Discursos João Paulo II 1982 - Sábado, 23 de Janeiro de 1982

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS OFICIAIS E CADETES DA MARINHA ARGENTINA


Sala do Consistório

Sábado, 23 de Janeiro de 1982



Amadíssimos irmãos

Durante a viagem de instrução que estais a realizar, como complemento dos ensinamentos recebidos na Academia da Prefeitura Naval Argentina, quisestes vir prestar homenagem de filial adesão ao Sucessor do Apóstolo Pedro nesta Sé Apostólica. Muito obrigado pela vossa visita.

Permití-me umas breves palavras convidando-vos a reflectir sobre o tema do recente Dia mundial da paz: "A paz, dom de Deus confiado aos homens". Sim, de facto, toda a pessoa deve dar grande importância aos valores transcendentes; este da paz é um dos que a humanidade, em meio de tantas lutas e divisões existentes, deve buscar com mais intensidade. Por isso, como recordação deste encontro, exorto-vos a ser na vossa vida verdadeiros artífices de paz, a contribuir com o vosso esforço pessoal e comunitário para a construção definitiva de uma paz activamente justa e estável, tanto no seio do vosso país como no concerto internacional.

Oxalá a Mãe de Deus, por vós venerada particularmente sob a invocação de "Stella Maris", vos ajude com a sua presença maternal a viver os ideais cristãos trazidos por Seu Filho à humanidade.

Com estes votos, concedo a todos. Oficiais, Ajudantes e Cadetes, a Bênção Apostólica, que faço extensiva às vossas famílias e demais seres queridos.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS MEMBROS DA JUNTA


E DO CONSELHO MUNICIPAL DE ROMA


Segunda-feira, 25 de Janeiro de 1982



1. O início do Novo Ano oferece-nos com pontualidade a grata ocasião deste encontro, por Vós solicitado para apresentar pessoalmente ao Bispo de Roma, Pastor da Igreja universal, os vossos augúrios.

Desejo exprimir o meu cordial reconhecimento, em primeiro lugar a Vós, Senhor Presidente da Câmara, pelos votos tão gentilmente expressos e pelas palavras que me dirigistes. Agradeço aos Colegas da Junta e aos Membros do Conselho Municipal, aqui presentes juntamente convosco. A cada um apresento a minha saudação que, por vosso Intermédio, faço extensiva a todos os Colaboradores e à inteira população de Roma.

Alegra-me que a presente circunstância me consinta pronunciar um público agradecimento pela comovida participação vossa e de todos os Romanos no meu sofrimento, sobretudo por causa do dramático episódio de Maio passado e da consequente e longa hospitalização, e agora devido aos recentes e infelizmente sempre actuais acontecimentos que perturbam a minha dilecta Pátria. Nesta Roma, que a pleno direito e com alegria posso dizer "minha", encontrei outros amigos e tantas pessoas sensíveis que a todas amo, com particular referência aos que sofrem, se encontram em necessidade ou estão em busca da indefectível Verdade.

2. A vossa presença, de certo modo, traz diante dos meus olhos a imensa Cidade de Roma, tão dilatada nestes últimos tempos ao ponto de atingir quase três milhões de habitantes. Perante o meu olhar delineia-se o aglomerado da pujança urbana com os vários centros da vida de cidade: as escolas de todas as ordens e graus e os escritórios, os hospitais e as clínicas, as lojas e as oficinas de trabalho, os lugares do desporto e do lazer. Tudo é uma agitação de actividades, de iniciativas e de relacionamentos: é a "Cidade dos homens" que todos os dias se exprime no seu frenético dinamismo, e que exige programada direcção geral bem ordenada e segura.

Deve-se reconhecer que não é fácil o exercício da administração cívica, especialmente de cidades colossais como Roma; esta apresenta, além disso, a preocupação pelo fluxo contínuo e enorme de peregrinos e turistas, em busca de encontro com uma missão e um magistério universais, emergentes de tantos monumentos históricos que exigem esmerada e fiel conservação.

Devo manifestar o meu grato apreço por tudo o que foi feito e continua a ser feito pelo bem de toda a população, exprimindo o caloroso augúrio por que se possa ir ao encontro, sempre mais validamente, de tantas necessidades, de modo especial com a construção de novas e adequadas habitações. O empenho assumido pelos Administradores envolve graves responsabilidades e deve ser entendido e desenvolvido como um serviço em favor dos cidadãos.

3. Com os problemas do bem comum e da ordem pública, a vossa presença aqui evoca os atinentes à ordem moral da Cidade, que, como todas as metrópoles, ressente particularmente a presente crise social e ideológica, causada pela instabilidade cultural, pelo gigantesco fenómeno do urbanismo, pelo clima político geral. Certamente não é o caso de elencar a série dos aspectos negativos, que muitas vezes são motivo de alarmes e fonte de angústia.

Neste momento é sumamente importante realçar que se a ordem pública constitui a preocupação diária das Autoridades e dos cidadãos e portanto também — no âmbito da sua competência — de um Conselho Municipal, tanto mais o deve constituir a ordem moral, pois esta última, como atitude respeitosa dos valores inerentes à dignidade e aos superiores destinos do homem, é o fundamento necessário de todo o ordenado viver civil.

Sem a "ordem moral", uma ordenada convivência é continuamente ameaçada e inevitavelmente agredida. É a profunda convicção moral que forma a consciência dos cidadãos, orientando-os para uma convivência humana e fraterna, no mútuo respeito, na compreensão recíproca e no intercâmbio de ajuda. Assim a Cidade, por quanto grande e dispersiva, terá uma sua alma e nunca poderá ser chamada um aglomerado de indivíduos que se ignoram uns aos outros, mas sim uma grande família, cujos componentes se propõem a compreensão e colaboração recíprocas.

4. A esta altura introduz-se uma consideração propriamente religiosa, sugerida pelas Festividades Natalícias há pouco transcorridas e de modo íntimo ligadas ao início do Ano civil.

Do berço de Belém, fonte de luz na noite de todos os tempos, o Cristianismo difundiu-se lentamente por toda a terra, constituindo uma Comunidade dos crentes que tem em Roma o seu Centro visível. Surge então espontânea e lógica a pergunta, especialmente nesta época de multíplices e contrastantes movimentos: que função compete à Comunidade cristã, e em particular à Diocese e à Paróquia, na "Cidade dos homens", preocupada e às vezes atormentada por graves problemas?

A Igreja, ou seja a "Cidade de Deus", anuncia o Cristo "Caminho, Verdade e Vida" (cf. Jo Jn 14,6), luz dos povos, salvação do homem, esperança autêntica, fundamento da verdadeira fraternidade, baseada na moral do amor, objectiva e universal. A "Cidade de Deus" não contrasta com a "Cidade dos homens" — que apesar da instabilidade da sua vicissitude está integrada na história concreta da salvação — mas assume as suas realidades positivas, indica com vigor, às vezes sofrendo, os seus fermentos destruidores, eleva toda a sua estrutura a uma visão e orientação transcendentes. Em outras palavras, a Igreja com os Bispos, os Párocos, os Sacerdotes e os Leigos qualificados, tende a formar o bom cidadão, introduzindo assim a ordem pública e moral na esfera religiosa, à luz e com a força espiritual do Verbo Encarnado.

A comunidade cristã de Roma está ao serviço da indivisível realidade cívica e, embora permanecendo sempre religiosa, exprime uma presença social, cultural e civil profundamente humana.

5. Somos portanto todos responsáveis — de uma parte do cuidado espiritual, de outra do desenvolvimento cívico e social — desta Cidade singular no mundo. No plano pastoral, que compete de modo especifico à minha responsabilidade como Bispo, juntamente com o Cardeal Vigário e com os mais directos Colaboradores, é meu propósito colaborar para o bem-estar de Roma, para a maturidade da sua consciência civil, moral e religiosa, para a sua constante elevação humana e cristã, conforme uma função secular, já prevista e celebrada desde a antiguidade, como é testemunhado pelas palavras do grande Cícero que exalta: "Hanc Urbem lucem Orbis terrarum atque arcem omnium gentium" (in Catilinam, Orat. IV, c. VI, 11).

Roma, pela preciosa herança dos seus Mártires e dos seus Santos, pela sua alta vocação, pelo seu dever evangélico, como Centro do Orbe católico e Sede do Vigário de Cristo, espera um generoso esforço da parte de todos os seus filhos e sobretudo de quem está investido de pública autoridade, a fim de que a sua imagem espiritual seja conservada e incrementada, para o bem da inteira Nação italiana e de toda a humanidade.

Ao manifestar estes votos que, no respeito das funções inerentes à Cidade como Capital da Itália, enobrecem a sua dignidade e a sua missão cristã, estou certo de encontrar em Vossa Excelência, Senhor Presidente da Câmara, e nesta Administração, favorável acolhimento e consideração.

Invocando sobre o vosso trabalho, que sei certamente não fácil, as luzes e os confortos da divina assistência, imploro sobre todos os Cidadãos, por intercessão de Maria Santíssima "Salus Populi Romani" e dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo, a plenitude dos dons celestes, cujo penhor quer ser a minha afectuosa Bênção.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS BISPOS DO SENEGAL EM VISITA


«AD LIMINA APOSTOLORUM»


Terça-feira, 26 de Janeiro de 1982



Caros Irmãos no Episcopado

Vindo em visita aos túmulos dos apóstolos Pedro e Paulo, quisestes assim testemunhar uma vez mais o carácter universal da Igreja, ao qual os cristãos da África dão tanto valor, e sei que vos é grata a vossa presença comum aqui, em redor do caro Cardeal Thiandoum que está convosco nesta ocasião.

1. Essencialmente, queria encorajar-vos a prosseguir com tenacidade a obra de evangelização e de presença eficaz que tão felizmente empreendestes. Ela é indispensável para o futuro da Igreja na África. É-o igualmente para favorecer o desenvolvimento do homem africano na difícil conjuntura em que se encontra o país nos seus esforços de desenvolvimento. E mediante vós, que sois os promotores discretos deste trabalho, é a todos aqueles que, em comunhão convosco, tomam parte activa nesta missão, que desejo manifestar a minha profunda estima. Quero que eles saibam que os seus trabalhos, as suas alegrias e as suas preocupações são do conhecimento do Papa e que ele os recorda na sua oração.

2. Como para outras regiões da África, seria uma injustiça não mencionar os catequistas. Na verdade, a sua fé radiante, o seu zelo pelo Evangelho, levam-me a pensar nos primeiros cristãos, nossos pais na fé. Eles merecem muito da Igreja. Devem ser animados por uma formação adaptada à rápida evolução das mentalidades e das condições de vida do mundo de hoje. Tal formação permitir-lhes-á mostrarem-se verdadeiramente competentes tanto na cidade como na aldeia, e sobretudo, deve ser acompanhada por um aprofundamento espiritual e doutrinal.

3. Neste país, em grande parte muçulmano, procurais avivar nos cristãos o sentido da amizade, uma amizade cuja sinceridade se avalia na eficácia dos gestos que suscita. Não quero deter-me aqui sobre esta importante questão do diálogo entre cristãos e muçulmanos, a que me referi, ainda bastante recentemente, nos meus encontros com os vossos Irmãos da África do Norte. Mas em compensação, quero salientar a importância que reveste neste campo a iniciativa que tomastes em comum, no âmbito da Conferência episcopal regional da África Ocidental, criando uma comissão especial para promover este diálogo. Sei que vós começais a receber os frutos desta decisão em comum: ela consente, pouco a pouco, uma verdadeira renovação das mentalidades, que favorece a passagem benéfica da ignorância ao conhecimento da fé muçulmana, da indiferença à abertura, da rejeição ao diálogo.

4. É por isto que, depois dos catequistas, desejaria recordar todos aqueles e todas aquelas que, nas obras de ensino e de assistência social e médica, são levados, pela sua competência e a sua caridade, a ser pioneiros de tal espírito recomendado pelo Concílio Vaticano II. Ele deve, com efeito, impregnar não só os sacerdotes e os missionários, mas todos aqueles que se dedicam ao serviço do próximo, e sobretudo aqueles que oferecem a própria colaboração com o fim de tratar e educar, ou que dão uma ajuda preciosa em todos os campos da vida social, cultural ou económica.

5. Bem entendido, é a comunhão fraterna existente entre os bispos e os sacerdotes que permite à Igreja corresponder à sua missão. De igual modo devemos nutrir uma estima muito particular por cada sacerdote, e sobretudo por aquele que talvez esteja mais longe, proveniente do estrangeiro ou nativo do país, mas enviado para alguma aldeia distante. A sua alegria, e vós experimentaste-la, consiste em receber, tão amiúde quanto possível, a visita e a ajuda, material e espiritual, do seu bispo, consiste em poder falar com ele, como com um irmão, sobre o que será melhor para aqueles que lhe estão confiados.

Esta fraternidade entre sacerdotes, missionários, sacerdotes fidei donum e africanos, entre bispos e sacerdotes, não é exemplar para todos, cristãos e não-cristãos? É-o, como também o é o seu total desapego de interesses. A virtude do sacerdote consiste neste dom total de si mesmo a todos, tal como na simplicidade da sua vida, que lhe permite viver cada minuto como numa casa de vidro. Não é ainda este estilo de vida que no coração dos jovens e das jovens constitui um encorajamento a seguir as pegadas dos sacerdotes e dos religiosos que terão encontrado?

6. O meu pensamento dirige-se ainda para aqueles que se estão a preparar para a vida sacerdotal e religiosa. Oxalá possais, graças à colaboração de sacerdotes e de religiosos verdadeiramente dedicados ao progresso espiritual deles, capazes de os ajudar a formarem um juízo recto, a partir de um ensinamento humano e teológico substancial, oxalá possais preparar para o futuro uma falange sólida de que o Senegal, como a África inteira, tanto necessitam. Sei que neste campo, como noutros, apreciais a ajuda fraterna de sacerdotes e de religiosas de outros países, e faço votos por que ela continue generosamente, tanto mais que as Igrejas de onde eles provêm também elas beneficiam largamente desta permuta.

Estas palavras, demasiado breves para recordar convenientemente a riqueza da Igreja senegalesa, quereriam traduzir também o meu afecto para com todos os vossos fiéis. Penso nas famílias verdadeiramente cristãs, que fazem também dilatar o reino de Deus nas realidades quotidianas e constituem para todos um encorajamento, sendo um símbolo vivo do amor de Deus; penso igualmente nas famílias que sentem mais dificuldade em viver este ideal, mas fazem esforços para se aproximar dele; penso em todas as pessoas que sofrem física ou moralmente. Sintam, todas elas, o amor ao mesmo tempo exigente e misericordioso, da Igreja! Peço ao Espírito Santo lhes dê a sua luz e a sua força, e de todo o coração as abençoo, concedendo-vos a vós, Irmãos muito amados, a minha Bênção Apostólica.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS MEMBROS DA JUNTA REGIONAL DO LÁCIO


Quinta-feira, 28 de Janeiro de 1982



1. É-me grato poder hoje satisfazer o desejo que manifestastes por intermédio do Senhor Presidente, reservando-vos este encontro que tem carácter augural na atmosfera do novo ano, há pouco iniciado. Sabeis bem que, todas as vezes que me é dado encontrar com pessoas que estejam constituídas em autoridade, a qualquer nível, é viva a minha expectativa e grande a minha satisfação pela oportunidade que me é oferecida de conhecer mais de perto os homens e, através deles, os problemas e os factos, que podem interessar — e com muita frequência efectivamente interessam — o sector religioso-moral.

Mas hoje, evidentemente, tal satisfação e tal expectativa são maiores para mim, porquê com a vossa própria presença trazeis à minha frente a imagem bem precisa e definida da Região Lacial, de que a nossa Roma é capital. Digo "nossa", porque esta é a Cidade de que, por arcana disposição da Providência divina, sou Bispo, e pois que também a Região circunstante forma a sua área natural de posse e de expansão, interessa e solicita directamente, antes das outras Regiões, o meu pessoal empenho de Pastor. Sim, como Roma também o Lácio posso considerá-lo e chamar-lhe "nosso", no sentido de uma atenção prioritária e quase preferencial que devo ter por ele como seu Arcebispo metropolita. Pertença, por conseguinte, a de Roma e do Lácio, de ordem espiritual e eclesial, o que significa cuidado mais atento, especial solicitude e, sobretudo, mais generoso amor pelas pessoas que nele residem.

2. Mas o Lácio e Roma são também "vossos" sob um aspecto certamente diverso, mas também importante e cheio de responsabilidade. Já — como é sabido — o ordenamento regional ampliou competências e poderes, aumentando assim os relativos deveres no que se refere ao governo administrativo da Região, e a Junta, que vós constituis, tem precisas funções directivas e deliberativas em ordem ao desenvolvimento, à tutela e à promoção de determinados sectores da vida pública. Não me compete certamente a mim recordar quais são os sectores da vossa competência, nem dar indicações de carácter técnico-operativo para cada um deles. Mas também a especifica natureza pastoral do meu serviço me sugere alguma breve recomendação de ordem geral, referente ao modo, ao estilo e — diria melhor — à deontologia mesma do comportamento de quem desempenha funções públicas. Costuma-se falar, a este propósito, de um modo de agir ou de proceder que, tanto em linha objectiva, como em linha subjectiva, isto é do ponto de vista daquele ou daqueles que actuam, seja constantemente inspirado na utilidade publica.

Ora, é fácil relevar que tal "adesão" à utilidade pública é uma exigência moral, a qual faz parte da noção mais ampla do bem comum, que é inseparável e imanente em todas as formas de vida associada. Por isso, o bem comum — no qual os valores éticos e religiosos, tão profundamente sentidos pela Região Lacial, ocupam lugar certamente não secundário — deve constituir o ponto de referência e o critério orientador nas opções a fazer, nas decisões a tomar, nas obras a promover, nas necessárias reformas a empreender. O meu voto é precisamente por que esta breve referência, feita hoje por mim diante de vós, possa servir-vos de estímulo e de conforto no vosso trabalho de administradores públicos. Embora nos variados problemas e circunstâncias, embora no meio das dificuldades que todo o compromisso cívico comporta, seja a visão, ou melhor o cuidado do bem comum a regra suprema do vosso operar, para conseguir rectidão, clareza e exemplaridade. Seja este cuidado constante o elemento que transforma o vosso compromisso de administradores em serviço efectivo aos concidadãos e aos residentes na Região. É uma honra, de facto, mas também um ónus ser servidores de Roma e do Lácio!

3. Por isto me deu satisfação ouvir agora, na cordial saudação pronunciada pelo Senhor Presidente, o eco desta mesma preocupação e o empenho pelo bem comum. Segui, de facto, com não pouca atenção as referências aos problemas de emergente actualidade tais como o terrorismo, a droga, o desemprego, especialmente o dos jovens que andam à procura do primeiro emprego; e ainda a habitação e os espinhosos nós de tantas áreas urbanas e periféricas. Como não haveria de compartilhar a ansiedade, por vós manifestada, por uma situação difícil e complexa, que envolve ameaçadoramente valores fundamentais em toda a convivência civil e ordenada? O Pastor da Igreja, pela própria missão que lhe foi confiada por Cristo, não pode ficar insensível perante as aflições de tantas famílias, sobre as quais grava a incerteza do amanhã, quando não o peso de oprimentes dificuldades no presente.

Quereria, por conseguinte, renovar também nesta circunstância a certeza da sincera colaboração, com que a Autoridade eclesiástica, no âmbito da sua competência, se propõe ir em auxílio de toda a iniciativa oportuna, destinada a fazer frente às mencionadas dificuldades. Quero, todavia, salientar que o pressuposto insubstituível de qualquer acção que tenha em vista aliviar os males de que sofre a sociedade hodierna é a salvaguarda dos valores morais, que devem alimentar aquele empenho pessoal e comunitário de que antes falei.

4. A troca de bons votos, como é hábito fazer-se no início de cada ano, significa abrir reciprocamente o espírito para a amizade, para a compreensão, para a fraternidade; significa, numa palavra, sintonizar-se interiormente com valores característicos daquela fé cristã, que não só formou o costume, mas também criou — é a palavra exacta — uma civilização inteira. O nascimento do Filho de Deus, homem entre os homens, homem para os homens — é o mistério que há não muito contemplámos — teve o poder arcano de elevar a consciência dos homens aos problemas mais altos que tocam as raízes mesmas da vida, fazendo ressoar nos seus corações o anúncio angélico da glória a dar a Deus e da paz a instaurar no mundo (cf. Lc Lc 2,14).

É para este comum e precioso património de esperança e de fé que eu desejo chamar a vossa atenção, ilustres Senhores da Junta do "nosso" Lácio, a fim de serem mais fervorosos e pessoais os votos que, também para o Novo Ano, apresento a cada um de vós e, mediante vós, aos vossos filhos e às vossas esposas. Peço ao Senhor que não só vos assista sempre no vosso trabalho de administradores públicos, mas também queira abençoar os vossos lares, mantendo neles constantemente acesa a chama do amor cristão.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS MEMBROS DO TRIBUNAL


DA SAGRADA ROTA ROMANA


Quinta-feira, 28 de Janeiro de 1982



Senhor Decano
Caros Prelados e Oficiais

1. Alegro-me de a inauguração do novo ano judiciário do Tribunal da Sagrada Rota Romana me oferecer ocasião de me encontrar mais uma vez convosco, que realizais com tanto empenho e qualificada competência o vosso trabalho ao serviço da Sé Apostólica.

Este encontro tradicional apresenta este ano um aspecto particular porque no dia de hoje, como é sabido, entram em vigor as Novae Normae que — após atento estudo de revisão, já terminado, das precedentes disposições — tive por bem aprovar para o vosso Tribunal e faço votos por que possam tornar mais profícua a obra por vós realizada com preparação jurídica e espírito sacerdotal para o bem da Igreja.

Saúdo-vos com afecto e exprimo-vos o meu vivo apreço por toda a vossa obra. Em particular, dirijo a minha cordial saudação ao Senhor Decano demissionário, Mons. Henrique Ewers, e ao seu sucessor; a ambos asseguro que os recordo diante do Senhor, para que seja Ele a recompensar um pelo demorado trabalho realizado com generosa dedicação e para que assista o outro no encargo que hoje inicia.

2. Apraz-me recordar-vos a Exortação Apostólica Familiaris consortio na qual recolhi o fruto das reflexões desenvolvidas pelos Bispos durante o Sínodo de 1980.

De facto, se este recente documento se dirige a toda a Igreja para expor os encargos da família cristã no mundo de hoje, interessa de perto também a vossa actividade, que é desempenhada sobretudo no âmbito da família, do matrimónio e do amor conjugal. O peso do vosso cargo mede-se pela importância das decisões, que vós sois chamados a tomar com sentido de verdade e de justiça, diante do bem espiritual das almas, em referência ao julgamento supremo de Deus: solum Deum prae oculis habentes.

3. Confiando a cada um de vós esta missão eclesial, Deus pede que prossigais assim, através da vossa obra, a obra de Cristo, prolongueis o ministério apostólico com o exercício da missão a vós confiada e dos poderes a vós transmitidos; porque vós trabalhais, estudais e julgais em nome da Sé Apostólica. O exercício de tais actividades, portanto, deve ser adaptado à função dos juízes, mas abrange também a dos seus colaboradores. Neste momento penso no cargo, tão difícil, dos advogados, que prestarão aos seus clientes serviços melhores na medida em que se esforçarem por ficar dentro da verdade, do amor da Igreja e do amor de Deus. A vossa missão, portanto, é primeiro que tudo serviço do amor.

Deste amor é o matrimónio realidade e sinal misterioso. "Deus criou o homem à Sua imagem e semelhança: chamando-o à existência por amor, chamou-o ao mesmo tempo ao amor. Deus é amor e vive em si mesmo um mistério de comunhão pessoal de amor" (Familiaris consortio FC 11),

Sinal misterioso, o matrimónio é-o como sacramento: um laço indissolúvel une os esposos, como num só amor estão unidos Cristo e a Igreja (Ep 5,32-33).

Segundo o desígnio de Deus, o matrimónio encontra a plenitude na família, de que é origem e fundamento; e o dom mútuo dos esposos reverte no dom da vida, ou seja na geração daqueles que, amando os seus pais, lhes redizem o seu amor e exprimem a profundidade do mesmo (Familiaris consortio FC 14).

O Concílio viu o matrimónio como pacto de amor (Gaudium et spes GS 48). Este pacto "supõe a escolha consciente e livre, com que o homem e a mulher acolhem a íntima comunidade de vida e de amor, querida pelo próprio Deus" (Fam. cons., 11). Falando aqui de amor, nós não podemos reduzi-lo a afectividade sensível, a atracção passageira, a sensação erótica, a impulso sexual, a sentimento de afinidade e a simples alegria de viver.

O amor é essencialmente dom. Falando de acto de amor, o Concílio supõe um acto de doação, único e decisivo, irrevocável como o é um dom total, que deseja ser e continuar sendo mútuo e fecundo:

4. Para compreender plenamente o sentido exacto do consentimento matrimonial, havemos de deixar-nos iluminar pela revelação divina. O consentimento nupcial é um acto de vontade que significa e inclui um dom mútuo, que une os esposos entre si e ambos os liga aos seus futuros filhos, com os quais eles constituem uma só família, um só lar e "uma Igreja doméstica" (Lumen gentium LG 11).

Visto assim, o consentimento matrimonial é um compromisso num vínculo de amor em que, no mesmo dom, se exprime o acordo das vontades e dos corações para realizarem tudo o que é e significa o matrimónio, para o mundo e para a Igreja.

5. Mas há mais. Para nós, o consentimento nupcial é acto eclesial.Funda a "Igreja doméstica" e constitui uma realidade sacramental em que se unem dois elementos: um elemento espiritual como comunhão de vida na fé, na esperança e na caridade; e um elemento social como sociedade organizada, hierarquizada, e célula viva da sociedade humana, elevada à dignidade do "sacramentum magnum", a Igreja de Cristo, na qual essa sociedade se insere como Igreja doméstica (Lumen gentium LG 1). De maneira que, na sociedade fundada no matrimónio, é necessário reconhecer em certa medida a mesma analogia da Igreja total com o mistério do Verbo encarnado, onde numa só realidade se unem o divino e o humano, a Igreja terrestre e a Igreja em posse dos bens celestiais, uma sociedade ordenada hierarquicamente e o Corpo místico de Cristo (Lumen gentium LG 8).

6. O Concílio sublinhou o aspecto da doação. E assim convém determo-nos aqui um momento, para recolher mais em profundidade o significado do acto de dar-se em oblação total com um consentimento que, se colocado no tempo, assume um valor de eternidade. Um dom, se quer ser total, deve ser sem arrependimento e sem reservas. Por isso, no acto com que a doação se exprime, devemos aceitar o valor simbólico dos compromissos tomados. Aquele que se dá fá-lo com a consciência de obrigar-se a viver a sua dádiva ao outro; se ele ao outro concede um direito, é porque tem a vontade de dar-se; e dá-se com a intenção de obrigar-se a realizar as exigências do dom total, que livremente fez. Se sob o aspecto jurídico estas obrigações são mais facilmente definidas, se são expressas mais como um direito que se cede do que como uma obrigação que se assume, é também verdade que o dom não é senão simbolizado pelas obrigações de um contrato, que exprime a nível humano as obrigações inerentes a todo o consentimento nupcial verdadeiro e sincero. Assim se chega a compreender a doutrina conciliar, de maneira que lhe consente recuperar a doutrina tradicional para a colocar numa perspectiva mais profunda e ao mesmo tempo mais cristã.

A vossa missão ao serviço do amor consiste em reconhecer o pleno valor do matrimónio

Todos estes valores são não só admitidos, aperfeiçoados e definidos pelo direito eclesiástico, mas também defendidos e protegidos. Isto constitui, por outro lado, a nobreza da sua jurisprudência e a força das normas que ela aplica.

7. Ora, não é puramente imaginário, sobretudo hoje, o perigo de ver posto em discussão o valor global desse consentimento, por alguns elementos — que o formam, dele são o objecto ou exprimem a realização — serem cada vez mais frequentemente distintos ou mesmo separados, segundo a atenção que lhes dispensam especialistas em campos diversos ou a especificidade própria das diversas ciências humanas. Seria inconcebível que o consentimento enquanto tal fosse recusado por ter sobrevindo falta de fidelidade. Sem dúvida o problema da fidelidade constitui muitas vezes a cruz dos esposos.

O vosso primeiro encargo ao serviço do amor será, portanto, reconhecer o pleno valor do matrimónio, respeitar do melhor modo possível a sua existência, proteger aqueles que ele uniu muna só família. Será só por motivações válidas, por factos provados, que se poderá pôr em dúvida a sua existência, e declarar a sua nulidade. O primeiro dever que sobre vós pesa é o respeito do homem que deu a sua palavra, expressou o seu consentimento e fez assim dom total de si mesmo.

8. Indubitavelmente, a natureza humana em seguida ao pecado foi perturbada; ferida sim, ela não ficou todavia pervertida; está curada pela intervenção d'Aquele que veio salvá-la e elevá-la até à participação da vida divina. Ora, na verdade, seria demoli-la julgá-la incapaz de um compromisso verdadeiro, de um consentimento definitivo, de um pacto de amor que exprime o que ela é, de um sacramento instituído pelo Senhor para curá-la, fortificá-la e elevá-la por meio da Sua graça.

E assim, então, é no quadro da perspectiva eclesial do Sacramento do matrimónio que são colocados o progresso da ciência humana, as suas investigações, os seus métodos e os seus resultados. A continuidade dos esforços põe ainda em relevo a fragilidade de algumas das suas conclusões anteriores ou de hipóteses de trabalho de que não se puderam conservar as apreciações.

Por tais motivos o Juiz, ao dar a sentença, fica definitivamente o responsável por aquele trabalho comum, de que falei no principio. A decisão deverá tomar-se na perspectiva global já recordada, que a exortação pastoral Familiaris consortio quis pôr em mais clara luz.

Enquanto está a decorrer o exame sobre a validez de um vínculo matrimonial, e se procura a existência de razões que possam levar à eventual declaração de nulidade, o juiz está ao serviço do amor, submetido ao direito divino e atento a qualquer conselho ou qualquer perícia séria. Seria extremamente danoso se afinal decidisse um ou outro perito, com o risco de ser julgada a causa segundo um só dos seus aspectos.

Daqui brota a necessidade de reconhecer no juiz o peso da sua função, a importância da sua responsável autonomia de juízo, a exigência do seu consentimento eclesial e da sua solicitude pelo bem das almas. E não porque em matéria matrimonial uma sentença pode sempre ser impugnada por novas graves motivações que sobrevenham, não por isso se sentirá ele incitado à aplicar menos diligência em prepará-la, menos firmeza em exprimi-la e menos coragem em emiti-la.

9. A esta luz, há sempre maneira de apreciar cada vez mais a particular responsabilidade de defensor vinculi. O seu dever não é definir a todo o custo uma realidade inexistente, ou opor-se por todos os modos a uma decisão fundada, mas, como se exprimiu Pio XII, ele deverá fazer observações pro vinculo, salva semper veritate (Pio XII, Alloc. ad Auditores Rotae S. R., em AAS, n. 36, 1944, 285). Notam-se por vezes tendências que infelizmente forcejam por afirmar de novo o papel dele. A mesma pessoa, por outro lado, não pode exercitar duas funções contemporaneamente, ser juiz e ser defensor do vínculo. Só uma pessoa competente pode assumir tal responsabilidade; e será grave erro considerar esta de menor importância.

10. O Promotor iustitiae, solícito do bem comum, actuará também ele na perspectiva global do mistério do amor vivido na vida familiar; ao mesmo tempo, se ele sentir o dever de apresentar um pedido de declaração de nulidade, fá-lo-á impelido pela verdade e pela justiça; não para condescender, mas para salvar.

11. Na mesma perspectiva da globalidade da vida familiar, por fim, é necessário fazer votos por uma cada vez mais activa colaboração dos advogados eclesiásticos.

A actividade deles deve estar ao serviço da Igreja; e portanto deve ser vista quase como um ministério eclesial. Deve ser um serviço ao amor, que requer dedicação e caridade sobretudo em favor dos mais desprovidos e dos mais pobres.

12. Em conclusão deste encontro; desejo exortar-vos a colaborar, "cordial e corajosamente, com todos os homens de boa vontade, que vivem com a sua responsabilidade ao serviço da família" (Familiaris consortio FC 86), de modo especialíssimo vós, que deveis reconhecer a base e o fundamento dela no consentimento nupcial, sacramento de amor, sinal do amor que liga Cristo à Sua Igreja, Sua Esposa, e que é, para a humanidade inteira, uma revelação da vida de Deus e a introdução na vida trinitária do Amor divino.

Ao invocar o Senhor para vos acompanhar na vossa missão ao serviço do homem salvo por Cristo, nosso Redentor, concedo-vos do coração a minha bênção propiciadora da graça do Deus do Amor.




Discursos João Paulo II 1982 - Sábado, 23 de Janeiro de 1982