Discursos João Paulo II 1982 - 12 de Maio de 1982


PEREGRINAÇÃO APOSTÓLICA EM PORTUGAL

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

AOS BISPOS PORTUGUESES


NA RESIDÊNCIA DE NOSSA SENHORA


DO CARMO EM FÁTIMA


Quinta-feira, 13 de Maio de 1982



Veneráveis e queridos Irmãos no Episcopado,

1. AQUI EM FÁTIMA, no ambiente em que a vossa Conferência Episcopal costuma celebrar suas reuniões habituais, o Sucessor de Pedro tem hoje a ventura e a alegria de encontrar-vos e reunir-se convosco. Esta circunstância, em si mesma secundária, reveste entretanto um significado: estar aqui fisicamente no meio de vós torna concreto em mim o sentimento de que espiritualmente aqui estive e aqui estarei de agora em diante, sempre que neste lugar vos reunirdes colegialmente.

Quanto a mim, quisera aproveitar esta hora de convívio fraterno, no quadro da minha peregrinação a Fátima e visita pastoral a Portugal, para reflectir convosco sobre alguns aspectos da missão como Pastores do vosso povo e como Conferência Episcopal. O Concílio Vaticano II, como bem sabeis, realçou a importância das Conferências Episcopais como elemento de comunhão e expressão dos affectus collegialis do Episcopado entre si, sob a dependência e união com o Sucessor de Pedro.

É nesta união afectiva que aqui vos saúdo hoje, amádos Irmãos, com o ósculo da paz: saúdo o Senhor Presidente, Dom Manuel de Almeida Trindade, e cada um de vós, Bispos que integrais esta Conferência Episcopal Portuguesa.

A presença particularmente viva e sentida de Nossa Senhora neste Santuário contribui para fazer do nosso encontro uma expressiva imagem daquela “sala superior” onde, no dizer dos Actos dos Apóstolos, os Onze “eram assíduos à oração com Maria, Mãe de Jesus” (Cfr. Act Ac 1,14) e onde, provavelmente, Pedro e os outros Apóstolos se achavam com Nossa Senhora na manhã de Pentecostes.

Este momento breve mas denso que vivemos “com Maria”, aqui, seja para nós e para Igreja em Portugal um tempo de verdadeiro Pentecostes. Para isso nos assista com a sua luz e com a sua força o Espírito do Pai e do Filho.

2. Enquanto me é possível conhecer a realidade humana do vosso País, a partir do contacto com alguns de vós e com vossos fiéis em Roma, impressionam-me alguns aspectos ligados sobretudo ao momento histórico que Portugal está a viver.

Trata-se certamente de um momento de transição. Como em todos momentos de transição, sobretudo quando esta, por ser rápida e profunda, assume as características de verdadeira mutação cultural, fazem-se presentes – às vezes alternativamente, outras vezes confusamente – entusiasmo e ansiedade, ousadia e medo, abertura para um futuro encarado com optimismo e necessidade de reafirmar, se não recuperar, valores sólidos do passado. É que tais valores, não raro, são sacrificados em momentos de euforia.

Admiro neste Portugal, desejoso de ser uma Nação moderna, inserida na Europa contemporânea, a interessante coexistência de características tradicionais, enraizadas numa história muito antiga e rica de tradições, com outras características dependentes da abertura para o futuro.

Quanto à problemática pastoral, forçosamente influenciada pelo que acontece no plano humano e civil, não me surpreende entrever no Portugal actual notável convivência de um profundo sentimento religioso, do qual as multidões que estou a ver em Fátima são apenas um aspecto, mas que se manifesta ainda mais na vida das Paróquias de certas zonas do País e, por outro lado, uma inegável marca daquilo que, para abreviar, denominarei secularismo: agnosticismo nos meios intelectuais, universitários e de largas faixas da juventude; certa concepção da vida ou certo humanismo sem Deus; graves problemas no ambiente familiar, sobretudo no que diz respeito à indissolubilidade do matrimónio; afrouxamento da consciência moral e consequente relaxamento dos costumes; procura do bem-estar a qualquer preço, etc.

A Igreja, pelo que existe de espiritual e religioso, de ético e humano nestas realidades, não as pode ignorar. Ela possui critérios e pontos de referência que a levam a tomar posição diante dos muitos problemas concretos que brotam dessa conjuntura de transição ou, mais exactamente, de mutação. Ela tem interesse em não se deixar atropelar pelas contradições e desafios que tal conjuntura apresenta. Ao contrário, procura identificar esses desafios para poder oferecer-lhes uma resposta antes que se tornem insolúveis.

3. Neste ponto os Pastores da Igreja têm um papel de primordial importância que, em virtude do carisma episcopal e de um mandato de Deus, só a eles pertence. Ninguém assumirá esse papel, se eles não o assumirem.

Este múnus do Bispo está relacionado fundamentalmente com o carisma de Pastor, um dos principais da vocação episcopal.

Se não fosse breve o tempo e premente o programa, cederia ao desejo de descer convosco às profundezas deste carisma, tal como o revela São João no admirável capítulo décimo do seu Evangelho. Numa parábola e respectiva explicação, Jesus fala do Pastor à luz da sua condição de Bom Pastor. Haveria muito a dizer sobre o Pastor que conhece as ovelhas pelo nome; que dá a vida por elas; que as defende contra os ladrões, ou contra o lobo. Poderíamos reler juntos Santo Agostinho ou São Gregório Magno, nalgumas das suas páginas mais belas sobre o pastoreio, a que o primeiro chama “officium amoris” e o segundo, referindo-se à cura d’almas, chama “ars artium”.

Aqui desejo sublinhar apenas uma função do Pastor: a de guiar o rebanho. Guiar é ir à frente. À frente para fazer o reconhecimento do caminho: medir a profundidade das torrentes, detectar perigos, garantir a marcha; à frente para estimular e incutir coragem; à frente para mostrar o rumo certo e evitar desvios. Nas fases de instabilidade e mudança, é indispensável e preciosa a função destes guias e é abençoado o povo que os encontra nos seus Bispos.

Se pela graça do Espírito Santo, pelas virtudes e dotes cultivados com esforço e oração e pela sólida preparação, os Bispos de um País forem capazes de discernir, com clarividência, o sinal dos acontecimentos, muitos encontrarão neles alguém que, no meio de realidades ambíguas, porque polivalentes, faça a crítica das situações, das tendências, das correntes de pensamento e das ideologias e interrompa assim a marcha incerta. Se além de guias são pais, saberão incentivar a seguir por novos caminhos, ainda que desconfortáveis, abandonando os atractivos de sendas mais fáceis, mas quase sempre enganadoras.

A Igreja, especialmente esta sua parcela que está em Portugal, e aquele sobre quem pesa o ónus do Sumo Pontificado sabem que vós, Bispos portugueses, estais conscientes da vossa missão de Pastores e guias. Continuai a pô-la em prática sem hesitações, sobretudo quando se trata de indicar o rumo certo, no meio de um emaranhado de possíveis caminhos. A este propósito, tenho repetido que a Igreja não se arroga o direito de impor a ninguém a sua doutrina; mas tem o direito-dever de propô-la, com humildade e amor. Parafrasando Paulo VI na “Evangelii Nuntiandi”, posso dizer que, se nós Bispos propusermos com desassombro a via da Igreja, quem, por preconceito, despreza tal proposta, pode pecar, mas a nossa consciência de nada nos acusará. Se, ao contrário, por cansaço ou temor, respeito humano ou incerteza das próprias convicções, deixarmos de propor o que sabemos ser a verdade, quem por causa disso permanecer na ignorância do Evangelho e de Cristo, talvez não peque, mas nós não seremos isentos de culpa.

4. A determinada altura o carisma do Pastor-guia encontra-se profundamente ligado ao de educador da fé. Guiar uma pessoa ou uma colectividade, orientar um processo de transformação, na perspectiva de um Bispo, é educar na fé.

Quanto mais observo a fé do vosso povo, sobretudo da gente simples, mais a admiro pelas raízes ancestrais que ela lança na alma dessa gente. Pela sua espontaneidade e singeleza, pelos gestos concretos que suscita e pelas atitudes que provoca nas relações com Deus e o seu Filho Jesus, com o sofrimento e com a própria morte, com as outras pessoas e com os acontecimentos, com o mundo presente e com o futuro. Por outro lado, vejo essa fé exposta ao perigo e até, como escreveu Paulo VI na “Evangelii Nuntiandi”, assediada por muitas forças corrosivas, ameaçada na sua integridade e até na sobrevivência; isso porque, em virtude de circunstâncias históricas, que não podemos analisar aqui, essa fé não é sempre tão sólida quanto espontânea, nem tão profunda quanto sincera.

O vosso primeiro compromisso perante esta fé do vosso povo, é o de reconhecê-la e apreciá-la; de respeitar as suas manifestações autênticas; de defendê-la contra os fermentos que a põem em risco; de reforçá-la, libertando-a de eventuais elementos de crendice e superstição e dando-lhe mais conteúdo doutrinal. Numa palavra, é o compromisso de educá-la à luz da Palavra de Deus e do Magistério da Igreja, de nutri-la com uma verdadeira catequese. Reconhecendo os esforços que tendes feito e estais a incrementar, exorto-vos a prosseguir na caminhada, sobretudo no que se refere a iniciativas relacionadas com a formação cristã dos jovens e dos adultos.

Não se encontra menos ameaçada a fé dos filhos desta Nação que, formados nas ciências, nas técnicas e nas artes, precisariam de ter na mesma fé um nível correspondente ao do saber humano. Tanto mais, que graças ao próprio status intelectual, se vêem chamados a ocupar postos de responsabilidade, de influência e de decisão, na sociedade civil.

São diversas, nos dois casos, as exigências e os meios de aprofundamento da fé, mas é igual o dever dos Pastores. Com o esforço que tendes feito e continuareis a fazer, como mestres da fé, para torná-la nos vossos fiéis mais consciente e menos condicionada, mais arraigada e menos superficial, mais compromissiva e menos individualista, mais operante e menos intimista, estais a actuar não só em benefício deles, mas também em benefício da sociedade. Isto vale especialmente para aqueles que, nos mais diversos sectores, estão investidos de responsabilidades sociais.

Não vos paralise, pois, o pensamento, em si mesmo justo, de que não vos compete, como Bispos, dar contribuções técnicas, de ordem política ou económica, para a transformação social do vosso País. Tende a certeza de que, exercendo o vosso magistério e educando à fé as pessoas e comunidades que vos estão confiadas por Deus, estais a preparar cristãos que, transformados interiormente, transformação o mundo, através das soluções técnicas que, a eles sim, compete oferecer à comunidade.

Nesta linha de comportamento, a Igreja possui e dá a conhecer um humanismo alicerçado na Verdade revelada, uma visão do mundo baseada no Evangelho, uma escala de valores iluminada pela fé. Não temais nem hesisteis em assumir tudo isso, certos de estar a realizar, como mestres na fé, um serviço ao homem.

5. É impossível não frisar, nesta altura, um outro aspecto de particular interesse na missão episcopal. Refiro-me ao vosso papel de construtores, garantes e mantenedores da comunhão eclesial.

Foi com palavras claras e incisivas que o Divino Mestre, na hora suprema do adeus aos seus Apóstolos, exprimiu o valor teológico e espiritual da unidade na Igreja. A história, por sua vez, tem demonstrado repetidamente que a Igreja é portadora de um grande potencial de energia, e revela prodigiosa eficácia na sua missão quando dá testemunho de unidade; e que, desgraçadamente, fica tolhida, quando lhe falta esse testemunho. O Concílio Vaticano II, na Constituição Dogmática “Lumen Gentium”, enquadra com muita felicidade essa dimensão eclesial, ao definir a Igreja como comunhão dos fiéis com Deus e entre si, para ser, como consequência, germe, princípio e fermento de comunhão no seio da humanidade.

A vossa missão de Bispos é serdes princípio e sinal dessa comunhão, serdes dela artífices pacientes e perseverantes.

Como é óbvio, comunhão em primeiro lugar dos Bispos entre si e no seio da Conferência Episcopal. O serviço pastoral que exerceis exige, ao nível mais profundo, uma sólida comunhão entre vós. Fundamentos desta comunhão, bem mais fortes do que aquilo que poderia dividir, são o único Senhor que vos chamou, a única verdade que servis, a única salvação em Jesus Cristo que anunciais e a caridade fraterna que vos congrega na unidade. Que o empenho colegial e de colaboração, de que tendes dado testemunho em múltiplas ocasiões no passado, continue a ser incrementado com o estudo em conjunto e a partilha de iniciativas locais de projecção nacional, em espírito de verdadeira comunhão responsável.

É no seio dos vossos Presbitérios que se prolongará a edificação da comunhão eclesial.

Os documentos conciliares lançaram nova luz à antiga realidade do colégio presbiteral reunido em torno ao Bispo no governo pastoral de cada Igreja particular. Preconizando a criação do Conselho Presbiteral e recomendando outros modos de colaboração, o Concílio quer que se traduza em gestos e acções concretas a harmonia entre o Bispo e os seus padres que a Liturgia e a Teologia sempre exprimiram em conceitos admiráveis.

Para ser afectiva e efectiva ao mesmo tempo, essa comunhão deve ser procurada e cultivada cada dia. Ela exige esforços de parte a parte e não raro a superação de barreiras e resistências. O testemunho claro e visível desta comunhão é portador de estímulos para a comunhão a outros níveis.

Em segundo lugar, penso na comunhão que, por meio dos vossos presbíteros, deveis construir entre os fiéis.

Há muitos focos de tensão que tornam frágil e instável esta comunhão. Rótulo de “conservadores” e “progressistas” ou opções entre uma visão de Igreja mais espiritual e outra de maior empenho, ou a preferência por este ou aquele movimento eclesial: não é raro que tudo isso e muito mais ainda se torne ocasião de rupturas profundas na comunidade eclesial. Sem falar da tentação, sempre viva, de criar ou pelo menos deixar que se criem na Igreja as oposições e confrontos de classe que explodem funestamente na sociedade.

É dever dos Bispos, em união com seu Presbitério, não só não agravar os fermentos de divisão, mas reforçar os vínculos de unidade. A construção da comunhão eclesial não consiste – come bem sabeis – em desconhecer ou minimizar os conflitos, os germes de separação. Consiste em revelar e fazer prevalecer com tal credibilidade as forças de comunhão, em criar e em pôr em acção tais fermentos de unidade que as coisas que unem sejam afinal bem mais poderosas do que as que dividem.

Neste ponto os esforços despendidos por um Bispo para construir a unidade, vêem-se compensados pela irradiação do testemunho dessa mesma unidade.

6. Não quero encerrar estas considerações sem vos confiar algumas esperanças, na certeza de que elas correspondem aos vossos anseios e que este nosso encontro vos estimulará a intensificar esforços nos campos que agora recordo.

O primeiro campo é o das vocações para o ministério presbiteral e para a vida consagrada.

A Igreja habituou-se a receber do vosso País numerosos sacerdotes e religiosos ou religiosas, disponíveis para o serviço eclesial, quer na vossa Pátria, quer na actividade missionária em outros Países.

Seria absurdo pensar que Deus já não chama, em Portugal, como noutras terras, jovens cristãos, capazes e generosos, para o ministério sacerdotal ou para a vida religiosa. Importa e é urgente saber convocar esses jovens propondo-lhes um ideal exigente mas claro, uma identidade bem definida, um campo de acção capaz de lhes ditar o dom de toda a vida. Os Bispos, mais do que ninguém, devem assumir o empenho de fazer chegar ao maior número possível de jovens cristãos o convite de Cristo; e depois o empenho, não menor, de proporcionar-lhes um quadro de formação, um apoio ao seu ideal e uma tal perspectiva de emprego da própria vida, que eles se deixem fascinar por isso.

Continuai a prestar a máxima atenção à catequese. Só ela, se for bem orientada, quanto ao método e quanto ao conteúdo, pode assegurar ao vosso povo a possibilidade de crescer na própria fé.

Tendes em Bispos portugueses, do passado antigo e recente, modelos de Pastores atentos à urgência da catequese e dedicados a promovê-la entre os seus fiéis, com sentido de oportunidade, extremo cuidado quanto às verdades a transmitir e sensibilidade pastoral na busca da linguagem adaptada às pessoas a catequizar. Como símbolo evoco a figura admirável do Venerável Frei Bartolomeu dos Mártires, o grande Arcebispo de Braga, protagonista no Concílio de Trento, rico de virtudes e de zelo apostólico.

7. Partilho convosco, enfim, a minha preocupação pastoral quanto à família e aos seus autênticos valores.

Tenho consciência de encontrar-me num País que, ao longo da sua história, sempre teve a instituição familiar e os autênticos valores da família como pilares da sua civilização. É sabido também que, no centro da cultura que Portugal irradiou para além das suas fronteiras, nos novos mundos que foi descobrindo, se encontrou sempre o amor e respeito por esses valores familiares.

Como tive ocasião de salientar na Exortação Apostólica “Familiaris Consortio”, esses valores nada perdem da sua actualidade: por eles passa o caminho para um humanismo pleno e cristão; e um insuficiente cultivo dos mesmos é certamente uma das raízes da grave crise moral que a todos nos inquieta.

A mutação a que me referi há pouco, característica do actual momento histórico de Portugal, atinge directamente a família. Atinge-a como interpelação para reconhecer e reconfirmar os seus verdadeiros valores e a despojar-se de falsos valores que, porventura se houvessem infiltrado nela. Atinge-a também, ferindo-a naquilo que lhe é essencial: a comunhão interpessoal, o amor como dom de si, como ajuda mútua, como perdão e como auto-superação, a unidade, a perenidade, a fidelidade e a fecundidade desse amor, a intimidade e a generosidade do lar, o respeito unido à estima e ao afecto na educação dos filhos, etc.

Quero convidar-vos a dar sempre um lugar eminente à família nas vossas preocupações de Pastores e guias. Continuai a examinar em conjunto qual é a situação real da família nas várias camadas sociais deste País: os grandes valores que nela existem, os males que a afligem e as ajudas que ela requer. E, com a cooperação ampla das várias instâncias eclesiais ou mesmo extra-eclesiais competentes, elaborai um plano de longo alcance não somente para a defesa e a salvaguarda, mas também e sobretudo para a promoção positiva da família. Incluí nessa Pastoral familiar todos os sectores, desde a educação para o amor até à ajuda a prestar às famílias sacudidas por crises mais ou menos graves e profundas.

Já sabeis que, ao incentivar quanto tendes realizado neste ponto, estareis a prestar, dentro da vossa missão própria, um notável serviço à Igreja, a qual tem nas famílias as suas células vivas. Indirectamente, neste campo, estareis a beneficiar também a sociedade portuguesa.

Veneráveis e amados Irmãos:

Agradeço a Deus que, sempre rico de graças, me proporcionou este encontro convosco. Não preciso repetir-vos que, na vida e actividade do Papa, os momentos que passa com os seus irmãos Bispos, tratando com eles de questões essenciais da vida e acção da Igreja, numa linha de co-responsabilidade colegial vivida, são dos mais densos. Ele nunca pode esquecer que, ao defini-lo como princípio visível de unidade, a “Lumen Gentium” acrescenta que ele o é, antes de tudo, em relação aos Bispos.

Por isso, depois de agradecer a Deus, quero agradecer-vos a vós também, por terdes querido esta reunião. A cada um de vós e à Igreja local representada por cada um de vós: ao seu presbitério, aos seus religiosos e religiosas, às suas famílias e pessoas, saúdo de coração e de coração abençoo in Domino. Peço a Deus que vele sobre vós, as vossas ânsias pastorais, os vossos êxitos e os vossos esforços. Que Ele vos assista nos vossos trabalhos e vos abençoe sempre.

E destas alturas de Fátima, que Nossa Senhora vos proteja sob o seu olhar materno, enquanto em todo o País vos devotais pela construção do Reino de Seu Filho.



PEREGRINAÇÃO APOSTÓLICA

DO PAPA JOÃO PAULO II EM PORTUGAL

ACTO DE CONFIANÇA E DE CONSAGRAÇÃO

À NOSSA SENHORA DE FÁTIMA




“À vossa protecção nos acolhemos, Santa Mãe de Deus”!

1. AO PRONUNCIAR estas palavras da antífona com que a Igreja de Cristo reza há séculos, encontro-me hoje neste lugar escolhido por Vós, ó Mãe, e por Vós especialmente amado.

Estou aqui, unido com todos os Pastores da Igreja por aquele vínculo particular, pelo qual constituímos um corpo e um colégio, assim como Cristo quis os Apóstolos em unidade com Pedro.

No vínculo desta unidade, pronuncio as palavras deste Acto, no qual desejo incluir, uma vez mais, as esperanças e as angústias da Igreja no mundo contemporâneo.

Há quarenta anos atrás, e depois ainda passados dez anos, o Vosso servo o Papa Pio XII, tendo diante dos olhos as dolorosas experiências da família humana, confiou e consagrou ao Vosso Coração Imaculado todo o mundo e especialmente os Povos que eram objecto particular do vosso amor e da vossa solicitude.

Este mundo dos homens e das nações também eu o tenho diante dos olhos, hoje, no momento em que desejo renovar a entrega e a consagração feita pelo meu Predecessor na Sé de Pedro: o mundo do Segundo Milénio que está prestes a terminar, o mundo contemporâneo, o nosso mundo de hoje!

A Igreja, lembrada das palavras do Senhor: “Ide... e ensinai todas as nações... Eis que eu estou convosco todos os dias, até ao fim do mundo” (Mt 28,19-20), no Concílio Vaticano II, renovou a consciência da sua missão neste mundo.

Por isso, ó Mãe dos homens e dos povos, Vós que “conheceis todos os seus sofrimentos e as suas esperanças”, Vós que sentis maternamente todas as lutas entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas, que abalam o mundo contemporâneo, acolhei o nosso clamor que movidos pelo Espírito Santo, elevamos directamente ao Vosso Coração, e abraçai com o amor da Mãe e da Serva este nosso mundo humano, que Vos confiamos e consagramos, cheios de inquietação pela sorte terrena e eterna dos homens e dos povos.

De modo especial Vos entregamos e consagramos aqueles homens e aquelas nações, que desta entrega e desta consagração particularmente têm necessidade.

“À Vossa protecção nos acolhemos Santa Mãe de Deus”! Não desprezeis as nossas súplicas, pois nos encontramos na provação!

Não desprezeis!

Acolhei a nossa humilde confiança e a nossa entrega!

2. “Porque Deus amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho unigénito, para que todo aquele que n’Ele crer, não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jn 3,16).

Precisamente este amor fez com que o Filho de Deus se tenha consagrado a si mesmo: “Eu consagro-me por eles, para eles serem também consagrados na verdade” (Ibid. 17, 19).

Em virtude desta consagração, os discípulos de todos os tempos são chamados a empenhar-se pela salvação do mundo, a ajuntar alguma coisa aos sofrimentos de Cristo em benefício do Seu Corpo, que é a Igreja (Cfr. 2Cor 2Co 12,15 Col 1,24).

Diante de Vós, Mãe de Cristo, diante de Vosso Coração Imaculado, desejo eu, hoje, juntamente com toda a Igreja, unir-me com o nosso Redentor nesta sua consagração pelo mundo e pelos homens, a qual só no seu Coração divino tem o poder de alcançar o perdão e de conseguir a reparação.

A força desta consagração permanece por todos os tempos e abarca todos os homens, os povos e as nações, e supera todo o mal, que o espírito das trevas é capaz de despertar no coração do homem e na sua história, e que, de facto, despertou nos nossos tempos.

A esta consagração do nosso Redentor, mediante o serviço do sucessor de Pedro, une-se a Igreja, Corpo místico de Cristo.

Oh! quão profundamente sentimos a necessidade de consagração, pela humanidade e pelo mundo: para nosso mundo contemporâneo, na unidade com o próprio Cristo! Na realidade, a obra redentora de Cristo deve ser participada pelo mundo pela mediação da Igreja.

Oh! quanto nos penaliza, portanto, tudo aquilo que na Igreja e em cada um de nós se opõe à santidade e à consagração! Quanto nos penaliza que o convite à penitência, à conversão, à oração, não tenha encontrado aquele acolhimento que devia!

Quanto nos penaliza que muitos participem tão friamente na obra da Redenção de Cristo! Que tão insuficientemente se complete na nossa carne “aquilo que falta aos sofrimentos de Cristo!” (Col 1,24).

Sejam benditas portanto, todas as almas que obedecem à chamada do Amor eterno! Sejam benditos aqueles que, dia após dia, com generosidade inexaurível acolhem o Vosso convite, ó Mãe, para fazer aquilo que diz o Vosso Jesus (Cfr. Io Jn 2,5) e dão à Igreja e ao mundo um testemunho sereno de vida inspirada no Evangelho.

Sede bendita, acima de todas as criaturas, Vós, Serva do Senhor, que mais plenamente obedeceis a este Divino apelo!

Sede louvada, Vós que estais inteiramente unida à consagração redentora do Vosso Filho!

Mãe da Igreja! Iluminai o Povo de Deus nos caminhos da fé, da esperança e da caridade! Ajudai-nos a viver com toda a verdade da consagração de Cristo pela inteira família humana, no mundo contemporâneo.

3. Confiando-Vos, ó Mãe, o mundo, todos os homens e todos os povos, nós Vos confiamos também a própria consagração em favor do mundo, depositando-a no Vosso Coração materno.

Oh, Coração Imaculado! Ajudai-nos a vencer a ameaça do mal que tão facilmente se enraíza nos corações dos homens de hoje e que, nos seus efeitos incomensuráveis, pesa já sobre a nossa época e parece fechar os caminhos do futuro!

Da fome e da guerra, livrai-nos!

Da guerra nuclear, de uma autodestruição incalculável e de toda espécie de guerra, livrai-nos!

Dos pecados contra a vida do homem desde os seus primeiros instantes, livrai-nos!

Do ódio e do aviltamento da dignidade dos filhos de Deus, livrai-nos!

De todo o género de injustiça na vida social, nacional e internacional, livrai-nos!

Da facilidade em calcar aos pés os mandamentos de Deus, livrai-nos!

Dos pecados contra o Espírito Santo, livrai-nos, livrai-nos!

Acolhei, ó Mãe de Cristo, este clamor carregado do sofrimento de todos os homens! Carregado do sofrimento de sociedades inteiras!

Que se revele, uma vez mais, na história do mundo, a força infinita do Amor misericordioso! Que ele detenha o mal! Que ele transforme as consciências! Que se manifeste para todos, no Vosso Coração Imaculado, a luz da Esperança!

Quero dirigir-vos ainda uma oração especial, ó Mãe que conheceis as ansiedades e as preocupações dos vossos filhos. Suplico-vos, em imploração ardente e dorida que interponhais a vossa intercessão pela paz no mundo, pela paz entre os povos que, em diversas partes, contrastes de interesses nacionais e actos de prepotência injusta opõem sangrentamente entre si. Suplico-vos, em particular, que cessem as hostilidades que dividem já, há muitos dias, dois grandes Países nas águas do Atlântico meridional, causando dolorosas perdas de vidas humanas. Fazei com que se encontre finalmente uma solução justa e honrosa entre as duas Partes, não apenas pela controvérsia que as divide e ameaça com consequências imprevisíveis, mas também, e sobretudo para o restabelecimento entre elas da mais digna e mais profunda harmonia, como convém à sua História, à sua civilização e às suas tradições cristãs. Que em breve a grave e preocupante controvérsia seja superada e concluída, de tal maneira que também se possa realizar felizmente a minha projectada viagem pastoral à Grã-Bretanha, para ser satisfeito não só o meu desejo pessoal, mas também o de todos aqueles que esperam ardentemente esta visita e que com tanto empenho e com todo o coração a têm vindo a preparar.



PEREGRINAÇÃO APOSTÓLICA EM PORTUGAL

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

AO CLERO, AOS RELIGIOSOS E ÀS RELIGIOSAS


POR OCASIÃO DA INAUGURAÇÃO


DO CENTRO PASTORAL «PAULO VI»


Fátima, 13 de Maio de 1982



Queridos Padres, Irmãos e Irmãs,

1. A VÓS, que estais em Deus Pai e no Senhor Jesus Cristo, graça, misericórdia e paz, na verdade e no amor do Espírito Santo que nos foi concedido (Cfr. 1Thess. 1, 1; Rm 5,4)!

Estas palavras do Apóstolo São Paulo exprimem os meus sentimentos e antecipam os meus votos, esta tarde, neste encontro, que se reveste de singular importância para mim e, creio poder dizer, também para vós. É uma grande alegria, é belo estar convosco – Sacerdotes, Religiosos, Religiosas e Seminaristas de Portugal – poder saudar-vos e falar-vos pessoalmente.

Sinto-me sempre inundado de sentimentos de júbilo, gratidão e esperança, quando me é dado encontrar-me com pessoas consagradas ou que se preparam para a consagração; é um estado de ânimo que em mim tem a intensidade e vibração de único encontro, que não se pudesse repetir nunca mais, com pessoas para mim muito queridas. Também eu, pela graça divina, sou sacerdote de Jesus Cristo; e cresce cada dia em mim a estima pelo sacerdócio e pela vida consagrada, pelo que representam e contribuem para a missão, vida e tesouro da Igreja, Corpo místico de Cristo. O Papa ama-vos no Senhor!

A comunhão de sentimentos que me irmana vitalmente convosco, neste momento, e a todos nos faz experimentar, de algum modo, a misteriosa realidade de “Corpo”, na nossa Santa Igreja, é iluminada pelo “olhar”, maternalmente carinhoso de Nossa Senhora. E aqui em Fátima, onde Ela é tão amada e venerada, ao saudá-la com afecto, a todos convido a fixar a sua exemplaridade estimulante e, como “irmão mais velho”, em nome de todos, peço a Sua bênção de Mãe, em súplica: “Mãe de misericórdia, mostrai-nos Jesus, bendito fruto do vosso ventre!”.

E com a Sua bênção e patrocínio, confiantes, elevamos os nossos corações a Deus, nosso Pai, em acto de louvor agradecido: porque nos ama e, “foi Ele que nos amou primeiro a nós” (1 Io 4, 10); não fomos nós, nem nossos pais a tomar a iniciativa, a escolher ser criados, baptizados e incorporados na sua Igreja. A iniciativa partiu do “amor fontal”, Princípio sem princípio, de Quem procede o Espírito Santo pelo Filho; sim, foi iniciativa liberalíssima da caridade de Deus Pai, que quis derramar e não cessa de derramar a Sua bondade, termos sido criados pela sua extraordinária e misericordiosa benignidade e, depois, chamados gratuitamente a partilhar da sua vida e glória (cf. Ad Gentes AGD 2), nesta condição eclesial, que é a nossa. Bendito seja Deus!

2. E com o coração em Deus, voltemos o olhar novamente para a Mãe e imaginemos a Sua resposta abençoante e carinhosa, a dizer-nos: “Jesus Cristo?! Olha, tu podes descobri-lo nos Seus sinais. E são tantos esses sinais! E neste momento, talvez acrescentasse – para minha confusão – o “sinal” é o Papa. Passa além da sua pessoa, porque ele apenas Lhe empresta a própria expressão, a Ele, a Jesus-Cristo”. Com esta imagem, pretendo dizer, com franqueza, quanto me sinto limitado e, ao mesmo tempo, responsável diante d’Ele, Cristo, e de vós.

E apresentam-se ao meu espírito os momentos de intimidade do mesmo Senhor com “os seus”, com aqueles aos quais já não chamava “servos mas amigos”(cf. Io Jn 15,14), a quem fazia confidências e falava de coração a coração: da sua pena pelas multidões “como ovelhas sem pastor”(Mt 9,36), como “seara que loireja para ceifa”, sem haver braços para o trabalho; da qualidade do “sim” para esse trabalho (Mt 9,37)– nem seguranças materiais (Mt 10,9), nem capacidades pessoais (Mt 10,20) nem simples boas vontades (Jn 15,14) – mas disponibilidade, a nascer dum coração de pobre, cheio de confiança na força de Deus (Mt 10,16), de temor e de coragem (Mt 10,27). Enfim, aos “seus” amigos, falava francamente e do que lhes interessava.

E o Papa hoje deseja fazer o mesmo, sem passar além de “sinal” do grande Amigo de todos nós.

3. Vós, Sacerdotes e Religiosos, consagrastes a vida ao serviço do Evangelho, em momento de generosidade. Fostes “escolhidos” (Jn 15,16); e hoje sois os “chamados” por Deus, aos quais Ele confiou o maravilhoso dom dessa vocação especial, em função de toda a Igreja “para irdes e dardes fruto”, um fruto que permaneça (cf. Io Jn 15,16). Vós sois dom de Deus à Igreja em Portugal. Congratulando-me convosco, agradeço ao Senhor pela vossa presença generosa nesta “seara” sempre lourejante e pela vossa colaboração no servir e anunciar a Boa Nova da salvação.

Olhai: Deus è bom conhecedor das dificuldades, do “cansaço do dia e do seu calor”(Mt 20,12); e é fiel; da parte d’Ele, nunca faltarão as graças necessárias para a perseverança e feliz resposta à vocacão.

E da vossa parte, estou certo, não há-de faltar a generosidade e docilidade. E, não poderia ser de outra forma. Depois de tantos e tantos benefícios recebidos e de tantos outros que esperamos ainda de Deus, não teríamos vergonha – pergunta um Santo Bispo – de Lhe negar a única retribuição que Ele pede, o amor para com Ele e para com o próximo? Ousaríamos nós fechar o coração... ao Pai e recusar-nos a ser na verdade filhos e a atender aos outros, nossos irmãos? (cf. S. GREGORII NAZIANZENI, Serm., "De pauperum amore", 23: )

4. Gostaria de poder encontrar-me a sós com cada um a conversar sobre o seu diálogo de amor com Deus; sobre aquela história pessoal, história linda, certamente, começada no Baptismo, até ao dia em que “deixastes tudo” para seguir Cristo; e depois continuada ao longo da vossa caminhada com Ele, como chamados por Deus. Mas, não sendo possível quero dizer aqui a todos, como se fosse a cada um individualmente: Cristo é o sentido único, a medida e a finalidade da vossa vida; é Cristo das bem-aventuranças, da radicalidade do dom de si mesmo “por amor do reino dos Céus”.

E poderíamos percorrer as diversas “bem-aventuranças”. Sem possibilidade para tanto, raparemos, por exemplo, no espírito de pobreza: “Bem-aventurados os pobres em espírito porque deles é o reino dos céus” (Mt 5,3).

Numa sociedade que preza tanto o ter, em que parece campear a aspiração sempre renovada de bem-estar e conforto, que tão frequentemente se deixa fascinar pelo luxo, em contraste directo com gritantes misérias, a pobreza, e sobretudo o espírito de pobreza é desafio. Desafio para todos, para os ricos e para os pobres de bens materiais, e desafio em particular para os que fizeram a profissão” de pobreza evangélica.

A pobreza evangélica é algo mais do que simples renúncia aos bens materiais; é abandonar-se, “perder-se” em Deus. Cristo falou, certo dia, de um negociante que fez a escolha da pérola preciosa e permutou tudo o que possuía, para adquiri-la (cf. Matth. Mt 13,46). Exemplificou o discernimento dos bens superiores, “de grande valor”, concedido àqueles que sabem proceder com sabedoria. Pedro, após uma tal opção, atreveu-se a interrogar Cristo sobre esses “valores superiores”, pelos quais deixara tudo, para seguir o Mestre; e obteve a conhecida resposta: o cêntuplo na vida presente e a vida eterna”(cf. Matth. Mt 19,27-29).

Ao repensar esta permuta, que também nós fizemos, à luz do esclarecimento obtido por São Pedro, será que, nós próprios e os outros, não hesitamos em verifìcar a realização da promessa do Senhor? A nossa atitude íntima e o comportamento externo que os demais observam, será sempre de serena posse desse “cêntuplo” e de esperança na vida eterna? Ou parecerá, mais facilmente, que não abandonamos “tudo” – interrogações, “hipóteses” sem hipótese, “seguranças” humanas, “amarras” que não permitem “fazer-se ao largo” de todos os riscos etc. – e portanto, que não “recebemos” nada mais do que qualquer outro não “escolhido”, que se empenha totalmente em singrar na vida presente?

5. Não basta, certamente, deixar tudo, como vós sabeis, irmãos e irmãs: é preciso seguir Cristo, num esforço contínuo de identificação com Ele, com a Sua causa. Estamos no mundo, sem ser do mundo, constituídos entre os homens sinais da verdade e da presença de Cristo para o mundo. Entregámos-Lhe todo o nosso ser concreto, com a sua expressão, para Ele continuar a passar, fazendo o bem (cf. Act Ac 10,38).

Esta nossa entrega, “passagem de propriedade”, marcou-nos com um sinal particular, que passou a ser a nossa identidade. Com toda a nossa dignidade de pessoas “somos de” Cristo. Todos os que nos vêem hão-de poder reconhecer sem dificuldade, esta nossa única identidade. Para facilitar o acolhimento recíproco, nas reuniões e encontros é praxe corrente hoje as pessoas ostentarem bem visível a fotografia e os dados pessoais; e, sem embaraços, cada um é facilmente identificado. Deveria ser sempre assim connosco: os outros poderem começar o diálogo, silencioso ou franco, com o sacerdote, com o religioso e a religiosa, e até com o seminarista já identificados, chamados pelo nome, como “escolhidos por Deus”, patente nas atitudes e compostura exteriores.

Assim como é difícil viver e testemunhar a pobreza evangélica numa “sociedade de consumo” e da abundância, difícil se torna também, numa época de secularismo, ser sinal do religioso, do Absoluto de Deus. A tendência para o nivelamento, quando não para a inversão de valores, parece favorecer o anonimato da pessoa: ser como os demais, passar despercebido. E no entanto, a característica de ser “sal” e “luz (cf. Matth. Mt 5, 13ss)”, no mundo, permanece apelo de Cristo, em especial para os que se lhe consagraram. Igualmente permanece com todo o vigor a promessa: “A todo aquele que me confessar diante dos homens, também eu o confessarei diante do meu Pai (Mt 10,32).

Amados irmãos e irmãs: a “singularidade” do Mestre mereceu-Lhe apelativos bem pouco lisonjeiros (Mt 10,24). E o discípulo não é mais do que o Mestre. Os primeiros discípulos deixaram-nos o testemunho, aparecendo-nos “cheios de alegria, por terem sido considerados dignos de sofrer vexames por causa do nome de Jesus”(Ac 5,42); e a geração actual da Igreja deve ser portadora desse testemunho.

6. A fidelidade a Deus e aos homens exige liberdade interior e espiritual para alguém poder participar com eficácia na missão de Cristo. A vossa vocação é dom em ordem a esta missão. Sois chamados a trabalhar para o reino de Deus. E aqui, quero deter-me um pouco nesta reflexão convosco: o empenho apostólico e pastoral.

As tarefas da Igreja e na Igreja são múltiplas: do ministério aos serviços simples e escondidos e aos trabalhos que exigem cultura, junto de pessoas em diversas condições; mas sempre próximo do homem. Têm por isso surgido, suscitadas pelo Espírito Santo, muitas iniciativas para responder aos vários apelos e necessidades dos tempos e lugares. Um simples relance desta assembleia já nos indica essa variedade de formas de serviço do reino, ao mesmo tempo que nos manifesta a perene vitalidade da Igreja, bem como a sua constante solicitude, encarnada pelos Fundadores das Famílias religiosas e movimentos apostólicos, cada qual com a sua oportunidade e os seus méritos.

Entretanto, denominador comum, primeiro meio e a via mais eficaz para evangelizar participando em Igreja na missão de Cristo, permanece a pessoa com o seu testemunho de vida. Os outros meios e vias que se concretizam em obras e iniciativas, de maior ou menor favor entre os destinatários da evangelização, nunca hão-de fazer passar despercebidos e, menos ainda, fazer esquecer o que sois: sacerdotes, religiosos e religiosas. Mesmo quando, por justificados motivos, houvésseis de exercitar tarefas seculares, que isso permaneça subsidiário e subordinado à vossa condição e função primordial.

Nunca diminuais, por nada, esta identidade e nunca esqueçais a finalidade exacta do ministério e do serviço apostólico a que fostes chamados: conduzir os homens-irmãos dos nossos dias à comunhão com a Santissima Trindade. Nos nossos dias, existe a tentação crescente de procurar a segurança na propriedade, na ciência, no prestígio e no poder. Com a vossa fidelidade a todos os compromissos assumidos na Ordenação sacerdotal e com a vossa consagração a Cristo, vivida generosamente na pobreza, castidade e obediência, vós alertais os homens contra essa falsa segurança; vós lhes recordais a sua dimensão escatológica e indicais o “reino dos céus”, ao qual consagrastes a vossa capacidade de amar.

7. O nível do rendimento pastoral e apostólico estará sempre em proporção com a medida da vossa fidelidade em Cristo a tais compromissos de amor. É esta fidelidade que liberta o coração e inflama o espírito de amor total por Cristo e pelos seus irmãos no mundo (cf. Perfectae Caritatis PC 1 Perfectae Caritatis PC 12). E sabei-lo bem, a fidelidade assenta na cultivada união com o Senhor, mediante o renovar-se constante e profundamente pela oração e vida sacramental, a fim de manter o esplendor da vida em graça: “porque sem Mim, nada podeis fazer” diz-nos o mesmo Senhor (Jn 15,5).

Aqui, irmãos e irmãs, quereria fazer notar que está o fulcro da minha mensagem hodierna para vós. Se não houvesse perfeito equilibrio entre a vossa vida com Deus e as actividades desenvolvidas ao serviço dos homens, estaria comprometida não só a obra de evangelização em que estais empenhados, mas também a vossa condição pessoal de evangelizados. A oração é a alma do vosso trabalho pelo reino: a oração litúrgica, centrada na Eucaristia, recebida e vivida com aquela pureza de consciência que exige o recurso ao sacramento da Reconciliação, celebrado devidamente, o que não admite paliativos; a Liturgia das Horas, a marcar o ritmo da contínua adoração, “em espírito e verdade”, com presença “querida” da Virgem dada à oração, a Serva do Senhor, modelo de quantos querem servir o Senhor.

8. Com a exigência do testemunho de vida, igualmente o dever do anúncio da salvação de Cristo, há-de ser sentido, como nos é “presso por São Pedro: “não podemos deixar de falar”(Ac 4,20). Haverá sempre alguma oportunidade para lançar a semente; mas esta só pode ser a da verdade e do bem; como só resultará fecunda se envolta em hábitos de oração e de meditação e estudo da Palavra de Deus, segundo a leitura do Magistério autêntico.

Hoje a maravilha dos meios de comunicação informa de tudo e nem sempre com isenção e objectividade; por isso, há muito quem precise de ser esclarecido, orientado e ajudado a discernir. Tende sempre no coração o sentido da partilha do conhecimento e adesão à Verdade, que já identificastes em Cristo (cf. Io. Jn 14,6); e com amor, fiéis à verdade, adoptai o lema de São Francisco de Assis: levar a fé onde haja dúvida.

É pela verdade, antes de mais, que se constrói a unidade: a comunhão das mentes facilmente se transforma em união dos corações, na convergência de intentos, para a mesma causa. Um reino dividido contra si mesmo não pode subsistir (cf. Luc Lc 11,17). O apostolado dividido aniquila-se a si próprio. E sabemos que se dividirá se ceder à tentação do exclusivismo, avessa à justa diversidade de dons e carismas, ou à tentação do isolamento, desinteressado ou estancado em relação ao trabalho dos outros, sem se enquadrar em programas ou planos comuns de pastoral. Se há diversidade de dons, de serviços e de operações, a fonte é a mesma e “a cada um é dada a manifestação do Espírito para proveito comum”(1Co 12,7).

9. Na minha aprendizagem da vossa bela língua, ficou-me esta frase da sabedoria popular: “É com o falar que a gente se entende”. A união de forças dos obreiros da evangelização exige entendimento; e este, por sua vez, só se encontrará mediante o diálogo autêntico, também com as suas componentes de ordem afectiva. Como é belo e importante encontrar-se como irmãos, num plano mais profundo do que a pura comunicação conceptual! Encontrar-se também por amizade, para partilhar os bens espirituais, em afirmação de plenitude humana, na voluntária e genuína pobreza de espírito. Todas as vezes que se dão tais encontros – a vossa experiência vo-lo dirá, certamente – com os irmãos de ministério, de vida comum ou de apostolado, fica revigorado o nosso sentido da vida e participação na missão de Cristo. Depois, reparemos, foi o Mestre a dizer-nos: “nisto todos reconhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros”(Jn 13,35).

E aqui seria o caso de alargar as considerações sobre a validade do diálogo na caridade a toda uma série de situações vitais. Limito-me só a duas simples indicações:

– o caso de pessoas idosas (sacerdotes, religiosos e religiosas), neste Ano Internacional da Terceira Idade, e dos inválidos: para eles dirijo uma palavra de viva simpatia e uma saudação afectuosa, dizendo-lhes: vós sois importantes para a Igreja de Cristo, hoje como ontem. Com São Pedro Crisólogo, peço-vos: fazei do vosso coração um altar; e, com toda a confiança, oferecei o vosso corpo como vítima a Deus, com fé e generosidade! O Papa vos ama e vos abençoa!

– as relações com a autoridade coordenadora: aqui, o diálogo, assente em colaboração dócil e leal e na obediência, tem um alcance inestimável e vantagens recíprocas que só podem aproveitar para o enriquecimento pessoal e do tesouro da Igreja, e para a eficácia do trabalho de evangelização.

E, ampliando o conceito de diálogo, diria que para obviar ao perigo de um gradual empobrecimento da vida sacerdotal e consagrada, por “entropia” se não mesmo por ancilose, temos de manter os contactos com as fontes da nossa formação inicial de base, temos que atender à formação continuada; igualmente, para um adequado anúncio da Boa Nova, impõe-se o “diálogo” com a cultura do nosso mundo ambiente, em constante empenho de actualização discernida, para poderem ser acolhidas as razões da esperança que nos anima (cf. 1 Petr. 3, 15) e desejamos transmitir aos outros.

10. Ficaria a faltar alguma coisa à alegria deste nosso encontro, se não fizéssemos uma breve visita, em espírito, aos irmãos e irmãs que consagram a vida à contemplação, e vivem em silencioso recolhimento e na clausura a própria doação pessoal “por amor do reino dos Céus”. E que lhes vamos dizer?

Primeiro de tudo, exprimir-lhes a nossa fraterna gratidão jubilosa, pelo que são e pelo que representam para nós, para a missão da Comunidade eclesial e para o mundo, situados como estão no coração do mistério da Igreja. A vida contemplativa é absolutamente vital para a mesma Igreja e para a humanidade, sempre necessitadas do oxigénio purificador e renovador da graça, aspirado e distribuído por essa oração e imolação escondidas dos nossos irmãos contemplativos.

Mais: a sua imolação silenciosa proclama o Absoluto de Deus e interpela os homens-irmãos a interrogarem-se sobre o sentido da vida; e o seu amor aplicado na adoração e na súplica, derrama-se na história dos mesmos homens: dos que já conhecem e dos que ainda não conhecem o Senhor da história e a salvação que Ele propõe; uns e outros a terem de construir a justiça e a fraterna convivência cada vez mais segundo os desígnios divinos.

E quereria repetir-lhes algo que nesta peregrinação a Fátima sinto mais vivo, mas que sempre tenho no coração, quando me dirijo aos contemplativos: orai e sacrificai-vos por nós e por todos os que também rezam, pelos que não podem rezar, pelos que não sabem rezar e pelos que não querem rezar! E o Deus da paz esteja sempre convosco!

11. E aos irmãos mais novos – os seminaristas e os que estão a preparar-se para abraçar a vida consagrada – quero deixar também uma palavra, de grande afeição, de ânimo e de muita confiança. Vós ocupais um lugar especial no coração do Papa, na esperança da Igreja e, em especial, da Igreja deste País, de tão benemérita tradição quanto a vocações sacerdotais e religiosas. Em vós, vejo e saúdo os aspirantes ao Sacerdócio e à vida religiosa de todo o Portugal. E posso dizer-vos: que saudade dos meus tempos de seminarista e, que alegria estar hoje convosco!

Mas, no horizonte desta alegria, também aqui em Portugal passam nuvens, que nos trazem espontaneamente à lembrança a exclamação do Senhor: “a messe é grande, mas os trabalhadores são poucos”(Lc 10,2). E com tal lembrança, sai-me do coração o apelo a todos os que neste problema estão implicados – e é afinal todo o Povo de Deus – a dedicarem toda a boa vontade ao campo das vocações: pela oração insistente, pela exemplaridade, sobretudo da parte dos já “escolhidos”, e pela adequada actuação pastoral, a começar na família, passando pela várias comunidades e pela escola, até aos planos e programações pastorais de conjunto. Sei que já vos aplicais neste sentido e desejo que as minhas palavras vos confortem e encoragem.

E àqueles que nos Seminários e Casas de Formação dão o melhor de si mesmos para cultivar com o carinho da Mãe Igreja estas esperançosas plantas, destinadas a frutificar em santos sacerdotes e religiosos ou religiosas, quero afirmar toda a estima e repetir-lhes, embora o saibam já: não estais sós, no vosso trabalho generoso e precioso; toda a Igreja vos acompanha. Sabei que o Papa vos apoia e vos aprecia, como o fazem os vossos Bispos e Superiores religiosos. A vossa colaboração seja sempre abençoada por Deus!

E vós, jovens meus amigos, cultivai o ideal, amai a vida e dai-lhe uma finalidade nobre! Estais num momento da existência em que deveis falar muito a Deus dos homens, para mais tarde poderdes falar aos homens de Deus. Existe uma frase feita, que certamente conheceis, mas que vos quero lembrar: “há três muitos que recompensam outros três: muito estudo, muita ciência; muita reflexão, muita sabedoria; muita virtude, muita paz”. Coragem!

Irmãos e Irmãs:

O pobre em espírito é aquele que crê e se abandona ao Evangelho da caridade e da misericórdia de Deus e o vive no quotidiano; o consagrado é aquele que afirma e vive em si mesmo o senhorio absoluto de Deus, que quer ser tudo em todos (cf. 1Co 15,28); o evangelizador é o que proclama a Boa Nova que tem no coração e o torna interior e espiritualmente livre. Sede fiéis à vossa vocação sublime!

E que a Virgem Maria, Mãe da Igreja – Nossa Senhora de Fátima – esteja sempre presente na vossa vida, com o seu exemplo e a sua protecção, e vos obtenha constante serenidade, consolação e alegria do Seu Filho Jesus Cristo, em nome do Qual vos abençoo, de todo o coração.





Discursos João Paulo II 1982 - 12 de Maio de 1982