Discursos João Paulo II 1990


VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA JOÃO PAULO II

A CABO VERDE, GUINÉ-BISSAU, MALI E BURKINA FASO

DISCURSO DO SANTO PADRE

NA CERIMÓNIA DE DESPEDIDA


NO AEROPORTO DE PRAIA EM CABO VERDE


Sábado, 27 de Janeiro de 1990




Excelentíssimo Senhor Presidente da República,
Senhor Bispo de Santiago de Cabo Verde,
Excelências, minhas Senhoras e meus Senhores
e amados Cabo-verdianos, meus irmãos e irmãs em Cristo,

1. Com pena para mim, chegou a hora da despedida. Neste momento, quero exprimir a minha gratidão pelo bom acolhimento que me foi dispensado na vossa terra, tanto aqui na Cidade da Praia, como à chegada, na Ilha do Sal e, depois no Mindelo, em São Vicente. Correu tudo muito bem, graças a Deus, não obstante limitações de vária ordem com que lutais, as quais foram supridas por muita e generosa boa vontade. A quantos seja devido, o meu muito obrigado!

Estou profundamente agradecido, em particular, a Sua Excelência o Senhor Presidente da República, ao Senhor Bispo da Diocese, aos membros do Governo, Autoridades e Responsáveis pelos destinos, serviços públicos e administração deste País. Como se compreende, seria impossível nomear todos - pessoas, grupos e organizações - que se fizeram jus ao meu reconhecimento. Por outro lado, não quereria que alguém se sentisse menos apreciado, preterido ou esquecido.

2. Neste reconhecimento sincero, englobo também todos aqueles que, não coincidindo nos mesmos sentimentos religiosos e humanitários, quiseram encontrar-se com o Bispo de Roma, qual Chefe da Igreja católica. Penso, por fim, naqueles que não puderam vir pessoalmente, mas me acompanharam, através dos meios de comunicação social; penso sobretudo nos que rezaram, para que tudo corresse bem e pelos bons frutos espirituais da minha visita pastoral.

Nesta linha, quereria ter uma palavra de estima e simpatia para com os muitos Cabo-verdianos emigrantes. Todos conhecemos os aspectos dolorosos da emigração, em busca de melhores condições de vida: os sacrifícios e as penosas situações humanas, pessoais e familiares, o desenraizamento e até traumatismos, que costumam acompanhar a saída para o estrangeiro. Que esses seus sacrifícios sejam bem compensados e possam contribuir também para a promoção da qualidade de vida dos cidadãos, que ficaram nas suas saudosas ilhas.

3. Entretanto, tendo as minhas peregrinações pastorais um preciso carácter religioso e apostólico e de encontro com a Comunidade católica, neste caso, a Igreja que está em Cabo Verde, seja-me permitido uma especial palavra afectuosa, à despedida, que desejaria fosse ao mesmo tempo de apreço e estímulo, para quantos - sacerdotes, religiosos e religiosas e leigos comprometidos no apostolado, guiados pelo Senhor Bispo - tomaram parte activa e generosa na preparação espiritual, e não só, desta minha visita. Quanto empenho, brio e trabalho! Apercebi-me disso, pelo modo como decorreram as celebrações e encontros. Que o Senhor a todos recompense!

Beneficiei da hospitalidade, simples e lhana, das vossas comunidades e pude verificar a sua vitalidade, o fervor na oração e a alegria de “fazerem Igreja” com Pedro, ainda que por breves horas. Foram momentos densos de comunhão, que me permitiram fazer mais uma experiência da catolicidade da Igreja, que guardarei no coração; e, sobre ela, continuarei a rezar, para que os indícios de renovação espiritual e da nova evangelização entrevistos, continuem a crescer e a frutificar.

4. Esta minha palavra prolonga os muitos votos que já formulei e tem um sentido de convite a olhardes para a frente, com esperança, com muita esperança. Tendo recebido a fé cristã, aprofundai a vossa vivência e testemunho da mesma, com toda a coerência: “Sereis minhas testemunhas”, repete-vos hoje o Senhor, uma vez mais, pela boca do Bispo de Roma.

Desse modo, estareis a contribuir para plasmar aqui uma civilização cristã original, que se alimente nas fontes, eleve o que há de bom nas vossas tradições e vá confluir no empenho da Igreja universal para construir a “civilização do amor”.

Aqui, como em toda a parte, não é o Evangelho que há-de mudar, para haver inculturação; mas é a cultura que precisa de assimilar os germes de vida trazidos pelo Redentor do homem. O apóstolo do Evangelho vai humanizando o evangelizado, certo de que, ao mesmo tempo que se evangeliza, também se civiliza. Evangelizar, de facto, visa “converter” a consciência pessoal e colectiva dos homens, as actividades a que se aplicam, a vida e meio ambiente que lhes são próprios.

É esta evangelização, a nova evangelização de Cabo Verde, que incumbe a todos os baptizados e lhes impõe tarefas urgentes, dentro da missão da Igreja; são estas tarefas - na família, na educação escolar, na economia e na vida social - que eu vos confio, irmãos e irmãs Cabo-verdianos. O Papa conta convosco!

5. Com isso, em aderência às orientações do Magistério e com as luzes e a força do Espírito Santo, estou certo de que ajudareis a preparar um bom futuro para esta Nação; em harmoniosa conjugação de esforços com todos os cidadãos, os filhos da Igreja contribuem para o progresso e prosperidade, quando irradiam aquela verdade e aquele amor que constituem o núcleo fundamental da mensagem e a força regeneradora da missão de Jesus Cristo que, na história dos homens tomou a forma e o nome do amor e da misericórdia de Deus.

Somos a geração que já olha para o terceiro Milénio cristão, e à qual foi dado conhecer um notável avanço no domínio do homem sobre a natureza e no aprofundamento das leis do comportamento social. Verifica-se que caíram “ídolos” de pés de barro, se tornaram menores os obstáculos e distâncias que separavam outrora os homens e as nações. Queira Deus que continue a arraigar-se a consciência da unidade do género humano, o reconhecimento da interdependência dos povos e a solidariedade mundial!

6. Não ignoro os problemas difíceis, que Cabo Verde - como aliás outros países desta região, no Continente africano - tem de resolver, com carácter de urgência. Por outro lado, sei que se pode contar com a têmpera forte e provada da sua gente, a qual não se ilude, pensando que seja fácil a luta contra as inclemências do clima e as adversas condições sociais.

Como me escrevia o Senhor Presidente, o povo de Cabo Verde, fiel aos “princípios que regem a vida de todo o bom cristão, sempre procurou encontrar nesses mesmos princípios o reconforto e a coragem necessários, para persistir e prosseguir uma luta extremamente difícil, contra os desfavores da natureza”. Pois bem, levo na alma a esperança que li nos olhos vivos das vossas crianças e dos jovens e que se espelha no sereno realismo da gente bondosa desta terra, que sabe lutar e para a qual “ser pobre não é vergonha...”, segundo o ditado da vossa língua.

Senhor Presidente e queridos Cabo-verdianos,

Nalgumas culturas, o “verde” é a cor da esperança; e é o nome da vossa terra. Assim, é com muita esperança que vos digo “ADEUS”, dando todo o significado à expressão: a Deus, Pai de misericórdia, vos confio, pois “se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os construtores” (Ps 127,1). Não se edifica a sociedade, sem Deus: é Ele a garantia de uma sociedade à medida do homem; e ser religioso é plenitude humana.

É com esta perspectiva de esperança, que reitero ao dilecto Povo cabo-verdiano e aos seus Governantes, os melhores votos de progresso e prosperidades na paz, obtidos pela cooperação e numa equitativa participação de todos, com a solidariedade internacional, num futuro cada vez mais feliz, sob as bênçãos de Deus Todo-poderoso.



VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA JOÃO PAULO II

A CABO VERDE, GUINÉ-BISSAU, MALI E BURKINA FASO

DISCURSO DO SANTO PADRE

NA CERIMÓNIA DE BOAS-VINDAS


EM GUINÉ-BISSAU


Sábado, 27 de Janeiro de 1990




Excelentíssimo Senhor Presidente da República,
Senhor Bispo de Bissau,
Excelências, minhas Senhoras e meus Senhores
e caríssimos Guineenses, meus irmãos e irmãs em Cristo,

1. As palavras que o Senhor Presidente acaba de me dirigir vêm corroborar os meus sentimentos de gratidão; vêm dar maior significado a este calor humano, com que me acolhe o seu Povo hospitaleiro, aqui altamente representado, no momento em que beijo o solo deste belo país. É com grande alegria que o faço.

Já há tempos que o Senhor Presidente vinha manifestando o desejo de que eu visitasse esta jovem Nação. E confesso que, nas diversas peregrinações ao Continente africano, sempre me acompanhava a íntima preocupação de não preterir esse convite, com que Vossa Excelência dizia interpretar também o sentir do dilecto Povo guineense. Ao mesmo tempo, em nome da Comunidade católica nesta Nação, chegaram-me, por mais de uma vez, os convites da parte do Senhor Bispo da Diocese de Bissau.

Quis a Providência divina que, finalmente, eu pudesse vir. Aqui renovo a expressão do meu reconhecimento: agradeço a todos, os passos dados e as disposições tomadas, no sentido de facilitar e favorecer esta visita pastoral.

2. Na pessoa dos presentes, saúdo toda a população guineense. Sei que é gente activa, ordeira e alegre, com religiosidade muito espontânea; sei também que conta muitos jovens, ávidos de aprender, dispostos a tudo empreender para construir uma sociedade melhor, e abertos às possibilidades de progresso e autêntico desenvolvimento, que o mundo lhes oferecer.

Seja-me permitido, porém, saudar especialmente a Comunidade católica, na pessoa do seu Bispo, D. Settímio Arturo Ferrazzetta, com quantos o acompanham. Fá-lo-ei com a expressão que me é habitual, aliás, nos é habitual: seja louvado Nosso Senhor Jesus Cristo!

Penso, com grande afecto, em todos os que estarão impedidos de vir encontrar-se com o Bispo de Roma, comigo, que venho aqui na qualidade de sucessor de São Pedro. Penso nos pobres, doentes, velhinhos e crianças, bem como nos retidos por obrigações inadiáveis. Que Deus os conforte e os ajude a todos!

3. Dou graças ao Senhor por estar hoje na Guiné-Bissau, que, chegada à independência há apenas cerca de quinze anos, se encontra, por certo, num momento importante e exigente: o momento de se estruturar como Nação, e de se afirmar, como “parceiro” de pleno direito, no concerto das Nações. Estará, pois, a braços com problemas: uns peculiares, outros comuns a diversos países desta área do mundo.

Eu venho à Guiné-Bissau, como missionário de Deus-Pai, rico em misericórdia. Envia-me Jesus Cristo, Redentor do homem, a secundar a obra invisível do Espírito Santo. Venho anunciar o Evangelho, confirmar e consolidar a fé dos irmãos e viver com eles, por momentos, a comunhão nos “mesmos sentimentos”, com que a Igreja se apresenta aos homens.

Nesta visita pastoral, trilho, em condições fáceis e atraentes, hoje, caminhos já percorridos há séculos pelos missionários, que gratamente evoco: homens e mulheres, que aqui vieram trazer a Boa Nova da Salvação, destinada a ser sempre “alegria para todo o povo”, também para o Povo guineense; e que implantaram aqui a Igreja.

4. Na missão que lhe é própria, a Igreja, como se sabe, respeita a Autoridade e as Instituições de ordem temporal. E alegra-se com tudo quanto elas promovem ao serviço do homem, da pessoa livre e responsável, com os seus direitos e liberdades fundamentais, com a sua dignidade. Centro e vértice de tudo o que existe no universo criado, o homem tem na sua dignidade pessoal o bem mais precioso; o bem que faz dele um valor em si e por si, exigindo que os demais o considerem e tratem sempre como pessoa; e jamais como coisa, objecto ou instrumento.

A dignidade pessoal constitui, também, o fundamento e a expressão da igualdade entre os homens, bem como da participação e da solidariedade, que, pelos caminhos do diálogo até à comunhão fraterna, levarão a todos a encontrarem-se naquilo que são e não apenas naquilo que têm (Cfr. Christifideles Laici, CL 37).

Acentuo isto, porque a Igreja, fiel ao seu Mestre e Senhor, o qual pôs no amor fraterno o distintivo dos seus discípulos (Cfr. Jo Jn 13,35), tem também, no tesouro da sua missão salvífica, uma mensagem sobre o homem, os seus valores e a sua convivência social. Esta mensagem implica duas opções ineludíveis: uma pelo homem, segundo o Evangelho; e outra, pela imagem evangélica da sociedade. É por isso que a Igreja considera dever seu reflectir sobre quanto contribua para tornar mais humana a família dos homens e a sua história (Gaudium et Spes GS 40).

5. Caminhando com o homem, considerado em todas as suas dimensões e situado no seu mundo ambiente, a Igreja quer ajudá-lo a realizar a própria vocação integral: atingir a plena estatura humana, com as exigências do seu espírito, a sua abertura à trascendência e o chamamento à vida eterna. Não ignora os problemas que se levantam aos que têm a responsabilidade de ajudar os cidadãos na realização do autêntico desabrochamento humano, até a essa estatura plena; como não ignora quanto é difícil encontrar os processos políticos mais adequados e geri-los e dirigi-los com acerto, de molde a promover, orgânica e institucionalmente, o bem comum.

Seja-me permitido, comungando os sentimentos de quantos desejam a felicidade de cada Guineense, recordar aqui: pilares de qualquer modelo, verdadeiramente humano, de sociedade, permanecem sempre a verdade, a liberdade, a justiça, o amor, a responsabilidade, a solidariedade e a paz. Com esta perspectiva, refiro-me apenas a alguns aspectos de uma estatura humana plena. Está nisso a “pedra angular” de uma Nação guineense, em que todos se sintam cada vez melhor e mais unidos pelo amor pátrio, pertencendo embora a etnias diversas.

6. Numa sociedade iluminada pelo primado do homem, para o desenvolvimento harmonioso de cada pessoa, na sua dimensão corporal e espiritual, importa que, a partir de um humanismo autêntico, os processos educativos convirjam na humanização.Com efeito, as crianças - sabemo-lo - são argila moldável.

E os jovens, da experiência das minhas peregrinações pelo mundo, mostram-se dispostos a aprender; e não se lhes esgotou a generosidade para abraçar os mais nobres ideais, e seguir os valores genuínos, mesmo à custa de sacrifícios. Os jovens não querem viver “desmotivados”.

Torna-se, pois, necessário que a instrução, nunca disjunta da educação global e integral, ministre algo mais do que meras somas de conhecimentos, de que resultaria um humanismo reduzido, terrestre e auto-suficiente, que acabaria por levar os discentes, sobretudo os jovens, a sentirem-se frustrados, transformados em “objecto”, num produtivismo incontrolado, orientado apenas para o poderio nacional ou para o consumismo privado. Em tal caso, correr-se-ia o risco das “evasões” e a busca de uma saída, quiçá, na violência, com o seu cortejo de males, que ninguém deseja.

Faço votos de que os processos educativos, tenham aqui pleno êxito, a começar pela genuína alfabetização. Esta, sabe-se, respeita as culturas tradicionais e os critérios de uma inculturação acertada. Mas não dispensa o diálogo com outras culturas e civilizações, para o desenvolvimento do homem todo, para se afirmar aquele sentido de família humana, em que resplandeça a solidariedade, até ser fraternidade universal. Isto, além do mais, poderá também enriquecer as pessoas na dimensão religiosa, reconhecer o seu direito, bem como o da família, de serem livres de invocar, privada e publicamente, o nome de Deus.

Deste homem, assim formado em “humanidade”, pode esperar-se um construtor da sociedade, instruído no conhecimento da realidade e, ao mesmo tempo, senhor e livre na totalidade do seu ser homem, do seu comportamento e das suas relações sociais. Na sua individualidade, saberá ser fautor de verdade, de liberdade, de justiça e de amor, que são os fundamentos da paz; saberá integrar uma geração “convertida” e livre do “pecado” e capaz de superar as “estruturas de pecado”, motivada, competente, transparente e decidida a servir o bem comum (Sollicitudo Rei Socialis SRS 46). Um cidadão, enfim, que participa, com responsabilidade.

7. É convicção da Igreja de que, para debelar e rejeitar a discriminação e a injustiça, se há-de educar, inculcar e viver uma solidariedade, enraizada na consciência da fraternidade de todos os membros da família humana. Nos nossos dias, observa-se uma crescente tomada de tal consciência, suscitada pela interdependência dos indivíduos e dos povos no mundo inteiro. Exaltei, há pouco, o valor moral positivo desta consciência: ela impõe a cada um de nós a determinação firme e perseverante de empenhar-se pelo bem comum universal. Todos somos, realmente, responsáveis por todos (Sollicitudo Rei Socialis SRS 38).

Para se chegar a esta solidariedade, que - como o Senhor Presidente, a seu tempo, me escrevia - “nasce da cooperação de todos os povos e instituições, que lutam por um mundo de paz e de progresso”, tenho insistido, amiúde, nas condições e caminhos. Não se trata de opções deixadas ao arbítrio de cada um; mas sim, de imperativos éticos, baseados na destinação universal dos bens da terra e especificados em normas e prioridades, tanto para os que podem dar como para os que se beneficiam.

Esta solidariedade indispensável dos homens e povos será tanto mais real, quanto mais se encarar como um serviço a prestar, com discernimento, disponibilidade e gratuidade. Os bens com que se pode ajudar os demais, hão-de ser garantidos e oferecidos, de modo a poderem ser livremente aceites, tanto pelas pessoas como pelos grupos (Cfr. Gaudium et Spes GS 74). Peço a Deus que esta Nação guineense possa beneficiar de uma solidariedade assim entendida e concretizada.

Senhor Presidente

Reitero a vossa Excelência, bem como às demais Autoridades, a certeza de que podem contar sempre com a lealdade dos filhos da Igreja católica para com esta sua Pátria terrena. Eles conhecem as tarefas que lhes competem. Juntamente com os irmãos de outras crenças e com todos os cidadãos, estão dispostos a participar, de todo o coração, na obra comum, na medida em que se lhes proporcionarem espaços de livre acção.

Experientes de que, muitas vezes, não bastam os esforços e a boa vontade dos homens, rezamos para que Deus, Senhor da história, vos assista e ajude na missão exigente, mas nobilíssima, de servir o bem comum de todos os Guineenses, aos quais desejo as melhores felicidades. Sobre eles e sobre todos os aqui presentes imploro as bênçãos de Deus Todo-poderoso.





VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA JOÃO PAULO II

A CABO VERDE, GUINÉ-BISSAU, MALI E BURKINA FASO

DISCURSO DO SANTO PADRE

POR OCASIÃO DO ENCONTRO COM


OS SACERDOTES, RELIGIOSOS, SEMINARISTAS


E CATEQUISTAS NA CATEDRAL DE BISSAU


Sábado, 27 de Janeiro de 1990




Realmente o Senhor ressuscitou!” (Lc 24,34).

1. Com esta grande certeza pascal vos saúdo cordialmente a todos. E quero manifestar a alegria que sinto, pela oportunidade que a Providência me deu, de encontrar-me aqui convosco, sacerdotes, religiosos e religiosas, seminaristas e catequistas da Guiné-Bissau. Viestes em grande número a esta linda Igreja Catedral, centro espiritual de toda a comunidade católica do vosso País, lugar privilegiado de encontro com Jesus Eucaristia, com Cristo pascal, morto e ressuscitado, que nos é dado contemplar com os olhos da fé.

A Catedral, lugar de encontro sacramental com Deus, é, por isso mesmo, centro propulsor de testemunho cristão, de renovamento interior e de acção missionária. É no acto de “repartir o pão”, à volta da mesa da Eucaristia, que a presença de Cristo nos ilumina e o nosso coração se dispõe para escutar os ensinamentos divinos, que nos inflamam de zelo e de entusiasmo pela causa do Evangelho e pela salvação dos homens. E também os nossos olhos se abrem para reconhecer: “Realmente o Senhor ressuscitou!”.

Este fundamento eucarístico da missão encontra-se explanado, de forma admirável, no episódio dos discípulos de Emaús que São Lucas nos relata (Lc 24,13-35). É-nos ensinado que, na Igreja, aqueles que quiserem ser anunciadores da Boa Nova ao mundo, devem, antes de mais, deixar-se compenetrar e converter pela Palavra de Cristo; depois, fazer a experiência do seu amor pascal, na Eucaristia; para, finalmente, se porem no caminho do homem, a fim de abordá-lo na sua situação concreta e dar-lhe a novidade de vida que o Senhor Ressuscitado inaugurou.

2. O momento central da experiência empolgante dos discípulos de Emaús foi quando eles reconheceram o Senhor ressuscitado, depois de terem dado hospitalidade àquele viandante, que, momentos antes, era apenas um peregrino desconhecido. Mas já os tinha impressionado com um maravilhoso poder de atracção espiritual, quando lhes explicava as passagens das Escrituras que se referiam ao próprio Cristo.

O Senhor Jesus manifestou-se no irmão, que eles amorosamente acolheram à própria mesa; e deu-se a conhecer num momento de intimidade e de amizade, como pode ser o da refeição juntos; manifestou-se na pessoa a quem haviam dado acolhimento mesmo sem a conhecer, dispostos a apreciar a sua dignidade e mesmo a ouvi-la como intérprete da Palavra de Deus.

Esse gesto de caridade, de generosidade, de amizade e de escuta foi premiado. E qual não foi o seu entusiasmo e alegria, quando descobriram que o peregrino desconhecido era o próprio Senhor ressuscitado! A descoberta não podia deixá-los inactivos. O contacto com a luz torna-nos luminosos. A comunhão com a vida dá-nos nova vida e faz de nós comunicadores de vida. Deixar-se anima pela presença de Deus, que age em nós, enche-nos de um zelo apostólico irreprimível e inesgotável, que nos leva a uma constante atitude de serviço aos irmãos, e nos impele a tomar iniciativas missionárias e evangelizadoras, sempre novas e cada vez mais audazes: “Partiram no mesmo instante”, diz-nos São Lucas, referindo-se aos dois discípulos, entusiasmados pelo encontro com Jesus ressuscitado.

3. O empenho missionário é precedido e preparado pelo momento da contemplação: os discípulos insistem para que o peregrino, ainda desconhecido mas já amado, por um pressentimento do coração, fique com eles, “pois está a entardecer” (Lc 24,29). É a primeira e talvez a mais comovente oração da comunidade cristã, depois da Páscoa.

Por um lado, essa oração alude à pobreza e à solidão do homem, que se fazem sentir, sobremaneira nos momentos obscuros da existência, quando parece cair mais cerrada a noite da desorientação, da angústia e do sofrimento. Sente-se, então, necessidade de um prolongado colóquio de esperança: a necessidade de que a dulcíssima presença do Senhor não seja interrompida.

Por outro lado, o convite feito ao peregrino para que “fique”, por estar já a escurecer, é também um gesto de delicada atenção, pelo receio de que ele possa vir a ter dificuldades na viagem ou com o alojamento. Quando as trevas começam a descer, os homens tendem a juntar-se, a unir forças para uma defesa comum e um conforto recíproco. Os perigos e as ameaças comuns tornam os homens conscientes da sua interdependência; e dá-se o impulso para a solidariedade mútua, que anima sobretudo a consciência dos pobres, pois são eles os mais expostos a tudo o que ameaça a segurança e serenidade da vida.

O tornar-se cônscio desta interdependência com a imprescindível solidariedade mútua que dela deriva, como tive ocasião de afirmar na Carta Encíclica “Sollicitudo Rei Socialis” (Cfr. Sollicitudo Rei Socialis SRS 38) constitui um verdadeiro “valor positivo e moral”, um fenómeno consolador para os povos contemporâneos, que sentem “como próprias as injustiças e as violações dos direitos humanos cometidas em países longínquos, que talvez nunca visitem”. Os discípulos de Emaús são pobres; é igualmente pobre o misterioso peregrino que eles encontraram. E, ao dar-se esse seu encontro, aparece o Senhor do Poder e da Glória.

Realmente o Senhor ressuscitou!”.

4. O momento contemplativo tem o seu crescendo: a luz e o calor espiritual que emanam do misterioso peregrino chegam gradualmente à plena revelação: “Foi então que se lhes abriram os olhos e O reconheceram” (Lc 24,31). Só que a visão não pôde durar, porque não era deste mundo, como aconteceu com a luz do Tabor, que não tinha por finalidade saciar definitivamente a sede da Verdade, o que só será possível no Céu; mas serviu para dar fundamento, razão, estímulo e coragem para a acção em favor do próximo, para as obras da justiça, da caridade e da misericórdia e para o empenhamento na missão e na evangelização. Serve para nos refazermos quando sobrevém o cansaço, e para nos lembrar a beleza e a elevação da meta que nos propusemos.

A contemplação, neste mundo, permite-nos antegozar o Paraíso; mas a ninguém pode permitir-se, nesta vida, nem mesmo aos contemplativos, ficar descansado, apensa com a contemplação. É necessário, sem dúvida, manter os olhos fixos na meta transcendente, para saber dar a orientação exacta ao nosso trabalho, para que não nos afadiguemos em vão nem venhamos a perder o recto caminho, enfim, para o discernimento espiritual. A experiência contemplativa, quando autêntica, isto é, quando baseada na vida sacramental, na Palavra de Deus e num rigoroso empenho moral, permite-nos conhecer realmente qual a vontade de Deus e o que devemos fazer para alcançar a vida eterna, pois a vida eterna consiste precisamente, como nos ensina o Apóstolo São João, na contemplação no “único verdadeiro Deus”, e d’Aquele que Ele enviou, Jesus Cristo (Cfr. Jo Jn 17,3).

5. Foi assim que o misterioso viandante, no qual se ocultava Cristo, corrigiu a ideia que os discípulos tinham feito do Messias: uma ideia ligada a uma salvação segundo uma medida puramente humana e a um projecto meramente sócio-político, que não coincidia com os desígnios transcendentes de Deus.

Se compararmos esses seus desejos iniciais com a ardente súplica final que dirigem ao Forasteiro, ficamos maravilhados com a transformação que se deu. O que foi que lhes aconteceu, para passarem a compartilhar as ideias do insinuante desconhecido, e chegarem, finalmente, a reconhecer o Messias, não em qualquer triunfo terreno ou político, mas no dom pascal do seu Corpo eucarístico? A narração evangélica atribui essa transformação às explicações da Sagrada Escritura: Jesus introduz os discípulos no sentido misterioso do Antigo Testamento. A nova palavra definitiva de Jesus faz com que resplandeçam as antigas palavras no seu verdadeiro significado profético, todo ele orientado para a vinda e figura do Messias; tudo isso preparado, não por vagas expectativas humanas, mas pela fidelidade generosa de Deus.

O itinerário desvendado pela palavra de Jesus cruza-se com a desconsolada caminhada dos dois discípulos, transformando-a numa caminhada de esperança; imprime-lhe um impulso evangelizador, uma progressiva aproximação dos projectos e planos de Deus; converte-a em peregrinação para a Páscoa, a Igreja e a Missão, “até às extremidades da terra”.

Realmente o Senhor ressuscitou!”.

6. Caríssimos irmãos e irmãs.

No meio do povo de Deus que se encontra no vosso País, vós estais todos particularmente comprometidos, por diversos títulos e em diferentes medidas, na obra da missão e da evangelização.

O campo de trabalho que se apresenta aos vossos olhos é ainda vastíssimo. Faço votos de que, com a ajuda do Espírito Santo e mediante a elaboração de um acertado plano pastoral, o vosso serviço de caridade possa atingir um número cada vez maior de pessoas, levando-as à busca da verdade, da justiça e da salvação.

São meus votos, ainda, que o Sínodo especial, dedicado aos problemas e perspectivas eclesiais da África, possa, além do mais, oferecer a todos os cristãos do continente novos métodos e instrumentos adaptados para uma vasta acção evangelizadora eficaz. As potencialidades humanas e espirituais da África são riquíssimas e o crescimento da realidade eclesial, neste imenso território, é muito promissor. Também no vosso País se propicia hoje um bom trabalho de evangelização e, possivelmente, a partir daqui, da vossa Nação.

Queremos repetir-vos, estando convosco, a exortação que o meu predecessor Paulo VI proferiu um dia: “África, sê missionária de ti mesma!”. É tal a pujança com que o Cristianismo está hoje a crescer neste Continente, que se pode certamente dizer que ele começa a estar em condições e a ter energias suficientes para crescer de maneira autónoma, sem depender de forças externas.

7. Quero congratular-me, por fim, pelo intenso trabalho que já estais a realizar na vinha do Senhor e também pelo testemunho que dais no âmbito da promoção humana, com especial referência aos sectores da educação e da saúde. Estou certo de que a premência das obras e do trabalho, por mais importantes que sejam, não vos impedirão de consagrar o tempo indispensável à vossa formação permanente e a uma oportuna actualização cultural. De outro modo, como sabeis, a falta ou mesmo a insuficiência de tais momentos de revigoramento intelectual e espiritual acabam por esvaziar-vos do alento ideal, que deve sustentar a vossa acção, rebaixando esta para o nível de um activismo estéril e agitado, para não dizer prejudicial a vós mesmos e aos outros.

Exorto-vos, pois, a cuidar ao máximo da realização integral da vossa vocação, de acordo com as directrizes que vos dão os vossos Superiores, o vosso Pastor e a Igreja.

“Que o Deus da esperança vos encha plenamente de toda a esperança e de paz, na prática da vossa fé, a fim de que sejais abundantemente ricos em esperança, pela virtude do Espírito Santo” (Rm 15,13). E que a Bem-aventurada Virgem Maria - aqui invocada “Nossa Senhora da Candelária” - Rainha dos Apóstolos, vos ampare e guie na vossa caminhada em Igreja e no testemunho do Evangelho! É o que imploro, ao abençoar-vos de todo o coração, assim como às vossas famílias e a quantos vos são queridos.



VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA JOÃO PAULO II

A CABO VERDE, GUINÉ-BISSAU, MALI E BURKINA FASO

DISCURSO DO SANTO PADRE

POR OCASIÃO DA INAUGURAÇÃO


DO EDIFÍCIO DO SEMINÁRIO MENOR


Bissau, 27 de Janeiro de 1990




Senhor Bispo, Reverendos Padres,
caros seminaristas da Diocese e da Família Franciscana
e membros da Comissão das Vocações,

1. A todos os presentes, as minhas cordiais saudações, com especial referência aos Superiores e professores deste Seminário, às jovens da Casa de Formação feminina, ao pessoal missionário e a todos os amigos desta instituição. Congratulo-me no Senhor com esta Comunidade diocesana e com o seu Pastor, pela obra que hoje tenho o gosto de inaugurar e benzer, e que corresponde a uma disposição da vontade de Deus, concretizada pela Igreja.

Com efeito, Deus continua a chamar os seus colaboradores, no íntimo das consciências; e quer que eles sejam preparados para a missão, como foram preparados os Apóstolos. Para tanto, Mãe e Mestra, com muita experiência, a Igreja vê nos seminários o meio melhor para a preparação daqueles a quem, um dia, por intermédio do Bispo ordenante, será reconhecida a vocação interior, com a vocação pública às sagradas Ordens.

E vós, queridos seminaristas, entrastes nessa fase de preparação. Sois neste momento como o pequeno Samuel: alguém que está a procurar identificar, esclarecer e aceitar o sublime chamamento do Senhor: “ Falai, Senhor, que o vosso servo escuta ” (1S 3,10).

2. Ao entrar neste edifício, depara-se, logo no átrio, com três inscrições muito significativas. Conhecei-las bem; e já vos deveis ter apercebido de que elas encerram todo um programa de preparação para o serviço missionário na Igreja: “ Bô bim nha tras: n’na bim fassi bós piscaduris di pecaduris ”; depois, “ Bô firmanta um utro ”; e, finalmente, “ Bô bai pa tudo mundo ”.

São outros tantos convites, que o Senhor vos dirige; e, da vossa parte, existe a responsabilidade de dar resposta a cada um deles. Uma resposta concreta, efectiva, generosa; aberta às exigências e às necessidades urgentes da população da vossa terra; e aberta aos instantes apelos de tantas almas, que esperam pela verdade de Cristo ou se interrogam sobre a mensagem do Evangelho.

Na realidade, ser sacerdote, ser missionário significa ter escutado, como Pedro, o convite a deixar tudo e a seguir Cristo, confiando unicamente na sua promessa tranquilizadora: “ Não tenhas medo, farei de ti pescador de homens ”.

3. Na oração e na meditação, durante estes anos em que vos preparais para o futuro, para servirdes na difusão do Reino de Deus, tende sempre presente esse diálogo entre Pedro e Jesus. Que haja no vosso íntimo o desejo de falar com Cristo sobre a missão que vos espera; falar-Lhe da escolha que estais a fazer e para a qual vos preparais, em atitude de quem confia na graça do Senhor; falar-Lhe das coisas que Ele nos indicou no “ Pai-Nosso ” e no Cenáculo, durante a última Ceia. Tende un coração aberto para fazerdes o dom da vossa vida a essa missão! E procedei com humildade, bem conscientes de que o serviço sacerdotal é deveras exigente e que a entrega aos outros levar-vos-á a ter de enfrentar situações complexas e difíceis.

Vivei a união com Cristo, com fé ardente, na oração, para poderdes sempre encontrar n’Ele a força necessária para perseverar e vos tornardes, como Ele, “ homens para os outros ”. Ele continua a convidar e a propor a cada um de vós: “ Farei de ti pescador de homens ”.

4. “ Bô firmanta um utro ”. Ajudai-vos uns aos outros! Isto é, procurai viver a caridade, na comunhão com toda a Igreja: com a Igreja que dá testemunho de Cristo na Guiné-Bissau, muito atentos às exigências que ela está a sentir; e também com a Igreja universal, de que sois parte viva e activa. A vossa habilitação para anunciar o Evangelho depende da vossa adesão à fé dos Apóstolos, da vossa comunhão, mediante a doutrina da Igreja, com o testemunho daqueles que encontraram e amaram o Mestre.

Procurai também, desde já, viver a caridade fraterna naqueles moldes que a vida sacerdotal e a cooperação no ministério pastoral exigem. Essa caridade há-de ser a força da vossa futura missão. Ela terá um óptimo apoio na verdadeira amizade, inspirada no exemplo de Cristo e na sua familiaridade com os Apóstolos: “ Vós sois meus amigos ”.

A vossa caridade sacerdotal há-de exprimir-se, desde agora, em todas as formas de entreajuda e colaboração, que achardes possíves e oportunas, sob a orientação dos vossos formadores: do apoio espiritual ao conforto nas dificuldades e à ajuda concreta e material, quando for necessário. Sede, pela vossa caridade recíproca, um reflexo da Igreja, que se constrói como comunidade cristã na unidade de uma só fé, alimentada com a Palavra de Deus e com a força do único Pão de vida, que é a Eucaristia.

5. “ Bô bai pa tudo mundo ”. Ide por todo o mundo! Fazendo parte da Igreja universal, também vós sereis enviados a todos os homens, na sua universalidade concreta, a qual, na vossa terra, se exprime como pluralidade de homens e de mulheres que pertencem a diversos grupos étnicos e seguem doutrinas e cultos diversos. Sereis enviados, antes de mais, como pastores dos irmãos na fé: daqueles que, em coerência, vivem o seu Baptismo, e também dos que só às vezes voltam a reflectir sobre a palavra de Cristo e a participar ocasionalmente nos mistérios que a Comunidade inteira celebra. Sereis enviados, depois, aos irmãos muçulmanos “ que adoram o único Deus, vivo e subsistente, misericordioso e omnipotente, criador do Céu e da terra (Nostra Aetate NAE 3)”; também eles precisam de conhecer Jesus Cristo.

Sereis enviados, em particular, para o campo que mais se abre à esperança da Igreja nesta terra: àqueles que ainda não conhecem Deus verdadeiro, nem seu Filho Jesus Cristo, Redentor do homem; mas que, em geral, se mostram receptivos à Igreja, respeitam e apreciam a sua caridade e as suas iniciativas de promoção humana, e dela esperam luz: a grande luz da revelação que se cumpriu em Cristo.

Viveis num ambiente missionário. Bem sabeis que o amor e o conhecimento íntimo que tendes de Cristo despertaram em vós o profundo desejo de dá-l’O a conhecer e de O tornar amado. Perseverai nesse propósito, invocai Nossa Senhora, “ Estrela da evangelização ” e guia e mestra da peregrinação na Fé; e, com confiança, pedi ao Senhor que mande, juntamente convosco, muitos outros trabalhadores para a messe, pois o campo que vos espera é imenso. Com estes sentimentos, de todo o coração, dou-vos a minha Bênção Apostólica.





Discursos João Paulo II 1990