Discursos João Paulo II 1982 - Porto, 15 de Maio de 1982


PEREGRINAÇÃO APOSTÓLICA EM PORTUGAL

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

NA CERIMÓNIA DE DESPEDIDA


Porto, 15 de Maio de 1982



Excelentíssimo Senhor Presidente da República,
queridos amigos de Portugal,
meus amados irmãos e irmãs em Jesus Cristo,

1. É CHEGADA A HORA do adeus, de vos saudar como despedida. É sempre um momento denso de pensamentos e de sentimentos. Quereríamos aproveitá-lo bem para reviver o tempo que passamos juntos, para confirmar a amizade, para não esquecer nada, enfim, fazer todo o possível para a presença recíproca continuar. Neste momento, em mim, com tudo isso, prevalece o sentimento da gratidão: a gratidão mais sincera pela grande cordialidade com que fui acolhido em toda a parte por onde passei e onde parei, no decorrer desta breve mas intensa peregrinação em Portugal.

Antes do vos deixar, quero exprimir a todos o meu sentido reconhecimento: a Sua Excelência o Senhor Presidente da República, que quis honrar-me com a sua presença aqui neste momento; aos meus Irmãos Bispos de Portugal, que me testemunharam de tantos modos a sua caridade fraterna, tornando este encontro uma ocasião privilegiada para estreitar os vínculos de comunhão que nos ligam na única Igreja de Cristo; ao Governo e a todas as Autoridades civis e militares que se empenharam em fazer tu do o que estava ao seu alcance, com deferente delicadeza, para ser realizado o meu programa pastoral e prestaram dedicada assistência ao longo da sua actuação. A todos os queridos amigos de Portugal, muito obrigado!

Neste agradecimento e saudação de despedida, não quereria omitir ninguém. É impossível referir-me a todos – pessoas, grupos e entidades – aos quais me sinto grato. Que cada Português e em particular os fiéis católicos, todos os homens e mulheres, filhos ou habitantes desta abençoada “Terra de Santa Maria”, os que tive o gosto de encontrar pessoalmente e aqueles que me acompanharam, de alguma maneira, através dos meios audiovisivos – aos quais aqui desejo manifestar gratidão – se sintam envolvidos na minha estima.

2. Levo viva na alma a emoção sentida perante as contínuas manifestações de afecto com que me rodeastes nestes dias, de um calor tão espontâneo e entusiástico, que jamais poderei esquecer. Disseram-me que em Portugal, nos meios rurais, as portas estão sempre abertas. Eu encontrei abertas as portas dos corações. Fazei de conta que entrei e que cumprimentei cada um de vós, com o vosso significativo: “Salve-os Deus!”.

Ao deixar esta terra, onde às tradições gloriosas do passado se unem as importantes realizações do presente, numa corajosa abertura às perspectivas de um futuro de esperança, desejo renovar o mais elevado apreço pelas várias componentes que dinamizam as estruturas sociais, formulando os melhores votos para que graças à sua concorde e leal colaboração, possa tornar-se cada vez mais realidade um continuo progresso, pelas vias da justiça, da liberdade e da paz.

A Portugal, a Virgem Maria reservou um modo de tratar de singular predilecção, que é título de honra e, ao mesmo tempo, particular motivo de firme coerência na fidelidade ao Evangelho. Todos os fiéis devem ter uma consciência viva disto e empenhar-se em cultivar aqueles valores humanos e cristãos que tornaram grande esta Nação. Nestes dias pude verificar pessoalmente os tesouros de bondade, de cordialidade e de fé que distinguem este povo forte e amável. Em particular, em Fátima, aos pés de Maria, senti vibrar à minha volta a alma de toda a Nação.

Sim, a alma de Portugal católico: quantas coisas me disse nestes dias, mesmo sem palavras! E quantas desejei comunicar-lhe também eu, com palavras, gestos e silêncios! Foi para mim uma experiência espiritual extraordinariamente profunda, cuja recordação dulcíssima guardo no mais íntimo do coração. E no coração conservo também as vossas faces, queridos irmãos e irmãs de Portugal, os olhares implorantes dos vossos doentes, e a meiguice do sorriso das vossas crianças. É um enriquecimento precioso que levo comigo, e de que irei aproveitar nas actividades do meu serviço pastoral quotidiano.

Com a certeza das minhas preces, a implorar do Senhor que os grandes princípios cristãos e de humanidade, que têm guiado esta nobre Nação, continuem a iluminar a sua vida com o sentido de Deus e da solidariedade; brota-me do mais íntimo da alma esta súplica: desça sobre todos os portugueses a bênção de Deus que lhes seja portadora de dons abundantes de luz, de alegria e de paz!

E que nos sirva de intercessora, no alcançar-nos tais favores, Aquela que a Portugal reservou uma singularíssima manifestação de desvelo amoroso do seu Coração de Mãe, Nossa Senhora de Fátima.

Até à próxima! Adeus!



                                                  Junho de 1982



ESCALA NO RIO DE JANEIRO POR OCASIÃO

DA VIAGEM PASTORAL À ARGENTINA

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

Sexta-feira, 11 de Junho de 1982



Senhor Ministro das Relações Exteriores,
Senhor Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro e Irmãos no Episcopado,
Senhor Ministro da Aeronáutica e demais Autoridades,
Senhoras e Senhores e amadíssimos Brasileiros,

1. AO PISAR DE NOVO O solo do Brasil, ainda que por breves instantes – nesta escala técnica da minha viagem à Argentina – um mundo de sentimentos e de gratas recordações me enchem o coração. Quisera que a grande alegria e afeto, que envolvem este meu sentir e reviver, fossem isentos de toda a sombra de preocupação; de qualquer modo, é bem cordial a saudação que, neste momento, quero dirigir ao querido Povo brasileiro, pelos presentes.

Agradeço esta presença, que se torna mais significativa e penhorante pela hora noturna em que se verifica. Agradeço a todos: ao Senhor Ministro das Relações Exteriores pessoalmente, bem como às Autoridades que aqui representa, de modo particular ao Senhor Presidente da República; agradeço aos Senhores Cardeais e Bispos, que aqui, com o amado irmão Dom Eugênio de Araújo Sales, me tornam presente a Igreja que está no Brasil, também representada pela local Comunidade diocesana do Rio de Janeiro e outros fiéis que aqui vieram de outras Dioceses.

Rio de Janeiro! Brasil! Quantas recordações, neste momento e neste lugar, tais nomes trazem ao meu espírito, dos doze dias da minha visita pastoral a Terras de Santa Cruz, de encontro inesquecível com a Igreja que está nesta dileta Nação, do Rio Grande do Sul, até Belém do Pará e ao coração do Amazonas! “Graças a Deus”, por tudo.

Recordo, com particular viveza, cada brasileiro, que então encontrei e que tão cordialmente me acolheu; no seu semblante, eu procurei ver o rosto de Cristo: o Cristo das bem-aventuranças, o Cristo Redentor e Senhor, o Cristo Príncipe da paz. Com efeito, a paz, alicerce de todos os bens, continua a ser fruto de uma educação constante, fundada na verdade, respeitadora da liberdade e dom de Deus confiado aos homens.

2. A boca fala da abundância que vai no coração, amados irmãos e irmãs do Brasil; e no meu coração prevalecem pensamentos de paz. No Brasil que há dois anos visitei – visita que, como a que ora estou para fazer à Argentina, era marcada pelo seu carácter pastoral e eclesial, sem nenhuma intencionalidade política – eu abracei, em abraço de paz, cada Povo deste continente da esperança, como fizera também na precedente viagem ao México; e, na comunhão da Igreja una e universal, rezei, com os Pastores de toda a América Latina, pelo advento de um mundo mais pacífico, mais justo e mais fraterno (cf. Ioannis Pauli PP. II, Allocutio in urbe Roma habita, die 1 febr. 1979: Insegnamenti di Giovanni Paolo II, II [1979] 336). .

Não pude calar este profundo anelo de paz, logo à minha chegada a Brasília. Dizia então que o Papa encaminhara para aqui os passos também para encorajar tudo o que aqui se faz no sentido de promover a paz; quis fazê-lo “até com a sua presença, aquele que tem como aspecto importante da sua missão a construção da paz” (Ioannis Pauli PP. II, Allocutio in urbe Brasilia habita, 4, die 30 iun. 1980: Insegnamenti di Giovanni Paolo II, III, 1 [1980] 1937). .

Esta viagem de hoje, à Argentina, em continuidade com a viagem apostólica que acabo de fazer à Grã-Bretanha, durante a qual não cessei de implorar a paz, prolonga também as duas anteriores a este amado Continente latino-americano, e se enquadra na constante solicitude da “Igreja, sempre conservando amor para com cada Nação em particular, sem deixar de defender a unidade universal, a paz e a mútua compreensão entre os homens” (cf. Ioannis Pauli PP. II, Epistula ad fideles argentinos missa, 5, die 25 maii 1982: Vide supra, p. 1866)..

3. É uma viagem de amor, de esperança e de boa vontade, de um pai na fé, que vai ao encontro dos filhos que sofrem, movido por pensamentos de caridade, de reconciliação e de paz, como representante do Príncipe da Paz; e vai para suscitar e congregar o empenho de todos os homens de boa vontade, com o profundo desejo de que o mesmo Cristo Salvador venha em nosso auxílio, e que se possa elevar, em breve, deste nosso mundo, o cântico angélico da noite de Belém: “Glória a Deus nas alturas”, pela paz na terra, entre os homens por Ele amados (Cfr. Luc Lc 2,14).

E alargando a perspectiva, para além do conflito que no presente semeia a de solação e a morte entre os povos beligerantes no Atlântico Sul, o meu coração sofre com todos os corações feridos pelo mal da guerra noutras partes do mundo.

É com a maior estima, portanto, que reitero a cada filho desta dileta Nação brasileira, o convite para trabalhar e crescer em solidariedade pela paz universal; é com particular intensidade de afeto que exorto a Igreja que está no Brasil a elevar a Deus preces instantes pela paz, em união com o Papa, especialmente durante esta rápida visita: paz nos espíritos, paz na convivência entre os homens e paz entre os povos na grande família humana.

Com estima e afeição, aqui renovo os votos sinceros pelas crescentes prosperidades do querido Povo brasileiro, isentas de sombras sinistras de violência e sempre marcadas pelo respeito pela vida, pelo sentido da justiça e da concórdia e em serviço à causa da paz internacional. Estes votos, em meu coração tornam-se prece, a implorar para cada brasileiro, por intercessão de Nossa Senhora Aparecida, os favores de Deus.

Convido-vos a rezar aqui comigo, unidos fraternalmente, como irmãos da mesma família: invoquemos a Deus nosso Pai, como Cristo nos ensinou, para que o mundo seja cada vez mais a família humana, no amor e na paz:

Pai nosso, que estais no céu,
santificado seja o vosso nome;
venha a nós o vosso reino;
seja feita a vossa vontade
assim na terra como no céu.
O pão nosso de cada dia nos dai hoje;
perdoai-nos as nossas ofensas,
assim como nós perdoamos
a quem nos tem ofendido;
e não nos deixeis cair em tentação;
mas livrai-nos do mal. Amém!

Bendito seja o Nome do Senhor!
Agora e para sempre.

A nossa proteção está no Nome do Senhor.
Que fez o céu e a terra

Abençoe-vos Deus todo-poderoso, Pai e Filho e Espírito Santo.
Amém!

Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo.



                                                        Setembro de 1982



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS PARTICIPANTES DA CONFERÊNCIA


DA UNIÃO INTERPARLAMENTAR


18 de setembro de 1982



Senhor Presidente, Excelências,
Senhoras e Senhores

1. Aprecio de modo particular a vossa presença aqui, por ocasião da importante Conferência que é realizada em Roma pela nobre Instituição de que sois membros. E agradeço-vos a vossa visita.

Os meus venerados predecessores não deixaram de manifestar o seu interesse à União Interparlamentar nem mesmo de lhe prodigar os seus encorajamentos. Por exemplo o Papa Pio XII, a 9 de Setembro de 1948, acentuou a permanência e a oportunidade de tal Associação. E passados dez anos, quando a União teve a sua precedente Conferência na Itália, o Papa Paulo. VI quis prestar clara homenagem ao vosso trabalho de parlamentares. Depois de situar a vossa acção política a respeito do poder executivo, de novos "poderes" de corpos intermediários e de tecnocratas, Paulo VI diagnosticava uma certa crise de função e de identidade do Parlamento, mas fazia justamente votos, no quadro de uma evolução necessária, por que esta instituição desempenhasse, ainda mais eficazmente o seu papel, para além de contendas partidárias e de um certo jogo político estéril. O Parlamento assim compreendido contribui de facto para a salvaguarda da democracia.

Não mostra porventura a experiência todos os dias o que urna nação arrisca quando as Autoridades governamentais de urna parte e os grupos de pressão da outra parte não deixam o justo lugar aos representantes da sociedade, eleitos democraticamente e que agem livremente, em consciência, para responder às aspirações legítimas dos seus compatriotas, tendo em vista o bem comum do conjunto do povo e tendo em conta tanto as realidades concretas como os direitos fundamentais das pessoas e das suas associações?

2. Guiados pelas profundas aspirações populares que estão na base do vosso mandato de representantes, sois certamente muito conscientes da urgência de contribuir para. a segurança e o progresso daqueles que vos deram o mandato, não só no plano interior de cada nação, mas num. quadro sempre mais vasto, sabendo o estreito laço que existe entre o bem comum de cada população e a sua realização em escala mundial.

Neste plano internacional, o valor da União Parlamentar é além disso atestado pela argumentação das adesões: mais de um terço no curso dos últimos dez anos. A representatividade da União é ainda maior enquanto, dentro dela, como aliás noutras Organizações internacionais, sentam-se lado a lado delegados de povos que se esforçam por manter ou aumentar o seu nível de prosperidade, não raro elevado, e representantes de povos que ainda estão a lutar pela própria sobrevivência, comprometida pela fome, pelas doenças, pela falta dos bens essenciais.

Esta diversidade de posições, como também as múltiplas diferenças políticas, sociais e étnicas, conferem à União interparlamentar notável capacidade de síntese e de promoção, que de resto manifestam os temas que discutis nestes dias: desde o vínculo entre a redução das despesas militares e o desenvolvimento económico e social do terceiro mundo até à participação dos parlamentares no campo das relações internacionais; desde a desejada uniformidade das legislações ecológicas destinadas a salvaguardar o equilíbrio do ambiente até aos meios concretos para combater a fome no mundo; e ainda a eliminação dos restos, do velho colonialismo ou a preservação de toda a forma de neocolonialismo.

Precisamente, mais do que recordar a vossa função de parlamentares dentro dos vossos países, quereria referir-me a alguns destes problemas mundiais, e a outros que estão no coração da Igreja católica.

3. Desejo antes de tudo recordar a minha mensagem de Junho passado à XII Assembleia extraordinária das Nações Unidas consagrada ao problema primordial de pôr termo às corridas insensatas aos armamentos: não só das armas nucleares, que certamente suscitam profunda inquietação, dado a sua terrificante capacidade de destruição, mas também do que vem chamado armas convencionais, que absorvem recursos imensos da humanidade enquanto estes podem e devem ser destinados a fins bem diferentes.

Não nos desencorajemos. Certamente, a reunião de Nova Iorque não deu por fim todos os frutos que dela esperavam os povos e os homens verdadeiramente dedicados à paz. Ela deixa contudo a esperança de prosseguir este trabalho em profundidade. Trabalhemos sem descanso junto das instâncias competentes, a fim de que a redução dos armamentos se torne uma conquista efectiva das gerações actuais. Para isto é preciso reforçar o clima de confiança e de colaboração. As ocasiões não faltam. Citamos, por exemplo, para o continente europeu, a próxima retomada da Conferência de Madrid que pode oferecer ocasião de progressos apreciáveis na segurança e na compreensão mútua, na linha do Acto final de Helsínquia. Mas penso também nas reuniões ao nível de" outros continentes, americano, africano, asiático, e nas iniciativas que atingem o conjunto do planeta.

Ao alvorecer deste ano, na minha costumada mensagem para o Dia mundial da paz, defini-a: "um dom de Deus confiado aos homens". A paz está-vos pois confiada também a vós, e isto de um modo particular, em virtude da vossa vocação política activa e das vossas maiores responsabilidades neste campo: oxalá contribuais para que a paz seja salva-guardada, consolidada e instaurada onde não existe!

A este respeito, como não havemos de ter neste momento especial preocupação pelo Próximo Oriente? Mas não me detenho aqui, pois sabeis sem dúvida que na quarta-feira passada, ao fim da audiência geral, expus claramente a solicitude da Igreja e a sua convicção sobre os meios indispensáveis para estabelecer ali uma verdadeira paz.

Isto para vos dizer, Senhoras e Senhores, até que ponto a Igreja está pronta a dar o seu apoio e o seu encorajamento a todos os esforços sérios que têm em vista a paz, e ela não hesita em proclamar que, se os cristãos têm razões particulares para ser testemunhas activas deste dom divino da paz, não é menos verdade que a acção de todos aqueles que dedicam as suas melhores energias a esta causa inscreve-se no desígnio misterioso de Deus e, aos nossos olhos de cristãos, é mesmo muito importante para o Reino de Deus inaugurado em Jesus Cristo, embora se distingua dele (cf. Constituição pastoral do Concílio Vaticano II sobre a Igreja no mundo contemporâneo, 39).

4. Ao falar do desarmamento, eu fazia alusão aos recursos da humanidade a preservar e a desenvolver. É todo o problema da fome no mundo que está aqui em causa, e notei com satisfação que ele também fazia parte da vossa ordem do dia. A composição da vossa União predispõe-vos a tratar com seriedade esta questão crucial do nosso tempo. Eu próprio me referi a ela com frequência, de modo especial junto dos delegados e membros da FAO. Limito-me aqui a uma constatação e a um apelo. Quando ouvimos os peritos, não ficamos impressionados com um paradoxo, que deixa um mal-estar na nossa consciência? Eles não só nos põem diante dos olhos as terríveis estatísticas da fome, mas revelam-nos que o conjunto do mundo tem de que alimentar suficientemente todos os homens e que existe um certo laço de causalidade entre aqueles que comem até à saciedade e aqueles que morrem de fome. Por exemplo, a alimentação desordenada de uns, que gastam tantos cereais para o próprio gado, quando lhes seria mais vantajoso adoptar uma alimentação mais equilibrada, não os leva a privar os seus irmãos subalimentados das proteínas que lhes são estritamente necessárias para a sobrevivência? E os circuitos de distribuição não poderiam ser melhorados? Muitas outras questões semelhantes assaltam a nossa consciência. Sim, devem existir soluções para deter esta praga da humanidade: é necessário

procurá-las, é necessário tornar a opinião pública consciente disto, é necessário fazê-las pôr em acto. Como eu, não podeis deixar de estar angustiados com esta tragédia: convosco lanço um apelo urgente para que a nossa solidariedade neste campo ganhe em eficiência, e faço votos por que os meios apresentados a esta Conferência contribuam para isso.

5. Por outro lado, embora isto ultrapasse o programa da presente sessão, não posso deixar passar uma ocasião tão importante sem recordar à vossa sensibilidade de legisladores e de guias políticos a importância fundamental dos valores da família e das suas tarefas sociais. Estas devem também encontrar a própria expressão sob a forma de intervenções políticas, como eu recordava na Exortação Familiaris consortio (n. 44). Por outras palavras, as famílias devem ser as primeiras a vigiar por que as leis e as instituições do Estado se abstenham de ofender, e antes afirmem e defendam positivamente os direitos e os deveres da família. Não deveis considerar esta missão primordial dos lares como uma interferência no poder público, com o :risco de diminuir a sua autoridade, porque então haveria nisso uma falta de coerência com os repetidos apelos para a participação e a iniciativa.

Sabeis a que ponto a Igreja católica, pelo seu lado, defende, guarda e promove, incessantemente e em todos os países, os valores da família, tais como a fidelidade conjugal, o sentido da sexualidade e as exigências das relações humanas interpessoais, a dignidade da mulher, o dom

E o respeito da vida, o direito e o dever da educação que incumbe aos pais. Se a Igreja consagra tanta energia a testemunhá-lo e realiza tantas iniciativas neste campo por intermédio dos seus membros sacerdotes e leigos, é porque ela atribui grande importância à santidade do matrimónio para a vida dos cristãos e o progresso da Igreja, e está convencida de que é igualmente capital para a sociedade, de que a família é a célula primeira e vital. Ela faz votos por que os diversos responsáveis, sobretudo os legisladores, compreendam com ela a grandeza deste valor para o futuro das sociedades.

6. É oportuno mencionar ainda o problema da liberdade religiosa. Sabeis que a Igreja não pede privilégio algum ao poder civil; com uma clareza que, desde o Concílio, sobressai ainda melhor que no passado, definiu uma posição global segundo a qual a liberdade religiosa não é senão uma das faces do prisma unitário da liberdade: esta é elemento constitutivo essencial de uma sociedade autenticamente moderna e democrática. Por conseguinte, nenhum Estado pode pretender beneficiar de uma estima positiva e, com mais forte razão, ser considerado merecedor pelo único facto de parecer conceder a liberdade religiosa, quando de facto a isola de um contexto geral de liberdade; e um Estado não pode definir-se "democrático" se de qualquer modo põe obstáculos à liberdade religiosa não só no que diz respeito ao exercício da prática do culto, mas ainda à participação num pé de igualdade nas actividades escolares e educativas, como também nas iniciativas sociais, nas quais a vida do homem moderno se articula cada vez mais. A história, mesmo a mais recente, atesta que os responsáveis civis preocupados com o bem do seu povo não têm nada a temer da Igreja; pelo contrário, respeitando-lhe as actividades, proporcionam ao próprio povo um enriquecimento, porque utilizam um meio certo de melhoramento e de elevação.

7. Para vós próprios, o sentido das vossas reuniões anuais não é procurar juntos este melhoramento e esta elevação a fim de preparar um mundo mais humano? De facto não vos contentais com discutir e confrontar as técnicas do trabalho parlamentar e os grandes temas da actualidade política. Através das discussões e dos contactos que vos consentem conhecer-vos bem uns aos outros, estais também continuamente à procura de modelos que permitam superar as tensões profundas que nascem das diversas violações e limitações dos direitos do homem, como por exemplo a exploração no campo do trabalho e os múltiplos abusos que afectam a dignidade humana. A 2 de Outubro de 1979, ao ter a honra de falar à Assembleia das Nações Unidas, afirmei que "o critério fundamental segundo o qual se pode estabelecer um confronto entre sistemas sócio-económico-político não é, e não pode ser, o .critério de natureza hegemónico-imperialista, mas pode, ou antes deve ser o critério de natureza humanística: ou seja, aquela medida em que cada um desses sistemas é verdadeiramente capaz de reduzir, entravar e eliminar ao máximo as várias formas de exploração do homem, bem como de assegurar ao mesmo homem, mediante o trabalho, não apenas a justa distribuição dos bens materiais indispensáveis, mas também uma participação correspondente à sua dignidade em todo o processo de produção e na própria vida social que, em volta deste processo, se vai formando. Não esqueçamos que o homem, embora dependa, para viver, dos recursos do mundo material, não pode ser um escravo deste, mas sim o senhor" (n. 17).

8. Agradeço-vos e felicito-vos, Senhoras e Senhores parlamentares, pelo contributo que dais e continua-reis a dar, dentro de cada um dos vossos Parlamentos e, no plano internacional, no quadro da vossa União interparlamentar. Oxalá contribuais, pela vossa parte, para o progresso humano da humanidade que em inúmeros sectores se verga sob o peso das injustiças do passado ou das novas injustiças que surgem, que aspira a uma igualdade de tratamento e a uma participação responsável, que procura um legítimo bem-estar na paz, sem renunciar a uma liberdade autêntica e forte! Tudo isto encontra o desígnio de Deus sobre o mundo.

Peço ao Senhor dê à vossa consciência a luz e a força de servir este desígnio, com desinteresse, e estou certo que aqueles que têm a felicidade de professar uma fé religiosa não deixarão de O implorar com este fim, porque Deus é maior do que o nosso coração.

Sobre cada um de vós, sobre as vossas famílias e sobre os vossos países, invoco as Bênçãos abundantes de Deus, que é a fonte de todo o bem.

                                   

                                                            Dezembro de 1982





DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AO SACRO COLÉGIO E AOS MEMBROS


DA CÚRIA ROMANA SOBRE


O ANO JUBILAR DA REDENÇÃO


23 de Dezembro de 1982



Veneráveis Irmãos do Sacro Colégio,
Filhos caríssimos:

1. A iminência do Natal encontra-nos reunidos, como de costume, para a agradável troca de cumprimentos de Boas-Festas. Os nossos corações transbordam na mútua alegria: Dominus prope est! O Senhor está perto (Ph 4,5) A expectativa do nascimento terreno do Filho de Deus feito homem polariza nestes dias a nossa atenção, a nossa vigilância, bem como a nossa oração, estimulando-a e tornando-a mais intensa e humilde.

Agradeço-vos, pois, esta vossa presença, que me permite regozijar-me desde já, em comunhão de espírito, com a riqueza do mistério que estamos para reviver. Agradeço de modo particular ao venerando Cardeal Decano, pelas palavras apropriadas que, em nome de todos vós, acaba de me dirigir.

Juntos, vamos ao encontro do Redentor que vem: a Liturgia do Advento já nos dispôs amplamente para esta viagem espiritual, que vai ao encontro do Esperado das nações: até agora percorremo-la na companhia de Isaias, « protótipo » da expectativa messiânica; seguindo as pegadas do Baptista, que uma vez mais fez ressoar para nós a sua voz, a fim de « prepararmos os caminhos »; (Cf. Mt Mt 3,3 Lc 3,4) e, sobretudo, com Maria, a Virgem em atitude de escuta, que esteve connosco com o seu exemplo e com a sua intercessão, porque, onde se espera Jesus, está sempre presente Maria, a « Estrela da Manhã » que prepara a vinda do « Sol da Justiça ».(Ml 4,2)

2. E agora estão para se completar os dias (Cf. Lc Lc 2,6) daquela Natividade bendita, que iremos reviver nos divinos Mistérios da Noite Santa; aproxima-se « a plenitude dos tempos » quando, como diz São Paulo, «Deus enviou o seu Filho, nascido de mulher, nascido sujeito à lei, para resgatar » (Ga 4,4).

Jesus nasce para resgatar, vem para nos redimir.

Vem para nos reconciliar com Deus. Como bem acentua Santo Agostinho, com a sua expressividade característica, « per Caput nostrum reconciliamur Deo, guia in illo est divinitas Unigeniti facta particeps mortalitatis nostrae, ut et nos participes eius immortalitatis essemus » (Ep 187, 6, 20; CSEL 57, p. 99).

O Natal é o início daquele « admirável inter-câmbio » que nos une a Deus: É o início da Redenção.

Compreendeis, portanto, a ressonância que deve ter em nós a Solenidade iminente, quando, com toda a Igreja, já nos estamos a preparar com ardor para a celebração do Jubileu da Redenção. Desejo, pois, deter as minhas considerações sobre este acontecimento extraordinário, nesta ocasião, a primeira que se me oferece depois do anúncio feito na conclusão da Assembleia do Sacro Colégio, a 26 de Novembro passado. Desejaria abrir-vos o meu coração para vos dar a conhecer, e a toda a Igreja convosco, as minhas intenções, isto é, o meu pensamento acerca do significado e do valor deste Ano Santo. Não é este o momento para descer a particulares de carácter organizativo ou prático: virão brevemente. Interessa-me sobretudo reflectir juntamente convosco sobre os vários conteúdos do Jubileu que se está a preparar.

3. Antes de mais convém salientar um aspecto que chama a atenção de quem está atento « à voz do Espírito que fala às Igrejas » (Ap 2,29) a função que este Jubileu de graça assume, entre o Ano Santo celebrado em 1975 e o que será celebrado no ano 2000, na aurora do Terceiro Milénio — o grande Ano Santo. É pois um Jubileu de transição entre estas duas datas, como que uma ponte lançada para o futuro, que parte da experiência extraordinária, vivida por todos, oito anos atrás; de facto, Paulo VI, de venerável memória, convidou então todos os fiéis a viverem a própria « renovação espiritual em Cristo e a reconciliação com Deus ».

É o Jubileu da Redenção: na verdade, se cada Ano Santo propõe em plano universal o aprofundamento do mistério da Redenção e o faz reviver na fé e na penitência, mais ainda, se a Igreja recorda sempre a Redenção, não só cada ano, mas cada domingo, cada dia, cada instante da sua vida — porque na celebração dos Sacramentos, ela está totalmente imersa neste dom sublime e único do amor de Deus que nos foi proporcionado em Cristo Redentor — então este próximo Jubileu é um ano ordinário celebrado de modo extraordinário: a posse da graça da Redenção, vivida ordinariamente na estrutura e mediante a mesma estrutura da Igreja, torna-se extraordinária pela peculiaridade da celebração em programa.

Colocado nesta perspectiva, no Kairós da data histórica que estamos a viver, este Jubileu adquire o carácter de um desafio lançado ao homem de hoje, aos cristãos de hoje, para que compreendam mais profundamente o mistério da Redenção, se deixem captar por este movimento extraordinário de atracção para a Redenção, cujo realismo se verifica constantemente na Igreja como instituição, e deve ser apreendido, como carisma, na hora de graça que o Senhor faz soar para cada homem nos momentos fortes da experiência cristã. Trata-se de um movimento espiritual central, que desde já deve ser favorecido e preparado ao nível de toda a Igreja.

Daqui, a necessidade de viver intensamente este período muito importante. O próximo Jubileu, se não teve as habituais formas de longos tempos de preparação, encontra, contudo, a Igreja já preparada para o celebrar. As duas Encíclicas « Redemptor Hominis » e « Dives in Misericordia » constituem indicações concretas que podem, de alguma maneira, apontar o caminho a seguir e dar orientações para uma apropriada celebração do acontecimento. Estamos também aguardando, ao nível da Igreja universal, o Sínodo dos Bispos, que por singular coincidência decorrerá durante o Jubileu e será dedicado a uma temática estritamente ligada com os seus conteúdos concretos: « A Reconciliação e a Penitência na Missão da Igreja ». O Sínodo está a ser preparado há dois anos, e todos os Episcopados do mundo estão por isso em plena sintonia com o íntimo significado do Jubileu da Redenção; e, por seu intermédio, é já toda a Igreja que está a caminho para a celebração deste acontecimento de graça e de misericórdia.

4. O próximo Jubileu visa « consciencializar » a celebração da Redenção que continuamente se comemora e se revive em toda a Igreja. A sua finalidade específica é a de convidar a uma consideração mais aprofundada do acontecimento da Redenção e da sua concreta aplicação no Sacramento da Penitência.

O conteúdo acha-se claro já na forma evidente da sua formulação: Ano da Redenção. Toda a riqueza do mistério cristão, toda a urgência da proposta evangélica está contida nesta palavra: Redenção. O acontecimento da Redenção é central na história da salvação. Tudo está compendiado nisto: Cristo veio para nos salvar. Ele é o Redentor do homem: « Redemptor hominis ». Para o homem que procura a verdade, a justiça, a felicidade, a beleza, a bondade, sem as poder encontrar só com as suas forças, e permanece insatisfeito diante das propostas que as ideologias imanentistas e materialistas hoje lhe oferecem, e por isso mesmo se abeira do abismo do desespero e da náusea ou se paralisa no estéril e autodestrutivo gozo dos sentidos — para o homem que traz em si impressa, na mente e no coração, a imagem de Deus e experimenta esta sede de absoluto — a única resposta é Cristo. Cristo vem ao encontro do homem para o libertar da escravidão do pecado e para lhe restituir a dignidade primigénia.

A Redenção compendia todo o mistério de Cristo e constitui o mistério fundamental da fé cristã, o mistério de um Deus que é Amor, e que se revelou como Amor, na doação do seu Filho como vítima de « propiciação pelos nossos pecados » (1Jn 4,8-10).

A Redenção é revelação de amor, é obra de amor, como escrevi na minha primeira Encíclica (Cf. Redemptor Hominis RH 9). O Jubileu deve portanto levar todos os cristãos a redescobrir o mistério de amor contido na Redenção, e a um aprofundamento das riquezas escondidas desde sempre em Cristo, na « fornalha ardente » do Mistério Pascal.

Além disso, a Redenção não só revela Deus ao homem, mas revela o homem a si mesmo. (Cf. Gaudium et Spes GS 22). Ela é elemento constitutivo da história humana, porque não se é homem em plenitude se não se viver na Redenção, a qual leva o mesmo homem a descobrir as raízes profundas da sua pessoa, ferida pelo pecado e pelas suas dilacerantes contradições, mas salva por Deus em Cristo, e elevada « ao estado de homem perfeito, à medida que convém à plena maturidade de Cristo » (Ep 4,13).

O Ano da Redenção oferecerá, pois, a ocasião para uma renovada descoberta destas verdades consoladoras e transformadoras: e será tarefa dos Pastores de almas, dos estudos teológicos, da pastoral e do Kerigma difundir num raio o mais vasto possível o anúncio da Salvação, no qual está contida a essência do Evangelho: Cristo é o único salvador, pois que « em nenhum outro há salvação: não existe debaixo dos céus outro nome dado aos homens no qual possamos ser salvos » (Ac 4,12).

5. Esta realidade objectiva do mistério da Redenção deve tornar-se realidade subjectiva, própria de cada um dos fiéis, para obter a sua eficácia concreta, na condição histórica do homem que vive, sofre e trabalha neste final do segundo milénio depois de Cristo, que agora está prestes a terminar.

Neste Jubileu, que visa aproximar da misericórdia de Deus a miséria do homem, deve reavivar-se a tensão para graça, deve aumentar o esforço das consciências para se apropriarem subjectivamente do dom da Redenção, daquele amor que brotou de Cristo crucificado e ressuscitado. O Ano Santo é por isso um apelo ao arrependimento e à conversão, como disposições necessárias para participar na graça da Redenção. Não é o homem que se redime dos próprios pecados, mas sim é ele que é redimido ao aceitar o perdão alcançado pelo Redentor. Procuremos, pois, viver o mistério da Redenção, inspirando-nos naquelas grandes realidades que constituem o fio condutor das minhas primeiras Encíclicas: Cristo Redentor do homem, Cristo que revela o Pai, rico de misericórdia. Também a celebração do Sínodo há-de facilitar a compreensão deste inestimável dom, dispondo os ânimos para se apropriarem subjectivamente da Redenção e para vivê-la, mediante a Penitência e a Reconciliação, isto é, com a vitória sobre o mal moral. Ou seja, com o voltarem-se novamente para Deus, pela conversão. Como escrevi na « Dives in Misericordia », « o autêntico conhecimento do Deus da misericórdia, Deus do amor benigno, é uma fonte constante e inexaurível de conversão, não somente como momentâneo acto interior, mas também como disposição permanente, como estado de espírito. Aqueles que assim chegam ao conhecimento de Deus, aqueles que assim o « vêem », não podem viver de outro modo que não seja convertendo-se a Ele continuamente » (n. 13).

É preciso redescobrir o sentido do pecado, cuja perda se relaciona com uma outra mais radical e profunda, a perda do sentido de Deus. O sacramento da Penitência é o sacramento da reconciliação com Deus, do encontro da miséria do homem com a misericórdia de Deus, personificada em Cristo Redentor e no poder da Igreja. A Confissão é uma actualização prática da fé no acontecimento da Redenção.

O Sacramento da Confissão é portanto reproposto, mediante o Jubileu, como testemunho da fé na santidade dinâmica da Igreja, a qual, dos homens pecadores, faz santos; como exigência da comunidade eclesial, que é sempre atingida na sua totalidade por cada pecado, mesmo cometido individualmente; como purificação em preparação para a Eucaristia; e ainda como sinal consolador daquela economia sacramental, pela qual o homem entra em contacto directo e pessoal com Cristo, que por ele morreu e ressuscitou: « amou-me e entregou-se a si mesmo por mim » (Ga 2,20). Em todos os Sacramentos, a começar pelo Baptismo, estabelece-se esta relação interpessoal de Cristo com q homem; mas é sobretudo na Penitência e na Eucaristia que ela se torna mais viva ao longo da vida humana, tornando-se realidade, posse, sustentáculo, luz e alegria. Dilexit me.

6. Mas o Jubileu da Redenção reveste-se ainda de um outro significado. Vivemos num mundo que sofre: tantos homens, nossos irmãos, carregam uma tristíssima herança de privações, de ansiedade, de dor, que a ninguém pode deixar indiferente.

O sofrimento tem a sua raiz teológica e antropológica no mistério do pecado e, por isso mesmo, é elemento constitutivo da Redenção de Cristo. Nada existe neste mundo que mais corresponda ao sofrimento humano que a Cruz de Cristo. Cristo sofreu a sua Paixão, carregando o peso do pecado do mundo: « Aquele que não havia conhecido pecado, Deus O fez pecado por nós, para que nos tornássemos n'Ele justiça de Deus » (2Co 5,21). O Concílio Vaticano II, apresentando as dramáticas antinomias e dilacerações que tanto afligem o homem contemporâneo, com os enigmas e os desafios que se apresentam à sua nacionalidade e sensibilidade, indicou em Cristo, o Homem novo, e na sua Cruz e Ressurreição, « a única resposta às dramáticas interrogações do homem sobre a dor e a morte » (Gaudium et Spes GS 22).

A Redenção abre-nos o magnífico livro da nossa solidariedade com Cristo sofredor e, por Ele, introduz-nos no mistério da nossa solidariedade com os irmãos que sofrem. O Jubileu da Redenção permitir-nos-á viver mais intensamente no espírito da « Communio Sanctorum ». Os sofrimentos humanos são património comum de todos: cada um tem a sua quota parte a dar para a Redenção, a qual, se bem que realizada de uma vez para sempre, necessita desta misteriosa integração, da oferta deste gravosíssimo peso que são os males e as dores da humanidade — « Adimpleo: completo na minha carne o que falta aos sofrimentos de Cristo pelo Seu Corpo, que é a Igreja » (Col 1,24). Se hoje a Igreja tornou muito mais leves as tradicionais práticas penitenciais, foi precisamente porque aumentou no mundo, apesar das aparências em contrário, o número daqueles que podem realmente fazer uma grande penitência cristã, porque toda a sua vida é uma grande penitência. Estou a pensar nos doentes, na solidão dos anciãos, na ansiedade dos pais em relação aos próprios filhos, no desalento dos desempregados e nas frustrações de tantos jovens que não conseguem inserir-se na sociedade; e estou a pensar igualmente nos que sofrem pela violação dos próprios direitos, através de formas de perseguição, por vezes refinadas, ou mesmo de morte civil.

Pois bem, o Jubileu da Redenção está intimamente ligado a esta multiforme e secreta « Communio Sanctorum ». É verdade que a celebração de cada Jubileu nos põe em comunicação com a incomparável riqueza, que os méritos e sofrimentos dos Mártires e dos Santos ao longo da história antiga e recente da Igreja foram constituindo, como coroa admirável, com o dom da própria vida e da sua heróica fortaleza; e entretanto tem vindo a tornar-se cada vez mais patente - e este será, certamente, um fruto fundamental do próximo Jubileu — que o sofrimento dos irmãos, unido ao de Cristo, é um tesouro do qual vive a Igreja e que sustenta a fé de todos.

Se as dificuldades inerentes à celebração do Jubileu se apresentam hoje menores, em comparação com as de épocas passadas, ou até mesmo dos últimos decénios, isso não nos deve levar a esquecer que cada um pode e deve dar o seu contributo de sofrimento que, quer queiramos quer não, é inerente à existência humana e deve ser associado, em Cristo, ao dos outros irmãos.

Esta solidariedade no sofrimento é hoje muito sentida. Há realmente um amor muito maior na convivência dos cristãos, entre si e que se estende para além das fronteiras da Igreja. A responsabilidade em relação àqueles que sofrem empenha em moldes que não eram até aqui sentidos com tanta acuidade. O Jubileu que se aproxima tornará por isso possível um novo enriquecimento desta sensibilidade, que constitui um genuíno « sensus Ecclesiae », na consciência cada vez maior daquela solidariedade, daquele adimpleo.

7. Por todos estes motivos a que me referi, vós compreendereis que a celebração da Redenção não pode limitar-se a Roma, como é habitual na costumada estrutura dos outros Jubileus. Com efeito, o mistério da Redenção abrange todos os homens; e é por isso que esta Santa Sé de Pedro, fiel ao seu mandato, se preocupa com toda a humanidade. O Jubileu é concebido em favor de todos os fiéis, onde quer que vivam. O seu objectivo é ajudá-los a compreender melhor « as imperscrutáveis riquezas de Cristo », fazendo « resplandecer aos olhos de todos a economia do mistério escondido desde todos os séculos em Deus, que tudo criou, para que a multiforme sabedoria de Deus seja manifestada pela Igreja ».(Ep 3,8 ss).

É verdade que Roma se oferece a todos os peregrinos com o seu carácter único, com as suas memórias apostólicas, com as suas celebrações em que está presente o Papa e com a sua secular prática de organização. Ela, porém, não deseja monopolizar um tesouro que é de todos; e quer que o Jubileu se celebre com os mesmos direitos e os mesmos efeitos espirituais em cada Igreja local, em todo o mundo.

O Jubileu, portanto, será celebrado contemporaneamente em toda a Igreja, tanto em Roma como nas Igrejas locais, durante o mesmo ano. Isto favorecerá nos fiéis cristãos o sentido da universalidade da Igreja, a sua dimensão « católica », e será para todos uma proposta a viverem mais intimamente a mensagem da Redenção, bem como o empenho de conversão e de renovamento espiritual nela contido e que o Jubileu recorda de maneira vigorosa e sugestiva.

8. O Jubileu será celebrado a partir de 25 de Março do próximo ano, Solenidade da Anunciação do Senhor, até à Páscoa da Ressurreição, 22 de Abril de 1984.

Jesus empregou toda a sua existência terrena na Redenção: Redemptor hominis.« Por isso, entrando no mundo — diz-nos a Carta aos Hebreus — Cristo diz "Não quiseste sacrifício nem oblação, mas preparaste-me um corpo... Então eu disse: Eis que venho — como está escrito de mim no livro — para fazer, ó Deus, a Tua vontade"... Em virtude desta vontade, é que nós fomos santificados pela oblação do corpo de Jesus Cristo » (He 10,5 ss.; 10). Jesus viveu esperando a « hora » que o Pai lhe confiou: « Vim lançar fogo sobre a terra; e que quero Eu senão que ele já se tenha ateado? Tenho de receber um baptismo, e que angústias as minhas até que ele se realize » (Lc 12,49). « O meu alimento é fazer a vontade d'Aquele que me enviou e realizar a Sua obra » (Jn 4,34).

Esta obra realizou-se na Cruz, no supremo « tudo está consumado » (Jn 19,30). E o Pai correspondeu a esta santíssima oblação, « constituindo Filho de Deus com todo o poder, segundo o Espírito de santificação pela Sua ressurreição de entre os mortos, Jesus Cristo, Senhor Nosso » (Rm 1,4).

Cristo é o Redentor desde a sua concepção até a sua ressurreição.Poderemos, pois, percorrer uma vez mais todas as etapas da vida do Salvador, para assim participarmos dos frutos da sua Redenção.

9. Confio muito em que também os nossos irmãos que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica, compreendam plenamente estes valores próprios da celebração do Jubileu e saibam encará-lo sintonizados com a viva esperança e amor eclesiais.

O Jubileu é um grande serviço à causa do Ecumenismo. Celebrando a Redenção, passamos além das incompreensões históricas e das controvérsias contingentes, para nos reencontrarmos no comum plano de fundo do nosso ser cristãos, ou seja Remidos.A redenção une-nos a todos no único amor de Cristo, Crucificado e Ressuscitado. É este o primeiro significado que, à luz da actividade ecuménica, se deve atribuir ao próximo Jubileu.

Existe ainda um outro motivo que faz nascer em nós a esperança nesta união de corações: o espírito de oração e de penitência, que caracteriza todas as celebrações jubilares, e que deve levar àquela conversão de coração que os Padres Conciliares indicaram como condição essencial para a recomposição da unidade da Igreja: « Não há verdadeiro ecumenismo — como se lê no Decreto sobre o mesmo assunto — sem conversão interior. É que os anseios de unidade nascem e amadurecem a partir da renovação da mente, da abnegação de si mesmo e da libérrima efusão da caridade. Por isso, devemos implorar do Espírito Divino a graça da sincera abnegação, humildade e mansidão em servir e da fraterna generosidade de ânimo para com os outros » (Unitatis Redintegratio UR 7).

Dirijo pois, desde já, um caloroso apelo a todos os responsáveis e aos membros das outras Igrejas e Comunidades eclesiais, para que acompanhem as celebrações do Ano da Redenção com a sua oração, com a sua fé em Cristo Redentor e com o seu amor; e que este, neles como em nós, se torne anelo cada vez mais sentido de se realizar a oração de Jesus antes da sua Paixão redentora: « ut omnes unum sint » (Jn 17,21).

10. Desejo, por fim, que o Jubileu seja uma catequese geral, uma evangelização capilar a nível de todas as Igrejas locais, centrada na realidade da Redenção: Cristo que salva o homem com o seu amor imolado na Cruz; e o homem que se deixa salvar por Cristo. É um convite a compreender-mos melhor o mistério da salvação, e a vivê-lo em profundidade na prática da vida sacramental.

Nesta acção que nos leva a Cristo, para n'Ele encontrarmos o Pai, deve ser posta em relevo a acção silenciosa e persuasiva do Espírito Santo, com a exortação a uma docilidade cada vez maior e a confiar-se aos seus dons, a fim de que a obra de Salvação, na qual Ele intervém directamente, atinja em cada um dos fiéis a sua efectiva realização. Será assim atingido aquele objectivo principal do Jubileu, que visa acima de tudo a elevação interior e espiritual do homem e, por isso mesmo, contribui também para o amor efectivo entre os povos.

Só Cristo, efectivamente, é « a nossa paz », (Ep 2,14) « Foi Deus que reconciliou consigo o mundo, em Cristo, não lhe levando mais em conta os pecados dos homens e pondo nos nossos lábios a mensagem da reconciliação » (2Co 5,19). O tema da reconciliação está intimamente relacionado com o da paz, da vitória sobre o pecado, a qual deve reflectir-se na vitória do amor sobre as inimizades, sobre as rivalidades e sobre as hostilidades entre os povos, bem como na vitória do amor no âmbito de cada comunidade civil e, mais intimamente ainda, no coração de cada homem. Toda a actividade em favor da paz é uma forma especial de fidelidade ao mistério da Redenção, porque a paz é irradiação da Redenção, é a sua aplicação na vida concreta dos homens e das nações.

O Jubileu há-de contribuir para a consolidação de uma mentalidade de paz no mundo: são estes os votos que me saiem do coração.

11. Confio desde já a realização deste programa à intercessão de Maria Santíssima. Ela é o vértice da Redenção. Ela está indissoluvelmente ligada a esta obra, porque é a Mãe do Redentor e o fruto mais sublime da Redenção. Ela é de facto a « primeira Redimida », em virtude dos méritos de Cristo, Filho de Deus e seu Filho.

A Igreja tem de olhar mais intensamente para Maria. Ela encarna em si aquele modelo que a mesma Igreja espera e deseja realizar: « gloriosa, sem mancha ... santa e imaculada » (Ep 5,2).

O Jubileu da Redenção reveste-se, por conseguinte, também de um aspecto eminentemente mariano: a coincidência da celebração, que se enquadra na expectativa do Terceiro Milénio, ajuda a compreender aquela mentalidade de Advento que caracteriza a presença de Maria em toda a história da Salvação. Ela, como « Estrela da manhã », precede Cristo, prepara a Sua vinda, acolhe-O em si e dá-O ao mundo. Por isso, também na preparação do Jubileu A cremos e sabe-mos presente, a dispor os nossos corações para o grande acontecimento.

Para tanto Lhe confere deputação a sua função materna: como afirmou o Concílio Vaticano II, Ela « cooperou, de modo absolutamente singular — com a sua obediência, com a fé, com a esperança e com a caridade ardente — na obra do Salvador para restaurar nas almas a vida sobrenatural »; (Lumen Gentium LG 61) e por isso, continua ainda hoje, « a cuidar, com amor materno, dos irmãos de seu Filho que, entre perigos e angústias, caminham ainda na terra, até chegarem à pátria bem-aventurada ».(Ibid., 62) Ela é « nossa Mãe na ordem da graça ».(Ibid., 61) Mostrar-nos-á dentro de poucos dias o Verbo Encarnado, no qual fixou o seu olhar interior « meditando todas estas coisas no seu coração » (Cf. Lc Lc 2,19 Lc Lc 2,51) Por isso, a Ela se dirige a nossa oração, para que mostre uma vez mais a toda a Igreja, ou melhor, a toda a humanidade, aquele Jesus que é « bendito fruto do seu ventre » e Redentor de todos.

12. Veneráveis Irmãos e filhos caríssimos: Eis quanto desejava ardentemente comunicar-vos, a vós e a toda a Igreja, no momento em que nos preparamos para reviver o mistério do Natal, que é a aurora da Redenção: na extrema pobreza de Belém, de facto, já se projecta a sombra da Cruz. Que Maria esteja sempre connosco! Que São Miguel Arcanjo, São João Baptista, os Santos Pedro e Paulo, com todos os outros Apóstolos, intercedam por nós, para alcançarmos o dom cada vez mais copioso da Salvação, ajudando-nos a uma digna e frutuosa celebração do Jubileu; e que disponham toda a Igreja a viver este grande acontecimento: a preparem para acolher em plenitude a Redenção de Cristo. Dirijo a toda a Igreja, daqui, o meu brado: « Abri as portas ao Redentor! ».




Discursos João Paulo II 1982 - Porto, 15 de Maio de 1982