Discursos João Paulo II 1982 - Quinta-feira, 13 de Maio de 1982


PEREGRINAÇÃO APOSTÓLICA EM PORTUGAL

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

AO REITOR, PROFESSORES E ESTUDANTES


DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA


Sábado, 15 de Maio de 1982



Excelentíssimo Senhor Reitor Magnifico,
Senhores Professores e Alunos desta Universidade,
Senhoras e Senhores,

1. É PARA MIM um momento de grande alegria encontrar-me nesta Universidade, uma das mais antigas da Europa e intimamente ligada à acção da Igreja. Desde os seus primórdios, colocada sob a protecção de Deus e da Santíssima Virgem, assumiu, no decorrer da sua história, também um compromisso formal de defender a doutrina da Imaculada Conceição de Maria Santíssima. Sinto por isso palpitar aqui uma longa tradição de devoção mariana, elevada ao mais alto nível da cultura nacional.

Saúdo particularmente o Senhor Reitor Magnífico que me acolheu; saúdo o Corpo docente – Lentes, Professores Extraordinários e Assistentes – e o Corpo discente, os queridos estudantes, e quantos integram nesta famosa Universidade a comunidade de trabalho intelectual. Saúdo, com intensidade de sentimento, todos os homens de cultura desta nobre Nação, aqui presentes ou aqui representados.

Reconhecendo o valor do vosso trabalho em prol do homem, venho encontrar-me convosco com respeitosa estima, lembrado dos longos anos em que também eu trabalhei no meio universitário e dos momentos felizes que esta convivência me proporcionou. Estamos todos convencidos de que é em primeiro lugar pela inteligência e só depois pelas mãos que se há-de moldar uma nova civilização, de acordo com as aspirações e as necessidades da nossa época. Cabe a vós, homens de cultura, a tarefa primordial de projectá-la para os dias de amanhã, baseados nos inestimáveis valores da vossa tradição cultural e nas imensas riquezas da alma portuguesa. Encontro-me aqui como um amigo que abre o seu coração em confidências, numa atitude de estímulo e de comunhão em idênticos problemas.

2. Conheceis bem quanto seja grata à Igreja a cultura e tudo o que diz respeito à sua promoção. Ela está sumamente interessada na cultura, porque sabe bem o que esta significa para o homem. A pessoa humana, com efeito, não poderá desenvolver-se completamente, tanto a nível individual como social, senão mediante a cultura.

Isto parece evidente, se considerarmos que a cultura, na sua realidade mais profunda, não é senão o modo particular que tem um povo de cultivar as próprias relações com a natureza, entre os seus membros e com Deus, de molde a alcançar um nível de vida verdadeiramente humano; é o “estilo de vida comum” que caracteriza um determinado povo (Gaudium et Spes GS 53).

Entre as várias culturas, ocupa um lugar de honra a cultura portuguesa. Uma cultura plurissecular, rica, com características bem precisas que a distinguem claramente da dos outros povos. Ela exprime o próprio modo dos portugueses de “estar no mundo”, a sua própria concepção de vida e o seu sentido religioso da existência. É uma cultura forjada no decorrer de oito séculos como Nação, e enriquecida pelos múltiplos e prolongados contactos que Portugal teve durante a sua história, com os mais diversos povos dos vários continentes.

É-me grato, neste momento, recordar a admirável obra civilizadora que os portugueses, juntamente com a da evangelização, realizaram através dos séculos em todas aquelas partes do mundo onde chegaram. E dentro deste ambiente de contactos com novos mundos, e em plano de cultura, como não recordar Luís de Camões e os seus “Lusíadas”, justamente considerados como uma das principais obras da literatura mundial. Quero lembrar também o notável contributo que o vosso País, com as descobertas, deu ao desenvolvimento da ciência. Entre os muitos nomes que poderíamos citar, limito-me a evocar Pedro Nunes, o inventor do “Nónio”, e o médico e naturalista Garcia de Horta. Até no campo das artes, este encontro de civilizações se materializou no vosso inconfundível estilo manuelino.

3. A cultura é do homem, a partir do homem e para o homem.

A cultura é do homem. No passado, quando se pretendia definir o homem, quase sempre se fazia referência à razão ou à liberdade ou à linguagem. Os recentes progressos da antropologia cultural e filosófica mostram que se pode obter uma definição não menos precisa da realidade humana referindo-se à cultura. Esta caracteriza o homem e distingue-o dos outros seres não menos claramente que a razão, a liberdade e a linguagem. Tais seres, com efeito, não têm cultura, não são artífices de cultura; quando muito, são passivos receptores de iniciativas culturais levadas a efeito pelo homem. Para crescer e sobreviver, eles são dotados pela natureza de certos instintos e determinados subsídios tanto em vista da subsistência como da defesa; ao contrário, o homem, em vez destas coisas, possui a razão e as mãos, que são os órgãos dos órgãos, enquanto com a sua ajuda o homem pode munir-se e instrumentos para conseguir os seus fins (cf. S. Thomae, Summa Theologiae, I, 76, 5 ad 4).

A cultura vem do homem. Este recebe gratuitamente da natureza, um conjunto de capacidades, de talentos, como lhes chama o Evangelho, e, com a sua inteligência, a sua vontade e o seu trabalho, compete-lhe desenvolvê-los e fazê-los frutificar. O cultivo dos próprios talentos tanto da parte do indivíduo como da parte do grupo social, com o fim de se aperfeiçoar a si mesmo e de dominar a natureza, constrói a cultura. Assim ao cultivar a terra, o homem actua o plano criador de Deus; ao cultivar as ciências e as artes, trabalha para a elevação da família humana e para chegar à contemplação de Deus.

A cultura é para homem. Este não é somente o artífice da cultura, mas também o seu principal destinatário. Nas duas acepções fundamentais de formação do indivíduo e de forma espiritual da sociedade, a cultura tem em vista a realização da pessoa com todas as suas dimensões, com todas as suas capacidades. O objectivo primário da cultura é o de desenvolver o homem enquanto homem, o homem enquanto pessoa, ou seja, cada homem enquanto exemplar único é irrepetível da família humana.

Entendida deste modo, a cultura abrange a totalidade da vida de um povo: o conjunto dos valores que o animam e que, sendo compartilhados por todos os cidadãos, os reúnem com base numa mesma “consciência pessoal e colectiva”(Paulo VI, Evangelii Nuntiandi EN 18); a cultura abraça também as formas através das quais os valores se exprimem e se configuram, isto é, os costumes, a língua, a arte, a literatura, as instituições e as estruturas da convivência social.

4. Assim, o homem, como ser cultural – vós o sabeis, Senhoras e Senhores – não é pré-fabricado. Ele deve construir-se com as suas próprias mãos. Mas, segundo qual projecto? Que modelo, se é que existe um, deve ter diante dos olhos? Não faltaram, ao longo da história propostas de um tal modelo. E aqui, como é sabido, aparece a importância da antropologia filosófica.

Para ser válido, um projecto cultural não poderá deixar de atribuir o primado à dimensão espiritual, àquela dimensão que diz respeito ao crescimento no ser, mais que ao crescimento no ter. Permito-me, a este propósito, lembrar aquilo que dizia aos representantes da UNESCO: “a cultura é aquilo pelo qual homem, enquanto homem, se torna mais homem, “é” mais, tem mais acesso ao “ser”. É também aqui que se funda a distinção capital entre aquilo que o homem é e aquilo que o homem tem, entre o ser e o ter... O “ter” do homem não é o mais importante para a cultura; não é sequer factor criativo da cultura, senão na medida em que servir ao homem, para “ser” mais plenamente homem, em todas as dimensões da sua existência, em tudo aquilo que caracteriza a sua humanidade”(Ioannis Pauli PP. II, Allocutio ad eos qui conventui Consilii ab exsecutione internationalis organismi compendiariis litteris UNESCO nuncupati affuere, 7, die 2 iun. 1980: Insegnamenti di Giovanni Paolo II, III, 1 [1980] 1640). O objectivo da verdadeira cultura, portanto, é fazer do homem uma pessoa, um espírito plenamente desenvolvido, capaz de chegar à perfeita realização de todas as suas capacidades.

Historicamente cada sociedade, cada nação, cada povo procurou elaborar um projecto humano, um ideal de humanidade sobre o qual plasmar os cidadãos, atribuindo de uma maneira geral, o primado aos valores do espírito.

E a Igreja, como é sabido, também é detentora de um projecto de humanidade, reavivado e proposto pelo Concílio Vaticano II. De pleno acordo com os resultados das investigações da antropologia filosófica e cultural, o Concílio afirmou que a cultura é um elemento constitutivo essencial da pessoa, devendo, portanto, ser promovida por todos os meios. São palavras do mesmo Concílio: A cultura deve tender à perfeição do homem, o qual “dedicando-se às várias disciplinas da história, filosofia, ciências matemáticas e naturais, e cultivando as artes, pode ajudar muito a família humana a elevar-se a concepções mais sublimes da verdade, do bem e da beleza e a formar juízos de valor universal”(Gaudium et Spes GS 57).

5. Ao propor o seu ideal de humanidade, a Igreja não pretende negar a autonomia da cultura. Antes pelo contrário, nutre por ela o maior respeito, como nutre o maior respeito pelo homem; para ambos defende abertamente a livre iniciativa. Com efeito, dado que a cultura, deriva imediatamente da natureza racional e social do homem, tem uma constante necessidade de justa liberdade e de legítima autonomia, de agir segundo os seus próprios princípios para se desenvolver. Com razão, pois, salvaguardados sempre, como é evidente, os direitos da pessoa e da comunidade particular ou universal, a cultura precisa de um espaço de inviolabilidade, exige ser respeitada e poder manter isenção relativamente a forças políticas ou económicas (Cfr. ibid.59).

A história, porém, ensina-nos que o homem, assim como a cultura que ele constrói, podem abusar da autonomia à qual têm direito. A cultura, como o seu artífice, podem cair na tentação de reivindicar para si mesmo uma independência absoluta perante Deus. Podem chegar mesmo a revoltar-se contra Ele. Esta verificação, para os que temos a felicidade da fé em Deus, não se faz sem mágoa.

A Igreja está consciente dessa realidade. Isso faz parte – vós sabeis bem, Senhoras e Senhores – duma luta perene entre o bem e o mal. E a Igreja é chamada, por natureza, a apontar o bem e a reparar e extinguir o mal. Ela recebeu de Cristo a missão de salvar o homem do mal, o homem concreto, o homem histórico, o homem com todo o seu ser: exterior e interior, pessoal e social, espiritual, moral e cultural. E das vias para o desempenho dessa missão da Igreja faz parte a promoção da cultura, entendida seja como formação da pessoa, seja como tecido espiritual, informador da sociedade.

Portanto, na visão da Igreja, a cultura não é algo que permaneça estranho à fé mas desta pode receber profundos e benéficos influxos. Todavia, é necessário não considerar a relação da cultura com a fé como puramente passiva. A cultura não é só sujeito de redenção e de elevação; mas pode ter também um papel de mediação e de colaboração. Com efeito, Deus, revelando-se ao Povo eleito, serviu-se de uma cultura particular; o mesmo fez Jesus Cristo, o Filho de Deus: a Sua encarnação humana foi também encarnação cultural. “Do mesmo modo, a Igreja, vivendo no decurso dos tempos em diversos condicionalismos, empregou os recursos das diversas culturas para fazer chegar a todas as gentes a mensagem de Cristo, para a explicar, investigar e penetrar mais profundamente e para lhe dar melhor expressão; isto aparece, de modo particular, na Liturgia” (Gaudium et Spes GS 58).

E nos dias de hoje, sem abdicar da própria tradição, mas consciente da sua missão universal, a Igreja procura entrar em diálogo com as diversas formas de cultura. E preocupada por descobrir aquilo que une dentro do magnífico património do espírito humano, embora a harmonia da cultura com a fé nem sempre se realize sem dificuldades, a Igreja não deixa de procurar a aproximação de todas as culturas, de todas a concepções ideológicas e de todos os homens de boa vontade.

6. É bem conhecido de todos vós, Senhoras e Senhores, que as condições de vida do homem de hoje sofreram profundas transformações no campo social cultural, mais ou menos por toda a parte; a tal ponto, que parece ser lícito falar de “uma nova era da história humana”(Gaudium et Spes GS 54). O desenvolvimento e o progresso da civilização, marcada pelo predomínio da técnica, abrem à difusão da cultura novos caminhos, preparados pelo imenso avanço das ciências naturais, humanas e sociais e pelo estupendo aperfeiçoamento e coordenação dos meios de comunicação.

Por tudo isto, creio que todos nos regozijamos, com motivos bem fundados, e nos sentimos profundamente gratos ao mundo da ciência e aos seus protagonistas.

Mas este progresso, tão maravilhoso, em que é difícil não vislumbrar os sinais da autêntica grandeza do homem, não deixa de suscitar algumas preocupações. E, não raro, surge nos espíritos a pergunta: este progresso, de que é autor e fautor o homem, torna a vida humana sobre a terra, em todos os seus aspectos, “mais humana”? O homem, enquanto homem, favorecido por todo este progresso, torna-se melhor? Quer dizer: apresenta-se e comporta-se como mais amadurecido espiritualmente, mais consciente da sua dignidade, mais responsável, mais aberto para com os outros – em particular, para com os mais fracos e mais necessitados – e, enfim, mais disponível para prestar ajuda a todos? (Cfr. Ioannis Pauli PP. II Redemptor Hominis RH 15)

Parece não haver dúvidas hoje de que a cultura moderna, alma da sociedade ocidental durante séculos e, por meio desta, em larga medida, também das outras sociedades, está a atravessar uma crise: ela já não se apresenta como princípio animador e unificador da sociedade, a qual, por sua vez, se afigura desagregada e em dificuldade para assumir a sua missão de fazer crescer interiormente o homem em toda a linha do seu verdadeiro ser. Esta perda do vigor e da influência da cultura parece ter na sua base uma crise da verdade. O sentido da verdade tem sofrido um sério impacto por toda a parte. Se formos a ver bem, trata-se, no fundo, de uma crise de metafísica. Segue-se-lhe a desvalorização da palavra, cujo menosprezo tem a sua origem numa certa perplexidade e desconfiança entre as pessoas.

O homem pergunta-se, angustiado: “afinal, quem sou eu?”. A visão objectiva da verdade, muitas vezes vê-se substituída por uma posição subjectiva mais ou menos espontânea. A moral objectiva cede o lugar a uma ética individual, em que cada um parece propor-se a si mesmo como norma de acção, e querer que se lhe exija unicamente ser fiel a essa norma. E a crise aprofunda-se quando a eficácia vem assumir a função do valor. Em consequência surgem as manipulações de toda a ordem e o homem sente-se cada vez mais inseguro, sob a impressão de viver numa sociedade que parece carente de certezas e de ideais e confusa quanto aos valores.

7. No exercício da missão que, por misterioso desígnio da Providência, me está confiada, nas peregrinações apostólicas que faço pelo mundo, anima-me sempre o desejo de ser portador de uma mensagem e de colaborar, com a parte humilde, mas para mim indeclinável, que está ao meu alcance, para que um autêntico sentido do homem prevaleça nas mentes e nos corações, como ponto de encontro de todas as boas vontades, em vista da edificação de um mundo cada vez mais digno do homem.

No processar-se dessa convergência de boas vontades ocupam lugar de relevo os centros e os homens da cultura. Trata-se, efectivamente, de mentalizar as pessoas e animar espiritualmente as sociedades; e nisso poderão ter papel preponderante, não só as instituições como a Igreja, que aqui represento, mas também os centros e as estruturas destinadas à criação e à promoção da cultura. Assim, entram aqui em causa as Universidades. E conheceis a minha posição, de suma estima e respeito, quanto à responsabilidade que reconheço as Universidades no mundo contemporâneo:

São – para mim – um daqueles lugares, talvez o principal lugar de trabalho em que a vocação do homem ao conhecimento, como também o ligame constitutivo do homem com a verdade como fim do conhecimento, se tornam uma realidade quotidiana, se tornam, de certo modo, o pão quotidiano para aqueles que os frequentam e para muitos outros, sedentos do conhecimento da realidade do mundo que os rodeia e do conhecimento dos mistérios da sua humanidade (Cfr. Ioannis Pauli II, Allocutio ad eos qui conventui Consilii ab exsecutione internationalis organismi compendiariis litteris UNESCO nuncupati affuere, 19, die 2 iun. 1980: Insegnamenti di Giovanni Paolo II, III, 1 [1980] 1650s)..

Senhoras e Senhores, Intelectuais e homens da cultura portuguesa,

A situação pode parecer desesperada, precursora de um “Novo Apocalipse”. Mas, na realidade, não é assim. Para a humanidade do Ano Dois Mil existem seguramente uma saída e muitos motivos de esperança. Basta que todos os homens de boa vontade, sobretudo os que professam a fé em Cristo, se empenhem seriamente numa profunda renovação da cultura, à luz de uma sã antropologia e dos princípios do Evangelho.

Creio que estais animados já – e esses são também os votos ardentes que aqui vos expresso – por um desejo de cultivar uma visão do homem e um autêntico sentido da pessoa humana, no vosso nobre trabalho. Tendes na vossa tradição tantos indícios, tantos elementos de universalidade, de abertura aos outros povos, de apreço e sensibilidade para com os sentimentos nobres. Até parece que, através dos séculos, se dá predominância ao coração sobre as construções intelectuais. A civilização que Portugal difundiu pelo mundo, pode dizer-se que teve em especial consideração a pessoa. Fundado nisso, permito-me repetir aqui um apelo que creio ser de todos conhecido:

“Abri ao poder salvador de Cristo... os vastos campos da cultura, da civilização, do progresso. Não tenhais medo. Permiti a Cristo de falar ao homem” Eiusdem Homilia ob initium ministerii Summi catholicae Ecclesiae Pastoris habita, 5, die 22 oct. 1978: Insegnamenti di Giovanni Paolo II, I [1978] 38s), também em Portugal, para o qual, por vós desejo as melhores felicidades.











PEREGRINAÇÃO APOSTÓLICA EM PORTUGAL

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

AOS TRABALHADORES


NA PRAÇA DOS ALIADOS


Porto, 15 de Maio de 1982



Amado Irmão Arcebispo-Bispo do Porto,
Veneráveis Irmãos no Episcopado,
Excelentíssimas Autoridades,
Queridos irmãos e irmãs,
Trabalhadores de Portugal,

1. APRECIEI VIVAMENTE as amáveis e calorosas palavras com que o Senhor Arcebispo-Bispo do Porto quis dar-me as boas-vindas e igualmente a saudação do trabalhador que falou, fazendo-se intérpretes dos sentimentos delicados, respectivamente da Comunidade diocesana e dos homens do trabalho. Muito obrigado!

Paz a esta assembleia! Paz a esta Cidade e a quantos nela habitam! É com estas palavras e com muita alegria que apresento também eu cordiais saudações a todos: à cidade do Porto, esta “antiga, mui nobre, sempre leal e invicta cidade do Porto” – como se lê no seu brasão; à Igreja local portuense, Pastor, Bispos Auxiliares, Sacerdotes, Religiosos, Religiosas e todos os fiéis diocesanos e todo o generoso povo portuense e também à briosa e laboriosa população desta região nortenha, aqui presente e representada. Mas a minha saudação dirige-se muito especialmente aos representantes do mundo do trabalho: particularmente a vós, Mulheres e Homens, trabalhadores da indústria, do comércio, e do sector dos serviços. É grande a minha alegria por viver hoje aqui estes momentos no meio de vós. Conservo como experiência pessoal muito marcante, a minha passagem pelo mundo concreto do trabalho do vosso sector. E dou graças a Deus por isso.

Encontrei-me ontem em Vila Viçosa com os trabalhadores rurais de Portugal; não podia faltar um encontro com os trabalhadores do vosso sector. Ele quer manifestar o amor e a esperança com que o Papa se sente ligado aos trabalhadores: amor e esperança que nascem da profunda convicção de que os valores cristãos do Evangelho também devem estar presentes de modo vital e sempre crescente no mundo do trabalho.

Vós ocupais um lugar especial no meu coração. Estão continuamente presentes no meu espírito os vossos legítimos direitos, e as vossas aspirações, as vossas ânsias e as vossas alegrias, a preocupação que tendes pelas vossas famílias e o esforço generoso que vos anima na busca do bem comum.

2. Sois trabalhadores! Só esta palavra já me evoca um mundo de pensamentos. A vossa própria presença já fala do valor do trabalho, e permite-me como que ler nos vossos semblantes a mensagem que neste momento vos desejo dirigir.

Vejo nas vossas feições as feições de Cristo, conhecido como o carpinteiro de Nazaré; vejo nas vossas feições, neste momento irradiantes de uma alegria festiva, a expressão de confiança; vejo nas vossas feições também estampado o sofrimento e a cruz das jornadas exaustivas de trabalho. Mais do que eu, sois vós, prezados trabalhadores, que hoje aqui falais com a vossa identidade.

Gostaria, neste momento, de apertar as mãos de todos para senti-las, calejadas como estão qual documento da vossa actividade profissional. Quando dais a mão a alguém, em sinal de amizade, concedeis ao interlocutor perceber o peso e o valor do vosso trabalho. Mão nobre que trabalha! Mão que transforma o mundo! Mão que constrói uma nova realidade para uma sociedade mais humana. Mão benfazeja que trabalha para o proveito da humanidade.

Vim ao Porto para honrar e para celebrar o trabalho. Sei bem que o povo desta cidade e desta região e de todo o Portugal se orgulhou sempre pela sua seriedade no trabalho, pelo seu culto do trabalho. Referiam-me que o Porto é conhecido localmente como “cidade do trabalho”. Assim, que poderia eu fazer aqui senão anunciar-vos a “Boa-Nova”, o “Evangelho do trabalho”?

3. Na minha recente Encíclica sobre o trabalho humano, pelo nonagésimo aniversário da “Rerum Novarum”, grande documento do Papa Leão XIII, sobre a questão social, quis prestar uma homenagem especial “ao homem visto no amplo contexto dessa realidade que é o trabalho”, para à luz do mistério da Redenção de Cristo desvelar a sua riqueza e, ao memo tempo, o que há de árduo na existência humana.

A Igreja que acredita no homem e pensa no homem, considera como parte da sua missão “chamar sempre a atenção para a dignidade e para os direitos dos homens do trabalho, estigmatizar as situações em que são violados, contribuir para orientar as mutações para que se torne realidade um progresso autêntico do homem e da sociedade”(João Paulo II, Laborem Exercens LE 1).

O homem, efectivamente, segundo o plano primitivo de Deus é chamado a tornar-se senhor da terra, o “dominá-la”(Gn 1,28), pela superioridade da sua inteligência e a actividade dos seus braços: ele é o centro da criação. “O primeiro fundamento do valor do trabalho – e por isso da sua dignidade – é o mesmo homem”. A dignidade da própria pessoa que trabalha há-de ser a base e o critério a ter presente, quando se trata da avaliação de qualquer espécie de trabalho manual ou intelectual. Na realidade, o protagonista e o fim do trabalho, o seu verdadeiro criador e artífice, mesmo nas mais humildes e monótonas actividades, é sempre o homem, como pessoa. E o homem que foi criado à “imagem de Deus”.

4. A crescente afirmação da civilização materialista, que invade o nosso mundo, tende a relegar para segundo plano a dimensão subjectiva do trabalho, fundada sobre a dignidade do homem. Neste ambiente existe o perigo de os trabalhadores se tornarem autómatos, serem sem rosto, massa amorfa despersonalizada, à mercê de forças poderosas que nem sempre procuram os interesses de quem trabalha: os interesses do homem, da família, e da comunidade.

A questão não é nova, como bem sabeis. A invenção da máquina deu certamente ao trabalho humano uma nova dimensão do instrumento prolongava e reforçava o braço humano, a máquina tendia a substituí-lo. Inventando a máquina, o homem suspirava eliminar o emprego da própria força muscular, aliviar-se de um peso.

Mesmo melhorando as condições de vida dos operários, passado o primeiro impacto da novidade, notou-se que a precisão mecânica e a rapidez cada vez mais acelerada iniciaram um novo processo de vida humana. É a máquina que impõe o seu ritmo ao homem; já não há tempo para nada, nem para ninguém, com todo o cortejo de inconvenientes que se lhe seguem. E não deveria ser assim. Mesmo quando se pretende melhorar as suas condições e nível de vida, submeter o homem, criado a “imagem de Deus”, a um esforço produtivo, quase só orientado ao mero bem-estar material e ao lucro, fechando-se às perspectivas de ordem humana e espiritual, é contra a sua dignidade.

5. Só com base numa consciência assim se podem enfrentar convenientemente os problemas do mundo do trabalho, a começar pelo difícil e melindroso problema da relação entre capital e trabalho, entre propriedade e mão de obra, entre o dator de trabalho e o trabalhador.

Não se pode menosprezar nenhum dos dois dados do problema: sem capital não há trabalho. Portanto os detentores ou fornecedores do capital realizam uma grande obra em prol do bem comum, merecendo a consideração e o respeito de todos, ao abrir novas frentes de trabalho e possibilitando empregos. Por outro lado, o trabalho humano não pode ser considerado apenas em função do capital. Transcende-o absolutamente. O homem não é feito para a máquina, mas a máquina para o homem.

O argumento de que as máquinas não podem parar não é válido para tentar escravizar o homem ao seu ritmo, privando-o do merecido descanso e de um teor de vida verdadeiramente humano.

Recentes transformações profundas se, por um lado, revelam uma vontade real de criar um clima de bem-estar económico e de justiça social sempre mais perfeita, não escondem porém as inevitáveis tensões, perplexidades e fraquezas que acompanham por vezes a busca de soluções e os reajustamentos subsequente às grandes mudanças de ordem sócio-política.

Nestas circunstâncias, todo o cidadão deve aceitar o dever de colaborar sinceramente, para construir, com o seu trabalho sério e fiel, uma comunidade nacional sempre melhor, onde seja promovida a justiça social – nome novo do bem comum – onde seja respeitada em cada momento a dignidade da pessoa. À luz deste bem comum, se deve julgar da oportunidade e justiça de certas formas reivindicativas, que, parecendo defender os legítimos interesses dos trabalhadores, causam por vezes graves danos a toda a comunidade.

6. É certo, caríssimos trabalhadores, que nunca podereis alcançar a solução melhor para os vossos problemas se cada um de vós permanecer isolado. Para participardes na solução dos problemas sociais, tendes também o direito de formar associações, com a finalidade de defender os interesses vitais dos homens empregados nas diferentes profissões. Estes interesses são até certo ponto comuns a todos; mas cada trabalho, cada profissão, possui uma sua especificidade, que deveria reflectir-se nestas organizações. Refiro-me, como bem sabeis, aos sindicatos.

A doutrina social católica não pensa que os sindicatos sejam somente o reflexo de uma estrutura “de classe” da sociedade, como não pensa que eles sejam o expoente de uma luta de classes, que inevitavelmente governe a vida social. Eles são, sim, um expoente de luta pela justiça social, pelos justos direitos dos homens do trabalho segundo as suas diversas profissões. No entanto, esta “luta”, como já dizia na aludida Encíclica “Laborem Exercens”, “deve ser compreendida como um empenhamento normal das pessoas “em prol” do justo bem: no caso, em prol do bem que corresponde às necessidades e aos méritos dos homens do trabalho, associados segundo as suas profissões; mas não é uma luta “contra” os outros”(João Paulo II, Laborem Exercens LE 80).

Está também em vossas mãos, pois, procurar a solução dos vossos problemas. Jamais, porém, com o ódio ou a violência.

O Cristianismo ensina-nos a amar a todos os homens, mesmo quando se defendem os próprios interesses e se está empenhado numa luta reivindicativa. Não se pode pensar só em si, ou na sua própria categoria social. Tudo deve ser subordinado ao bem comum. Não é justo e não é cristão que uma classe, devido a maiores possibilidades de pressão, oferecidas quer pela posição que ocupa no contexto social, quer pela força combativa de que conseguiu munir-se, prevaleça sobre as demais, menosprezando os legítimos direitos de outrem. Cada pessoa e cada classe, ao exigir justiça para si, deve igualmente visar a promoção da justiça e dos direitos dos demais.

7. Nesta linha de pensamento, depara-se-nos, no pólo oposto, a situação dos que não “têm vez” e, por isso, impedidos de “terem voz”: o desemprego. “É bem conhecido que no vosso País – escreveram recentemente os vossos Bispos numa Carta Pastoral – se verifica uma grave crise de desemprego, geradora de situações intoleráveis, no plano pessoal, no plano familiar e no plano social”. E faço minhas as palavras que eles acrescentavam a seguir: “Tudo deve ser tentado para resolver ou minorar, no mais curto espaço de tempo, este problema crucial... É autêntico imperativo patriótico e moral que todas as forças interessadas se empenhem, pondo de lado divergências, recriminações e conflitos, num esforço concertado, em ordem a um plano de redução acelerada do desemprego que comprometa verdadeiramente a comunidade nacional no seu conjunto. Com esse fim, ninguém deve considerar-se dispensado de fazer os sacrifícios necessários”.

Sente-se nos nossos dias a aspiração geral ao trabalho. Trabalhar é integrar-se activamente no processo de desenvolvimento humano e, com isso, sentir-se útil em relação aos outros. A pessoa humana tem inato esse desejo de colaborar nas grandes realizações da comunidade em que está inserida. Cada um parece sentir a sua parcela de responsabilidade. Com efeito, cada homem que vem a este mundo deve dar uma sua real contribuição para o progresso humano, no sentido de tornar o mesmo mundo mais condizente com as verdadeiras aspirações humanas. Por isso a consideração dos valores subjectivos e sociais do trabalho requer que em toda a comunidade política seja reconhecida não só a importância do trabalho mas o próprio direito ao trabalho, tudo se tente no sentido de eliminar o desemprego e o sub-emprego.

8. De algum modo relacionado com este problema do desemprego, anda o problema do justo salário. Sem esquecer nunca que a propriedade privada dos bens está sempre sob hipoteca social, portanto, a dever servir o bem comum, viria aqui a propósito recordar os critérios para estabelecer o justo salário. Este permanece, em todos os casos, a verificação concreta de cada sistema socio-económico. Mas estou certo de que não se deixará de dedicar-lhe sempre a devida atenção. Igualmente se procurará encarar de frente, não duvido, um outro fenómeno, que assumiu enormes proporções em diversos países e que é bem sentido em Portugal: a emigração, com todas as suas incidências, e ligado a ela o fenómeno do urbanismo.

Mas urge terminar, amados irmãos e irmãs, o nosso colóquio. E não o quereria fazer sem uma referência especial às vossas famílias. Vendo-vos a vós, homens do trabalho, penso também naqueles que vos são queridos: as vossas esposas, as vossas mães, os vossos filhos, os vossos doentes. Penso em todos quantos fazem parte do vossos lares. Vós, que vos cansais no trabalho para manterdes a vossa casa e sustentardes os vossos filhos, continuai a ser fiéis aos sãos valores tradicionais da família portuguesa! Continuai a amar as vossas famílias. Porque vós também necessitais da vossa família! Não deixeis que o trabalho desagregue a vida familiar. Não deixeis que certo estilo de vida separe os pais dos filhos. Não permitais que a vossa casa seja apenas um local para tomar as refeições e para descansar! Sede vós os educadores dos vossos filhos!

No lar ocupa um lugar de relevo, a mãe. Dela depende em grande parte o bem-estar da família. Que não se veja forçada, pela carência de meios, pelos salários baixos, a ter que sacrificar o tempo que normalmente dedicaria à casa e à educação dos filhos. Que ela não seja nunca vítima de situações inumanas. E se houver de assumir um trabalho fora de casa, que essa ocupação não sacrifique bens mais profundos nem a afaste do lar, do marido, dos filhos!

Um último apelo, a vós trabalhadores! Abri as vossas famílias a Cristo Trabalhador! A presença do Senhor iluminará as vossas casas, far-vos-á compreender melhor a vossa dignidade de trabalhadores e a vossa missão na família.

9. Amados Trabalhadores:

A concluir, recordo-vos, uma vez mais, a grande nobreza do vosso trabalho; desejo-vos que ele nunca vos degrade; que não cedais nunca a fáceis demagogias, nem vos deixeis iludir por ideologias sem abertura para o espiritual. Estaríeis a sonhar um mundo pouco humano se vos empenhásseis apenas em ter cada vez mais. Como homens, como pessoas e como trabalhadores, que vos anime sempre o ideal de ser cada vez mais.

Lembro aqui, como noutras ocasiões, a bem-aventurança evangélica: felizes os pobres em espírito, pois é deles o reino dos céus: os que têm bens devem abrir o seu coração aos pobres, numa mudança interior, sem a qual não se alcançará uma ordem social justa e estável; e os que não têm bens devem aprender também a viver a pobreza de espírito, para que a pobreza material não os prive da própria dignidade humana, que é sempre mais importante que todos os bens. Na sua forma mais exaltante e bela, o “Evangelho do trabalho” foi escrito e proclamado por Cristo. Ele, sendo Deus fez-se semelhante a nós em tudo, excepto no pecado, e dedicou a maior parte dos anos da sua vida sobre a terra ao trabalho manual, incorporando assim o trabalho e o cansaço na obra da Redenção que vinha realizar.

Mas no pensamento de Deus, o trabalho, “desde o princípio” se enquadrava na perspectiva maravilhosa do “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança”(Gn 1,26), como lemos no início do Génesis. Não encontramos já aqui a primeira expressão do “Evangelho do trabalho”? A razão de ser da dignidade do trabalho está nesta divina “semelhança”. Por isso, o homem, ao trabalhar imita a Deus, seu Criador, porque traz impressa em si mesmo – somente ele – a semelhança com Deus.

Para trabalhar, é necessário ser homem, ser pessoa; para trabalhar, é preciso ser “imagem” de Deus. Daqui se segue que a dignidade do trabalho se apoia não apenas no aspecto natural, mas também na dimensão espiritual. É certamente prerrogativa do homem-pessoa, é factor de realização humana, é serviço à comunidade dos homens.

A minha peregrinação em terras portuguesas foi toda ela marcada pela presença de Maria: Fátima, Vila Viçosa, Sameiro! Ao concluir esta viagem apostólica na cidade do Porto, faço-o ainda à sombra de Maria. Não é o Porto a “civitas Virginis”, a Cidade da Virgem, que ostenta no seu brasão a imagem de Nossa Senhora?

A Nossa Senhora confio todos os que aqui vivem e trabalham, na construção de um mundo mais humano e mais cristão, confio os trabalhadores de Portugal, pedindo-Lhe que a todos conduza a Jesus Cristo, Redentor do homem!





Discursos João Paulo II 1982 - Quinta-feira, 13 de Maio de 1982