Discursos João Paulo II 1982 - Fátima, 13 de Maio de 1982


PEREGRINAÇÃO APOSTÓLICA EM PORTUGAL

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

AOS COLABORADORES


DO SANTUÁRIO DE FÁTIMA


13 de Maio de 1982



Amados irmãos e irmãs no Senhor.

1. SAI-ME DO CORAÇÃO uma palavra de grande simpatia e apreço por todos vós, Servitas de Nossa Senhora de Fátima e demais colaboradores na assistência que aqui se presta aos peregrinos; e também para vós, trabalhadores, que aqui tendes dado o vosso esforço, para as obras deste imponente conjunto. Parece-me que ficaria a faltar alguma coisa à alegria íntima e inolvidável desta minha peregrinação a Fátima, se vos não dissesse um sentido, estimulante, e cordial “bem hajam!”.

A celebração da Santa Missa desta manhã avivou em mim a grata recordação de muitas outras peregrinações em que tive a alegria de tomar parte, na minha terra natal – ao Santuário de Jasna Góra e de Czestochowa, principalmente – e nas minhas visitas apostólicas pelo mundo – de Guadalupe ate Fátima.

Conheço bem, por experiência direta, o valor dos vossos serviços e dedicação, para assistir e ajudar os peregrinos a sentirem-se bem, neste local abençoado. Mas conheço e avalio ainda mais o que, consciente ou inconscientemente, fazeis com generosidade e sacrifício, para proporcionar um encontro de amor, pela Mãe celeste, com o Pai que está nos Céus, e para alentar, no coração da cada romeiro, a fé e o sentido cristão da vida. Frequentemente daí resulta um reencontro consigo próprio e um crescer em docilidade à voz de Maria Santíssima, cujos apelos maternais sempre convergem no “fazei o que Ele (Cristo) vos disser” (Jn 2,5). E quantos e quantos, graças à vossa intervenção e interesse, regressam dispostos a trilhar caminhos para eles novos ou esquecidos, de penitência, de oração, de honestidade, de bondade, de justiça e de graça.

2. Filialmente devotados a Nossa Senhora, vós sois também instrumentos de Deus misericordioso ao servirdes os vossos irmãos, especialmente os doentes e os mais necessitados; e isso, para vosso bem, pois estais a ouvir a Palavra do Mestre, na perspectiva da “vida eterna”: Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim o fizestes”(Mt 25,40). E mais, com os vossos gestos concretos de humanidade e caridade, vós estais a fazer obra de evangelização: e “aos pobres é anunciada a Boa-Nova” (Lc 7,22).

Não pensais, certamente de outra maneira: a Boa-Nova tem de ser proclamada, antes de mais nada, pelo testemunho, feito de capacidade de compreensão e acolhimento; pela irradiação, de um modo absolutamente simples e espontâneo, da fé em valores que estão para além dos valores correntes e da esperança em alguma coisa que não se vê, nem se consegue imaginar. Por força desta demonstração de amor, sem palavras, não deixarão certamente de aflorar ao coração daqueles que vêem as vossas “boas obras” as perguntas: porque é que eles são e fazem assim? O que é – ou quem é – que os inspira e motiva a serem bondosos? (Cfr. Pauli VI Evangelii Nuntiandi EN 21).

Oxalá continueis a deixar-vos iluminar por esta “razão da vossa esperança” (1Petr.3, 15) e que seja ela a dar-vos coragem para levardes por diante, com serenidade, alegria e amor, as tarefas que aceitas generosamente, como vivência da condição cristã, e quereis que redundem em homenagem filial à Mãe de Deus e Mãe nossa.

3. E a vós, meus irmãos trabalhadores, quero dizer: pelo que sois e aqui representais, ficai certos de que o Papa vos estima muito; o Papa, vós bem o sabeis, representa Cristo Salvador, que não desdenhou – antes pelo contrário – com todo o amor punha em prática, nas suas obras, o “Evangelho”, a Palavra da Sabedoria eterna, que também é “evangelho do trabalho” pois aquele “que proclamava tal “evangelho” era, Ele próprio, homem do trabalho, do trabalho artesanal”, como carpinteiro (Cfr. Ioannis Pauli PP. II Laborem Exercens LE 26).

Vós conheceis que, ainda há pouco tempo, eu escrevi uma longa Carta – uma Encíclica – sobre o trabalho humano, onde podeis ver o valor que eu, na minha missão, dou ao trabalho, e sobretudo a todas as pessoas que trabalham, principalmente quando o fazem com o coração voltado para Deus, conscientes de estarem a continuar e a colaborar na obra criadora, que Ele, bondosamente, quis fazer para nós. Por isso, como lembrança deste nosso breve encontro, como penhor de amizade que desejaria se mantivesse sempre entre nós, porque Deus é nosso Pai bondoso e em Cristo todos somos irmãos, deixo-vos este pensamento:

Ao ganhar o sustento para vós e para as vossa famílias, lembrai-vos sempre que Deus vos vê; exercei a vossa actividade como quem colabora no aperfeiçoamento da criação divina, como quem dá uma contribuição pessoal para a realização dos desígnios de Deus na história. Portanto, glorificai a Deus, sempre, oferecendo-Lhe o vosso trabalho, transformando-o em caridade e em serviço à sociedade de que fazeis parte. O vosso trabalho é importante, não apenas para o progresso terreno, mas também para o reino de Deus, para o qual todos fomos chamados, e no qual vos desejo que tenhais parte, agora no tempo e para sempre no céu.

Eu rezo por vós e espero o mesmo da vossa parte; imploro para todos vós – por intercessão de Nossa Senhora de Fátima – as mais abundantes graças de bondade, de serenidade e de vida em Cristo. E com estes sentimentos vos dou, e por vós a todos os que vos são queridos, de todo o coração a Bênção Apostólica.



PEREGRINAÇÃO APOSTÓLICA EM PORTUGAL

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

NA DESPEDIDA DE FÁTIMA


Quinta-feira, 13 de Maio de 1982

: Queridos irmãos e irmãs,

CHEGOU PARA MIM o momento de deixar Fátima, a fim de continuar a minha viagem apostólica, a minha missão pastoral na vossa pátria.

Vim para um Magnificat convosco, potraído ao longo de todos os actos e cerimónias desta peregrinação; foi Nossa Senhora a presidir; eu, como Seu filho, irmão entre irmãos, participei para confirmar a minha fraternidade na fé e, como sucessor do Apóstolo São Pedro, para ser arauto e porta-voz da Mãe de Deus e nossa Mãe, proclamando a misericórdia do Altíssimo, o mistério da relação da justiça com o amor divino, manifestado em Jesus Cristo, morto e ressuscitado (Cfr. Ioannis Pauli PP. II Dives in Misericordia DM 5).

Comecei a peregrinação com o cântico da misericórdia de Deus no coração; e, ao partir, quero dizer-vos que a minha alma continua a vibrar com esse cântico; e “cantarei perpetuamente as misericórdias do Senhor” (Ps 89,2), no côro da geração actual da Igreja, que tem a Mãe da divina misericórdia como primeira solista. Com o sacrifício do próprio coração, sobretudo aos pés da Cruz, Ela teve uma singular participação no revelar-se da misericórdia; Ela quer levar-nos sempre, pelos caminhos da misericórdia, à esperança: a “Jesus Cristo, nossa esperança” (1Tm 1,1).

Viemos aqui orar, em atitude de amor agradecido ao “Senhor que é misericordioso e compassivo” (Cfr. Matth Mt 6,12). Sentindo quanto precisamos, pessoalmente, continuar a apelar para a misericórdia divina, implorámos: “Perdoai-nos, Senhor, as nossas ofensas”; e sentindo, profundamente, quanto os homens da nossa época O ofendem e O rejeitam, rezámos, com Cristo na cruz: “Pai, perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23,34). Mas orámos também, movidos por um impulso de amor para com todos os homens, nossos irmãos, sem excepção, desejando o bem verdadeiro para cada um deles: crianças, jovens, adultos, pais de família, velhinhos e doentes, onde quer que se encontrem em todas as latitudes da terra. E quereríamos que eles o soubessem. Sim, desejaríamos que a inteira família humana conhecesse “o dom de Deus” Cfr. Io. 4, 10), em Jesus Cristo, o dom do amor e da misericórdia, e se sentisse impelida a cultivar a misericórdia, indeclinável caminho da paz, a ouvir a Palavra, que continua a ecoar nesta montanha de Fátima, proveniente da montanha da Galileia: “Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia” (Mt 5,7).

Viverá “sempre em minha alma”, podeis estar certos, “este grito imortal – ó Fátima adeus”, depois de aqui termos elevado juntos as nossas súplicas, guiados pela fé, pela esperança e pela caridade. Chegou a hora da separação. Mas eu creio que vamos continuar muito unidos no amor de Cristo, ao partirmos com a alegria de ter cumprido um imperativo desse amor, com a nossa “penitência e oração”.

Estou profundamente agradecido a todos os que vos empenhastes e trabalhastes, com afã e entusiasmo, aqui em Fátima, para organizar nos mínimos pormenores esta peregrinação. Fizestes tudo, certamente, para glorificar a Deus e por devoção a Nossa Senhora; mas terá influído também o amor ao Papa. Muito obrigado a todos!

E para que se conserve e se renove sempre a alegria deste encontro, ao dizer-vos “adeus”, “até quando Deus quiser”, dou-vos com a minha bênção, esta lembrança de despedida da Mãe: “Fazei tudo o que Ele – Cristo – vos disser!”. Não esqueçais!

Abençoe-vos Deus Todo-poderoso Pai e Filho e Espírito Santo!

Rezem pelo Papa! Adeus! Até à próxima!





PEREGRINAÇÃO APOSTÓLICA EM PORTUGAL

VISITA DO PAPA JOÃO PAULO II

À UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA


14 de Maio de 1982



Senhor Cardeal Magno Chanceler,
Senhor Reitor, Senhores Professores e Alunos
da Universidade Católica Portuguesa,
amados irmãos e irmãs em Cristo,

Que sejais sempre robustecidos pelo Espírito Santo, que Cristo habite pela fé nos vossos corações e sejais cheios de toda a plenitude de Deus!”(cf. Ef Ep 4, 16ss).

1. É PARA MIM motivo de alegria poder saudar-vos pessoalmente aqui na sede central da Universidade Católica Portuguesa. Alegria de quem se sente bem entre os jovens e neles deposita tantas esperanças; alegria pela vossa alegria, pela qual me sinto contagiado; alegria, porque a Universidade Católica faz parte da minha vida, como perene gratidão, pelo que me deu e me proporcionou dar, sobretudo em Cracóvia, e como saudade. Aqui, de algum modo, estou a matar saudades. Muito obrigado!

Em vós e por vós, eu vejo os numerosos professores e alunos católicos, espalhados pela vossa pátria, que ensinam e estudam nas diversas Universidades e Institutos de ensino superior. Para todos vai também a minha saudação afectuosa, com simpatia, apreço e estímulo, por estarem todos sintonizados no mesmo ideal, de caminhar com Cristo e de contribuir para instaurar o Seu reino no próprio ambiente.

E, dirigindo-me principalmente aos jovens, quero dizer-lhes: sobre vós convergem olhares esperançosos, que não ireis, certamente desiludir. Vós sois motivo de legítimo orgulho para os vossos pais, parentes e amigos; de vós se espera firmeza na concepção integral do homem, da vida, da sociedade, não disjunta dos valores morais e religiosos, para irradiação da cultura e da civilização cristã. Vós pelo que sois, constituís a promessa de um mundo mais justo, mais humano e mais fraterno; promessa que mantereis, se conscientes e empenhados em viver a vossa opção e compromisso com Cristo, de “serdes fermento na massa”(cf. 1Co 5,6).

2. Encontramo-nos hoje nesta jovem Universidade. Era uma instituição de que se carecia, “num País de tradição católica e em que o Cristianismo é o clima espiritual prevalente de que se alimenta a consciência dos portugueses” escreviam os meus Irmãos Bispos, na altura da inauguração, em 1967. Jovem em anos, ela carregava logo à nascença uma antiga tradição e preciosa herança, que foi ao mesmo tempo glória da Nação, sempre ligada à fama que granjearam no mundo as Escolas de Filosofia e de Teologia conimbricenses e os Teólogos que intervieram no Concílio de Trento.

Em virtude dessa herança, certamente, a Universidade Católica foi fundada em Portugal também como acto de clarividência, que o mesmo Episcopado em 1965, exprimia nestes termos: impunha-se criar a Universidade Católica, “perante o que já se designou por “derrocada espiritual da Europa”, para poder apresentar em plano universitário e com o rigor do método científico, a verdade total e universal, a que aspira o nosso coração, e oferecer as chaves que abrem o “mistério” que continuamente o homem se descobre, quando pergunta a si mesmo o que é, donde vem e para onde vai; toda a problemática da cultura humana – o humanismo, a ordem social, o sentido da história – depende da resposta a estas perguntas” (Nota de 16 de Janeiro de 1965).

Não obstante as dificuldades, financeiras e não só – de que tomei conhecimento, ao preparar este encontro – a Providência divina tem vindo em auxílio das boas vontades que Nela confiaram. E oxalá assim continue a suceder, para que a Universidade Católica prossiga a sua caminhada e se afirme cada vez mais na estima de todos, ao realizar os próprios objectivos.

3. Logo nos primórdios do meu Pontificado, como bem recordais, dirigi a toda a Igreja uma Constituição Apostólica – “Sapientia Cristiana” – na qual se contêm a definição dos objectivos e algumas directrizes para as instituições católicas de ensino superior. A actividade de investigação e de ensino a tal nível, entrosada na vida da Comunidade eclesial e integrada nas condições do mundo actual, em que se dão transformações rápidas e profundas, terá de convergir num repensamento constante da área científica, para informar cristãmente a cultura.

E se é verdade que uma Universidade se destina a formar homens pelo homem e para o homem, uma Universidade Católica, há-de também ela, formar homens que, mantendo a posição a favor do homem, o leve a encontrar Cristo, pelo qual e para o qual tudo foi criado, sendo “do grado do Pai que Nele residisse toda a plenitude... e por Ele fossem reconciliadas consigo todas as coisas, pacificando-as pelo Sangue da sua Cruz”(Col 1,19-20).

4. Há uma indispensável plataforma, que já tenho apresentado noutras ocasiões, firmada na “pedra angular”, Cristo, “centro do cosmos e da história”(João Paulo II, Redemptor Hominis RH 1), sobre a qual tem de ser edificada a obra de uma Universidade ou instituição de ensino superior que se preze da designação de “católica”.

O primeiro elemento ou lastro de toda essa plataforma será constituído pela competência e seriedade da investigação e do ensino, com um sentido completo do homem-pessoa, na sua relação com Deus e com a natureza e inserida na família humana; realidade esta, que exige um adequado sentido da história e realismo sereno e crítico, na análise dos factos e dos problemas, sem nunca perder de vista o genuíno bem da comunidade e de toda a sociedade.

O segundo elemento há-de subsistir no comum intento em que terá de centrar-se o dinamismo de tais Universidades e instituições: dotar aqueles que as frequentam de uma sólida preparação, feita de conhecimentos científicos e técnicos aprimorados, juntamente com a formação cristã, que os levem a fazer uma síntese pessoal de cultura e de fé e os tornem aptos para assumir, responsavelmente, tarefas importantes na sociedade, onde hão-de viver o testemunho cristão.

Por fim, condição para se tornarem realidade, os dois elementos anteriores, hão-de as Universidades e instituições similares católicas chegar a instaurar entre a própria população – docente, discente e dos que aí prestam serviço – mais do que um espírito comunitário, autênticas comunidades, em que se viva um Cristianismo operante e capaz de conquistar as simpatias de todos: uma comunidade, onde a aplicação séria ao estudo e à investigação científica, visando a verdade, se desenvolva num espaço e ambiente de vida cristã partilhada.

Estou certo de que vos anima este sentido da vossa identidade, daquilo que vos distingue como “católicos”, que nunca pode permanecer mera qualificação social, mas há-de traduzir-se em vida e testemunho. A afirmação de Deus e dos seus direitos de Criador e Senhor, da sua revelação e da Igreja católica como guarda e intérprete dessa revelação, dotada de um Magistério vivo, constituem o fundamento, sobre o qual edificar quem quiser “juntar” com Cristo e “não dispersar”(cf. Lc Lc 11,23). A consciencialização contínua da índole eclesial das vossas instituições há-de levar-vos a viver a preocupação de servir sempre o maior bem da Igreja universal e das vossas Igrejas locais, em cuja órbita viveis e operais.

5. Na base de uma experiência vivida em longos anos de ensino universitário, nunca me cansarei de realçar o papel da Universidade nos dois “bancos” de trabalho em que se processa o seu labor e se manifesta a sua vitalidade: o da investigação e da instrução científica. Ambas as actividades correspondem ao desejo de conhecer, a uma aspiração profunda que está no coração do homem: de mais verdade, para a plenitude no amor.

Para realizar estas suas finalidade, terá a Universidade que lançar mão de instrumentos de trabalho adequados e actualizar continuamente métodos, a fim de merecer a estima do mundo da cultura, manter credibilidade e proporcionar no campo científico aquela contribuição que o mesmo mundo da cultura e a Igreja esperam.

A verdade e a autêntica ciência jamais se podem esperar de factores aleatórios; são conquistas que se devem fazer recorrendo aos meios adequados, percorrendo os caminhos da seriedade e da aplicação, em contínua, paciente e coordenada investigação. Quando, porém, o objecto de investigação é o homem – tenho-o acentuado muitas vezes – nunca se pode perder de vista a dimenção espiritual na globalidade da sua natureza, sob pena de se cair numa visão depauperante do mesmo homem. E, para o cristão, impõe-se na sua investigação, como no seu ensino, recusar toda a visão parcial da realidade humana e deixar-se iluminar pela sua fé na criação do homem por Deus e na redenção realizada por Cristo.

6. Como é bem conhecido, a Igreja, fiel ao seu divino Fundador, que apontou a verdade como caminho da autêntica liberdade (cf. Jo Jn 8,32), sempre apoiou as instituições que se dedicam ao ensino e à busca da verdade e da conquista do mundo pela ciência; pode até mesmo dizer-se, em perspectiva histórica, que lhe cabe o honroso título de fundadora de universidades que, com o andar dos tempos, se tornaram famosas e protótipos exemplares para instituições congéneres.

Não há, portanto, contradição entre a cultura e a fé, conforme insistentemente realçou o Concílio Ecuménico Vaticano II, pelo contrário, pode haver recíproca iluminação e enriquecimento. Daqui se deduz uma particular responsabilidade dos cientistas cristãos e das instituições católicas de ensino superior: de contribuir para eliminar um grande desequilíbrio entre a cultura geral e o aprofundamento da fé que, em não poucos casos, parece ter-se precocemente ancilosado, com inevitáveis reflexos no comportamento cristão e na presença ao mundo.

7. Numa Universidade católica, toda a actividade, com a indispensável marca da honestidade intelectual e da seriedade académica, se situa na missão evangelizadora da Igreja. Esta missão evangelizadora – como tivestes ocasião de ver na aludida Constituição Apostólica “Sapientia Christiana” – tem por fim que “sejam imbuídos da virtude do Evangelho os modos de pensar, os critérios de julgar e as normas de agir”(cf. João Paulo II, Sapientia Christiana, Proemium, 1). Assim, viria aqui a propósito situar cada um dos protagonistas da vida universitária no papel que lhe cabe nesta obra comum. Mas sei que vos sentis conscientes desse vosso papel e que em ordem a vos ajudar a caminhar com Cristo, em Igreja, não faltarão também iniciativas entre vós numa linha de pastoral das inteligências; e estou certo de que Bispos, sacerdotes, religiosos, leigos comprometidos – enfim, todos os agentes da pastoral – dedicarão o melhor interesse à elevação humana e cristã dos universitários, fazendo entrar Deus na programação e realização das actividades académicas, a fim de poder aí elevar-se o religioso louvor da Sabedoria.

8. No entanto, pensando na figura do professor, em particular no professor de disciplinas sagradas e principalmente no teólogo, creio que é comum a persuasão e a expectativa de encontrar nele algo mais do que um simples transmissor de ciência: um educador de vida cristã. Com efeito, um homem ou uma mulher educados numa instrução católica de ensino superior deveriam normalmente sentir-se preparados com mais alguma coisa do que a competência profissional e capacidade de produção, para enfrentar a vida. Têm da sentir-se cristãos. Em particular, cristãos conscientes de que a qualidade da sua cultura e a competência, como valores pessoais adquiridos, são dom de Deus também para servir à Comunidade onde são chamados a operar. E esta convicção deveriam poder hauri-la também no ensino e testemunho dos professores.

Referindo-me em particular aos teólogos, quereria aproveitar ainda uma vez, a oportunidade para lhes exprimir gratidão e apreço pelo seu trabalho. Este trabalho guiado também ele pela ideia de que o saber teológico é “talento”(cf. Mt Mt 25,16) e da função social da ciência, como bem pessoal, tem um espaço da autonomia científica e caminhos de legítima liberdade, daquela liberdade para a qual Cristo nos libertou (cf. Gal Ga 5, 1ss); mas todos esses caminhos passam pela fé, que actua pela caridade, em obediência à verdade.

Esta passagem obrigatória leva tais caminhos a confluir na ligação com o Magistério e a Hierarquia, o que não tolhe a liberdade da pesquisa, das opiniões pessoais e dos debates a nível cientifico entre os teólogos. Como é sabido, a Hierarquia, ao mesmo tempo que dá as directrizes da unidade católica, precisa e muito pode aproveitar do trabalho teológico.

A balisar ainda tais cominhos existem os direitos da Comunidade eclesial, a ser informada e formada no seu sentido da fé. Assim, não se podem lançar entre o público não especializado hipóteses ou posições livremente discutidas entre peritos e especialistas, mas que não reúnem condições de ser acolhidas pelos fiéis sem perturbação. Embora haja conexão entre o plano da evangelização e o plano da investigação teológica, nunca se pode esquecer que existem uma pedagogia e imperativos na graduação do anúncio.

A nortear a caminhada dos teólogos no seu labor, há-de estar, portanto a preocupação de servir o reino de Deus, com todo o amor. Quando a este amor se sobrepuserem finalidades menos constructivas ou esclarecidas, desfrutar esse bem possuído pode descambar em abuso, com repercussões no campo da caridade, que nunca é inconveniente, nem procura o próprio interesse... “mas rejubila com a verdade”(cf. 1Co 13,6). Isto obviamente, sem pôr em causa a autonomia que compete à ciência, a qual não se reduz a mero auxiliar da fé. O princípio acabado de enunciar, com as suas implicações práticas, é válido não apenas para os teólogos e cultores das ciências sagradas, mas para todos: quanto maior for o “bem” cultural de alguém mais ele deve ser usufruído também como valor “para os outros”, de maneira consciente, activa, responsável e cristã. Pensar e produzir intelectualmente é uma responsabilidade; e, princípio indeclinável, para os trabalhadores intelectuais católicos é pensar bem, à luz da dignidade humana e àquela luz que em Si próprio nos deu o Mestre. Sabedoria eterna, quando nos disse: “Eu sou a luz do mundo; quem me segue não andará nas trevas”(Jn 8,12).

Amados irmãos e irmãs,

Recordais, certamente, uma pergunta que me fazia nos inícios do meu Pontificado e que quis partilhar com toda a Igreja – com a consciência avivada e desenvolvida pelo Concílio Vaticano II – em fase de procura, em muitos campos: “de que maneira será conveniente prosseguir”? E deixo na resposta então dada, e sempre viva no meu espírito, a síntese de tudo o que pretendi transmitir-vos: “a única orientação do espírito, a única direcção da inteligência, da vontade e do coração, para nós, é esta: Cristo, Cristo redentor do homem, Cristo redentor do mundo”(João Paulo II, Redemptor Hominis RH 7).

Reafirmando-vos a alegria que constitui para mim esta visita e encontro, quero certificar-vos de que continuarei presente, com amizade; espero que também me continuareis a ter presente como amigo; e iremos cultivar esta nossa amizade na oração. E pedindo a Nossa Senhora, a Sede da Sabedoria – que Portugal venera com particular amor no Santuário de Fátima, meta da peregrinação apostólica que estou a realizar – que vos proteja com o seu manto maternal, dou-vos, do coração a minha Bênção.



PEREGRINAÇÃO APOSTÓLICA EM PORTUGAL

ENCONTRO ECUMÉNICO EM LISBOA

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


Sexta-feira, 14 de Maio de 1982



Senhores e meus irmãos,

1. AGRADECIDO PELAS PALAVRAS deferentes e votos que me foram dirigidos, quero saudar os representantes das Comunidades cristãs, do Judaísmo e do Islamismo, aqui presentes, exprimindo a todos fraternal respeito e estima. Podermos afirmar hoje em comum a fé num Deus único, criador de todas as coisas, vivo, omnipotente e misericordioso, seria já o bastante para me tornar grato este encontro; estou contente por nos ser dada esta oportunidade de testemunho, que é ao mesmo tempo preito e acto de submissão ao nosso Deus.

Irmana-nos, de algum modo, a fé e um empenho, em muitos pontos análogo, em demonstrar com as boas obras a coerência da nossa respectiva posição religiosa; e também o desejo de, ao honrarmos como Senhor o criador de todas as coisas, o nosso exemplo servir para ajudar outros na busca de Deus, na abertura para a trascendência, no reconhecimento do valor espiritual da pessoa humana e, talvez, na individuação do fundamento e fonte permanente dos seus direitos. Isto – sabemo-lo bem – é condição para subsistirem critérios de avaliação da mesma pessoa humana, que não se confinem à “utilidade prática”, mas que possam salvaguardar a sua intangível dignidade. Além disto, com os cristãos, a fé comum em Cristo Salvador constitui motivo especial de unidade e de testemunho.

2. A sociedade contemporânea aparece-nos distraída ou mesmo apostada, em vasta escala, em “prescindir” de Deus e da religião, e muito voltada para as dimensões materiais e terrenas do homem e da vida; admiráveis progressos, em todos os campos, proporcionam grandes benefícios, mas parecem favorecer em alguns a inversão e substituição de valores. Ao reconhecermos e proclamarmos os valores espirituais e religiosos, poderemos, certamente, suscitar e guiar uma geral intuição vital e, no comum das pessoas em condições normais, um certo vislumbre conceptual, da realidade de um Criador subsistente.

Por outro lado, na fidelidade à religião abraçada, há sempre espaço para a solidariedade humana, porquando, persuadidos como estamos do bem que para nós constitui a crença em Deus, vem espontâneo o desejo de partilhar com outrem este nosso bem. Com todo o respeito, nós podemos tornar-nos sinal do Omnipotente: para muitos, o “Deus desconhecido”; para outros, falazmente indicado em potências temporais, marcadas inexoravelmente pela finitude e caducidade.

3. Estes nossos contactos, o diálogo, e o apreço por inegáveis tesouros de espiritualidade de cada religião, a comunidade cristã e, quando isso é possível, a oração em comum, podem levar a convergir esforços, para obviar à ilusão de construir um mundo novo sem Deus e à inanidade de um humanismo puramente antropocêntrico. Sem a dimensão religiosa e, o que seria pier ainda, sem a liberdade religiosa, o homem fica empobrecido ou defraudado num dos seus direitos fundamentais. E todos desejamos evitar esse empobrecimento do homem.

Assim, quando motivados também pela solidariedade humana, nós passamos da oração, do cumprimento dos mandamentos e da observância da justiça para a vivência prática da coerência religiosa, ajudando a busca de Deus, nós estaremos a contribuir para o bem do nosso próximo e para o bem comum da humanidade.

E isto poderá verificar-se:

– pela honestidade pessoal e disciplina dos costumes, na vida privada e pública, entravando o avanço do relaxamento dos princípios da moral e da justiça, e do permissivismo ético;

– no respeito pela vida e pela família e seus valores, favorecendo a elevação, um humanidade e dignidade, dos nossos semelhantes, e a consolidação dos alicerces insubstituíveis da ordenada convivência em sociedade;

– com o culto do autêntico sentido e prática generosa do trabalho humano, e com corajosa e sapiente participação social e política, buscando o bem-estar de todos e a construção das sociedades e do mundo cada vez mais de acordo com os desígnios e decretos de Deus, em toda a terra, que só assim pode ser um mundo mais justo, pacífico e impregnado de amor fraterno.

4. Venho a Portugal, como sabeis, em peregrinação, principalmente para celebrar a misericórdia de Deus. Tenho para mim a profunda convicção de que Deus misericordioso que ver mais reflectido na inteira família humana, esse seu atributo; a autêntica misericórdia apresenta-se-me como algo indispensável para dar forma e solidez às relações entre os homens, inspiradas pelo mais profundo respeito por tudo o que é humano e pela fraternidade.

Os cristãos, com efeito, são exortados a imitar o Senhor Jesus, modelo de misericórdia. O Judaísmo também considera a misericórdia como um mandamento fundamental. E o Islamismo, na sua profissão de fé, atribui este epíteto a Deus. E Abraão, nosso antepassado comum, ensina a todos – cristãos, judeus e muçulmanos – a seguir este caminho de misericórdia e de amor.

Seja-me permitido concluir estas minhas palavras elevando o espírito em prece, a Deus misericordioso,

– o Inefável, de Quem nos fala a criação inteira,

– o Omnipotente, que nunca constrange mas só convida e orienta a humanidade para o bem,

– o Compassivo, que quer a misericórdia entre todos os homens: que Ele nos guie sempre pelos seus caminhos, nos encha os nossos corações do seu amor, paz e alegria e nos abençoe!



PEREGRINAÇÃO APOSTÓLICA EM PORTUGAL

PALAVRAS DO PAPA JOÃO PAULO II

A D. JOÃO ALEVES, BISPO DA CIDADE DE COIMBRA


Quinta-feira, 13 de Maio de 1982

: Seja louvado Nosso Senhor Jesus Cristo!

1. OBRIGADO SENHOR BISPO de Coimbra, Dom João Alves, pelas suas vibrantes palavras de saudação! Obrigado, Excelentíssimas Autoridades pela vossa deferente presença! Obrigado, meus Irmãos Bispos! Obrigado a todos, Irmãos e Irmãs em Cristo!

Quando lia referências ou ouvia falar desta famosa cidade de Coimbra, no meu espírito associavam-se estas ideias: santidade e beleza, história e vida.

– Santidade, ligada principalmente aos nomes de São Teotónio e da Rainha Santa Isabel e, de algum modo, a Santo António;

– Beleza, que Deus espargiu neste rinção da terra portuguesa e beleza criada pelo homem, na arte, literatura e música;

– História, que se perde sob a fuligem dos séculos: desde “Conimbriga” dos romanos, passando pelos inícios da nacionalidade, até aos oito séculos de vida e cultura portuguesa;

– Vida, finalmente, ligada a esta simpática população, entre a qual emergem os jovens estudantes, desta célebre “lusa Atenas”, a “malta” – se me é permitido – aos quais quero dizer: Olá, “malta”, o Papa conta convosco! Melhor, Cristo conta convosco!

2. Mas, neste momento, Coimbra, diante dos meus olhos, tomou o lugar das imagens e das ideias. Coimbra sois vós: clero, religiosos e fiéis desta Dioceses; vós, seminaristas; vós, pais e mães de família, jovens e crianças; vós, que fazeis trabalhos importantes, e vós, que prestais serviços humildes; vós, “mais pequeninos” – como vos chamou o Senhor – todos vós, que sofreis no corpo ou na alma, pensando em especial nos doentes dos diversos hospitais da cidade; enfim, todos, sem querer esquecer ninguém. O Papa a todos saúda, deseja confortar e abençoar.

Coimbra sois vós! Em vós vejo concretamente traduzidas beleza e vida; e, em esperança, firmada na vossa história, a santidade que para todos desejo e imploro, por intercessão dos vossos santos padroeiros, cuja memória quereis certamente honrar, honrando a tradição conimbricense, pela fidelidade a Deus, por Cristo, na Igreja santa.

3. Mas, seja-me permitido alargar o meu olhar e exprimir os sentimentos que me vão na alma, para abraçar toda a região – centro de Portugal – de Leiria a Castelo Branco e à Guarda e de Aveiro a Viseu – que aqui se encontra bem representada: pelos seus Pastores e fiéis diocesanos (e parecem-me ser muitos), que aqui vieram ao encontro com o Papa, sucessor de São Pedro. A todos saúdo cordialmente! A todos desejo felicidades! A todos repito e quero deixar como lembrança uma palavra que escreveu o primeiro Papa, o Apóstolo pescador da Galileia; deixo-a aqui, em Portugal e numa zona onde há tantos pescadores, para os quais vai toda a minha simpatia:

Por Cristo, “tendes fé em Deus... / Que a vossa fé e a vossa esperança se fixem em Deus. / Obedecendo à verdade... amai-vos uns aos outros” (1 Petr. 1, 20ss).

E estai certos de que Deus misericordioso vos ama muito.

Saudando-vos com “o ósculo da caridade”, peço para todos, os favores divinos, por intercessão da Rainha Santa em particular, com a Bênção Apostólica.





Discursos João Paulo II 1982 - Fátima, 13 de Maio de 1982