Discursos João Paulo II 1988
: Amados irmãos e irmãs em Jesus Cristo,
queridos Brasileiros,
1. Saúdo-vos cordialmente, neste encontro, já tradicional, de início da Quaresma, exortando-vos à penitência, que produza em todos frutos de vida mais cristã e de caridade mais efetiva.
A Quaresma deve marcar a vida pessoal de cada batizado e das comunidades, mediante a escuta da Palavra, a reflexão, a oração e a renúncia, para uma resposta generosa ao apelo de Deus, expresso por Isaías: “Sabeis qual é o jejum que eu aprecio?... É repartir o pão com o faminto, dar abrigo aos infelizes sem casa... Então invocarás o Senhor e Ele te atenderá” (Is 58,6 Is 58,7 Is 58,9). Esta Quaresma no Ano Mariano vai decorrer sob o olhar maternal de Nossa Senhora, Mãe de misericórdia, Mãe de Jesus, o Salvador. Ele veio anunciar o Reino de Deus, chamar os homens à conversão e proclamar o “mandamento novo”; e quis ser identificado nos pobres e naqueles que sofrem ou são perseguidos (Cfr. Mt 25,40).
Em Cristo tornou-se visível a misericórdia de Deus e o seu desígnio de que os homens todos formassem uma só família, tratando-se uns aos outros com amor fraterno: “Vós sois todos irmãos” (Ibid. 23, 8). E para isto é proporcionada a todos a força do Mistério Pascal. Quaresma é caminho para a Páscoa, para a liberdade de filhos de Deus. Esta se alcança com a libertação, do pecado e a justificação, pela graça da fé e dos sacramentos da Igreja.
2. Abre-se hoje mais uma Campanha da Fraternidade, na Igreja que está no Brasil, empenhada na sua missão de evangelizar, contribuindo para a promoção humana, por caminhos convergentes, guiada pelos seus Pastores, como mestres e educadores da fé do povo, sinais e construtores de unidade na caridade. A Campanha visa a animação pastoral da Quaresma, centrada no tema: “a Igreja e o Negro”. Trata-se de larga faixa da população brasileira, comemora-se neste ano a chamada “lei áurea” e há uma real problemática que merece solicitude pastoral, inspirada por critérios evangélicos, aderente e fiel à doutrina da Igreja acerca da dignidade da pessoa humana e da promoção dos seus direitos e tendo em vista o bem comum.
Neste campo, a Igreja repetiu a sua doutrina de sempre no Concílio Vaticano II, nomeando entre uma série de “coisas infames” a escravidão, contrária ao Evangelho, que anuncia e proclama a liberdade para todos os homens, sem exceção; e explica que a escravidão tem a sua origem última no pecado e que têm a mesma origem os fermentos de ódio e de divisão, que alimentam os preconceitos raciais e proliferam em situações conflituosas e em discriminações e emarginações (Cfr. Gaudium et spes GS 27 Gaudium et spes GS 29).
Ora, tudo isto é contrário aos direitos e deveres imperscritíveis da pessoa humana; e não deixa de fazer com que indivíduos, famílias e grupos se vejam preteridos, deixados à margem do caminho que leva ao desenvolvimento e bem-estar, por motivo de raça ou cor. Como tenho feito alhures, quero aqui proclamar: em toda a parte, e mais ainda dentro da mesma pátria comum, todos os homens e mulheres são iguais em dignidade, diante de Deus; e nas estruturas, hão de dispor de acesso igual à vida econômica, cultural e social, participando realmente no bem comum.
Todos os que procuram sincera e cristãmente contribuir para a solução de problemas em aberto neste âmbito, tanto os diretamente interessados como os demais, precisam de dialogar, olhos nos olhos; e, reconciliados, empenhar-se, solidária e fraternalmente na obra pacífica da justiça e do desenvolvimento do homem todo e de todos os homens, no progresso. Este não consiste na riqueza amada por si mesma, desfrutada só por alguns; mas sim, na economia ao serviço do homem, no pão quotidiano, por todos granjeado e a todos distribuído, “como fonte da fraternidade e sinal da Providência divina” (Pauli VI Populorum progressio PP 86).
3. A “imagem” do Criador em todos refletida, a dignidade humana e a condição de filhos de Deus a todos oferecida, com o amor evangélico, têm como consequência e exigência direta e imperativa o respeito de cada ser humano, com os seus direitos. E não há distância e, menos ainda, oposição, entre a vontade de justiça e o amor do próximo, com o amor de Deus sobre todas as coisas.
O importante é não olhar para trás, mas para a frente, dar a mão ao próximo (Cfr. Luc Lc 10,25), para caminhar juntos, como irmãos, em comunhão, no mesmo sentido: no sentido da construção de uma sociedade mais justa e fraterna, onde haja lugar para todos. “Sede misericordiosos, como é misericordioso o vosso Pai celeste” (Ibid. 6, 36).
Exorto-vos, irmãos e irmãs, a deixar-vos conduzir pelo Espírito de Deus, a romper com cadeias de pecado e com o egoísmo. Partilhai e dai, com espírito de solidariedade e generosamente, para que brilhe a vossa caridade; e “vendo as vossas boas obras, todos glorificarão o vosso Pai que está nos céus” (Cfr. Matth Mt 5,16).
Que nesta Quaresma, seguindo o exemplo e por intercessão de Maria, Nossa Senhora Aparecida, se fortifique a nossa fidelidade ao Senhor e a nossa vida testemunhe a obediência aos seus desígnios: “Vós sois todos irmãos!”. Com esta prece, pela comunidade multirracial do Brasil, envolvendo em igual estima a todos, vos abençoo: Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Amém!
Vaticano, 18 de Fevereiro de 1988
Abril de 1988
Veneráveis e queridos Irmãos no Episcopado,
1. Sede bem-vindos a este encontro, para mim momento de grande alegria em Cristo, nossa Páscoa. Agradeço as palavras delicadas que o Senhor Presidente da vossa Conferência Episcopal de Moçambique me dirigiu, interpretando os sentimentos de todos, das cristandades confiadas aos vossos cuidados pastorais e, nalguns aspectos, de toda a dilecta população moçambicana.
Esta vossa peregrinação quinquenal aos lugares assinalados pelos vestígios da presença e do sangue dos Apóstolos – como a de todos os outros Bispos do mundo – testemunha a vossa união com a Igreja de Roma, no inteiro Corpo místico de Cristo, e a vossa comunhão com o Sucessor de Pedro. Muito obrigado! Mas ela é também momento privilegiado para avivar o interesse e afecto fraternal de toda a Comunidade católica para com a porção do único rebanho do Senhor, novo Povo de Deus peregrino que, em Moçambique vai encontrando, no meio das tentações e das tribulações, o conforto da graça de Deus prometida, para que, também aí, a Igreja “permaneça Esposa digna do seu Senhor” (Cfr. Lumen Gentium LG 8).
2. Vindes encontrar-vos também com os imediatos colaboradores do Bispo de Roma, nos diversos Organismos da Santa Sé, exprimindo, de forma bem tangível os vínculos profundos que a todos nos unem, não obstante as distâncias geográficas e as diferenças culturais. Esta união radica-se exactamente no Mistério pascal que estamos a celebrar: o mistério da morte e da ressurreição do Senhor. Por ele o Povo messiânico, que caminha em direcção à cidade futura e permanente (Cfr. Hebr He 13,14), foi resgatado; e, como Igreja, começou a ser “para toda a humanidade um germe fecundíssimo de unidade, de esperança e de salvação” (Lumen Gentium LG 9), na sua missão, de fazer penetrar e instaurar na história dos homens o Reino de Deus, que transcende os tempos e as fronteiras.
É conhecido e por vós foi-me confirmado que, na Igreja que está em Moçambique, não obstante a luz da esperança pascal, há ainda marcas de sofrimento. Já oferecemos tudo isso unico ao Sacrifício da Eucaristia concelebrada, ponto mais alto de encontro e comunhão na vossa visita “ad limina Apostolorum”. O testemunho que dais e de que sois portadores, da parte das queridas cristandades moçambicanas, é tanto mais apreciado, quanto as sabemos pobres e necessitadas praticamente de tudo. Apesar disso, elas têm sabido “renovar-se pela acção do Espírito Santo”, graças a muita generosidade das suas forças vivas, para manter a sua qualidade de sinal do Absoluto de Deus.
3. Este ano representa para vós um ano de nova esperança, que já começou a marcar e a polarizar as vossas actividades pastorais: é o ano da visita pastoral do Sucessor de Pedro. Confesso que, também da minha parte, nutro idênticos sentimentos e expectativa; e praza a Deus que os nossos anelos se realizem, para o maior bem e alegria de todos os moçambicanos, da Igreja e da família humana. Nesta, de facto, vai crescendo a convicção de “uma interdependéncia radical” e da exigência de uma solidariedade sem fronteiras, que a assuma como imperativo ético (Sollicitudo Rei Socialis SRS 26).
4. Cada um de vós, amados Irmãos, é portador daquilo que sente e vive uma Igreja particular: das consolações do Senhor, das alegrias e esperanças, assim como das tristezas e angústias dos homens que a integram. E em conjunto, como concretização local da Colegialidade dos Bispos, dizeis-vos profundamente confiantes n’Aquele que nos dá a força, e que é fiel à promessa que nos féz: “Eu estou convosco todos os dias até ao fim do mundo” (Mt 28,20).
Ao mesmo tempo, porém, nos vossos Relatórios, preparados com esmero em função desta Visita, mostrais-vos preocupados com uma quebra generalizada dos valores espirituais e morais na vossa pátria, resultante, prevalentemente, da introdução não gradual de mutações profundas, em plano social, e de situações de insegurança; quebra a que não se pode obviar prontamente, pela falta de oportunidades, meios e pessoal indispensável para a defesa e promoção desses valores na estima comum, mediante o labor pastoral, a educação e a contribuição para um desenvolvimento ordenado.
Entre as múltiplas concretizações desta crise, referíeis: a perda do sentido do valor supremo e sagrado que é a vida humana, com o aparecimento de uma mentalidade de violência e mal-estar, que se repercute na família, na escola, no trabalho e no quotidiano; isso incide negativamente, sobretudo nos jovens, que, perplexos, desorientados e confusos, se interrogam, ou então “se evadem” do condicionalismo real e da perspectiva do futuro, abdicando do generoso empenho em traçar e construir, segundo as coordenadas do bem e da verdade, um próprio projecto de vida.
Nesta conjuntura, que se apresenta à vossa solicitude pastoral e à sensibilidade da Igreja universal, “conservemos-nos firmemente apegados à nossa esperança... e atendamos uns aos outros, para nos estimularmos na caridade” (He 10,23), e não se perturbe o nosso coração, nem desfaleça (Cfr. Io Jn 14,27).
5. Ao comungar os vossos cuidados de Pastores, como cultores de Deus, pela oração, e dos Seus direitos, pela vigilância do rebanho, como anunciadores de Jesus Cristo e da sua mensagem e fautores dos valores espirituais e morais e, ainda, como pais extremosos e educadores na fé, ao mesmo tempo que irmãos acolhedores de cada pessoa humana, gostaria de analisar convosco, reflectir e orar sobre as causas remotas e próximas, mais ou menos detectáveis e mais ou menos removíveis, de tal conjuntura. Limito-me a tocar algumas.
A mais notória é a situação conflituosa, que há tempos avassala a vossa pátria, com o seu cortejo de morte, desolação, carestia, nudez, fome e doença, que vêm juntar-se a males endémicos, ainda não totalmente debelados; há, depois, um condicionalismo que torna ineficazes, se não impossíveis, as tentativas e esforços de boas vontades para socorrer os necessitados. Quero fazer meu o pedido que tantas vezes tendes feito: que se procure, se favoreça e se cultive a paz, com todos os meios ao alcance(cf. “Allocutio ad Nationum apud Sanctam Sedem Legatos”, 8, die 9 ian. 1988: Insegnamenti di Giovanni Paolo II, XI, 1 [1988] 57-58).
Pensando prevalentemente no bem do homem moçambicano, quero aqui lembrar que a paz autêntica e a segurança colectiva, indispensável para o desenvolvimento de um povo, são inseparáveis da justiça, da liberdade rectamente entendida e da verdade, a ditarem a sintonia de esforços para construir as bases do desenvolvimento do homem todo e de todos os homens.
E este pedido, tão sincero quanto respeitador, amplia-se no apelo formulado ao mundo inteiro na Encíclica “Sollicitudo Rei Socialis”: “Os países de independência recente, que se esforçam por adquirir uma própria identidade cultural e política e que teriam necessidade da contribuição eficaz e desinteressada dos países mais ricos e desenvolvidos, encontram-se implicados – algumas vezes mesmo compelidos – nos conflitos ideológicos, que geram inevitáveis divisões no seu seio... impedindo o direito de cada povo à própria identidade, à independência e à segurança, como também à participação, na base da igualdade e da solidariedade, e à fruição dos bens destinados a todos os homens” (Sollicitudo Rei Socialis SRS 21).
6. Neste contexto de solidariedade sem fronteiras, penso e rezo também pelos milhares de desalojados e refugiados, que são objecto da vossa preocupação e caridade pastoral. Ao encorajar-vos nos esforços generosos, que sei não poupais para “ser tudo para todos”, como tenho feito outras vezes – nomeadamente, aquando da visita do Senhor Cardeal Roger Etchegaray ao vosso país – desejo apelar, para que a Comunidade internacional atenda aos problemas em aberto neste campo e propicie a ajuda humanitária possível a esses nossos irmãos. O seu sofrimento é sinal, se não causa, dos desequilíbrios persistentes na Família humana, que a todos interpelam, com exigências de carácter ético (Sollicitudo Rei Socialis SRS 19).
Com efeito, quando, por um lado, subsistem dificuldades, ou mesmo a impossibilidade de organizar e levar ajuda urgente, com bens de primeira necessidade, e de estabelecer programas de assistência sanitária, educacional, social e moral para tais irmãos, e, por outro lado, se verifica que o comércio e circulação de armas vence todos os obstáculos e transpõe todas as fronteiras, há motivos para interrogar-se (Sollicitudo Rei Socialis SRS 24).
7. Outra realidade extremamente importante, a que dispensais o melhor do vosso zelo apostólico, é a família, lugar privilegiado de cultivo, preservação e transmissão de valores, com um papel único na formação cultural. Convosco partilho a felicidade e as angústias das famílias moçambicanas, neste momento que atravessam.
Peço a Deus que o respeito sem indiferença, a generosidade espontânea e o espírito de solidariedade e de compreensão, como valores tradicionais, corroborados pelos valores cristãos, em breve possam permitir à família moçambicana reencontrar-se e reencontrar os vínculos sagrados em que se apoia; e o ambiente que a defenda e favoreça, como formadora das pessoas que integram a grei nacional, a ser cada vez mais iluminada pelos autênticos valores éticos, espirituais e da fé em Deus.
No acerto da vossa pastoral, evangelicamente solícita pelos mais carentes e desfavorecidos, sei que vos preocupais, ainda no campo familiar, por defender os pobres e a sua dignidade pessoal; e não deixais de ter presente o desiderato do Concílio de fazer das famílias cristãs outras tantas “igrejas domésticas”, e como que o primeiro “seminário”, onde os que sobem na vida se possam confrontar com o plano e iniciativa de salvação de Deus, que os engloba; confrontar-se com o amor de Cristo que lhes pergunta, hoje como ontem: “E vós, quem dizeis que Eu sou?” (Mt 16,15). E um tal confronto dar-se-á, normalmente, num clima de fé, de caridade e de oração que se respire no lar.
8. Notei, com satisfação, que depois da vossa anterior visita “ad limina” e em particular nestes últimos tempos, tem havido um interesse crescente dos jovens pela religião. Isto é motivo de agradecimento ao Senhor e de esperança para o futuro; como é também momento favorável para atender, compreender e acolher os seus anseios por ideais nobres, que satisfaçam o desejo que os domina de serem livres sem desregramentos, úteis sem instrumentalização e protagonistas na busca do bem comum sem egoísmo, como construtores de uma sociedade mais humana, mais justa e fraternal, onde haja lugar e voz para todos.
Sei que desejais ajudar os queridos jovens moçambicanos – o futuro da Nação por que eles anelam – a cultivar e viver a própria dignidade de homens, conscientes e responsáveis, como pessoas, respeitadores da hierarquia dos valores – mormente do valor da vida, em todos os momentos e circunstâncias – preocupados com a autêntica solidariedade fraterna entre todos os seus semelhantes: “vós sois todos irmãos” (Mt 23,8).
Para tudo isto, há que ajudar esses queridos jovens a descobrir as riquezas da Boa Nova de Jesus Cristo. A este propósito, sabemos que o reconhecimento dos direitos dos homens, incluídos no mistério da Redenção, se obtém pelo reconhecimento dos direitos de Deus. E viria ao caso, renovar aqui o apelo que lancei ao mundo com a Mensagem para o Dia Mundial da Paz deste ano, em favor do direito à liberdade religiosa, que é “a medida de todos os direitos fundamentais, enquanto concerne à esfera mais íntima do homem”. Por isto mesmo escrevia, na aludida Mensagem: “A recta ordem social exige que todos – pessoalmente e em comunidade – possam professar a sua convicção religiosa, com respeito pelos outros” (Ioannis Pauli PP. II “Nuntius ob diem ad pacem fovendam dicatum pro a. D. 1988”, 1, die 8 dec. 1987).
9. Nesta mesma ordem de ideias, seria útil, sem dúvida, fazer aqui a história da evangelização na vossa pátria; seria o momento oportuno para render homenagem aos missionários e fazer o “ponto da situação”: em que fase está a levedação da “massa”, pelo “fermento” do Reino, e o enraizamento e crescimento do “grão de mostarda” no humus moçambicano, aquilatar, enfim, a presença autêntica do mesmo Reino nesta parcela do Continente africano. O tempo não no-lopermite.
Os números fornecidos nos Relatórios dão motivo para nós agradecermos a Deus; mas não deixam, por outro lado, de trazer-nos à mente a hora de realismo do Mestre, quando dizia aos “seus”, em dois momentos: “Os campos estão brancos para a ceifa” (Jn 4,35); mas “a messe é grande e os trabalhadores são poucos. Pedi, pois, ao dono da messe que mande trabalhadores para a sua messe” (Lc 10,2). Vemos a quase totalidade dos Pastores e alguns Sacerdotes autóctones, as Religiosas originárias do país, os dedicados Catequistas, Animadores das comunidades e Leigos comprometidos nos movimentos a tentarem animar cristãmente as actividades seculares; mas tendes diante de vós a tarefa grandiosa de recrutar e formar os obreiros da constante renovação vital e da expansão da Igreja evangelizada.
Ao partilhar a vossa esperança e estimular o vosso empenho, quero fazer minha, aliás, de toda a Igreja, a vossa aspiração: que possais contar em breve com novas levas de missionários – Sacerdotes, Religiosas e Leigos – imbuídos da indispensável solicitude, uns para com os outros, dos membros do único corpo das Igrejas (Cfr. 1Co 22,25), ou da realidade da Igreja-comunhão, acentuada pelo Sínodo dos Bispos, quando comemorou o vigésimo aniversário do Concílio Vaticano II.
Entretanto, sei que estais muito empenhados em utilizar e valorizar a “prata de casa”; aplicados em dar uma cuidada formação aos Catequistas e Animadores das “comunidades”, que foram surgindo para suprir à escassez de Sacerdotes. Nestas “comunidades de base”, a maior responsabilidade dos leigos e os novos ministérios têm-se mostrado assaz úteis e com muitos aspectos positivos. No entanto, permanece indispensável o ministério dos Sacerdotes. Por isso, há-de manter-se a abertura e prosseguir o empenho para “dotar-se”, o mais breve possível, com os “seus” Sacerdotes: assumidos dentre os homens dessas “comunidades”; mas como os quer Cristo e a Igreja, “constituídos” em favor dos homens nas coisas respeitantes a Deus (Cfr. Heb He 5,1).
10. Apesar de poucos, procurais inserir-vos, fraternalmente com os demais, nas iniciativas de desenvolvimento, com um serviço desinteressado. Calaram fundo no meu coração as vossas confidências sobre essa participação na grande batalha contra a fome, a nudez, as doenças, os sofrimentos morais e o analfabetismo, tornada bem árdua, por vezes, por inclemências ou flagelos naturais. É-me grato acentuar aqui convosco a benemerências desse serviço à vida e à qualidade de vida; e confio-vos transmitir a todos os empenhados nessa entreajuda fraterna que o Papa aprecia muito o seu testemunho de caridade cristã e o sacrificio e rasgos de generosidade que ele comporta.
E praza a Deus que esta solidariedade à luz da fé, com o seu carácter de gratuidade, de perdão e de reconciliação, arraste cada vez mais quem vê essas “boas obras” a reconhecer e a glorificar Deus e à prática das virtudes que favorecem a serena convivência; e crie a união para construir, dando e recebendo, uma sociedade nova e um mundo melhor, onde a paz, assente na liberdade e na justiça, a todos irmane num esforço conjugado pelo autêntico desenvolvimento humano.
E de outros pontos faço tesouro no coração e oro pelo bom êxito do que estais a fazer. Posso nomear:
– o diálogo com todos os que crêem em Deus;
– o papel dos abnegados membros dos Institutos de vida consagrada, sobretudo das Religiosas: das contemplativas, que tanto nos ajudam; e das que asseguram a presença da Igreja nos campos da saúde, da educação e da promoção social;
– a missão dos Leigos, para tornarem o mundo mais conforme com os desígnios do Criador e com a dignidade do homem;
– a formação para o Sacerdócio e formação continuada do Clero etc.
11. Agradeço-vos, amados Irmãos e, convosco, agradeço ao Senhor a generosa dedicação, como Pastores da Igreja em Moçambique. No vosso quotidiano labor pastoral estou-vos muito presente, com afecto em Cristo e com a minha oração.
E, concluindo, repito: Conservemo-nos firmemente apegados à nossa esperança, atendendo uns aos outros, para nos estimularmos à caridade, porque é fiel o que nos fez a promessa: “Eu estarei convosco todos os dias” (Mt 28,20).
E que neste Ano Mariano, a Bem-aventurada Virgem Maria, “Esperança nossa”, esteja cada vez mais “na casa” dos discípulos do Seu Filho moçambicanos – tão devotos de Nossa Senhora – e para todos seja sempre “Mãe de misericórdia”: a Mãe que lhes foi dada aos pés da Cruz.
No clima da Páscoa, saúdo nas vossas pessoas as vossas Comunidades diocesanas e todos os Moçambicanos, com as palavras do divino Ressuscitado: “A paz esteja convosco!”, ao dar-vos, como penhor de comunhão, a Bênção Apostólica.
Setembro de 1988
Excelentíssimo Senhor Presidente,
Excelentíssima Senhora,
Excelências, minhas Senhoras e meus Senhores,
1. AGRADEÇO, ANTES DE MAIS, as calorosas e deferentes palavras de A boas-vindas que o Senhor Presidente acaba de me dirigir, em seu nome pessoal, do Governo e de todo o Povo moçambicano. Agradeço também a presença de Vossa Excelência e a dos mais altos Responsáveis da Nação no aeroporto, à minha chegada. É com grande alegria que venho a Moçambique e que visitarei este Povo, cuja hospitalidade e cordialidade me eram conhecidas e agora já me estão bem patentes.
Na pessoa de Vossa Excelência, desejo saudar cordialmente todos os Moçambicanos, do Rovuma ao Maputo, particularmente os mais pobres e os que mais sofrem no corpo ou no espírito.
Encontro-me hoje aqui, Senhor Presidente, aceitando o amável convite de Vossa Excelência e o dos meus Irmãos no Episcopado. Agradeço de maneira simples, mas sinceramente, com um muito obrigado! Muito obrigado a todos!
2. Venho até vós como Bispo de Roma, como Vigário do Príncipe da Paz, Jesus Cristo, para Quem todo o homem é um irmão que deve ser amado, respeitado e amparado. É por conseguinte uma visita pastoral, como as que tenho vindo a fazer a tantos outros povos, que amo com e no amor de Cristo. As minhas palavras e intervenções serão dirigidas em primeiro lugar aos fiéis da Igreja Católica, para os confirmar e estimular no empenho consciente de viverem como filhos de Deus, comprometidos nesta sociedade, mas elas dirigem-se também a todos os Moçambicanos, sem distinção, para lhes repetir a mensagem: o amor existe; ninguém pode viver bem sem amor; é possível a civilização do amor.
Rica da sua experiência em humanidade, a Igreja vê no homem o seu caminho. E em nome e na fidelidade a Cristo Redentor, ela quer contribuir para o desenvolvimento integral e autêntico do mesmo homem, também aqui em Moçambique, como tem feito, está a fazer e continuará a fazer em todos os países do mundo, consoante isso lhe é permitido. E essa sua contribuição é para benefício de todos e de cada um, pois a Igreja considera cada pessoa um valor e cada comunidade um corpo; e que ambas hão-de ser libertadas e nunca oprimidas. E a mesma Igreja vai haurir a motivação e a perseverança para tanto, na “semelhança” divina do homem e na sua vocação para a imortalidade (Sollicitudo Rei Socialis SRS 29).
3. Sei, Senhor Presidente, por o ter ouvido de Vossa Excelência, aquando da sua visita ao Vaticano, em Abril do ano passado, e pelo que me referiu o meu Enviado especial em Agosto do mesmo ano – como já ouvira do seu ilustre e saudoso predecessor Presidente Samora Machel – que na pátria moçambicana persiste a guerra, com todas as suas consequências de sofrimento, luto e desolação. Muitos homens, mulheres e crianças sofrem por não terem casa onde habitar, alimentação suficiente, escolas onde se instruir, hospitais para tratar a saúde, igrejas onde se reunir para rezar e campos onde empregar as forças de trabalho. Muitos milhares de pessoas são forçadas a deslocar-se à procura de segurança e de meios para sobreviver; outras refugiam-se nos países vizinhos. Face a este lamentável condicionalismo, quando se apresentou a ocasião, não tenho deixado de repetir: “Não à violência e sim à paz!”. E contaram sempre com o meu apoio as diligências dos meus Irmãos Bispos moçambicanos em favor da paz. Desejo aqui formular votos de que o sentir profundamente humanitário, valor distintivo dos povos africanos, faça convergir para o homem todas as partes interessadas, de maneira que se possam resolver pacificamente os graves problemas actuais.
4. Os valores peculiares do Povo moçambicano encerram a característica relevante da estima em que têm as dimensões espirituais da pessoa humana. A Igreja Católica, como aliás também as outras confissões religiosas, verificam no homem moçambicano uma ampla e profunda abertura ao Trascendente; uma necessidade vital de crer; uma aptidão a pautar o seu comportamento moral e a orientar a sua vida por valores éticos universais. É uma característica que o tem sustentado em duras provações.
Foi-me referido que muitos cristãos, bem arreigados na sua fé, têm dado provas iniludíveis de firmeza na sua crença e de dedicação ao bem comum; e que grande número de outros, homens e mulheres, obedecendo aos ditames da consciência, em coerência com o que crêem têm demonstrado autentico heroísmo na honestidade de vida e na solidariedade fraterna.
5. A história conhecida de Moçambique anda intimamente ligada à presença da Igreja. Mesmo com limitações, ela quis e quer contribuir para tecer essa história. Por sua natureza a Igreja respeita as instituições e a autoridade (Cfr. 1P 2,13 ss). Ela não aspira a gerir os assuntos temporais, nem pretende substituir-se a uma determinada política. A sua contribuição específica é sempre a de fortalecer as bases espirituais e morais da sociedade: é um serviço que visa conscientizar e formar, esclarecendo e apontando para os imperativos éticos e, se houver necessidade, denunciando os desvios e os atropelos à dignidade do homem.
6. Mas a missão da Igreja não se confina, nem pode ser confiada num projecto humano de bem-estar e de felicidade temporal. É seu múnus específico e prioritário anunciar o Evangelho: um empenho de libertação do pecado, sob todas as suas formas, individuais e colectivas, para a comunhão com Deus, em Jesus Cristo. Ela reconhece como seu dever favorecer as legítimas aspirações de paz e de justiça: ser sinal de reconciliação e de amor contra todas as formas de ódio; agir, no seu âmbito, como fermento de comunhão, contra todas as formas de divisão; fomentar uma civilização do amor, alheia a toda a discriminação pretensamente baseada nas convicções políticas, filosóficas ou religiosas, na diferente situação de riqueza e de poder, na cor ou na raça. A sua lei é amar, como Cristo amou, que ela se esforça por observar, na certeza de que só o amor constrói.
Esta posição da Igreja já não lhe permite alienar-se da realidade que a circunda. Nada do que é humano lhe pode ser alheio. Todavia, ela não propõe um modelo político, económico ou social, nem sequer uma “terceira via” entre sistemas contrastantes e nenhum deles em condições de corresponder plenamente à dignidade pessoal de homem ou à índole e cultura dum povo (Sollicitudo Rei Socialis SRS 41). Isto faz com que ela não se sinta estrangeira em parte nenhuma; por conseguinte também o não é para o dilecto Povo moçambicano.
7. A presença e a actividade da Igreja numa determinada sociedade nunca são uma cooperação ou assistência vindas “de fora”. Mas ela empenha-se em promover “de dentro” a participação das próprias pessoas e energias, em comunhão de intentos, na busca do bem comum. Mesmo quando outras fontes vêm potenciar as insuficientes capacidades das Igrejas locais, com pessoas e meios, é sempre uma actividade que se desenvolve a partir delas mesmas e nunca uma sobreposição ou substituição. A Igreja em Moçambique ainda necessita de Sacerdotes, Religiosos e Religiosas de outros países, que venham reforçar o exíguo número de moçambicanos dedicados plenamente às tarefas específicas da evangelização; subsiste também a necessidade de receber auxílios materiais dos cristãos de outras nações, a fim de poder realizar obras que redundam em promoção, desenvolvimento e assistência, que as comunidades católicas, sozinhas, ainda não conseguem fazer em prol do bem comum. Mas é sempre a mesma e única Igreja que actua localmente.
Aqui, como em toda a parte, a Igreja está presente na sociedade pelas suas organizações, mas muito particularmente pelos seus fiéis. Estes, comprometidos na vida social e movidos pelos princípios da fé e do amor cristão, empenham-se com a própria vida na edificação da sociedade. Assim, é grande a responsabilidade dos cristãos – e neste momento penso no laicado católico, homens e mulheres – em consolidarem e elevarem o nível moral e a vida social dos concidadãos. São eles efectivamente os portadores, com o exemplo e com a acção, da força do Evangelho, destinada a impregnar “os critérios de julgar, os valores que contam, os centros de interesse, as linhas de pensamento e as fontes inspiradoras dos modelos de vida”, porventura em contraste com o verdadeiro bem do homem e com o desígnio de salvação de Deus (Cfr. Paulo VI, Evangelii Nuntiandi EN 19).
8. Mas há também aqueles que se consagram totalmente ao serviço da Igreja: os Sacerdotes, os Religiosos e as Religiosas e outras pessoas consagradas; estes desejariam corresponder às exigências das situações concretas, como a que se vive em Moçambique nesta hora, cientes de que entre a evangelização e a promoção humana, entre a libertação entendida rectamente e o desenvolvimento, existem laços profundos, não só de ordem teológica, mas também antropológica.
Com efeito, o homem a ser evangelizado e ajudado na linha do desenvolvimento não é um ser abstracto; é uma pessoa concreta. E como se poderia testemunhar e proclamar a esse homem o “mandamento novo”, sem promover, pelos caminhos da paz e da justiça, o seu autêntico progresso? (Cfr. Paulo VI Evangelii Nuntiandi EN 31).
Sendo assim, tanto aqueles que partiram dos seus países de origem, “deixando tudo” o que tinham de mais caro (Cfr. Mc Mc 10,28), para se doar a este Povo, como aqueles que, cada vez em maior número, vão surgindo dentre os Moçambicanos para se consagrarem a Deus e ao serviço dos irmãos, estão dispostos a ajudar: não apenas nas áreas da saúde, e da educação, da assistência às crianças e aos velhinhos, da promoção da mulher e do auxílio aos que sofrem; mas também num plano de humanização, elevação cultural e afirmação dos valores éticos, assumindo quanto é válido no património da cultura local. O pessoal religioso e missionário, para trabalhar assim generosamente com todos e pelo bem de todos, precisa de espaços de liberdade.
9. Quero aqui exprimir a minha satisfação, por haver um diálogo, que tem vindo a ser ampliado e aprofundado, entre as Autoridades do Estado e os Responsáveis da Igreja Católica; é já um sinal confortante e esperançoso da conjugação de esforços, com vista a salvar a todos os que se encontram em angústias físicas ou morais. Este diálogo permitirá, estou certo, der alguma satisfação às legítimas aspirações e expectativas dos Moçambicanos. De resto, a paz, a promoção dos direitos e o desenvolvimento dos valores da pessoa humana são os objectivos que todos, crentes e homens de boa vontade, são chamados a perseguir, com uma participação convergente, respeitadora de diversidades e, quanto possível, fraternal.
É urgente que todos abracem, acima de tudo, a causa do homem e enveredem pelos caminhos do amor do próximo e do respeito por tudo aquilo que este implica, tanto no aspecto material como espiritual. Anelam por isto quantos sofrem; mas será bem para todos que acabe o penar das crianças sem pais, o vaguear das mulheres sem lar, a solidão dos velhinhos sem filhos que os amparem no termo da sua vida. É tempo, pois, que cessem as divisões, a frieza e o desamor no coração dos homens para que seja atalhada a espiral de violência e que os instrumentos de guerra e de morte sejam transformados em meios de paz e de vida.
10. A história não é um mero resultado da fatalidade; é algo feito também pelas providências humanas. A história deste momento ficará marcada por aquilo que nós – Igreja, Autoridades políticas, forças religiosas, forças sociais e comunidade internacional – fizermos ou deixarmos de fazer pela paz e pelo desenvolvimento em Moçambique. Ora a Igreja, aqui como em toda a parte, está pronta para responder aos desafios de hoje e para cooperar com todos aqueles que optam pelos caminhos da paz, cujo novo nome é desenvolvimento, não só económico, mas também social, cultural e espiritual. O homem e a sociedade não se contentam com sustentar o corpo; precisam também de alimentar a alma; e isso é muito mais exigente de quanto se possa imaginar, pois supõe a delicadeza do amor e do respeito pelo outro.
É portanto uma mensagem de esperança e ao mesmo tempo uma exortação que aqui deixo a todo o Povo moçambicano, dirigindo-me a Vossa Excelência, Senhor Presidente, e aos seus directos colaboradores, diante dos quais se apresenta uma tarefa tão árdua, quanto importante e bela. São também os votos de um homem religioso, servidor de Jesus Cristo, que veio encontrar-se convosco, como amigo: votos de paz, progresso e prosperidade!
E, com estes sentimentos, imploro que o Todo-Poderoso acompanhe o meu ministério no meio de vós; que Ele assista cada Moçambicano nas suas necessidades e abençoe Moçambique.
Hosi Katekisa Moçambique!
Discursos João Paulo II 1988