Discursos João Paulo II 1981 - Terça-feira, 22 de Dezembro de 1981

— mediante a santificação das almas, transmitindo a graça que Ele trouxe ao mundo do seio do Pai;

— mediante a Palavra, com que ela continua a proclamar ao mundo o "alegre anúncio" da salvação através dos contactos, do diálogo e, sobretudo, da evangelização;

— mediante o testemunho da vida dos seus membros no orgânico desdobramento de todos os estados de vida, que como fermento penetram na massa da sociedade.

4. A Igreja, pela sua inata vocação, não está separada do mundo, mesmo nas suas formas de vida mais requintadamente interiores e reservadas à esfera do sagrado. Sendo formada de homens, vivendo entre os homens, elevando-os ao sobrenatural e educando-os para conhecerem Deus (cf. Santo Ireneu, Adv. Haer. IV, 5-7; ), a Igreja por isso mesmo incide também na esfera do quotidiano, do social. O braço vertical da Cruz de Cristo está solidamente pregado no horizontal, que abraça e diviniza o mundo na única oblação de amor do Filho de Deus.

Esta divinização do homem, trazida pelo Espírito à Igreja, realiza-se principalmente na administração dos sacramentos, sobretudo da Eucaristia, que é "sacramento de piedade, sinal de unidade e vínculo de caridade" (Santo Agostinho, In loann. Ev. Tr. 26, 6, 13; PL 35, 1613), e é por isso principio de coesão e de fraternidade verdadeira, também na vida social do mundo inteiro, pelo qual se entregou Cristo — pro mundi vita (Jn 6,51). Recordo por isso, primeiro que tudo, entre os factos salientes deste ano, o Congresso Eucarístico Internacional de Lourdes, ao qual dirigi uma mensagem minha em sinal daquela participação pessoal que haveria de ter nesse acontecimento em Julho passado. Recordo, além disso, os "sinais" que desejei dar administrando pessoalmente os sacramentos, desde as solenes ordenações episcopais e sacerdotais, até aos Baptismos, às Crismas e à Penitência. Pela primeira vez, na história da Igreja, realizou-se uma Beatificação no Continente Asiático, por ocasião da minha viagem ao Extremo Oriente quando proclamei em Manila, a 18 de Fevereiro, as virtudes heróicas de Lourenço Ruiz, e dos seus companheiros mártires, doutras nacionalidades. Este acontecimento, como depois a 4 de Outubro, a Beatificação aqui em Roma doutros 5, Homens e Mulheres, que praticaram heroicamente o amor devido a Deus e aos homens, propôs diante dos olhos de todos a influência que tem a santidade para a elevação espiritual, moral e social do mundo e da sociedade.

Recordo ainda o Centenário do nascimento de João XXIII, porque repropôs a irradiação da Igreja em todos os campos da vida, recordando o sulco profundo que esse Papa deixou com a bondade, o optimismo, a abertura e o ensinamento, em particular com as inolvidáveis Encíclicas Mater et Magistra e Pacem in terris.

Desejaria também mencionar a acção incansável e oculta de tantos missionários e missionárias — presbíteros, religiosos e leigos — e a obra generosa dos sacerdotes na cura de almas, para fazer notar o influxo que a Igreja tem, vivendo em contacto directo com os vários povos do mundo e com a gente comum, com "o homem da rua", — aquele, para nos entendermos, que sustenta o caminho da história —, de maneira que esta Igreja contribui, em primeira pessoa, para a elevação contínua da sociedade contemporânea.

5. Nenhum campo, nenhum ramo da família humana é estranho à Igreja; nenhum lhe é indiferente, desde que o Verbo de Deus se fez homem, entrando como membro, para todos os efeitos, na humanidade.

A esta luz se coloca a actividade desta Sé Apostólica, num contacto sempre mais estreito com todas as expressões da vida dos homens. A ansiedade que me impele, como Sucessor de Pedro que tem "solicitude por todas as Igrejas" (2Co 11,28), é de chegar a todas as componentes representativas do mundo hodierno na terra: desde a convivência internacional até à paz e cooperação entre os povos, desde a vida social e politica até à familiar, desde os problemas do trabalho e da economia, da cultura e da arte até aos meios de comunicação.

Agradeço ao Senhor o dom que me faz, em particular, de manter-me em contacto estreito com todos os povos do mundo, primeiro que tudo mediante a relação directa com os Episcopados dos cinco continentes. Para eles, responsáveis pelo serviço eclesial, Pastores de cada Igreja local, dirijo o meu pensamento grato e afectuoso, o meu incitamento à esperança e à acção incansável, o meu convite a que se prossiga sem temores na obra ingente da evangelização e do diálogo com todos os homens. Não posso esquecer os encontros tonificantes das Visitas "ad limina", que retomei em Outubro, recebendo sucessivamente os Bispos da Gâmbia, Libéria e Serra Leoa, da Tanzânia, de Angola e São Tomé, do Sudão, do Gana, da Costa do Marfim e do Mali, além dos das várias regiões da Itália. Também nas Audiências me é dado encontrar quase cada dia Bispos de todas as partes do mundo. No abraço que troco nestas ocasiões é como se abraçasse todos os filhos e filhas que vivem na Igreja, unidos, embora em diversas situações sociológicas e politicas, no mesmo vínculo de unidade, fé, amor, serviço a Deus e aos Irmãos.

Antes de deter-me em particular sobre aspectos desta acção da Igreja ad extra, que forma cada ano o tema do nosso encontro natalício, sinto o dever de antepor um cordial agradecimento a vós, senhores Cardeais, a vós, Prelados e membros, eclesiásticos e leigos, da Cúria Romana, que por meio da vossa cooperação silenciosa e eficiente me ajudais a realizar a obra a mim confiada por divino mandato. A todos sou devedor! O Senhor, que premeia tudo o que é feito por Seu amor, não deixará sem recompensa um serviço tão precioso.

Desejaria dar a prioridade absoluta a dois problemas cruciais, que influem na sorte do homem de hoje, aos quais dediquei os dois mais solenes documentos do meu magistério neste ano: o trabalho e a família.

6. A todos são conhecidas as solicitudes da Igreja e desta Santa Sé na época moderna, a partir de Leão XIII, com a Encíclica Rerum Novarum, que se mantém como pedra angular do ensinamento cristão no campo social para a aplicação integra do Evangelho à solução dos pertubadores desequilíbrios, trazidos pela industrialização e pelo urbanismo.

No 90° aniversário daquele grande Documento — depois do contributo dos meus Predecessores — e agora no limiar do terceiro milénio, eis a Encíclica Laborem exercens, que tinha preparada desde o passado Abril-Maio, e publiquei a 14 de Setembro.

Como sublinhei desde o princípio da encíclica, em linha coerente com a Redemptor Hominis, devia-se pôr em vista a centralidade do homem que trabalha, para o qual convergem as linhas da Revelação, a partir do Génesis, e as solicitudes da Igreja: devia-se pôr "em realce — mais talvez do que foi feito até agora — o facto de o trabalho humano ser uma chave, e provavelmente a chave essencial, de toda a acção social, se procuramos vê-la verdadeiramente do ponto de vista do bem do homem" (Laborem exercens LE 3). Daqui tratar em profundidade o trabalho em sentido objectivo e subjectivo, para que seja sempre salvaguardada a dignidade dos homens do trabalho, das suas famílias, da sociedade em que vivem e dos seus direitos e deveres até traçar os elementos centrais daquela espiritualidade do trabalho, que encontra em Cristo, "o homem do trabalho", e na Sua Cruz e ressurreição a única solução possível das exigências, das fadigas e das angústias dos trabalhadores.

A Igreja continua hoje a proclamar, alto, a sua solicitude para com o mundo do trabalho. Está do lado dos trabalhadores.

A tal luz tomam importância os encontros por mim desejados no curso do ano com as várias categorias de trabalhadores, especialmente a viagem a Terni na Úmbria, com os Técnicos e os Operários daquelas Açarias, na festa de São José, padroeiro dos trabalhadores. E recordo ainda comovidamente a Audiência a Lech Walesa, a 15 de Janeiro, e a mensagem dirigida a ele e aos membros do Sindicato Livre Polaco "Solidariedade". Nem posso esquecer que, precisamente para recordar a Encíclica Rerum Novarum, tinha eu aceitado o convite para dirigir-me a Genebra a fim de me encontrar com o máximo "fórum" das Nações Unidas, que se ocupa do trabalho no mundo, a O.I.T. (Organização Internacional do Trabalho). A visita, querendo Deus, far-se-á ainda, precisamente para mostrar com solenidade, diante de todos os povos, a estima e o amor que a Igreja alimenta pelos homens do trabalho.

7. A solicitude da Sé Apostólica e dos Episcopados de todo o mundo brilhou com luz estupenda na celebração do Sínodo dos Bispos, em Outubro do ano passado.

Em conclusão desse acontecimento, recolhi-lhe e desenvolvi agora as Propositiones, tendo também em conta as sugestões vindas das trocas das várias reuniões, nas quais participei todos os dias. Recolhi-as e desenvolvi-as mediante a recentíssima Exortação Apostólica Familiaris consortio, tornada pública há uma semana, que deseja ser uma "suma" do ensinamento da Igreja sobre a vida, os encargos, a responsabilidade e a missão do matrimónio e da família no mundo de hoje.

Naquele documento recordei um desígnio primordial de Deus sobre o matrimónio, expressão visível do amor esponsal de Deus para com a humanidade, de Cristo para com a Igreja. A família cristã, que deriva do matrimónio, é vista primeiramente em cada uma das suas componentes, com particular atenção para com a mulher; põe-se em relevo o seu imprescritível dever do serviço à vida, seja como transmissão da vida mesma, seja como missão educativa. A família deve participar intimamente no desenvolvimento da sociedade e na obra da Igreja, como comunidade crente, que ora e pronuncia o seu "sim" a Deus no cumprimento da lei do amor. O documento considera, por fim, os vários aspectos da pastoral familiar, detendo-se também em situações difíceis, típicas de hoje, que, no respeito embora dos princípios impreteríveis, requerem atenção especial, cheia de delicadeza e clareza juntamente, para com as pessoas nelas abrangidas.

Com tal Exortação, que recolhe votos e experiências dos Episcopados dos cinco continentes, e como tal é portanto verdadeira expressão da Colegialidade na Igreja, foi dada ulterior confirmação das solicitudes que a Igreja mesma dirige à instituição familiar; além disso, foi aprofundado e ampliado o claro ensinamento do Concilio Vaticano II sobre o matrimónio e a família (cf. Gaudium et spes GS 47-52).

A tal luz, há-de ver-se também a instituição do Pontifício Conselho para a Família, com o Motu Proprio Familia a Deo, de 9 de Maio passado, e a criação do Instituto Internacional de Estudos sobre o matrimónio e a família, já em actividade. Assim recordo com complacência as Audiências concedidas a grupos, a instituições e organismos — entre os quais me apraz citar o Tribunal da Sagrada Rota Romana — que me permitiram levar avante um estudo articulado sobre a família e sobre as interrogações e os desafios que ela apresenta hoje aos pastores de almas.

Entre estes desafios e estas interrogações, é fundamental a transmissão e defesa da vida: a vontade de Deus Criador confiou expressamente esta tarefa ao casal humano, desde "o princípio", mas o hedonismo, dominador e narcotizante de hoje, procura com todos os meios embotar a sensibilidade e o imperativo moral das consciências, separando do matrimónio a obrigação primária de dar a vida. Milhares e milhares de vítimas inocentes e indefesas são sacrificadas no seio materno! Está-se infelizmente a obscurecer o sentido da vida e, por conseguinte, o respeito do homem. As consequências estão à vista de todos. E piores reservará o futuro se não se põe remédio. A Igreja reage contra esta mentalidade com todos os meios, expondo-se e pagando por si mesma. Assim fizeram os Bispos, em todos os países onde foi admitida na matéria uma legislação permissiva. Assim fiz eu, assim me expus a mim mesmo na primavera passada. E nos dias do meu longo sofrimento pensei muito no significado misterioso, no sinal oculto — que me era como que dado pelo Céu — da prova que pôs em risco a minha vida, como se fosse um tributo de expiação por esta recusa, oculta ou manifesta, da vida humana, que se está expandindo nas Nações mais progressivas, as quais correm — sem quererem dar-se conta, melhor, parecendo orgulhosas da própria autonomia e da libertação quanto à lei moral — as quais correm, dizia, para uma era de degradação e de envelhecimento de si próprio. Terei talvez ocasião de voltar expressamente a esta dolorosa realidade. Mas importava-me fazer a ela ao menos uma alusão ainda hoje, quando nos preparamos para reviver um Nascimento, o do Filho de Deus que vem ao mundo trazer a vida, salvar o homem e revalorizar a posição da mulher e da criança.

8. Vêm depois as várias categorias de homens e mulheres, com que entrei em contacto no decurso do ano.

Recordo primeiramente os jovens de vários países — e entre eles os universitários e os desportistas — nos numerosos encontros que tive com eles no decurso do ano, em sintonia com o interesse que a Igreja inteira tem pela juventude, para a qual olha com alegria e com esperança, a fim de que ela saiba enfrentar com empenho e serenidade a sua preparação para a vida.

Na celebração do Ano do Deficiente, esta Santa Sé não deixou, numa Mensagem sua, de dar indicações e formar auspícios pela cura, a tutela e a promoção desta numerosa e provada porção da humanidade: eu mesmo, em Abril, administrei a Confirmação a alguns deles, recebi os participantes nos Jogos Mundiais para Deficientes e dirigi-me àqueles que foram em peregrinação a Lourdes. E faço votos por que programas e propósitos, derivados da celebração do Ano, cheguem a resultados benéficos e duradouros para a utilidade espiritual e física desta predilecta categoria de irmãos.

É-me, em seguida, particularmente agradável recordar os doentes, encontrados em visitas e em Audiências: ter conhecido de perto e com demora o sofrimento físico, fez-me sentir "um deles", porque vivi numa comunidade de doentes, na Policlínica "Gemelli", doentes de que me separei com comoção, saudando-os pessoalmente, como um a um, no momento da minha partida do hospital.

Apraz-me mencionar ainda as solicitudes desta Sé Apostólica para com os homens de ciência e cultura, a presença deles no campo internacional mediante a actividade e prestigio dos componentes da Pontifícia Academia das Ciências: como é sabido e como anunciei no domingo, 13 de Dezembro, foram recebidas Delegações dela pelas Altas Autoridades dos Estados Unidos e da União Soviética, da Grã-Bretanha e da França, e também pelo Presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas, às quais apresentaram os resultados dos estudos feitos pela Academia sobre as funestas consequências de possíveis deflagrações atómicas.

E é-me sempre agradável, além disso, recordar os encontros que, no decurso do ano, tenho com os jornalistas e com os responsáveis pelos "Mass-Media", aos quais é particularmente dirigida a Mensagem Anual para o Dia Mundial das Comunicações Sociais. A importância dos instrumentos de informação e de formação reveste para esta Santa Sé particular valor por ocorrer o 50° aniversário de actividade da Rádio Vaticano: grande foi o influxo deste admirável meio de comunicação e de fraternidade entre os homens, ao serviço da Igreja e da verdade, num período exaltante e crucial da história contemporânea.

Desejaria ainda lembrar a Mensagem enviada a 8 de Setembro para o XV Dia Internacional da Alfabetização; a Mensagem para o I Dia Mundial da Alimentação, de 14 de Outubro; como também a Audiência à XXI Sessão da Conferência da FAO, a 13 de Novembro, no contexto do sempre dramático problema da fome no mundo.

9. Agora, no termo do ano, bendigo convosco o Senhor pelas possibilidades que se ofereceram à Igreja e à Sé Apostólica de manter uma rede cada vez mais apertada de encontros e contactos a nível internacional, dirigidos unicamente à elevação da sociedade e a favorecer a mútua compreensão entre os povos.

Recordo, de modo particular, os encontros com os vários Chefes de Estado e com as Autoridades, no contexto tanto das viagens como das Audiências no Vaticano; e também a apresentação das Cartas Credenciais por parte dos Embaixadores (este ano: Japão, Áustria, Gana, Portugal, Coreia, Irão, Brasil, Itália, Argentina, Bolívia, Jugoslávia, Honduras, Equador e República Dominicana), trazendo essa apresentação para o primeiro plano esta forma de serviço da Igreja. Esta, mantendo relações bilaterais com os vários Estados, pensa unicamente em salvaguardar os legítimos espaços de acção da Igreja e o progresso social das respectivas populações.

Alguns temas merecem particular atenção.

10. O diálogo com o mundo adquire dimensões internacionais mediante as viagens que a Providência me concede realizar, encontrando nos seus territórios os vários povos, com as suas singularidades étnicas, a riqueza do seu património histórico e artístico, e a profundidade do seu sentimento religioso. Aos itinerários até agora percorridos juntou-se este ano a visita ao Extremo Oriente e ao Alasca que, de 16 a 27 de Fevereiro, me levou do Paquistão às Filipinas, a Guam, ao Japão e a Anchorage, num périplo, ainda que rapidíssimo, ao longo do orbe terráqueo completo. Outras viagens, como sabeis, deviam seguir-se, mas foram suspendidas infelizmente, não interrompidas, pelo atentado. Foi, aquela viagem, uma experiência de grande importância, sobretudo para mim: depois de Paulo VI, que visitara as Filipinas, foi a primeira vez que o Sucessor de Pedro pisou aquelas longínquas terras (e saliento especialmente a antiga e nobre Nação Japonesa) significando assim a continuidade do mandato evangélico, que impeliu durante os séculos os apóstolos e os seus sucessores, os missionários, a levarem a todos os povos a boa nova, segundo o mandamento de Cristo (cf. Mc Mc 16,15).

Pude dirigir de Manila, do Auditório da Rádio "Véritas", a 21 de Fevereiro, uma mensagem a todos os povos da Ásia, continente ilimitado, com imensos recursos de civilização, cultura, trabalho, espontaneidade humana e cordialidade, que formam contributo privilegiado para a convivência internacional. Aqueles mesmos Povos tinha-os eu consagrado a 17 de Fevereiro a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, venerada em Baclaran. Foi-me assim oferecida a oportunidade de, perante aquele continente, melhor perante o mundo inteiro, poder exclamar que ele tem a Igreja perto, que esta lhe conhece os problemas, e lhe partilha o anseio de progresso e de paz: "nos membros da sua Igreja — disse eu em Manila — Cristo é Asiático. Cristo e a Sua Igreja não podem ser estranhos a nenhum povo, nação ou cultura. A mensagem de Cristo pertence a todos e é dirigida a todos. A Igreja não tem pretensões mundanas, nem ambições politicas ou económicas. Deseja ser, na Ásia como em qualquer outra parte do mundo, o sinal do amor misericordioso de Deus, nosso Pai comum... A Igreja não pretende privilégio algum; quer só estar livre e não encontrar obstáculos ao desempenhar a própria missão" (21 de Fevereiro: AAS 73, 1981, 396 s.).

11. Como pode a Igreja desinteressar-se da paz no mundo, se ela anuncia o Advento do Príncipe da paz? Como pode ficar insensível a este bem fundamental da humanidade, quando, todos os anos, no Natal, lhe é concedido ouvir de novo o canto dos anjos: Gloria in altissimis Deo, et super terram pax in hominibus bonae voluntatis (Lc 2,13)?

Como descurar o bem insubstituível, inestimável da paz, quando — como pude verificar com o ânimo perturbado, em Hiroxima e em Nagasáqui, a 25 e 26 de Fevereiro — as destruições causadas no homem e nas suas cidades pela ferocidade da guerra estão ainda vivas na memória, quando os vestígios indeléveis daquelas feridas permanecem ainda assinalados profundamente no rosto, no corpo e na alma de inúmeros irmãos nossos? Daqui o apelo que me brotou do coração naquelas visitas — no Peace Memorial de Hiroxima, no Hospital de Ille of Mercy de Nagasáqui — cuja recordação ainda me comove: "Recordar o passado — disse — é comprometer-se pelo futuro. Recordar Hiroxima é abominar a guerra nuclear. Recordar Hiroxima é assumir um compromisso pela paz... Perante a calamidade, desencadeada pelo homem, que é constituída por toda a qualquer guerra, deve-se afirmar e reafirmar, com insistência, que o recurso à guerra não é uma necessidade inevitável nem uma necessidade imutável. A humanidade não está destinada à autodestruição. Os conflitos entre ideologias, aspirações e reais necessidades podem e devem ser resolvidos e compostos com adequadas medidas, diversas da guerra e da violência" (25 de Fevereiro: AAS 73, 1981, 417).

Nem posso esquecer-me da Missa pela Paz, que celebrei em Manila, no Quezon Circle, a 19 de Fevereiro.

Daqui o anual Dia da Paz, cujo tema foi este ano "Para servir a Paz respeita a liberdade", enquanto nos preparamos para meditar, no próximo 1º de Janeiro, sobre "A Paz, dom de Deus".

Daqui a solicitude pelos refugiados, que são as vítimas mais eloquentes da falta da paz, no seu trágico desenraizamento da amada pátria, e na penosa solidão em terras estrangeiras, muitas vezes em condições de vida sub-humanas, com inimagináveis consequências nas crianças, nos jovens e nos doentes. No campo de Morong, nas Filipinas, propus de novo diante do mundo este problema trágico, que põe em crise a auto-suficiência do homem moderno.

Daqui as exortações que, em várias oportunidades, dirigi a homens políticos de várias nacionalidades e tendências, animando-os ao respeito da deontologia da sua profissão, ao serviço do crescimento humano e espiritual dos seus irmãos.

Em tal contexto, voltando à minha mensagem pessoalmente enviada em Setembro de 1980 aos Chefes de Estado signatários do Acto final de Helsínquia, não posso deixar de inculcar firmemente o apelo ao direito, que as pessoas e os povos têm, de que a liberdade de consciência e de religião seja respeitada em todo o seu alcance e em toda a sua esfera social.

A liberdade religiosa é condição primeira e indispensável da paz. E não se pode dizer que a paz esteja presente onde este fundamental direito não seja garantido. É direito fundado não só na dignidade da pessoa humana, livre de proceder e exprimir-se segundo as próprias opções interiores, mas também sobre a natureza essencialmente comunitária das relações interpessoais, em que toma forma externa e participada a liberdade religiosa. Confio que todos os responsáveis da humanidade saibam inspirar responsavelmente a sua acção no respeito deste inalienável direito dos seus Povos. Só assim se poderá falar de paz, verdadeira e duradoura.

12. Há todavia sombras funestas, áreas de conflito e de tensão; só pensar nelas enche a alma de sofrimento.

Como não haveríamos de ficar tristes com as notícias que provêm de alguns Países da América Central? Na Missa que, a 12 de Dezembro, celebrei em São Pedro — diante da comunidade latino-americana de Roma e de Representações vindas propositadamente para comemorar os 450 anos das Aparições de Nossa Senhora de Guadalupe —, recordei as preocupações que despertam no meu espírito situações penosas e dramáticas daquele Continente. E fiz votos por que, dentro do respeito da justiça e da liberdade, como no exercício de uma verdadeira socialidade que venha ao encontro de estridentes desequilíbrios económicos, se possa chegar finalmente a tuna convivência social em que resplandeçam a harmonia, a colaboração, a fraternidade e a paz.

Uma vez mais, como já fiz nos últimos dias, suplico que sejam poupados novos sofrimentos à Polónia, ao meu povo já tão provado pelos acontecimentos bélicos durante a sua história atormentada. E confio à intercessão de Nossa Senhora de Jasna Gora a situação criada em virtude da declaração do estado de assédio. Confio à Mãe dos Polacos a oração e o apelo para uma solução pacífica, na mútua colaboração entre Autoridades e Cidadãos, no pleno respeito da identidade civil, nacional, espiritual e religiosa do país. Para a Polónia dirigem-se o meu pensamento e o afecto, os anseios e os bons votos do mundo inteiro, neste momento dramático.

Continuamente me chegam os ecos desta participação fraterna nos destinos da minha Pátria; não posso deixar de os agradecer.

Não posso, depois, seja embora de passagem, deixar de aludir à situação do Próximo Oriente, em particular do dilecto Líbano, que permanece densa de perigos e de apreensões por frequentes derramamentos de sangue. Nem esqueço a amadíssima Irlanda do Norte, sobre a qual as acções terroristas continuam a lançar uma sombra funesta. Também àquelas Nações, tão provadas, se destina o meu profundo e solene voto de paz, reforçado pela oração constante.

Neste contexto sinto-me obrigado a erguer a voz contra o grave e ainda não resolvido fenómeno do terrorismo internacional, que forma permanente ameaça para a paz interna e internacional dos povos. Dele caiu vítima o Presidente Sadat, valoroso promotor de entendimentos internacionais e de elevação do seu povo, antigo, nobre e forte. Inumeráveis foram as outras vítimas em todo o mundo, ceifadas no cumprimento do próprio dever e tornadas objecto de inqualificáveis actos de vileza, que são verdadeiras e próprias acções de guerra homicida, cobertas pela solidariedade de poucos e pelo anonimato das cidades que se desumanizam e desagregam. A uma destas tentativas escapou ainda o Presidente dos Estados Unidos da América. Nem posso esquecer o atentado à minha pessoa, naquela tarde de 13 de Maio, na Praça de São Pedro, quando fugi à morte por evidente protecção do Senhor, a mim concedida por intercessão da Virgem Santíssima, no dia do aniversário da sua aparição em Fátima. Misericordiae Domini quia non sumus consumpti (Lm 3,22), repito também hoje. A razão perturba-se e confunde-se na busca do motivo para tais gestos, que nascem de raízes desconhecidas sim, mas sempre reconduzíveis ao ódio, à confusão ideológica e à tentativa de semear incerteza e temor na vida internacional. O perdurar deste grave perigo, para o futuro da humanidade, e ter eu mesmo passado pelo cadinho de tão tremenda prova, faz-me uma vez mais elevar a voz amargurada para afastar os terríveis instrumentos desta louca táctica destabilizadora que não tem remédios nem justificações, para que desistam dos seus estéreis propósitos de morte e procurem, juntamente com os outros, a solução dos problemas que afligem a sociedade, não na violência mas na cooperação prática, no esforço de um melhoramento geral que pode ser realizado respeitando os valores humanos e espirituais.

Triunfe por fim a "civilização do amor" para ajudar o homem a transformar o mundo e a reencontrar a justiça, o progresso e a paz!

13. No termo já do nosso encontro, o meu pensamento dirige-se para São Cirilo e São Metódio que, mediante a Carta Apostólica Egregiae virtutis, de 31 de Dezembro do ano passado, proclamei Padroeiros da Europa, válidos intercessores pelo progresso espiritual do nosso velho e glorioso Continente. Eles pertencem-lhe! Eles caminham à frente dele como modelos persuasivos de civilização e de fé, com o grande São Bento, cujas celebrações centenárias quis idealmente concluir com a Missa celebrada na Basílica de São Paulo fora dos Muros, a 22 de Março. A estes grandes campeões da virtude da humanidade, irradiada pela graça — os quais fizeram brilhar com nova luz o anúncio cristão, para se unificarem povos tão diversos, no vínculo da fé, e para serem preservados os valores autênticos da civilização do Oriente e do Ocidente — confio eu neste momento a Europa e o mundo. Intercedam eles pelos Governantes, pelos Responsáveis da política, da cultura e da arte, pelos trabalhadores, pelos construtores da paz na vida de cada pessoa e nação, a fim de que triunfe sempre o bem sobre o mal, o amor sobre o ódio e a razão sobre o absurdo. Guiem-nos, ainda e sempre, pelos caminhos da civilização e da paz.

Com esta renovada esperança, enfrentemos o novo ano. A Igreja continuará como sempre ao serviço do homem. Está certa de contribuir para isso de modo determinante, exactamente porque é obra de Deus e procura a glória de Deus, cujo reflexo é exclusivamente o que faz crescer o homem e o torna digno de respeito e de amor. Promovendo a glória de Deus, a Igreja promove a glória do homem. E como observa com razão Santo Anselmo, "quem dirige todo o próprio esforço para a reconquista do reino da vida, esforça-se por depender em tudo de Deus e por fixar n'Ele toda a própria confiança com inabalável firmeza de ânimo... Tomando a paciência como apoio, ele canta alegremente com o Salmista: Magna est gloria Domini. Esta glória é saboreada por ele na peregrinação... e nela encontra a própria consolação no caminho do mundo" (Santo Anselmo; cf. Vita auct. Eadmero, II, 32; PL 158, 95).

Continuemos assim, com esta alegria, esta confiança e esta perseverança. Magna est gloria Domini. Maria Santíssima, que por obra do Espírito Santo encerrou no seu seio imaculado e deu ao mundo o Verbo do Pai, colaborando em manifestar-Lhe a glória na sua humilde "diakonia" materna (cf. Jo Jn 2,11), sustenta-nos no caminho, ajuda-nos a não perder o passo, indica-nos a meta a que tende o ritmo dos dias e do nosso trabalho quotidiano: Magna est gloria Domini. A glória de Deus e a paz aos homens, segundo a mensagem do Natal.

Nesta luz e nesta expectativa, a todos vos abençoo de coração.





DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


DURANTE O ENCONTRO


COM A COMUNIDADE POLACA


NA VIGÍLIA DE NATAL


Quinta-feira, 24 de Dezembro de 1981



Meus caríssimos compatriotas

Desejo agradecer a vossa presença neste dia de Vigília. Agradeço as palavras do Senhor Bispo. Creio que antecipámos de algumas horas a "Noite do Natal" e a Meia-noite do Natal. De facto, entoámos já o canto que habitualmente se eleva à Meia-noite ou, ao máximo, durante a ceia da Vigília. Mas tudo isto faz parte do rito. Desejo agradecer a vossa presença tão numerosa. O ano passado encontrámo-nos na Sala ao lado, menor do que esta, e este ano mal conseguimos reunir-nos nesta Sala maior. É a prova de que os polacos em Roma e na Itália são numerosos. Talvez seja isto um bom sinal ou, quem sabe, não muito bom. Em todo o caso, prescindindo do número dos compatriotas que neste momento estão na Itália e em Roma, desejo exprimir os meus bons votos a todos os presentes e a todos os que não vieram aqui — embora, estando na Itália ou em Roma, pudessem e devessem fazê-lo! E agradeço-vos também o que por mim fizestes.

Augúrios recíprocos, de facto, pois nisto consiste o repartir juntos o "oplatek", símbolo e ao mesmo tempo sinal exterior das mútuas felicitações, manifestadas pelas pessoas que se encontram perto ou longe. Mesmo quando estamos longe, de facto, mediante o repartir do "oplatek" e o intercâmbio dos augúrios sentimo-nos mais perto. Por isto, também nós aqui reunidos sentimo-nos próximos mediante o "oplatek", graças à consciência de pertencermos a uma família, a uma única família-pátria. Estes nossos votos recíprocos desejo exprimi-los a todos os presentes e a todos os outros antes mencionados. O Senhor Bispo recordou todos os polacos que vivem longe da Pátria; os meus bons votos são extensivos a todos eles. Oxalá as distâncias não sejam um obstáculo: apesar de elas se verificarem, talvez para o aperto de mãos, que não aconteça isto pelo menos com os nossos corações durante o "oplatek" da Vigília. Este é o nosso comum desejo, o augúrio do bem recíproco, de homem para homem, de polaco para polaco. E quando se fala de bem comum os nossos pensamentos, os nossos corações necessariamente se concentram naquela terra em que todos nós crescemos, na Polónia que é a nossa Mãe comum.

A medida do bem comum é a do bem da Pátria. O Senhor Bispo referiu-se precisamente às ameaças que incidem sobre este bem, tal como parecem revelar estes últimos dias e semanas. Em todo o caso, quanto à inquietude dos corações dos polacos causada pelos acontecimentos na Polónia, também eu sinto estas inquietudes, sinto-as profundamente e exprimo-as: nesta altura é preciso acrescentar que se nos inquietamos do ocorrido na Polónia, contudo, nestes nossos reveses estamos apoiados em diversos ambientes do mundo inteiro. As vicissitudes da nossa Pátria tornaram-se de modo particular as de tantas nações, de tantas sociedades, quase da humanidade inteira. Evidentemente os acontecimentos da Polónia têm o seu peso específico, compreendido muito bem não só por nós, de modo directo protagonistas independentemente do facto de estarmos fora ou dentro da Polónia, mas também por muitas outras pessoas.

Evidentemente são factos importantes, essenciais. Pois bem, se assim acontece, interpretando do melhor modo os sinais dos tempos, deste tempo do Natal do Ano do Senhor de 1981, se soubermos interpretar, repito, os nossos augúrios pelo bem comum deveriam eles ser simplesmente uma oração: oração a fim de que aos nossos compatriotas, onde quer que se encontrem, mas sobretudo aos que permaneceram na Pátria, não venham a faltar as internas e externas forças necessárias para fazer frente às tarefas surgidas precisamente neste momento para a Polónia, colocadas por ela, como nação e como sociedade, perante o mundo inteiro. De facto, trata-se de valores tão essenciais como são a dignidade do homem e do trabalho humano, o direito de a nação autodeterminar-se; tudo isto, com a linguagem das experiências da nossa Pátria, fala à humanidade inteira. E a humanidade está consciente destes acontecimentos ou, pelo menos, mostra ter compreendido a importância destes factos e demonstra estar connosco.

Portanto, os nossos mais profundos votos tornem-se para nós uma oração a fim de podermos, sozinhos, fazer com que em nós mesmos a força do bem triunfe sobre a força do mal, e a força da justiça, do respeito pelo homem e do amor pátrio triunfe sobre estas forças adversas que são o ódio e a destruição, quer seja ela física ou moral. Uma oração a fim de podermos sozinhos ser os artífices e os criadores do nosso destino, responsáveis criadores do nosso futuro; que de fora ninguém interfira e nem este nos seja imposto.

Estas são as preces augurais, surgidas do ânimo polaco neste dia de Vigília, na Noite do Natal. E ao aproveitar esta vossa presença formulo, não só a vós aqui presentes, mas também à minha Pátria, a todos os seus vários componentes, a todos os polacos precisamente estes augúrios empregnados de justa solicitude e também de esperança. Os votos natalícios sempre são expressão de solicitude e de esperança; ou, quem sabe, somente são bons quando exprimem esta solicitude e esperança. E assim, no espírito de solicitude e esperança expresso à minha Pátria tais augúrios da Vigília. Desejo que a Igreja na Polónia, tal como tem feito no curso das gerações, assim também no nosso tempo decisivo seja bom ministro dos mistérios de Deus. Em tudo isto certamente um mistério da Providência divina paira sobre a nossa terra, sobre o coração dos polacos e sobre a história do mundo.

Para que a Igreja seja bom ministro dos mistérios da Providência, bom servidor dos seus irmãos e irmãs, de todos os concidadãos na Pátria e no mundo e para que em tudo isto seja guiada de modo infalível pelo coração materno da Senhora de Jasna Gora. Eis tudo.

O Natal é ao mesmo tempo a maior festa da Mãe: festa da maternidade de Maria e por isso concluo com Ela. Nas suas mãos ofereço estes augúrios, mediante Ela, Senhora de Jasna Gora, Mãe de Cristo, a todos vós aqui presentes e a toda a Pátria. Espero que oferecidos deste modo tais augúrios produzam frutos.






Discursos João Paulo II 1981 - Terça-feira, 22 de Dezembro de 1981