção receiam quanto à vossa saúde.

Venho a este conjunto hospitalar, reestruturado e inaugurado em 1970, mas que se liga, retrocedendo na história da Urbe, com o Mosteiro de São Cosimato, desde o século X centro de fervorosa vida religiosa e também de generosas iniciativas caridosas, especialmente em favor dos doentes e dos peregrinos, e sinal concreto daquela contínua, prática e desinteressada solicitude que a Igreja sempre tem mostrado pelos pobres, os humildes, os pequenos e os enfermos.

2. Este Hospital — como todos os hospitais do mundo — é lugar de dor e de esperança. Entretanto nas enfermarias e nos quartos, experimentamos de maneira dramática a debilidade, a fragilidade da nossa natureza humana, tão exposta a mil perigos e insídias, que podem, a todo o momento, destruir-lhe o harmónico equilíbrio, provocando a doença e debilitando as nossas forças. O mistério da dor física, que tortura o espírito do homem numa das interrogações mais lancinantes, aparece aqui com toda a sua intensa força de choque. O homem que sofre sente que se lhe acentua a própria solidão, ao mesmo tempo que as forças físicas lhe vão faltando; a necessidade de invocar os outros — parentes, amigo, relações e médicos — para que lhe dêem alívio e conforto; o grito da súplica para com Deus, o Único que pode dar total auxílio e explicar também o significado de tanta dor.

Mas este lugar é igualmente lugar de esperança: a dos próprios enfermos, que sentem como insuprimível a beleza da vida; a dos seus parentes e conhecidos, que partilham com eles a confiante expectativa de uma melhora, que anuncie a próxima cura.

Ao mesmo tempo que exprimo o meu voto de uma pronta realização de tal esperança, quero dizer aos irmãos e às irmãs, atacados pela enfermidade, que me estão ouvindo neste momento: vim dar testemunho do amor que têm por vós Cristo, a Igreja e o Papa. O vosso sofrimento actual não é inútil e menos ainda absurdo. Cristo Senhor, que com a nossa natureza humana assumiu na Encarnação também a dor e a morte, chama todos os homens, e em particular a vós que estais na dor e na fraqueza, a colaborar com Ele para a salvação do mundo. Esta vossa misteriosa vocação para o sofrimento é vocação para o amor: com Deus Pai de misericórdia, com os outros e com os irmãos. Só a Cruz de Cristo pode iluminar a nossa débil inteligência e fazer-lhe entrever o significado profundo da humana, e cristã fecundidade da dor.

3. Lugar de sofrimento, ao qual se junta a esperança, o hospital é também o lugar em que se luta, para fazer que tal esperança se torne quanto antes realidade. A actividade sanitária tende por sua natureza para defender a vida e promover a saúde de qualquer ser humano em dificuldades. A isto era já obrigado o médico pelo antiquíssimo "Juramento de Hipócrates", que numa sua passagem central afirmava: "Farei servir o regime dietético para bem dos doentes segundo as minhas capacidades e o meu parecer, não para o perigo e o mal deles. E não darei uma bebida homicida, nem tomarei semelhante iniciativa, quem quer que seja, aquele que mo peça; assim não darei a nenhuma mulher um pessário abortivo".

À distância de 24 séculos, conceitos substancialmente idênticos propõe a "Declaração de Genevra", aprovada em 1948 pela Associação Mundial dos Médicos. Nela aquele que assume o exercício da profissão sanitária promete: "Obrigo-me solenemente a consagrar a minha vida ao serviço da humanidade... Praticarei a minha profissão com consciência e dignidade. A saúde do meu paciente será a minha primeira preocupação... Manterei o máximo respeito pela vida humana desde o momento da concepção".

É precisamente desta dedicação, sem reservas à defesa da saúde e da vida humana que se origina a particular consideração, universalmente tributada pelos cidadãos aos médicos e ao pessoal auxiliar: mesmo respeitando qualquer outro trabalho, cada um reconhece de boa vontade a preeminência social de uma profissão que tem por finalidade a tutela de um bem, que é fundamento e pressuposto de qualquer outro bem fruitivo cá na terra.

E é a mesma Sagrada Escritura que vem confirmar tal apreço, recomendando: "Honra o médico, por causa da necessidade" (Si 38,1); e ela, comentando tal preceito, observa: "A ciência do médico eleva-o em honra e é admirado na presença dos poderosos" (ib., v. 3). Sem dúvida, para o crente, a primeira e principal ponte de esperança, em caso de doença, fica sendo o auxílio do Senhor, cuja omnipotência pode vencer qualquer enfermidade. Por isto a página bíblica citada convida o doente a rezar, a purificar-se e a oferecer sacrifícios propiciatórios (cf. ib., vv. 9-11). Isto não exclui, todavia, a oportunidade de recorrer, ao mesmo tempo, aos auxílios da arte médica, cuja função benéfica é também prevista nos planos da Providência divina. Por conseguinte, depois dos conselhos há instantes recordados, a Escritura não deixa de recomendar: "E chama o médico, porque foi criado por Deus; e não o afastes de ti, porque te é necessária a sua assistência" (ib., v. 12).

4. É justo, portanto, que se tenha em grande respeito a vossa profissão, dilectos Médicos e membros do Pessoal paramédico e auxiliar. É justo, porque altamente precioso é o bem que ela deseja tutelar: o bem da vida humana.

A vida é o tempo que nos é concedido para traduzir em acto as potenciais riquezas de que cada um de nós é portador e para oferecer o nosso contributo para o comum progresso da humanidade. A vida é o tempo que nos é dado para encarnar em nós e na história os valores de amor, de bondade, de alegria, de justiça e de paz, a que aspira o coração humano.

À luz da fé, além disso, a vida é o tempo de graça (o kairos), em que Deus põe à prova o ser humano, experimentando-lhe o coração e o espírito, mediante o contínuo empenho de crer, esperar e amar. Tempo de graça, em que é chamado cada um a enriquecer-se — dando-se — de valores duráveis para a eternidade, que será assinalada para sempre pela medida de amor, que nos seja possível exprimir na terra.

Bem precioso, portanto, é a vida, no conjunto e em cada fragmento seu.Quem consome as próprias energias para a defender, para restabelecer-lhe a normal eficiência e para lhe promover o pleno desenvolvimento, adquire o direito ao reconhecimento de cada um dos seus semelhantes. Pelo contrário, mancha-se com grave crime e incorre na severa condenação daquele juiz sem apelo — que é a consciência, espelho de Deus — quem ousa de qualquer modo atentar contra a vida.

O auspício, que me ocorre naturalmente exprimir por ocasião deste encontro tão significativo, é que, ainda hoje, quem quer que escolha pôr-se ao serviço da vida humana, sinta vibrar em si o brio de fazer parte de uma categoria, cujos componentes, no decurso dos séculos, ofereceram luminosos testemunhos de generoso altruísmo, lançando-se, nalguns casos, até ao heroísmo supremo do sacrifício de si para salvar o irmão.

O pensamento do Natal, que nos preparamos para celebrar, valorize estes votos com a fascinação que se desprende do sorriso de um Menino recém-nascido nos braços da Mãe. A cena sugestiva, que contemplaremos figurada no presépio, fala a todos nós de uma vida recém-desabrochada, que o calor e a solicitude de corações cheios de amor (Maria, José e os pastores) defendem das estreitezas de uma situação difícil.

Oxalá tal mensagem desperte ecos de generosa correspondência nos corações dos cristãos de hoje, de maneira que encontre cada vida humana, à sua volta, não indiferença ou recusa, mas simpatia, acolhimento, interesse e ajuda. É este o meu, voto cordial, a que junto a Bênção Apostólica, que proporcione muita serenidade a vós e aos que vos são caros.



SAUDAÇÃO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS JOVENS DA ACÇÃO CATÓLICA ITALIANA


Segunda-feira, 21 de Dezembro de 1981



Caríssimos Jovens da Acção Católica!

Agradeço-vos cordialmente terdes vindo aqui, juntamente com o Assistente-Geral, Monsenhor Giuseppe Costanzo, e com o Presidente Nacional, Professor Alberto Monticone, para me exprimirdes pessoalmente os vossos fervorosos bons votos e os dos pertencentes aos outros ramos da Acção Católica Italiana, na iminência das Festividades natalícias.

Retribuo de todo o coração este vosso gesto delicado com os melhores votos, por que nestes dias santos, em que os olhos e o coração de todos os fiéis estão voltados para o mistério de Belém, se realize para vós tudo o que de bom e belo desejais: bem-estar físico e espiritual, serenidade e alegria. Vós sabeis que estes bens provêm de Jesus, que vós admirais nestes dias no presépio das vossas Igrejas e das vossas casas.

Faça Ele renascer em cada um de vós um novo impulso nos compromissos que tomais, para serdes jovens bons em casa, na escola e nos encontros de Acção Católica; suscite nas vossas almas uma fé forte, simples e alegre, a ponto de a poderdes comunicar a todos aqueles que encontrais nos vossos ambientes.

Os meus votos tornam-se extensivos também aos vossos coetâneos espalhados por toda a Itália, e por todo o mundo: o Salvador esperado seja para todos portador de salvação, de luz, de esperança e de vida nova; seja Ele sobretudo conforto e consolação para os jovens e as jovens que sofrem e choram em consequência da guerra, da violência, do terremoto, da seca e do subdesenvolvimento. Eles não podem ser esquecidos porque a sua condição os torna mais próximos da humildade, da pobreza e do sofrimento de que historicamente foi marcado o nascimento do Menino Jesus. Por conseguinte, ao mesmo tempo que reviveis aquele Mistério, que santos e artistas procuraram representar devotamente, tende sentimentos e gestos de solidariedade cristã para com todas as crianças pobres e necessitadas.

Com estes sentimentos, de bom grado vos concedo uma especial Bênção Apostólica, que faço extensiva aos vossos pais, aos vossos amigos e a todas as pessoas que vos são caras.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS BISPOS DA TOSCANA EM VISITA


«AD LIMINA APOSTOLUM»


Segunda-feira, 21 de Dezembro de 1981



1. Com sentimento de intima alegria dirijo-vos a minha saudação cordial, venerados Irmãos no Episcopado, recebendo-vos para esta visita "ad limina", que é indicada como dever pelo Direito Canónico para cada Bispo da Igreja católica e é solicitada pela caridade eclesial como singular e preciosa expressão daquela "colegialidade", em virtude da qual — como sublinhou oportunamente o Concílio Vaticano II — "o Romano Pontífice, sucessor de Pedro, e os Bispos, sucessores dos Apóstolos, estão unidos entre si" (Lumen Gentium, LG 22).

Sede, portanto, bem-vindos, dignos Pastores das Arquidioceses da amada Região Toscana, universalmente conhecida no mundo pelas sugestivas belezas da sua paisagem, pelos tesouros insignes da sua arte e pelas radiosas figuras dos seus Santos. Sentir-se-ia bem o espírito, se o tempo o não proibisse, ocupando-se das gloriosas tradições que fizeram gloriosa a vossa Terra em todos os campos em que o homem exprime a força criadora do seu espírito imortal. Seja lícito mencionar aqui, pelo menos, alguns dos nomes que as vossas Igrejas inscreveram no álbum dos Santos: quem não conhece Santa Catarina e São Bernardino de Sena, São João Gualberto, os sete Santos Fundadores, Santo Antonino de Florença, São João Leonardi, Santo André Corsini, São Filipe Néri, São Leonardo de Porto Maurício, Santo António Maria Pucci, Santa Joana Falconieri, Santa Margarida de Cortona, Santa Gema Galgani, para recordar apenas alguns entre os nomes mais conhecidos?

Os seus ensinamentos e exemplos são luminoso património de santidade, para que a Toscana pode olhar com legítimo orgulho, e constituem expressão daquela fé profunda que une os italianos das várias Regiões, por outros aspectos aliás tão diversos. Formam também uma herança espiritual comprometedora, de que as novas gerações cristãs devem mostrar-se dignas com a coerência do seu estilo de vida. Na verdade, não faltam, mesmo nos tempos recentes, testemunhos de Cristianismo vivido por parte de pessoas que souberam seguir generosamente as pegadas dos seus maiores. Penso em figuras como a do Cardeal Elio della Costa, por muitos anos Arcebispo de Florença; ou de Giuseppe Toniolo, também ele por muito tempo professor na Universidade de Pisa; ou de don Giulio Facibeni, fundador da Obra "Madonnina dei Grappa"; ou, enfim, de Giorgio La Pira, cuja inexaurível carga de optimismo cristão, alimentado nas fontes puras da Palavra de Deus, contagiou felizmente inúmeras pessoas.

2. A esta eleita falange de autênticas testemunhas do Evangelho, e a todos os que, seguindo-os, procuraram viver coerentemente os compromissos do seu baptismo, deve-se que se tenha formado, no decurso dos séculos, aquele rico "humus" cristão, em que mergulham as raízes não só a fé das pessoas praticantes, mas também o substancial apego aos valores do Cristianismo, que é propriedade de muitos que hoje infelizmente já não o praticam.

Tarefa primária da Igreja toscana, neste nosso tempo, parece ser uma repetida lavra desse "humus", graças à qual, roçadas as superficiais durezas e tirados os tojos nocivos, a boa semente da Palavra de Deus possa novamente criar folhas e chegar a produzir uma messe copiosa de virtudes autenticamente cristãs.

O povo toscano tem tradições morais fundamentalmente sãs, como testemunham o apego à família, a aplicação ao trabalho, o sentido da justiça, o respeito dos outros na convivência civil e a solidariedade generosa para com o próximo afligido pela necessidade e pela doença. Isto não impede, contudo, que os influxos negativos de ideologias erradas ou de não rectos modelos de comportamento tenham feito brecha em muitas consciências, introduzindo nelas o veneno de princípios incompatíveis com os ensinamentos do Evangelho.

Assiste-se deste modo a que se afirme um relativismo comodista que, tomando a liberdade como valor absoluto, tende a justificar todas as opções teóricas e os comportamentos práticos, a que levem os impulsos internos ou a moda do ambiente circunstante. Consequência disto foi que, enquanto por um lado se esbateu notavelmente em muitos o sentido do pecado, por outro se obscureceu neles, ou mesmo se extinguiu, a percepção de certos valores, incluídos na norma moral.

3. A diagnose cuidadosa de tais situações não tem dificuldade em reconhecer, entre as causas profundas que lhes estão na origem, a falta de instrução religiosa acerca das verdades fundamentais da mensagem revelada e as exigências morais que dela se originam. Impõe-se portanto com urgência a tarefa de uma nova evangelização das nossas populações naqueles casos — bastante raros, felizmente — nos quais o conhecimento da "boa nova" trazida por Cristo foi sufocado pelos preconceitos e pela ignorância. Impõe-se, sobretudo, o dever de uma catequese orgânica, dirigida de modo especial aos adultos, com o fim de introduzi-los pouco a pouco e com métodos adequados na plenitude da experiência cristã.

Uma renovada vida de fé, fruto dessa acção evangelizadora e de um assíduo esforço de catequese, não poderá senão suscitar novo florescimento daquela cultura cristãmente inspirada, que teve no passado na vossa Terra expressões máximas na literatura e na arte, e testemunhos o mais possível significativos nas ciências experimentais.

4. Bem sei, venerados Irmãos, que estas minhas considerações são por vós inteiramente partilhadas. Este foi, de facto, o compromisso a que, nas resoluções tomadas colegialmente, destes a precedência acima de todos os outros. Justamente, porém, reflectindo sobre os modos concretos para o traduzir na prática, sublinhastes a necessidade de lançar de novo a pastoral das vocações: os sacerdotes, os religiosos e as religiosas são, de facto, aqueles que mais de perto vos podem ajudar na tarefa nobilíssima de anunciar Cristo ao mundo de hoje. Mas as vocações escasseiam, de há tempos, em muitas partes da Igreja. A vossa Região conciliar não escapa, infelizmente, a esta situação de crise.

É necessário, portanto, concentrar os esforços nesta direcção, concordando oportunamente as iniciativas tanto entre Diocese e Diocese, como entre Diocese e Institutos religiosos, para assegurar primeiro que tudo uma estimulante presença ao lado dos jovens atraídos a Si por Cristo, e para constituir, depois, as estruturas aptas para os seguir passo a passo no caminho deles para a total doação à causa do Reino.

A este propósito, desejaria consagrar uma palavra especial à função que podem ainda desempenhar os Seminários menores no cuidado dos germes de vocação, colocados por Deus no ânimo dos jovens já na primeira adolescência. Não se deve, na verdade, fazer pouco caso do risco que, para a delicada vergôntea da vocação, é representado pelo clima que se respira na hodierna sociedade secularizada e pela mentalidade permissivista que nalguma medida contagiou não poucas famílias cristãs. Um ambiente sereno, vivaz e são, do qual se mantenham afastadas as influências nocivas de costumes, que muitas vezes bem pouco têm de cristão, mostra-se indispensável para assegurar o desenvolvimento das vocações.

5. A ansiedade apostólica, que pulsa nos vossos corações, Irmãos caríssimos e venerados, levou a que vos interrogásseis a respeito de tudo o que pode ser-vos de auxílio no cumprimento do mandato, que vos foi confiado por Cristo, de anunciar o Evangelho a todas as criaturas (cf. Mt Mt 28,18-20). Ora, entre os diversos canais que podem servir à Igreja para fazer chegar a mensagem cristã às populações, um existe que na Toscana tem presença verdadeiramente privilegiada: quero aludir à arte sacra, que na vossa Região atingiu cumes altíssimos de pureza e autenticidade.

É bem conhecido o apreço com que a Igreja sempre olhou para as várias formas de expressão artística. Ela está, de facto, convencida de que as artes "pela sua natureza têm relação com a infinita beleza divina" e, no decurso dos séculos, sempre recordou aos artistas que o verdadeiro fim, para que devem tender no trabalho, é "contribuir o mais eficazmente possível com as suas obras para encaminhar religiosamente os espíritos dos homens para Deus" (cf. Sacrosanctum Concilium SC 122).

Dóceis a tal ensinamento, numerosíssimos artistas, que floresceram na vossa Terra sobretudo durante a Idade Média e o Renascimento, registaram nas suas obras as comoções religiosas tiradas da contemplação das vicissitudes admiráveis e misteriosas, por meio das quais se realizou a redenção humana. Daí resultou um imponente património artístico que, ao mesmo tempo que testemunha às novas gerações a fé dos avós, constitui para as mesmas estímulo incomparável para a redescoberta e o aprofundamento de genuínos valores cristãos.

Como não haveríamos de preocupar-nos, portanto, de salvaguardar tais riquezas do engenho humano, iluminado pela fé? Como não nos empenharmos para que a mensagem cristã, nessas contida, seja adequadamente proposta a todos quantos ainda hoje procuram uma experiência do Divino através da beleza artística?

Sei bem, veneráveis Irmãos, quanto este aspecto da vossa missão vos está a peito e quanto andais fazendo para defender e valorizar tais bens, que as gerações cristãs do passado confiaram à Igreja, para esta se constituir guarda deles e garante, diante dos sucessores. Foi portanto com sincera complacência que vim a saber dalgumas iniciativas, por vós promovidas nestes últimos anos. Exprimo o voto de que, em tal esforço, vos possais valer da diligente colaboração das Autoridades Públicas, que, respeitando as esferas próprias da competência eclesiástica, não podem deixar que falte a sua actividade em favor de parte tão importante do património cultural da Nação.

6. Um dos valores, pelos quais a catequese hodierna deve particularmente empenhar-se, porque sobre ele converge hoje a acção corrosiva de múltiplas forças desagregadores, é o valor da vida humana. Torna-se necessário despertar nas consciências o sentido da "sacralidade" da vida de cada ser humano, em cada estádio da sua existência. É necessário, além disso, reunir e coordenar todas as energias disponíveis para assegurar uma acção eficaz de tutela e de promoção de tal valor fundamental, de cujo respeito prático depende a qualidade de uma convivência, que deseje chamar-se civil.

Neste sentido desejo exprimir, venerados Irmãos, o meu apreço pela obra de sensibilização, praticada nas vossas Dioceses a tal propósito, e quero exortar todos a prosseguir constantemente neste esforço, sem cair no desânimo diante das incompreensões e contradições, mas tirando destas pelo contrário mais forte incitamento para buscar novos argumentos e caminhos mais eficazes, a fim de persuadir cada um desta verdade basilar: fazer violência à vida em qualquer estádio do seu desenvolvimento significa ofender a dignidade do homem.

7. A defesa e a promoção da vida do ser humano já desde o momento da sua concepção no seio materno não é, aliás, expressão moderna daquele espírito de amor cristão e de solidariedade humana, que fez nascer a seu tempo, em cada centro dalguma importância da vossa Região, as chamadas "Misericórdias"? A imponente obra assistencial que elas há séculos realizam, utilizando unicamente o contributo voluntário de pessoas generosas, movidas pelo desejo de "louvar a Deus com obras de misericórdia", constitui testemunho impressionante de quanto pode realizar a fé, se levada coerentemente às suas consequências lógicas. Ela, com efeito, segundo o Apóstolo, pede para "actuar pela caridade" (cf. Gál Ga 5,6), pois, como observa São Tiago, "a fé sem as obras está morta" (Jc 2,26).

Essa "operatividade" da fé, por outro lado, não pode deixar de manifestar-se também no campo social, estimulando a evolução das estruturas no sentido de atitudes mais respeitosas dos direitos da pessoa e suscitando, também, formas complementares de serviço ao homem, que melhor traduzam a dignidade transcendente do seu chamamento para a filiação divina. A fé abrange todo o homem, na dimensão privada e na social, e obriga-o não só a conformar o próprio intimo com a lei divina, mas a "inscrever" tal lei também "na vida da cidade terrena" (cf. Gaudium et spes GS 43).

No rasto, portanto, dos exemplos deixados pelos avós, é importante que também os cristãos se apliquem a sustentar e a vivificar as várias instituições sociais, que a generosidade de cristãos antigos e recentes despertou para levar conforto ao próximo em dificuldades. Tais instituições, aliás, revelam-se plenamente conformes com o espírito e a letra da Constituição italiana que, sancionando a liberdade da assistência particular (cf. art. 38), obriga os Poderes Públicos a tutelar-lhes a existência e a favorecer-lhes a acção.

8. Eis, caros Irmãos no Episcopado, as reflexões que desejei submeter à vossa consideração, a fim de testemunhar-vos o meu vivo contributo para o zelo pastoral que incita os vossos ânimos e para confirmar-vos, ao mesmo tempo, na vontade de perseverante dedicação à fadiga quotidiana do serviço apostólico.

Desça copiosa sobre vós a graça divina e torne fecundo o vosso trabalho na "vinha", em que o Senhor vos colocou. Confio este auspício à intercessão da Virgem Santíssima, que os fiéis das Igrejas toscanas sempre veneraram com intensa e terníssima devoção. Ela, que os vossos pintores representaram em telas admiráveis por inspiração artística e por transporte religioso, acolha as preces que brotam confiantes dos vossos corações, mitigue os inefáveis sofrimentos a que o ministério vos expõe, e corrobore os propósitos de generosa doação, que neste encontro de fraternal comunhão renovastes.

A poucos dias já das Festividades natalícias, é no nome de Maria, a mística "rosa em que o Verbo divino carne se fez", para usar as palavras de um Grande da vossa Terra (Par. XXIII, 73 s.), que vos concedo e aos fiéis das Igrejas a vós entregues a propiciadora Bênção Apostólica.





DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


À FAMÍLIA VATICANA NA AUDIÊNCIA


PARA A APRESENTAÇÃO DAS BOAS FESTAS


Terça-feira, 22 de Dezembro de 1981



Senhores Cardeais
Irmãos e filhos caríssimos

1. Agradeço, primeiro que tudo, ao venerado e caro Cardeal Confalonieri, Decano do Sacro Colégio, as palavras de bons votos que me dirigiu em nome de todos vós. Esta ocasião vê aqui reunidos pela primeira vez. no Natal, os Senhores Cardeais e todos os colaboradores, eclesiásticos e leigos, da Cúria Romana, do Vicariato e do Governatorato do Estado da Cidade do Vaticano. E por isso, segundo a amável tradição, é-me muito agradável receber e retribuir os vossos votos, que a iminência da festa torna tão íntimos e alegres.

2. Ecce Dominus veniet cum splendore descendens... visitare populum suum in pace, repetimos nos responsórios da "Liturgia Horarum" do tempo do Advento.

Ecce Dominus veniet. Ele vem. Vem a nós para nascer do íntimo dos nossos corações que esperam a Sua segunda Vinda, como, na primeira Vinda, "encarnou por obra do Espírito Santo, de Maria Virgem, e fez-se homem". O ano que termina deixa no nosso coração a dulcíssima memória das celebrações do 16° século do Concílio Constantinopolitano I, e dos 1.550 anos a contar do Concílio de Éfeso, de cujas celebrações manifestei o desejo na "Epistula" de 25 de Março. Foi o ano por excelência pneumatológico e mariano, que permitiu colocar em mais viva luz a acção divinizadora do Espírito Santo, "que é Senhor e dá a vida", e também a contínua irradiação no mundo da Maternidade de Maria, a "Theotokos", que é também Mãe da Igreja e da humanidade. As cerimónias comemorativas dos dois Concílios, que viram em Roma, nas Basílicas de São Pedro e de Santa Maria Maior, as representações dos Episcopados do mundo inteiro, tiveram o seu coroamento na recente solenidade da Imaculada Conceição, com o acto, por mim renovado, de entrega de toda a Igreja a Maria, Mãe de Deus, Esposa e Templo do Espírito Santo. O Congresso pneumatológico, que se realizará na próxima primavera, aprofundará mais esta sublime realidade da presença e da obra do Paráclito na Igreja, como da Sua acção em Maria, iniciada no momento sublime da Encarnação, dum médium silentium tenerent omnia. Naquele momento, a culminar no adorável Mistério da Natividade, o Filho de Deus torna-se um de nós, para elevar-nos até a Si, para santificar-nos e dar-nos a vida. Ao comentar a Anunciação, São Pedro Crisólogo escreve com muita razão: "Ouvistes que, por um mistério incompreensível, Deus é colocado na terra e o homem no Céu. Ouvistes como, de modo desusado, se une num só corpo Deus e o homem" (Serm. 142; PL 52, 579). Estamo-nos preparando para reviver o Mistério deste admirabile commercium. Daqui a nossa alegria, agitada e intensa, que inconfundivelmente se renova cada ano. Ecce Dominus veniet cum splendore.Sim, irmãos: o Natal deste ano está mergulhado totalmente neste esplendor do Verbo, incarnatus de Spiritu Sancto ex Maria Virgine.

3. A Igreja alegra-se de modo particular no Natal, porque sabe ter nascido em Belém com Cristo, quando teve entre as próprias primícias os Pastores e os Magos. Sabe que esteve desde então, de certo modo, entre os braços de Maria, que, como bem disse o Concílio Vaticano II, é "Aquela que gerou Cristo concebido do Espírito Santo e nascido da Virgem, precisamente para nascer e crescer, mediante a Igreja, nos corações dos fiéis" (Lumen gentium LG 65).

A Igreja prolonga e continua o Advento de Cristo e a presença de Cristo entre os homens. Continua-os e prolonga-os. Difunde-os com todos os meios à sua disposição, sem hesitações, sem temores e sem demoras. Esta é a sua vocação, a sua fisionomia e a sua identidade. E a identidade dos cristãos está exactamente em prolongar a obra do Salvador entre os homens irmãos. Para continuar no mundo esta sua presença, Cristo confiou à Igreja a missão de colaborar com Ele:


Discursos João Paulo II 1981 - Sábado, 19 de Dezembro de 1981